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Published on Feb 04,2018
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O HOMEM POR TRÁS DO MITO Giuliano ManfrediniMeu convívio com meu pai foi breve, mas intenso. Poucos anos que equivalem a séculos.Maior, só a saudade. Desse período, guardo uma imagem forte: meu pai sentado à mesa, no sofá ou numapoltrona preenchendo cadernos e cadernos com sua letra miúda e metódica. Um dia,intrigado, perguntei: “Pai, por que você escreve tanto?”. “Porque nos próximos cinquentaanos, Giuliano, as pessoas poderão saber o que eu sinto e penso hoje”, respondeu ele. Criança, não poderia entender o que hoje compreendo com nitidez: Renato Russo escreviapara a posteridade, para a história, visionário que era. Indiferente ao presente e ao seudeterminismo biológico, meu pai dialogava com o futuro, de forma transcendental emágica. Coisa de gênio. Passados quase vinte anos desde a morte de Renato Russo, seu desejo começa a tomarforma com a publicação deste volume. Trata-se do primeiro de uma série de livros quereunirão diários, poemas, letras, obras de ficção e desenhos que meu pai deixou comolegado para os fãs e para todos os que queiram entender a dinâmica criativa de um artistamultimídia, perfeccionista e brilhante. Só por hoje e para sempre é o diário escrito por ele durante a internação numa clínica derecuperação para dependentes químicos no Rio de Janeiro. É um período crucial em suavida, ao longo do qual ele se dedicou a um profundo (e por vezes doloroso) processo deautoconhecimento, reflexão e busca pela vida. A leitura desses escritos permitirá aos leitoresse aproximar de um Renato Russo que poucos tiveram oportunidade de conhecer. UmRenato Russo íntimo: detalhista, sentimental e generoso. Suas canções e letras e o estilo apaixonado de interpretá-las o transformaram numa lendada música brasileira. Este diário revela o homem por trás do mito. E aí reside uma dasprincipais motivações para torná-lo público. É ainda um depoimento que demonstra sua capacidade de superação num momento dedúvidas e incertezas. Estou convicto de que servirá de inspiração para os que buscam forçaspara vencer crises pessoais das mais diversas origens e sair fortalecidos desse processo.

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Meu pai, um humanista em toda a sua plenitude, sempre procurou defender as pessoas aseu redor, como atestam seus manuscritos. A própria decisão de se internar fez parte doesforço em evitar que sua dependência química, de alguma forma, atingisse amigos eparentes. Por isso, para proteger a intimidade das pessoas queridas, decidimos substituirseus nomes por iniciais, sem prejuízo à coragem, sinceridade e transparência que Renatoimprimiu a este relato, que, desde sempre, quis dividir com fãs e admiradores. Agora, seusonho se concretiza. A obra de Renato Russo, que considero o poeta maior de sua geração, é atemporal. Seráatual sempre, como a de Vinicius, de Chico e de Noel. Os netos de nossos netos odescobrirão em bibliotecas ou no ciberespaço, e cantarão seus versos, e lerão esse diário eos que o seguirão, e se emocionarão com sua grandeza e com a beleza de sua obra. Esses inéditos, que a Companhia das Letras leva ao público, não poderiam continuar (bem)guardados comigo. Agora eles pertencem a todos os que lutam, sofrem, cantam, sonham e,principalmente, aos que amam a vida. Como Renato amou tudo o que fez em sua existência,breve e genial.

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NOTA EDITORIALEm “Os anjos”, Renato Russo canta: “Hoje não dá/ Vou consertar a minha asa quebrada/ Edescansar”. Os textos reunidos neste livro foram escritos justamente durante um período derecolhimento, quando — enfraquecido psíquica e emocionalmente, com uma históriaafetiva saturada de relacionamentos destrutivos, a dependência química levando-o ao quechamou de “meu fundo do poço” — o compositor se internou na clínica de reabilitação VilaSerena, no Rio de Janeiro. Foi consertar a sua asa quebrada e descansar por uns dias. Como parte do tratamento, Renato escrevia; contava como tinha sido seu dia nainstituição, lembrava episódios que o ajudavam a entender por que havia chegado àquelasituação. Só por hoje e para sempre traz organizado esse conjunto de folhas soltas quedocumentam a mente do artista e do homem. Muitas vezes as bordas, cabeçalhos e rodapésdessas folhas eram ilustrados com desenhos dele, que procuramos reproduzir aqui. Daexposição de sua intimidade e de seus pensamentos — entremeados com memórias queremontam ao Aborto Elétrico e passam pelos bastidores da Legião Urbana, listam amigos eamores, desilusões e sucessos — o que emerge não é uma figura derrotada, mas a figura dealguém com sede de reaver a saúde e o equilíbrio. O plano de tratamento que se encontra nas primeiras páginas do livro foi usado comoespinha dorsal na organização do material. Ali estavam as tarefas propostas a Renatoseguindo o Programa dos Doze Passos, criado pelos fundadores dos Alcoólicos Anônimoscomo base de sua terapia.1 O diário constitui-se, portanto, das respostas às tarefas do plano de tratamento e das Folhasde Eventos Significativos (FES), nas quais os internos relatavam seu dia a dia. Muitas dasfolhas de perguntas não foram localizadas nem nos arquivos de Renato nem nos arquivos daVila Serena, mas optamos por manter as respostas na íntegra a fim de proporcionar o acessoa um material mais amplo, mesmo que, sem as perguntas, por vezes se perca parte dosentido das respostas. Preservamos ainda as abreviações usadas pelo autor, os trechos que ele rasurou e seusgrifos, para permitir que o leitor se aproxime ao máximo de sua forma de pensamento e

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criação. Importante ressaltar, por fim, que os padrões para caixa-alta e palavras estrangeirasadotadas pelo autor foram mantidos. “Os anjos”, a canção mencionada no início desta nota, está em O descobrimento do Brasil,álbum da Legião Urbana lançado naquele mesmo ano, 1993, poucos meses depois de Renatodeixar a clínica. Disco que em grande medida é um reflexo do olhar captado no períododocumentado nas páginas deste livro. Esse olhar mostra a aspereza cruel do mundo e davida, mas acredita na possibilidade de se rabiscar com giz, no chão, “o sol que a chuvaapagou” (como diz a letra de “Giz”). E afirma, como o artista faz na canção “Só por hoje”, que“posso até ficar triste se eu quiser”, mas com a consciência de que “só por hoje vou melembrar que sou feliz”.As notas chamadas por número são desta edição e estão no fim do volume. As notas de rodapé, chamadas por asterisco ou númerosromanos, são do autor.

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Olá, Renato.Estou lhe escrevendo para me despedir. Sei que não sou mais bem-vindo e consigo ver porquê. No começo nos divertíamos muito e você até deixou que eu tomasse seu lugar, euacreditei que seria para sempre. Tendo sua permissão, aproveitei para fazer tudo que eu maisqueria: usar seu corpo, mente e espírito para viver, forçando-o a necessitar de mim, a querercada vez mais se anular e deixar que eu o controlasse, o levando à dor, ao sofrimento, àsolidão e à destruição total do seu espírito. Esse é o meu jogo, eu sou o seu lado ruim, asemente do mal e da doença que você carrega. Você não sabia disso e me aproveitei. Mesmoquando você queria me esquecer e pedir ajuda, eu me esforçava de todas as maneiraspossíveis (e sou realmente muito ardiloso e sedutor, quase tanto quanto você) para ter denovo sua vida. Eu sou a Morte, eu sou o seu Eu maligno, eu sou o que você quis, por não vermais a Luz e a Verdade. Mas você finalmente provou ser mais forte — nunca atingi seutrabalho, sua criatividade ou seu amor pelos seus. No final de nosso relacionamento, tinhaquase certeza de que eu seria o vencedor, mas não consegui conquistar sua Alma. Seu PoderSuperior é muito forte e acho que você deve seguir seu caminho. Estarei adormecido, e digoisso porque sei que disso você sabe. Você me controla agora e não tenho mais espaço pararespirar. Você sabe que vou tentar voltar. Mas reconheço minha derrota. Cuidado comigo,Seu medoXXX.TELEGRAMADE JUNIOR PARA RENATO.Que bom que aquele monstro foi embora. Vamos ser felizes de novo? É o que mais quero!Um grande beijo, Jr.FAX ESPECIALDE RENATO PARA JUNIOR, EM MÃOS.Que bom que você está comigo novamente! Nem tenho palavras para lhe dizer como sintoter machucado seu coração, durante tanto tempo. Aprendi muitas coisas novas que sei quevocê vai adorar — é tudo aquilo que você me dizia, antes que me deixasse perder no mundo;que saudade tenho dos nossos dias juntos. Era tudo tão simples! Agora eu cresci um pouco etenho responsabilidades de adulto. São problemas e dificuldades também, mas é como vocêsempre me disse: existe tanta coisa boa na Vida. Espero que você me perdoe, meu pequeno

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grande amigo! Descobri uma porção de coisas novas e sei que juntos não precisaremos termedo. Você é minha Luz, eu sou sua Consciência. Juntos sei que vamos conseguir. Só porhoje não vou deixá-lo triste e sozinho como antes. Vamos ser felizes de novo? Um beijo,Renato.PS: Depois eu explico essa história de “só por hoje”. 2 É tão maravilhoso isso, você vaiadorar, é a sua cara. Só por hoje e para sempre! Vamos ser felizes de novo!Sempre seu,

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AUTOAVALIAÇÃO DO PRIMEIRO PASSO (1A)Impotência (admitimos que éramos impotentes perante o álcool e outras drogas — quetínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas) De que forma minha incapacidade de controlar o uso do álcool e outras drogas afetou:1. MEU TRABALHOPor volta de 1984, antes de lançarmos nosso primeiro disco,3 estávamos em São Paulo parauma apresentação no clube Rose Bom Bom (uma casa new wave da moda na época, comcapacidade para um público de trezentas pessoas) e subi bêbado ao palco, o que atrapalhouminha dicção e deixou os outros membros da banda muito chateados (exceto o baixista,4que também estava mais para lá do que para cá). O público não notou nada, porque nossamúsica na época era muito barulhenta e todos acharam que minha performance era partedo show. Não era, eles adoraram de qualquer jeito, mas fiquei muito descontrolado e (comosempre) sozinho depois do show porque ninguém queria falar comigo (acharam que tinhasido um desastre). Eu bebi mais (é claro) e achei, com arrogância, que isso era umcomportamento tipicamente rock ‘n’ roll, quando na verdade era antiprofissionalismomesmo. Nossa pior apresentação deve ter sido em Angra dos Reis, em 1985, quando, além de beber,usei cocaína. Era um festival com várias bandas, pessimamente organizado. Não houvepassagem de som e as guitarras estavam desafinadas e eu desafinei o tempo todo (logo eu,eleito o melhor cantor de rock pela revista Bizz e JB por seis anos seguidos). Se estivessesóbrio, teria controle sobre a situação, em vez de insistir que o erro não era só meu (o que defato não era, mas, sendo o líder da banda, a responsabilidade foi minha). Por acaso nossotécnico de som gravou a apresentação e fiquei a noite inteira ouvindo aquilo, muito, masmuito chateado e frustrado. Me senti um perfeito idiota e prometi q. isso nunca mais iriaacontecer. Me senti MUITO MAL depois, emocionalmente. Até que em 1988 (eu acho) veio o pior incidente: tivemos que CANCELAR um show após aterceira música porque, além de não ter descansado, não me alimentei o suficiente e na noiteanterior fiz uso abusivo de álcool (e vários outros químicos), o que minou meu stamina, eentrei em pânico completo ao subir no palco e verificar que estava passando mal e sem voz.Isso se deu em Patos de Minas. Fizemos o show no dia seguinte, mas aí o público já haviadestruído parte do ginásio e haveria notas em todos os jornais sobre o “incidente”. O showfoi espetacular, mas, de acordo com o médico que me atendeu, minha pressão estivera tãoalta que eu poderia ter morrido ali mesmo, de um enfarte ou coisa parecida. Legal, né? Tivemuito medo. Muito. E depois disso nunca mais deixei essa situação se repetir por minhacausa.

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2. MINHA SAÚDEQuase o.d’di três vezes (uma vez no Rio, em casa, após uso intenso de cocaína e álcool enovamente sem me alimentar, só na base do iogurte — outra no Rio também, e dessa veztive que pedir para chamarem um médico em casa — e a pior de todas em Brasília, ondeestava com um parente meu e fui parar no hospital já quase morto eu acho, em pânico, comtaquicardia etc.).ii Parei então de usar cocaína e concentrei-me no álcool, o que deve ter melevado a uma reação alérgica tão forte toda vez que bebia UM gole somente que fiqueiabstêmio por mais de dezoito meses. Aí eu só fumava haxixe. Legal, né? Tive uma hepatite Bséria (muito séria aliás), certamente ligada às falhas na minha alimentação. Nunca gosteimuito de comida por alguma razão e não comia MESMO. Cheguei aos 50 kg (o que paraminha altura, 1,76 m, me fazia parecer alguém com anorexia nervosa etc.). Fiz terapia apósesse susto da hepatite e fiquei dois anos sem beber (usei haxixe, downers e heroína nointervalo anterior a isso e maconha no final desses dois anos, 1990-92). Tudo isso foiextremamente prejudicial à minha saúde, senti culpa, medo e vergonha, e minha família eamigos ñ sabem como continuei vivo. Legal, né?3. MINHAS FINANÇASNunca tive problemas com dinheiro — os estou tendo agora. Antes chegava ao absurdo degastar US$ 40 000 (quarenta mil dólares) em viagens (como a que fiz para NY e S. Franciscoem 89). Com a dose de Black Label a seis dólares (bebia no mínimo dez doses por dia, issopor TRÊS MESES) e a garrafa de Chivas Regal 25 a US$ 80, dá para imaginar o quanto jogueifora (além de gracinhas do tipo dar notas de cem dólares para mendigos e homeless peopleetc.). Ganhei muito dinheiro antes do Plano Collor e mais ainda depois, tenho casa própria,carro etc., mas deveria ter muito mais. Não tenho um histórico tão trágico qto. o de muitosdependentes (que perderam TUDO), mas não tenho, no momento, grandes reservas para ofuturo e é agora que as coisas estão ficando apertadas, porque meu dinheiro está seacabando e eu me sinto um perfeito imbecil por causa de tudo isso. Poderia ter contribuídop/ ajudar alguma ass. de caridade, ajudar a mim mesmo com terapia (bem antes do quecomecei, só em 1990) etc. etc. etc. Poderia ter viajado p/ a Europa (que ainda ñ conheço), mascertamente morreria de overdose de heroína (minha droga favorita, além do álcool) emAmsterdam ou algum lugar. Me sinto horrível, culpado e, novamente, um perfeito idiotacom tudo isso. Legal, né? (Heroína é US$ 250 o grama.)4. MINHA REPUTAÇÃO (MORAL, FAMA, COMO AS PESSOAS ME CONSIDERAM):Me acham louco, é claro. Não só por causa de meu não conformismo (sou consideradopolêmico por ter assumido meu homoerotismo publicamente em entrevistas e em shows),mas até por referências à minha dependência química (e dependência química em geral) emalgumas de nossas canções. Também porque o público em geral parece exigir um

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comportamento dionisíaco de um artista e a reação nas apresentações ao vivo(principalmente quando danço ou finjo desmaios ou — pasmem — simulo masturbação nopalco) é sempre a mesma: “Esse cara deve ser muito louco, meu”. Além do fato de que amaior parte das pessoas acha que só alguém que não é “normal” escreve canções“profundas”, ou com conteúdo poético acima do normal, que tocam a sensibilidade de todosde um jeito especial. Naturalmente, os escândalos, meu comportamento agressivo quandobebo e até aspectos privados de minha dependência chegam ao público (e existem tambémos boatos — nunca se acerta, mas, como é de praxe nestes casos, chega-se perto da verdade:já estive internado em vários hospícios, meu uso de drogas é homérico — embora não façaapologia das drogas em minhas canções, pelo contrário — e até já “morri” umas duas ou trêsvezes. Já tive que telefonar e avisar meus familiares que continuava vivo, sim, qdo. uma rádioem SP deu boletins sobre minha suposta “morte” ou desaparecimento). Isso tudo é ótimoem nível de trabalho (publicidade gratuita) mas PÉSSIMO qto. à família, amigos e pessoassensatas. O comentário típico é: “Mas logo ele, tão talentoso e inteligente, se destruindodesse jeito…”. Todos parecem saber que tenho problemas, mas a atitude em relação aoartista parece ser: ele/ela é assim mesmo, é o preço da fama (vide Cazuza, Raul Seixas, RitaLee, John Lennon, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain — semcomparações, é claro). No momento minha reputação é PÉSSIMA, e isso devido a incidentesque realmente aconteceram: problemas com seguranças em shows, violência física e verbalde minha parte, instabilidade emocional, escândalos públicos, e tudo por conta de drogas eálcool. Me sinto envergonhado e confuso por tudo isso e muitas vezes me questionei, porme sentir culpado de não estar sendo um bom exemplo para a juventude. O que elesparecem querer, no entanto, é um “mau” exemplo — um bêbado drogado que por acasoconsegue ter a sensibilidade para fazer música que vai direto ao coração de cada um. De doismeses para cá, qdo. cheguei ao “fundo do poço”, a imprensa começou a acompanhar meucaso com o interesse mórbido e sensacionalista próprio dos meios de comunicação demassa, e me dói muito ver meu rosto, nome e vida estampados nos jornais, junto com toda avergonha e insanidade de meus atos. E tudo tem um fundo de verdade, já que realmentecheguei a perder o controle de minha vida — me sinto péssimo com isso.5. MINHAS RELAÇÕES COM A FAMÍLIA E AS PESSOAS EM GERALCom minha família nuclear, a pior possível, durante muito tempo. Fui considerado oresponsável pelo enfarte de meu pai, mal vejo meus outros familiares,iii porque sempreencontro uma desculpa, e, já que sou tímido, sempre bebi em tais encontros para“descontrair” ou mesmo aturar situações entediantes (eu achava) e me comportava comoum idiota depois da sexta dose. Já quebrei coisas, disse o que não devia, agredi pessoas físicae verbalmente — sou extremamente venenoso qdo. embriagado, me dizem que fico (sic)5“com os olhos de um demônio”, e agora, o toque final, estou tendo problemas sérios com

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meus vizinhos (vão chamar a polícia etc., por causa de gritos, barulho, música alta nohorário de silêncio), até com os condomínios dos OUTROS prédios da minha rua. É tantacoisa que até a imprensa, agora, a partir do Carnaval, passou a acompanhar meu caso com ointeresse mórbido e sensacionalista típico dos meios de comunicação de massa. Perdi umagrande amiga no começo do ano e meus amigos VERDADEIROS se afastam prontamentequando estou em crise, embora muitos se aproveitem disso para fazer festa. Tenho pensadomuito sobre isso e acho que são esses falsos “amigos” que devo evitar. O problema maiorcomeçou este ano, quando realmente senti já ter “chegado ao fundo do poço”, sentindoangústia, solidão e dor (até física, por vezes).iv Tive que trocar meu número de telefone nãosó por causa de fãs obsessivos como também por causa de más companhias. Por maisparadoxal que possa ser, sempre preferi ser um dependente solitário (evitava cheirar cocaínaem grupo, por exemplo, por achar, mesmo completamente fora de mim, as pessoas emgeral idiotas e entediantes). Acho que cheguei ao ponto de NÃO TER relações com ninguém,perto da data de minha chegada à Vila Serena. E até hoje me sinto muito mal por causa dissoe sinto ter desperdiçado minha vida.6. MINHA EDUCAÇÃO (ESCOLARIDADE, ESTUDOS, CURSOS, LEITURAS)Não posso dizer que esse lado foi afetado pela minha dependência, justamente porque meutilizava do álcool para escrever e das drogas em geral para ler, estudar e trabalhar. Talvezdevesse estar vivendo em vez de ficar em casa lendo W. H. Auden, por exemplo. Uma coisasei: por vezes a leitura de jornais me servia como desculpa para minha dependência.Exemplo: “Este mundo está um horror inominável mesmo, então posso muito bem fugir eme entorpecer”. Lembro que o que mais me chocou foi a morte de dois amigos (umeletrocutado e o outro afogado ao tentar salvar seu amigo), de dezenove anos, no show doMidnight Oil no Maracanãzinho, há cerca de um mês. Isso me deprimiu profundamente eme serviu como desculpa para chegar até a 60 mg de Valiumv por dia, washed down comvinho, Cointreau e saquê. Também criei um círculo vicioso de ler e procurar ler sobre coisasque me deprimissem ainda mais (embora antes de tudo isso já lesse Rimbaud, Plath,tragédias de Shakespeare e filósofos “pessimistas” como Nietzsche e Kierkegaard). Para mimuma coisa justificava a outra, e me utilizava dessa depressão para escrever e me isolar.Exemplo: “Estes idiotas normais não sabem o quão trágica é a situação humana, e doplaneta, neste fim de século”. E eu não queria mais viver. Só pensava em morrer, e era asério.vi7. MEU AUTORRESPEITOFiquei muito mais violento e prepotente do q. já sou, e arrogante; me achava um gênioincompreendido e, ao procurar por amor, comprando sexo, percebo que não tinhaautorrespeito algum, chegando, em tempos recentes, até a “brincar” com sadomasoquismo

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e role-playing. De bicha proustiana passei a bicha pasoliniana (à la Salò ou os dias de Sodoma), eisso não me ajudou em nada, embora deva admitir que ainda acho que algumas dessasexperiências me servirão de alguma coisa, ao completar e continuar minha recuperação.Mas tive crises profundas de solidão, autopiedade (quase uma coisa física, por vezes) e umasaudade intensa do único relacionamento que consegui prolongar por mais de seis meses;viicom um rapaz dois anos mais novo que eu, um americano que conheci em San Francisco(USA) e veio morar comigo quando me mudei para meu novo apartamento em 1990, S. Omotivo? Minha (nossa) dependência química.viii Vejo hoje que nunca tive alguém, o quemais queria e quero em minha vida, talvez (com certeza) por não me respeitar e sempreprocurar relacionamentos de dependência (como no livro Mulheres que amam demais). E aindaexiste muita, muita coisa que não lembro, principalmente de dois meses p/ cá. Sei que,devido à minha personalidade e minha posição, as pessoas exageram seus relatos(principalmente por exemplos que aconteceram nos meus intervalos de abstinência, queforam poucos mas relativamente longos, quando estava sóbrio e lúcido e ouvia o disse medisse sobre o que EU tinha dito, feito etc.),ix mas não posso ter certeza destes últimos meses,porque já estava completamente dependente de Valium, Buspar, Lexotan e álcool (e amaconha ocasional). Pelo menos nunca usei pico, mas isso não significa nada. Como disse,que autorrespeito? Minha vida girava em torno da minha dependência, muita culpa epreocupação. Me senti culpado e envergonhado a maioria das vezes.PS: Os “legal, né?” são comentários irônicos, algo para facilitar relembrar todo este pesadelo,e não cinismo barato. C’est tout.i Morri overdosed.ii Após três dias de uso contínuo de cocaína e só. Nada de comida.iii E tenho a sorte de ter uma família muito unida, amiga e saudável, até, em suas relações.iv Quando parei de usar heroína, nunca me senti tão mal, é o pior pesadelo do mundo. E isso aconteceu duas vezes (a segunda foi umverdadeiro horror e sofri muito durante quase quatro dias). Passei mal várias vezes também durante o período de uso. Perdi aconta. Álcool então, nem se fala.v Vinte mg de Buspar e às vezes 18 a 24 mg de Lexotan.vi Se ñ tivesse vindo a Vila Serena, provavelmente estaria morto antes de junho. Meu médico me disse isso e ainda tenho uma lesão

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séria no fígado que, por milagre, é reversível, com tratamento.vii E que também não deu certo.viii Não sei onde ele está e imagino se ele já não está morto. Não sei. A última vez que nos falamos, ele estava em um hospital, porcausa de um acidente de moto, causado por drogas e álcool, é claro.ix E nada era verdade.

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08/04/93O depoimento de M.; não estar de mau humor (no primeiro dia estava péssimo, cabisbaixo enão quis me comunicar com ninguém). Também gostei muito da carne assada e da palestrade El. E acho que até participei de forma interessada p/ meu primeiro dia.09/04/93Fiquei um tanto decepcionado com a palestra sobre medo (achei a explanação confusa), masadorei a atividade dinâmica (principalmente imitar os outros). Por minha posição no mundoexterior sinto que, lá fora, as pessoas não expressam seus sentimentos e aqui, em V. Serena,posso ser exatamente como sou (e tento ser lá fora, mas lá não existe interesse e estão todosapavorados e carentes, e são quase todas pessoas ignorantes, quando não burras — existeuma diferença!). Eu me adoro, eu não gosto é do mundo (como disse no final da dinâmica). Efiquei especialmente comovido com o uso de Whitman — excelente ideia — e quando Mc.chorou. (Eu acho ele um gato e espero não ter problemas com isso. Ha-ha.) Aqui me sintoseguro porque percebo um verdadeiro sentido e sentimento de amizade entre todos (o quesempre procurei em minha vida). Posso estar completamente equivocado, mas sinto queminha dependência sempre foi provocada por esse sentimento de ser genial, inteligente egentil e nunca ter retorno. Talvez meu problema tenha sido justamente me achar especialdemais e, para enfrentar o tédio e a estupidez do mundo, utilizar-me das drogas p/ poderbaixar o nível. Também gostei da citação do Eclesiastes (um tempo para plantar, um tempop/ colher et al.). Meus colegas de quarto são legais e espero que tudo isto não seja apenaseuforia vazia. E o almoço de Sexta-Feira Santa estava ótimo. Foi bom ter recebido a visita demeus primos e minha tia e ótimo ter descansado à tarde. Foi muito bom também ver afelicidade de J. e suas filhas e todos em geral (embora Mc. tenha ficado um pouco jururu pornão ter vindo ninguém p/ vê-lo). E, oh, céus, Mc. é casado e tem uma filha! Bem, ninguém éperfeito e continuo achando ele um gato. Agora, CARNE na ceia da Sexta-Feira Santa é umtanto demais. Conversamos bastante à noite, eu e os colegas, após a reunião do NA6 (que medeixou bastante chocado). Não entrei como membro porque, embora tenha gostado dosdepoimentos das duas meninas (não lembro seus nomes), achei o rapaz que falou porúltimo radical e extremo (parece que agora a vida dele se resume ao NA e, além do mais, nãogosto, nem nunca gostei, de traficantes em geral, mesmo que reformados). Dormi bem esem problemas (a não ser uma coceira permanente no corpo, como se tivesse pulgas — masdr. W. disse q. isso é devido à desintoxicação). Um dia de cada vez.

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PS: O PONTO FRACO DA MINHA PERSONALIDADE Q. ESCOLHI PARA MELHORAR ESTASEMANA: impaciência (e também agressividade e melancolia). Tenho me sentido bem(normal).

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10/04/93O dia inteiro, embora esteja exausto. Saber que meu T4 subiu para 1,6 foi muito bom, a visitados meus pais foi boa para mim e eles realmente gostaram daqui. Foi bom o encontro dasfamílias, a dinâmica do barbante, a despedida de R. e todas as atividades do dia em geral. Masestou entediado e ansioso, por alguma razão. Queria ficar sozinho com quem amo, mas nãotenho namorado. So what. Meu filho vem amanhã, e vai ser ótimo. Fora isso, os mosquitosme incomodam e estou REALMENTE cansado, exausto quase (meu pulmão direito aindadói). E o dr. Sl. sempre me deixa um tanto ansioso, boas notícias ou não. Nem sei se vou usaro Dream-Machine. Acho que a chegada do novo interno me abalou. Hoje pelo menos acheitudo muito estressante — mesmo que tenha sido um dia muito positivo. Acho que voudormir cedo. Minha meta de ser paciente e atencioso (etc.) é bem extenuante. Mas tudo bem.PS: O Jornal Nacional (ou algo) me deixou MUITO deprimido e fui dormir cedo MESMO.

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11/04/93Hoje o dia foi bom, adorei o Ayrton Senna ganhar a corrida. A reunião do AA7 foi boa, masno final já estava com sono. Não estou em processo de desintoxicação nada, i.e., não é issoque me faz coçar o corpo inteiro, e sim escabiose (horror dos horrores). Acordei mais cedop/ tomar banho com a loção que meu médico recomendou. Eu SABIA que homeopatia ñ iafuncionar em um organismo tão maltratado qto. o de um dependente químico. Dormi mal,mas acordei bem. Meus parentes me trouxeram mais loção, lençóis, toalhas etc. Meu filhoveio me visitar (é Páscoa!) e em geral foi tudo bem. Ontem estava MUITO deprimido, hojeestou me sentindo normal. O sr. A. é ótima pessoa, e foi bom ter crianças correndo pelopátio etc. Sempre gosto das atividades e hoje, por ser domingo, fizemos pouco, mas foi bom.Estou mais seguro e confiante do que ontem, mas é por volta do entardecer que fico meiodeprimido, não sei por quê. Foi bom que meus pais tenham vindo, e minha tia e minhapriminha Thayssa, mas, por algum motivo (culpa? vergonha? tédio?), não fico tão feliz qto.acho que deveria ficar com as visitas. Também estou menos cansado do que ontem, qdo.estava exausto. Só agora é que o tempo começa a se fixar e começo a me lembrar de coisas eeventos (antes me confundia todo ainda). All in all, um bom dia. É perto das seis, não queromais trabalhar porque aproveitei meu tempo livre para escrever meu 1A e não sei se o restoda noite vai ser tranquilo como foi o dia. Espero que sim.

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12/04/93Como os próprios colegas lembraram, estou “aterrissando” em V. Serena agora. Adorei aMn. e me identifiquei muito com ela. Por algum motivo (é sempre por algum motivo…!)estava muito feliz na hora do almoço: o sol, o almoço foi bom (sorvete!), mas a parte da tardefoi um tanto exaustiva, informação demais. Notei que todos se soltam cada vez mais(principalmente Mc., depois de contar sua história, que — pena — não pude ouvir, e E.).Gostei muito da interpretação dos desenhos e da conversa com meu coordenador, emboratenha, devido ao “peso” de tanta informação, ficado um pouco desatento (e sonolento até)durante a palestra sobre dependência química vs. emocional. A despedida de Mc. meemocionou (quase chorei), e devo confessar que não sei realmente se ele vai conseguir —espero que sim! GA8 é sempre uma maravilha, comprei um livro recomendado por umaamiga, Viver sóbrio, e gostei muito dos capítulos que li de Seus pontos fracos. Culpa epreocupação: oh, yeah. Bem, fiquei um pouco ansioso por volta do jantar (sempre oentardecer), mas tomei um chá com um pouco mais de açúcar e isso me animou. Todos seanimaram também — parece que o grupo tem uma dinâmica própria, que todos, de algumaforma, sentem mais ou menos o mesmo, ao mesmo tempo! Será o Poder Superior? Agoratemos AA e pretendo tomar banho e passar a loção (ugh.) p/ escabiose, que está indoembora mas MUITO gradativamente. Gosto muito daqui — pelo menos é o que estousentindo hoje. Gostei também da Ln., que não conhecia.PS: Bons sonhos!

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13/04/936h30 P.M.Achei muito bonito a G. mostrar um lado mais humano. Já estava achando ela mais parecidacom um robô (lhe disse isso). Adorei o vídeo, aprendi muito e achei divertido tambémporque adoro dublagens baratas (sem ofensa). Resolvi (acho que sim e tive a confirmaçãodisso no GA com os colegas) meu problema com o GT9 (ver primeira linha). Tenhoproblemas com figuras de autoridade, regras, fascismo (mesmo inexistente, mas não se podeignorar o que se sente), e isso está bem enraizado em mim, principalmente porque é umadas razões para que meu trabalho fosse tão bem-aceito pelo público (a maioria dos jovenspensa o mesmo, até qdo. ñ consegue expressar esse sentimento) — é o que coloco nas letrase o que represento como figura pública (o rebelde). De qualquer forma, acredito já terresolvido isso, porque a partir das palestras sobre assertividade e autoestima, em vez de mefechar, perder a paciência e o bom humor, expus o problema, e agora é dar tempo ao tempo.Hoje aterrissei em VS para valer e foi com um CRASH! BOOM! Mas as coisas são assimmesmo. Gostei muito de nossa conversa e — surpresa das surpresas! — em menos de umahora já estava bem e feliz (embora ao entardecer…). Vamos ter NA (o que não gosto —fiquei membro do AA, e é tudo muita informação de uma vez só, mesmo — eprincipalmente! — para mim) daqui a pouco, e depois pretendo dormir cedo. Gostei muitoda palestra da Ln., embora esta questão de dependência (quím., pessoas) mexa muito comigoainda. Acho que trabalhei minha impaciência e agressividade muito melhor do que nopassado (não há comparação). Imagine como era qdo. eu bebia! Mn. veio me dizer q. ficoufeliz com o que escrevi sobre ela e seu trabalho, e me lembrou que já nos conhecíamosdesde quarta-feira, qdo. cheguei (mas ainda estava sob o efeito de — ). Gostaria de apresentaralgo q. tentei controlar e ñ consegui hoje, mas acho q. me saí muito bem com minhaimpaciência e imediatismo. Estou ótimo (e sem ressentimento algum!). “Vá com calma, masvá!” Talvez tenha tentado controlar minha “melancolia-das-6-h-da-tarde”, mas acho quedeixei as coisas tomarem seu rumo.* Estarei manipulando meus sentimentos? Não sei —tenho MUITO o que aprender. Acho q. tentei controlar meu desconforto com o NA, mastambém ver *.// E a reunião foi maravilhosa.8h50 P.M.

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GS10/ TEMA: COMO SABOTAR SEU TRATAMENTO.Me identifiquei com o vídeo todo. Em especial com o médico que tinha uma atitudeprepotente (“Mas sou um médico!”) e não queria reconhecer seu problema. Também comBeth (o elo da narrativa), que colocava a causa de sua doença em fatores externos (bebiaporque seu filho era problemático etc.). Achei bem oportuna a lembrança de que osproblemas de Beth DECORRIAM da bebida (e sua dependência de tranquilizantes, outrofator de identificação), e não o contrário. Não há muito mais o que dizer além do fato de quefiquei surpreso com os métodos e inter-relacionamentos no filme serem IDÊNTICOS aos deVila Serena e nossos (meus) problemas também serem iguais. Tudo, desde a história de Mikea questões como desligamento (“A vida é sua!”) e o “desfocalizar” até a necessidade de seguiras regras, me pareceu ótimo e relevante. E ADORO dublagens tipo sessão da tarde (“Mas, uh,Mike, você não está sendo sincero, compreenda… Esta é a história de Beth…”), o que tornoua experiência divertida também.PS: Não acredito estar sabotando meu tratamento. Se estiver, é com meu martelar nestaquestão do uso da palavra “Deus” constantemente (o que me incomoda um pouco), e issonão foi tratado no vídeo, que me lembre. Talvez racionalizando demais ou não entrandofirme em contato com meus sentimentos ou não trabalhando minha autoestimacorretamente. Mas acredito sinceramente que estou me esforçando, que sou honesto e quejá consegui meu primeiro passo!IDENTIFIQUE CINCO COMPORTAMENTOS AUTODESTRUTIVOS NO PASSADO. COMPARTILHE ESTES EXEMPLOSCOM O GRUPO NO GT. DÊ EXEMPLOS ESPECÍFICOS. PEDIR RETORNOS DE COMO MELHORAR SUAAUTOVALORIZAÇÃO (BAIXA AUTOVALORIZAÇÃO).1. Em agosto de 1990, quando estava morando no Marina Palace Hotel, no Rio de Janeiro, ealternando meu uso de álcool com heroína (os dois juntos não combinam), passei uma noiteme queimando no rosto e nos braços com cigarros acesos. Fiquei com feridas bem visíveis,de até um centímetro de diâmetro, especialmente no braço esquerdo e na testa. Só senti umpouco de dor, e uma compulsão masoquista me levava a aumentar cada vez mais as feridase queimaduras, que, por sorte, cicatrizaram sem deixar sequelas, em dois meses. Não me

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incomodei com o fato porque nesse período estava completamente anestesiado por minhadependência química. Me senti vazio de sentimentos e emoção, a não ser por ansiedade.2. Meu uso de heroína entre agosto e outubro de 1990, tanto no hotel onde morava comoem viagens para shows e apresentações ao vivo pelo país (principalmente Minas Gerais, SãoPaulo e Rio de Janeiro). Quando tive os primeiros sintomas de abstinência, entrei em pânico,porque é o pior pesadelo, um vazio espiritual e uma angústia terrível, acompanhados demuita dor física e desconforto. Isso durou dois dias na primeira vez (cheguei a tomar + de100 mg de Valium para tentar dormir) e quatro dias na segunda interrupção do uso (porquevoltei a usar a droga — que é minha droga de preferência — assim que entrei em contatocom o fornecedor novamente). Lembro que da segunda vez tentei de tudo para minimizar ador e o pânico, e nada adiantou. Nem Valium, ou massagens, preces, banhos quentes, tercompanhia de amigos, outras drogas. Decidido a parar, por causa de meu trabalho (nessaépoca já não deixava nada interferir no meu desempenho em palco, só fora dele), voltei aoálcool, maconha e tranquilizantes. Vivia um estado de euforia ou depressão, medo ousedação (e falta de contato com a realidade). No fundo achava muito romântico e até heroicoestar me destruindo assim.3. Até que chegou o último show da turnê (por sinal, a mais bem-sucedida até então, a dodisco As quatro estações).11 Me drogava e bebia muito um dia ANTES e sempre depois daapresentação. Íamos para Volta Redonda de ônibus, e tive que ter acompanhamentopsiquiátrico a viagem inteira (na pessoa do dr. Paulo Moraes), além do uso de muitossedativos e vitaminas, para diminuir meu sofrimento. Senti muita frustração e confusão(mental e espiritual até). Fiquei o dia inteiro trancado no quarto do hotel enquanto todos sedivertiam, animados e sem maiores preocupações. Me lembro que rezava para que chovessee o show fosse cancelado, já que não queria enfrentar o público. Abrimos esta últimaapresentação com “A Whiter Shade of Pale”, que descrevia meu estado perfeitamente, e, jáno palco, não tive maiores problemas. Deveria ter sentido a culpa de sempre, mas o alíviopor não ter que subir num palco depois desse show era tão grande, que voltei a meanestesiar (com tranquilizantes e álcool) e a me fechar em mim mesmo, com risco de vida.4. O período todo entre julho de 87 e maio de 88 aproximadamente foi marcado por meuuso intenso de cocaína e álcool. Um parente meu comprava a droga para mim, eu dava odinheiro. Eu cheirava junto com meu namorado (morávamos na casa dos meus avós, antesnossa casa, na ilha do Governador, onde passei parte da infância), enquanto meu parente sepicava. Passamos mal muitas e muitas vezes. Foram incontáveis as semanas de completaautodestruição: não me alimentava, ficava trancado em meu quarto lendo, ouvindo música eassistindo vídeos, e dormia de dia e ficava acordado até as 8h da manhã, sempre. Me isolei e

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só tinha contato com o mundo pelo telefone. Foi um período de muita compulsão sexualtambém, quase sempre mal resolvida, o que me trazia raiva, frustração, e me levava aexagerar cada vez mais o uso da droga. Entrei em pânico completo pelo menos uma vez,quando tive que pedir para chamarem um médico. Nem tive vergonha ou culpa, tal o meuestado. No final desse período, já tinha brigado com meu parente e com meu namorado (elesagora eram melhores amigos). Meu namorado foi morar com esse meu parente e sua família(morávamos na mesma rua), e me senti frustrado e só. Quase morri de overdose umincontáveis vezes (às vezes nem chegava a perceber meu estado), o que, além do medo, mecausava um sentimento de culpa muito intenso e constante e um isolamento cada vezmaior, um ressentimento em relação a todos q. me cercavam e raiva do mundo. Nessa épocanão queria perceber o estado em que me encontrava e senti muita dor emocional e solidão.5. Após um período de abstinência devido a uma hepatite B muito séria (quase morri,novamente) e dois anos de análise, tive uma recaída e voltei ao álcool e tranquilizantes, dessavez já consciente do meu problema: agora eu iria até o fim. Não me importava mais comnada, só tinha pensamentos e emoções extremamente negativos, minha compulsão sexualvoltou (por vezes, eram cinco meninos por noite, toda noite) e eu só pensava em morrer. Foiesse período, de dois meses para cá, que foi “o meu fundo do poço”. Fingia estar bem para omundo, mas todos sabiam dos meus problemas, até q. tudo foi parar nas páginas doCaderno B e do Segundo Caderno (JB, O Globo), até em jornais de SP (Estado, Folha). Meuanalista conseguiu finalmente me convencer a uma internação e vim a achar Vila Serena.Estaria morto antes do final do ano (era esse meu objetivo), e minha autoestima erainexistente. No final só sentia raiva, autopiedade e inadequação. Foi como cheguei aqui.

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14/04/93Foi um dia muito importante para mim. Entrei em contato com a realidade. Tenho que sermenos imediatista e devo reestruturar meu perfeccionismo (que considero uma qualidade).Trabalhar tudo que foi colocado em nossa conversa (que foi muito importante). Simplificar.Acho que vou levar um certo tempo para completar as tarefas, vou refletir. Tentando nãocair nas armadilhas e becos sem saída causados pela minha própria dependência (tantoquímica qto. em nível pessoal). Situação que tentei controlar e não consegui: não conseguicontrolar minha confusão mental, embora não me sinta (não esteja me sentindo) mal. Estoume sentindo amparado espiritualmente por algum motivo, o que é bom. Estou confuso mastambém tranquilo (se isso é possível). Todos perceberam uma mudança na minha atitude noGA e sinto que não estou em condições agora de (para) identificar os meus sentimentos. N.me ligou e conversamos. Foi bom. O número dela é —.// E ótimas notícias! Não houvemanipulação emocional (por parte da minha família) — uma possibilidade que meincomodou muito por sua improbabilidade e falta de senso —, e sim ruído de comunicação!Foram recados não dados etc. E, no caso do dr. Sl., atraso na informação mesmo. Mais alívio.E a confusão mental também não se faz tão presente, agora que (depois de um únicotelefonema) tudo clareou bastante (pelo menos esses incidentes que estavam me causandoansiedade — e que eu — por mecanismo de defesa? — estava evitando enfrentar). Adorei apalestra do Jh., da G., tudo. Pena (palavra ruim) ter perdido a palestra de última hora de El.(não estava programada; eu pensei que no horário de nossa conversa, que se estendeubastante até, haveria avaliação) sobre sexo e dependência química, mas pedi umabibliografia, e ela se dispôs a copiar suas anotações e conversar comigo e tirar dúvidas. Égozado, acho ela parecida com a Shelley Long (atriz cômica americana). Bons sonhos.15/04/93Situação que tentei controlar e não consegui: depois de contar minha história, não conseguiparar de pensar no S. Mas acredito que não houve autopiedade, foi uma coisa natural. Melembrei tanto das coisas boas qto. das ruins. Só que tentei parar com a saudade e não deu,então é melhor deixar acontecer. Oh, well. Fiquei surpreso com meu bloqueio em relação aoGiuliano12 e tudo, mas não-quero-falar-sobre-isso-agora (e de qualquer maneira ele vem mevisitar no domingo novamente). Admito que fiquei um pouco ansioso — conflito! —,sempre é ao entardecer, mas tudo bem. Espero não ter problemas (não criar problemas) como L. E. dormindo na cama ao lado. É que eu acho ele um tanto chato, mas o que fazer? É umaboa oportunidade para treinar desligamento, paciência e compreensão. Vou reforçar asugestão de um colega e colocar também no livro preto q. acho uma boa ideia podermosassistir outros vídeos do programa à noite, depois da janta, qdo. temos tempo livre. J. vaiembora e vou sentir sua falta (além de ter saudades) — são duas coisas diferentes, eu acho.Hoje remexi no baú e fantasmas estão voando ainda à minha volta, por toda parte — lidar

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com isso com maturidade, Renato! O bloqueio persiste, no entanto; bem, ninguém éperfeito. Vou tomar banho e estou com uma preguiça danada de ficar no banheiroesperando aquela loção antiescabiose secar (o homem-cabide)! Gostei das palestras, ganheisatisfatório na tarefa (GT — grupo terror!) e você tinha (obviamente) razão. Adorei gastarmeu inglês com o Jh. e com a Gl. (a americana do ambulatório). Sou muito bom nisso (oh,yeah), pode perguntar. No mais — um dia de cada vez. Li sua palestra e vou tirar uma cópiaamanhã, e li os cinco primeiros capítulos do livro (que estou achando o.k. também). Minhatia ligou e foi ótimo, a saudade clareou um pouco. Adorei a palestra do dr. W. (ele me lembraMUITO o meu pai). Tenho tido mais respeito e admiração por G., a cada dia que passa —como me perco em fantasias e prejulgamentos ainda! —, ela é realmente admirável, aliáscomo todos aqui em Vila Serena (sem confete). Adoro a X. também, ela é supercarinhosacomigo (e com todos) e sinto (também por parte das outras meninas da limpeza e dorefeitório) uma atenção e carinho especiais por mim. Eh, vida! Bons sonhos. Vou deixar asegunda tarefa p/ segunda-feira (eu acho). Bons sonhos, again, Renato. Podemos (e gostariamuito de) conversar sobre a palestra, qdo. tivermos tempo.16/04/93Situação que tentei controlar e não consegui: minha impaciência e irritação com essaescabiose (ugh!) que hoje espalhou um pouco mais (até os braços). Deve ser emocional. E omesmo com L. E. (que eu acho L-E-N-T-O e com cara de bobo alegre). Que dia. O lema queescolhi p/ hoje foi “Não se desespere” e (imagine aqui uma das caretas gozadas do Jh.): ai-ai-ai-ai-ai. El. me deu cópia de sua palestra, que li e achei muito relevante (ao meu caso e àminha experiência). Gostaria de conversar sobre o GFR13 também. Hoje me senti cansado eaté desanimado. (Não quero me alongar, explico mais tarde — em outra FES.)14 No entanto,a palestra sobre assertividade veio a tempo (em tempo) — foi um bom reforço para adecepção que foi a saída de Mn. Senti um leve arrepio orwelliano — se tivesse sido você,sinceramente não sei qual teria sido minha reação (a esta altura do tratamento). Achei oprocesso todo pouco ético (mas posso estar fantasiando e, além do mais, é comigo que devotentar trabalhar no momento). A melhor coisa do dia foi seu retorno. Bons sonhos, Renato. Aconteceu muita coisa (as palestras, a história do Sg., a alta de J.…), mas, por-algum-motivo, só me lembro do purê de batata no almoço, que achei muito bom! // A reunião do NA foi ótima (T. me falou do grupo em Brasília), se bem que umtanto longa demais. Dormi bem.17/04/93E acordei mal, cansado, sentindo um mal-estar indefinido (indefinível?). Fiquei com umpouco de medo — por que estaria me sentindo assim? Uma sensação bem física mesmo.Bem, L. E. são águas passadas. Não me irrito mais, nem quero etc. O dia hoje foi interessante,

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mas muito exaustivo. Quero entrar em férias. Estou achando tudo muito puxado (pareceque estou ficando estressado). Dr. Sl. veio me ver e disse que estou ótimo (mas não meSINTO ótimo). Quem sabe. — Sentimentos conflitantes o dia todo até agora, pouco antes doGA (5h p.m.). Estou confuso, ansioso. É esta a situação que não consigo controlar. Só queriadescansar um pouco. O mundo lá fora me causa um misto de medo e indiferença (se isso épossível). Ainda não me firmei no programa — ainda não acho que vale a pena viver,embora seja bom (pelo menos percebo isso); pode ser muito bom. Estou cansado. Pareceque nos esforçamos por nada, à toa. Quem sabe. Adorei a palestra do dr. W. Estoudesanimado, também. Deve ser porque fiquei pensando no meu roteiro p/ um filme (tenhovários) que fico passando na cabeça: Friends for the Summer. Conto a história se v. quiser. É umManhattan — gay (para variar). Os problemas e aflições dos outros me esgotam. Sinto umvazio, não consigo ter fé. E me atrapalha essa conversa de Deus, Deus, Deus — isso meesgota, também. Não percebo autopiedade, porque estou calmo, paciente e sereno. Émelancolia mesmo. Uma sensação de que tudo está perdido. Sísifo, Prometeu, Orfeu. Bem,tudo passa, tudo passará. O GA foi um alívio e tanto. Pedi, no final, uma pilha dos colegas.Foi bom. Me pego querendo férias e penso: para onde ir, fazer o quê? Pensei e lembrei queera sempre: tranquilizantes e álcool (em Búzios, NYC, Fortaleza, em todos os lugares) — éalgo que PRECISO trabalhar. Acho que estou indo bem, mas é tudo muito difícil. A palestrado dr. W. também me deixou abalado — aquele é um caminho p/ o qual ñ posso voltar. Aosdoze passos, então!18/04/93Fui dormir cedo e ouvi os colegas contando piadas homofóbicas no pátio (até começarem afalar de mim). Foi estranho, é algo com que devo trabalhar, meu coração disparou (e sabiamque estavam dizendo coisas idiotas, porque baixavam a voz às vezes, e, assim que eu entreicomo assunto na conversa, o assunto morreu rapidinho — acho q. porque perdeu a graça, jáq. sou bem honesto e sincero a meu respeito nesse aspecto). De qualquer forma, dormi bem,acordei bem melhor (mas pensando no que acontecera na noite anterior) e decidido acomentar o assunto (faria um minidiscurso sobre “preconceito” na comunitária),15 mas nãohavia conselheiros — então preferi deixar p/ mais tarde (caso a situação se repita, também).SABIA que o filme era c/ a Linda Blair. Não o assisti, aproveitei para descansar. Estou mesentindo estranho, confio no programa mas já estou cansado de estar aqui. Quero voltarpara minha casa. Descansei mais e fiquei feliz qdo. vieram meus pais, Giuliano eThayssa (minha prima), tia Socorrinho e meu avô me visitar, e depois Sandra (minhasecretária) e L. (meu melhor amigo). Foi muito bom e minha ansiedade cedeu naturalmente.Depois teve GA (ótimo poder compartilhar) e CHURRASCO!!! (Minha mãe trouxe achurrasqueira do tio Cláudio — nossa família é assim mesmo!) Situação que tentei controlare não consegui: minha ansiedade. Agora estou satisfeito e feliz e mais descansado. São 7h30

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p.m. Pretendo dormir cedo (Sandra me trouxe vitamina C e mais incenso) — depois depassar a loção etc. E o churrasco foi ótimo. Espero dias melhores a cada dia. Bons sonhos.PS: No GA percebi que não era o único a querer voltar para casa. Ct., E., M. e Rl. disseram omesmo. Poder superior! Sabemos que o mais importante é o tratamento e conversamosbastante sobre isso.PPS: O Mc. está mais gato a cada dia q. passa. Explode, coração! (brincadeirinha…)

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FAZER UMA LISTA ONDE CONSTEM SITUAÇÕES NAS QUAIS VOCÊ SE SENTIU COM MEDO, RAIVA,INSEGURANÇA, AUTOPIEDADE, INADEQUAÇÃO, INFERIORIDADE, DESPREZADO, RESSENTIMENTO E SOLIDÃO.DÊ UM EXEMPLO PARA CADA SENTIMENTO. APRESENTAR NO GT.1. MEDOEm agosto de 1990, quando estava usando heroína e morando no Marina Palace Hotel comS., meus pais vieram ao Rio, para seu apartamento na Tijuca, com meu filho, Giuliano. Umdia ensolarado, minha amiga P. veio me pegar no hotel p/ visitarmos meu filho e meus pais.A heroína me deixava eufórico e satisfeito, e tinha a ilusão de que meu mundo se tornaraperfeito: estava me alimentando bem, me sentia feliz e sem problemas, e nesse dia não foidiferente. Só que, ao chegarmos, logo me veio um pânico gradual, taquicardia e pressão alta,o que tentei resolver com um chuveiro gelado e concentração. Não deu certo (além de todosestranharem que estivesse tomando banho àquela hora do dia, e naquelas circunstâncias).Meu filho estava sendo medicado com Cataflam (para uma inflamação no ouvido) e, ao sairdo banho, comecei a brincar com ele para tentar me acalmar, notando que ele estava mole eestranho, parecendo fraquinho e com sono. Meu problema piorou e resolvi descer aoplayground, para tomar ar e andar um pouco. Não entendia como aquilo estavaacontecendo, já que achava que o quadro era, ou estaria, ligado ao uso de estimulantes(cocaína, por exemplo), e não a uma droga como a heroína (que é um downer). Estava empânico completo e pensei que fosse morrer. Liguei p/ S., que já tinha voltado da praia, eimplorei para que ele viesse me ajudar. Foi uma dificuldade explicar-lhe a localização doapartamento (ele viria de táxi) e também o meu estado (ele achou que eu estava exagerando).O que tinha acontecido era que eu tinha cheirado demais, e a droga era de primeira qualidade(heroína branca, tailandesa). Só consegui começar a me acalmar quando ele chegou e meabraçou e me beijou e disse as palavras mágicas: “It’s okay”. Mais tarde subimos aoapartamento (isso tudo deve ter levado quarenta minutos, que para mim pareceramHORAS), mas não havia ninguém lá. Não entendi nada, até receber notícias, através deminha irmã, de que estavam todos no hospital: Giuliano quase morrera por conta de umchoque anafilático (em reação à medicação) — NO MOMENTO EM QUE DESCI AOPLAYGROUND (em pânico completo). Até hoje não sei se isso foi sincronicidade,coincidência ou se nós “captamos” o problema um do outro, por algum motivo misterioso einexplicável. Já senti medo várias vezes, mas essa deve ter sido a ocasião mais memorável.Mais tarde, já no hotel, prometi a mim mesmo que só usaria a droga no dia seguinte, emquantidade bem menor, promessa que eu acho que não cumpri.2. RAIVANo começo deste ano, um ex-namorado meu, que insistia em me perseguir (às vezestelefonava durante HORAS seguidas, de dez em dez minutos, para deixar recados na minhasecretária eletrônica ou tentar falar comigo), conseguiu localizar meu endereço e

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prontamente retomou sua perseguição, só que dessa vez pelo interfone. Estava em casa comminha irmã, minha amiga P. e alguns amigos (outros estavam por chegar). Desci paraconvencê-lo a ir embora, mas fraquejei e deixei que ele subisse. Tivemos uma discussão, e euo agredi repetidamente com tapas e socos (a pedidos). A essa altura já estava embriagado esem controle dos meus atos. Disse a ele que não era responsável por ele, que não o queriamais (eu o amava realmente, mas ele me deu um belo de um fora, o que acontece sempre:depois, por-algum-motivo, o cara percebe que me amava de verdade e quer voltar, mas aí jánão sinto NADA pela pessoa, já que não aceito ser rejeitado por quem amo, de formaalguma, e aprendi a anular meus sentimentos quando isso acontece) e que esperava que elecompreendesse e me deixasse em paz, ainda mais depois de levar tanta porrada. Consegui omeu intento e desci para beber mais Cointreau e comemorar, só para descobrir, ao voltarpara o apartamento, que ele tinha aproveitado minha breve ausência para tentar subir denovo. P. abriu a portaria sem verificar quem era e, ao chegar, ouvi dela um lacônico eestúpido: “O seu ex tá lá no seu quarto de novo”. “Como?”, perguntei. Ao saber, fiquei umafera, fui agressivo com ela e com minha irmã (o que terminou minha amizade, talvez parasempre, com minha melhor amiga), afugentando todos de minha casa. FORAM TODOSEMBORA, com exceção de uma amiga de Brasília que estava hospedada em minha casa porintervenção de P. e um membro da equipe do Legião, também dependente químico. Os dois,como eu, também estavam já fora de si (com álcool e o que mais). Foi um sacrifício tirar eledo apartamento. Ele ameaçava se matar, quebrou minhas janelas e se cortou com cacos devidro, manchando meu quarto (tapete, lençóis, paredes) com sangue. Gritava repetidamente:“Te amo! Te amo!”, o que me enfureceu ainda mais. Finalmente nós três conseguimos tirá-lode lá (não sem antes ter que procurá-lo pelo apartamento quando achamos que ele já tinhaido embora, para descobrir que ele estava escondido embaixo da cama). A confusão, agritaria e o barulho foi tanto que um vizinho prontamente pegou seu revólver e deu um tiro,pensando se tratar de algum assalto, o que quebrou mais um vidro da minha janela —poderia ter acertado alguém. Nem sei onde a bala foi parar, só sei que decidimos sair doapartamento: a amiga que estava hospedada em minha casa iria se encontrar com P., quetinha telefonado e a esperava com os outros em uma sorveteria ali perto. Ela me convenceua ir junto e fomos, a pé. Paramos em um bar para beber mais e comer alguma coisa. Euestava vestindo uma calça que precisava de cinto, mas na confusão não levara um cinto e ascalças ficavam caindo. Tive que amarrá-la na cintura com um barbante, o que meincomodava muito. Ao vermos o carro de P., acenamos, mas esta, ao me ver, bateu emretirada, novamente nos deixando na mão, e a mim com mais raiva. Decidimos então ir parao Mariuzinn (discoteca em Copacabana) para esquecer, beber mais e dançar. Tudo iarazoavelmente bem até que, por causa do calor e também por não poder dançar direito, jáque minhas calças ficavam caindo, decidi ficar de bermudas, o que causou um escândalo (adona da discoteca pensou que fosse um striptease) e, no meio da gritaria e discussão, fomos

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prontamente expulsos. Fiquei com mais raiva ainda. Agora já estava realmente a ponto deexplodir. Decidimos então ir à Le Boy, uma boate gay ali perto. Já estava completamentesem humor e fiquei com raiva de todos ali. Nem bebi meu drinque, tal a minha fúria. Medespedi dos dois após a segunda música que ouvimos e fui para casa a pé, descalço, commeus sapatos na mão, fumegando de raiva e amaldiçoando a tudo e a todos. Estava comraiva de tudo, de mim e do mundo.3. INSEGURANÇAPS: Chegando em casa, vi que a porta do quarto onde ficava minha amiga estava fechada.“Que bom”, pensei, “ela já voltou.” Foi só para descobrir, no dia seguinte, quem era: meu ex!Gritei desesperado e o agredi fisicamente até que ele saísse do apartamento. Joguei suascalças pela janela e fui dormir. Estava exausto. Meu apartamento estava um caos. Quandoacordei, me veio uma depressão profunda (não tive apagamentos nem ressaca) — umsentimento de insegurança intenso também. Que estava fazendo? Que rumo minha vidaestava tomando? Não consegui ficar em casa, achei mais seguro passar a noite com meuspais, na Tijuca. Senti raiva, ressentimento, solidão, mas a insegurança, em relação à minhavida, minhas atitudes e meu futuro, falou mais alto. Só com meus pais e meu filho me sentium pouco mais seguro. A ressaca e a culpa vieram no dia seguinte.4. AUTOPIEDADENo final de julho, começo de agosto de 1990, S. teve que voltar para os USA. Ele tinha sido apessoa que eu mais amara em minha vida, nos encontramos em NY no final de 89 e desdeentão sempre nos falávamos por telefone e por carta. Fiquei desesperado quando ele foipreso por suas várias infrações no trânsito, ligava do Rio de Janeiro para delegacias em SanFrancisco, prisões, serviços de informação. Até que consegui localizá-lo, ele estava noCentro de Detenção de San Mateo, em outro município. Senti muita autopiedade eromantizei ainda mais meus sentimentos, reforçando minha promessa de fazer tudo por ele,meu verdadeiro amor. Mas nada comparável à nossa despedida no aeroporto quando eleteve de voltar a San Francisco, depois de passarmos cinco semanas juntos, de frente para omar, em um apartamento cinco estrelas no Leblon, no hotel onde estava morando. Chorei,chorei — estava um trapo. Na volta para casa (acho que ele chorou também e ficamos demãos dadas no carro o tempo todo) me senti o mais romântico dos mortais, lembrando tudoe sentindo muito sua falta; uma autopiedade intensa além da saudade e tristeza naturais emtal circunstância. Fiquei semanas bebendo, escrevendo cartas de amor e ouvindo músicastristes, e depois entrei fundo na heroína, me sentindo o mais triste e injustiçado doshumanos.5. INADEQUAÇÃO

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Fui convidado, há cerca de três anos (julho 1990) para uma reunião informal na casa deRegina Casé, pelo meu então amigo, o-antropólogo-Hermano-Paes-Vianna-Filho (voltamosa ser amigos este ano); só fui depois de me certificar VÁRIAS VEZES que era uma reunião esó (porque sou muito tímido e estaria na companhia de S., P. e minha irmã, Carmem).Pegamos Moreno, filho de Caetano, em sua casa e lá fomos, felizes (e eu ainda um tantoapreensivo), para chegarmos ao que era um jantar formalíssimo (com toalha de renda,porcelana e cristais de família) e SÓ GENTE FAMOSA: Guilherme Karan, Caetano, NeyMatogrosso, Luís Fernando Guimarães, uma socialite chiquérrima que tinha chegado dosStates e não me lembro o nome, além de Luiz Zerbini (o pintor) e a própria Regina Casé.Meus amigos foram esnobados NA HORA; entrei em pânico e comecei a beber. Caetano eNey ADORARAM aquilo; me tranquei com eles na biblioteca para cantar músicas do EltonJohn, por exemplo, mas devo ter dado um vexame. Depois, o Hermano (com quem não faleimais por causa desse incidente — vieram me dizer q. essa turma às vezes “escolhe” alguémpara fazer papel de bobo) tentava me consolar com comentários do tipo: “Ah, não liga, não.O Cazuza era bem pior”. Ficamos para o jantar, que, por sinal, estava delicioso, e não possodizer que não me diverti, mas não houve interação alguma entre os “famosos” e meunamorado, minha melhor amiga e minha IRMÃ. Pensei que talvez estivesse exagerandominhas impressões do pessoal, mas todos saíram de lá reclamando e jurando nunca maiscair no conto do jantar-arapuca ou “festa-cilada”, como iríamos nos referir ao evento dalipor diante. Eu fiz a minha parte, bêbado como estava, me sentindo mais do que inadequado.O golpe final veio quando S. me disse: “Esses seus amigos famosos são uns chatos eesnobes”. Que me lembre, não lhe dirigiram palavra a noite inteira, e eu queria que eletivesse uma boa impressão (antes de irmos, expliquei que seria o máximo etc.). Me senti,com seu comentário, mais inadequado ainda, principalmente porque ele completou: “E vocêtinha que beber, não é?”. Agora parece até gozado, mas na época foi horrível.6. INFERIORIDADE DESPREZADONo final de 1980, por ocasião dos sete dias da morte de John Lennon, estava programado umevento mundial: dez minutos de meditação e silêncio. Acho que era o dia 16 de dezembro, noBrasil o horário seria às quatro horas. Na época ainda tocava no meu primeiro conjunto de rock, o Æ (Aborto Elétrico),16 etínhamos uma apresentação no Cruzeiro, cidade-satélite de Brasília, uma coisa bemamadorística mas que levávamos muito a sério. Bebi um pouco, mas, na hora da meditação,lá fui eu me deitar para olhar o céu com um garrafão de vinho, que devo ter bebido pelametade. Já bêbado, chegou a hora da nossa apresentação, e o baterista (Felipe Lemos, hojeno Capital Inicial) se irritou bastante comigo. Lembro que achei que ele estava levando tudomuito a sério, mas tivemos uma briga, ele estava insuportável, agressivo e hostil (eu estavame sentindo todo cósmico, paz e amor, principalmente porque, no momento exato do

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início da meditação, o céu, que estava cinzento e carregado, começou a abrir, o que acheique era alguma espécie de sinal. Em dez minutos exatos, o sol tinha voltado a brilhar). Masele, a meu ver, atrapalhou a apresentação, chegando a interromper canções para me tacarbaquetas e gritar comigo, à vista de todos, se fazendo passar por líder do grupo. Me sentidesprezado e saí do grupo naquele instante. Não me arrependi. Com o tempo veria queestava sendo assertivo com minha decisão, embora sentisse um desprezo muito grande emrelação à minha pessoa, a tudo que representava e fizera pelo grupo, como se eu e meutrabalho não valêssemos a pena.7. DESPREZADO INFERIORIDADENo começo de março deste ano fui assistir a um show que esperara 21 anos para ver:Emerson, Lake & Palmer no Canecão. Fiquei tão feliz que fiz tudo eu mesmo (geralmente, areserva e compra de ingressos, segurança, transporte até, é tudo verificado pelo nossoescritório). Adorei o show, fui com meu amigo L. e, no final, queria saber se poderiaconhecer o grupo, mesmo que só para dizer alô. Um inglês chato da produção me esnobou,todo o pessoal de relações públicas lavou as mãos e a ordem era: NINGUÉM entra nocamarim ou fala com eles sem explicar o porquê. Do entusiasmo passei à raiva, me sentindoofendido por ser tratado assim (afinal eu tenho, ou pensava ter, status VIP no Canecão). Nãotinha. Ao tentar furar o bloqueio dos seguranças, eles se jogaram sobre mim e, já caído nochão, fui espancado e arrastado para a área de estacionamento, onde fui agredidoverbalmente também. Comecei a gritar por meus direitos e logo vieram dois policiais, p/averiguar a situação. Os seguranças sumiram. Fiquei tão assustado c/ a atitude tambémestúpida dos policiais que perdi o controle e, ao ser “escoltado” para a saída (pela porta dafrente, como insistira), gritei p/ todos os presentes o que sentia. Não tinha bebido muito (sóduas vodcas) e tinha fumado só um baseado, mas a emoção do show e o choque de sertratado daquele jeito me fizeram ter um comportamento arredio e agressivo, o que ñ ajudouem nada a situação. Saindo dali, fui à Le Boy, onde fui barrado por estar “alcoolizado”. Essasituação nunca acontecera comigo antes, parece que aquela ñ era a minha noite. A violênciano Rio está crescente, eu sei, e depois tudo foi verificado — não agi de forma extrema; aliás,se fosse outra pessoa, esta estaria provavelmente morta, dada a estupidez dos seguranças e oressentimento e raiva que senti deles em relação à minha pessoa. O meu complexo de inferioridade voltou e jurei nunca mais pisar no Canecão, promessaque sei que vou cumprir. A Le Boy também são águas passadas. E isso não porressentimento, mas sim por uma questão de segurança pessoal. Não cutuque o tigre comvara curta. Mas me senti o pior dos mortais naquela noite.8. RESSENTIMENTOPassei o Carnaval deste ano em Búzios para descansar e tentar colocar minha vida em

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ordem, no Hotel Nas Rocas. Para ter companhia, convidei dois amigos, Marcos e André, parairem comigo e paguei tudo (já que eles não tinham dinheiro e eu não queria ficar sozinho).Foi maravilhoso, o hotel fica em uma ilha, conheci um novo amigo (o que já valeu a viagem)— os bangalôs eram individuais, a comida ótima e nos divertimos bastante ficando ao sol,velejando, passeando de caiaque, treinando arco e flecha e tudo. Só que, mesmo tudoestando bem, me embriaguei no primeiro dia, me senti um pouco angustiado no segundo esubstituí o álcool por tranquilizantes (o que, na verdade, não ajudou em nada). O fato de terque pagar para ter companhia gerou um ressentimento intenso no final do passeio. Euficava pensando: “Ninguém faz nada por mim e eu sempre acabo fazendo tudo pelosoutros”. Marcos e André foram ótimos e tudo, sentindo-se muito agradecidos e honrados atéde passarmos juntos o Carnaval, que, como disse, foi realmente maravilhoso. Mas veio oressentimento mesmo assim e, no final, me senti tão sozinho qto. antes.9. SOLIDÃONo final de fevereiro deste ano, pensando em todas essas coisas (e outras mais) e tentandoafugentar a solidão com álcool, maconha, tranquilizantes e trabalho, estava me sentindo tãomal que, no dia em que o Valium acabou, fiquei sem saber o que fazer e como lidar comtodos esses sentimentos negativos. Estava muito só e à beira do desespero. Liguei p/ umaamiga, N., perguntando se ela tinha Valium. Ela tinha, e fui até seu apartamento, ondefinalmente me acalmei (depois de muito tempo). Estava me sentindo tão só que sei que,mesmo se tivesse Valium ou Lexotan em casa, precisava de companhia e de um confortoamigo. N. foi muito compreensiva e amorosa, o que eu precisava realmente. Conversamosbastante e finalmente tive coragem p/ voltar p/ casa, onde continuei só, mas já sob o efeitodo tranquilizante. Fui dormir. A partir daí a solidão sempre estava presente e eu a afugentavacom drogas e álcool, o que dava menos resultado a cada dia, até vir parar aqui, em VilaSerena. Tinha chegado ao meu fundo-do-poço e preferia morrer a enfrentar novamente aincerteza e a solidão.

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8. RESSENTIMENTODe acordo com o dicionário, ressentimento é “sentir de novo, magoar-se, sentir-seofendido”. Tentei encontrar uma situação específica, mas tive dificuldades, principalmenteporque o meu ressentimento acerca de qualquer coisa sempre me levava à autopiedade, queentão falava mais alto. Se o meu ressentimento está ligado ao meu uso de drogas e álcool, éo sentir de novo (e sempre) uma raiva pelas “injustiças” do mundo — costumava beber e leros jornais para alimentar esse tipo de ressentimento — ou então sentir de novo raiva pormim mesmo, meus atos, emoções e pensamentos. É difícil ser específico aqui, porque vejoque esse ressentimento por mim mesmo era justamente a força motriz que usava comodesculpa para me drogar e beber (quase sempre), incluindo aqui o ressentimento por sentirtantas emoções negativas ao mesmo tempo (solidão, culpa, medo, ansiedade, raiva,autopiedade, as principais): em geral transferia o que sentia devido a outra pessoa ousituação para mim mesmo, me ressentindo de minha impotência perante meu própriomecanismo autodestrutivo. Sei que não devo filosofar, mas percebo que era isto queacontecia:

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Me ressentia de ter raiva de mim mesmo e de sentir tanta autopiedade. Isso era quase tododia (há alguns anos já), por isso todo o meu comportamento motivado ou que causava essadesculpa p/ continuar usando drogas e álcool era, basicamente, ressentimento. Mas eis um exemplo específico: No dia 16 de março de 1993, acordei me sentindo desanimado, confuso e triste. Tomei umbanho, para clarear, tomei café e depois um calmante. Desci para comprar os jornais.Atravessando a rua, fui ao bar na esquina do meu apartamento e pedi três doses de licor delaranja (Cointreau, como sempre). Voltei ao apartamento para ler sobre as desgraças domundo, alimentando assim meu ressentimento. Dependendo da notícia (e algumas até medeixavam de bom humor), sentia raiva, medo, apreensão, confusão, ficava ofendido,magoado, triste e sempre ressentido com o mundo, comigo mesmo (por fazer parte domundo) e com meu comportamento (por saber, no fundo, que era um comportamentoneurótico e autodestrutivo). Acho que me ressentia com minha própria indiferença, quebuscava desesperadamente no álcool e tranquilizantes, a cada dia com resultados maisnegativos. Isso aconteceu com certeza quase todo dia, desde meados de janeiro deste ano atéminha chegada à Vila Serena. E, dependendo do dia, bebia mais, ou me drogava mais, ou osdois.

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19/04/93Acordei bem, estou tranquilo e menos ansioso. Sinto um pouco de tédio. As meninas vãopassar mais tarefas p/ mim, já q. v. só volta na quinta. Das nove situações só a doressentimento levou insatisfatório (todos concordaram que estava mais p/ autopiedade).//Percebi que nem sempre o que os colegas falam é o que pensam e sentem. Não mepreocupo c/ isso. Acho curioso. Vou ter dificuldades com o segundo e o terceiro passo (euacho), caso chegue lá (esta semana?), mas sinceramente acho q. essa questão de impotência eperda do controle e domínio sobre minha vida está bem clara para mim. Não sei. São quasequatro horas. Nada de muito significativo. Não tentei controlar nada até agora, eu acho.Estou me sentindo muito desinteressado para isso, quase em estado hipnótico. Tudo serepete. Acho bom, mas já esperava por alguns resultados. Tenho andado meio alheio a tudo.Quero colocar as coisas em prática. Imediatismo? (Sempre existe uma resposta para tudo —paciência.) Achei o depoimento de C. A. chato. Prestei atenção, estava calmo,sereno e assertivo, fiz perguntas, participei e achei (mesmo assim) monótono e repetitivo.Das atividades de hoje QUATRO foram dedicadas a histórias (“cheirei-tanto-que-quebrei-tudo”): o depoimento, o grupo do AA, a história do J. A. e o GT. Cada um tem seu mérito,* éclaro, mas senti um desequilíbrio aí. Aquele filmezinho da Linda Blair não conta, estousentindo falta de mais trabalhos com tarefas e informação (como o que fizemos com o vídeoComo sabotar seu tratamento). Hoje lemos um texto interessantíssimo e relevante (para mim, aomenos) do livro Seus pontos fracos, e não houve continuação ali.Acho as dinâmicas importantes também. E o TRE?17 O segundo e o terceiro passo são tãoimportantes; que me lembre, sobre o assunto só houve a palestra do Jh. sobreespiritualidade. Preciso de ferramentas e, sinceramente, mais informação. Continuidade aostemas das palestras — imediatismo? Nem sei, mas chega de “bebia-tanto-que-minha-filha-tinha-medo-de-mim”. Ou “eu-só-queria-morrer-e-tentei-me-matar-mas-encontrei-Vila-Serena-e-minha-vontade-de-viver”. IN-FOR-MA-ÇÃO! Como v. só vai voltar na quinta, vouconversar bastante com o grupo e com as conselheiras. Sinto falta dos seus retornos. // Agora são 9h30 p.m. e estou me sentindo muito bem. As nuvens passaram, por-algum-motivo. Até meu banho foi um momento feliz (fiquei cantando sozinho músicasfavoritas do Bob Dylan) — o grupo parece ter vida nova depois do GA (temos um novoresidente), do jantar (torta de peixe com batatas!) e da reunião do AA (que foi divertida). Tudoé subjetivo — especialmente p/ mim. (Tenho Mercúrio e Vênus em conjunção em Peixes, na12a casa.) E começo a perceber que, se me sinto bem, tudo está bem, se estou mal, tudo ficapior. É mais uma nova descoberta (existem velhas descobertas?) que devo trabalhar. Bem,dias vêm e vão e agora vou dormir. Bons sonhos, sempre. Para mim o podersuperior é o tempo. (Verdadeiro mistério.) Lá-lá-lá-lá-lá.

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20/04/93Hoje o dia foi normal, não tenho me irritado, a única sensação negativa ainda é ansiedade —o resto é normal, mesmo com altos e baixos (que estão menos altos e menos baixos do queantes). Gostei da história de Gl. (a americana viciada em diet pills!) — me identifiquei e mesenti solidário. O GT sempre mexe comigo e hoje não foi diferente. Foi satisfatório (refiz“ressentimento”), mas às vezes acho complicado entender o mecanismo da coisa (todosfalaram em “consequências”, mas não me foi pedido colocar as consequências dosexemplos, e sim dar exemplos de sentimentos — o que fiz. De qualquer forma, vou pedirque tudo seja explicado com mais detalhes, para que eu possa me sentir mais seguro erender mais). Por exemplo, não vou poder “fazer um relatório focalizando métodos esentimentos que utilizei para abster-me do álcool e drogas e quais os resultados”simplesmente porque nunca parei — só qdo. tive a hepatite B e mesmo assim era um casode vida ou morte. Das outras vezes, mesmo parando com tudo, eu sempre continuava oucom haxixe ou baseados. O que fazer? Dúvidas… Vou escrever exatamente isso. Estouaprendendo bastante, no entanto. O segundo trabalho é “fazer uma lista de pessoas das quaisv. identifica que depende ou dependeu emocionalmente. Para cada uma delas, dê pelomenos uma situação específica onde v. tenha tido prejuízos com esta dependência. Digaseus sentimentos, como você lidou com isto e como pode melhorar”. Sou eu! Bem, não vaiser fácil — qtas. pessoas? Acho que vou escolher cinco. (Sou/fui dependente emocional deTODOS os meus relacionamentos, eu acho, para mais ou para menos.) Amanhã é feriado,não sei se terei visitas. Vou aproveitar p/ pensar e trabalhar as tarefas, ler mais e descansar.Tenho sentido uma necessidade de descansar, dormir. O filme A viagem de volta foiinteressante, mas não pude deixar de perceber as inconsistências do roteiro. Pretendo fazercinema (meu objetivo no 1, sempre) e sou muito crítico a esse respeito. Sou perfeccionistanesse sentido, sim, e acho ótimo. (Deu excelentes resultados com a Legião Urbana.) No mais,é novidade estar sereno e tranquilo, e me vejo NÃO SENTINDO RAIVA, o que é ótimo e medeixa muito satisfeito comigo mesmo. Se sinto, é rápido e momentâneo — natural. Bem,aguardando sua volta, bons sonhos, Renato.* E objetivo.

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FAZER UM RELATÓRIO FOCALIZANDO MÉTODOS E SENTIMENTOS QUE VOCÊ UTILIZOU PARA ABSTER-SE DOÁLCOOL E DROGAS E QUAIS OS RESULTADOS.

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Quando vim para Vila Serena no dia 6 de abril deste ano, tinha chegado ao “fundo-do-poço”.Foi a primeira vez que senti dificuldade e desconforto físico ao abster-me do álcool e dasdrogas. Já estava no estágio intermediário do alcoolismo e cheguei aqui com muitossentimentos negativos: ressentimento, raiva, culpa e autopiedade. O método era claro paramim: se não procurasse ajuda especializada, sabia que não conseguiria sozinho, pois, dessavez, depois de dois anos de abstinência aproximadamente, tinha entrado fundo na bebida eestava bebendo para morrer. Ou assim eu pensava. De qualquer forma, quase cheguei lá.Ainda estou confuso e apreensivo, com uma sensação quase permanente de ansiedade efrustração, toda vez que tento rever o meu passado. Mas, com novas informações, o apoiodos colegas e da equipe, e minha confiança no programa, tenho trabalhado, com sucessogradativo e crescente, todos os sentimentos intensificados pela minha doença: esseprogresso faz-se notar principalmente no que se refere à minha paciência, agressividade,baixa autoestima, autopiedade e culpa. Ainda vejo o mundo e a vida com apreensão edesconfiança, mas agora sei que isso também passará. Até contrair hepatite B em novembrode 89 90, o método para parar era o mesmo: simplesmente parava. Parei meu uso de cocaínahá mais de quatro anos, sem problemas — só que continuei com haxixe e baseados. Omesmo quando me abstive do álcool por um período de aproximadamente um ano e meio(em 85 e 86). Sempre romantizei o uso de álcool e drogas e, para mim, era tudo mais umabrincadeira, que sentia poder controlar, do que qualquer outra coisa. Parei com a cocaínaporque me irritavam as pessoas que me cercavam na ativa, e o álcool por causa de umareação alérgica. Depois, já com sérios problemas (no final de 89 90), o método foi: ir parauma clínica. Fiquei com medo e raiva dessa vez, mas continuei com a cannabis (e não houveproblemas). Mas isso logo também cansou e fiquei completamente abstinente por um ano,até começar a usar tranquilizantes novamente, com prescrição médica, para aliviaransiedade e depressão. Recaí no final de 92 e então, já consciente de que tinha um problema,decidi me entregar à doença. Do fundo-do-poço (março 93) cheguei à Vila Serena. Agoraestou decidido a parar com tudo, é minha única salvação, e isso ainda me deixa confuso eapreensivo, pois vou ter que reformular a minha vida. A cada dia que passa, no entanto,sinto mais força interior e espero, sinceramente, conseguir.

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FAÇA UMA LISTA DE PESSOAS DAS QUAIS VOCÊ IDENTIFICA QUE DEPENDE OU DEPENDEUEMOCIONALMENTE. PARA CADA UMA DELAS, DÊ PELO MENOS UMA SITUAÇÃO ESPECÍFICA ONDE VOCÊTENHA TIDO PREJUÍZOS COM ESTA DEPENDÊNCIA. DIGA SEUS SENTIMENTOS, COMO VOCÊ LIDOU COM ISTO ECOMO PODE MELHORAR.a) S. — Conheci S. em NYC no final de 89. Foi amor à primeira vista e recíproco também, oque me deixou “nas nuvens”. Mas logo essa reciprocidade passou, ele queria ser meu“amigo”, e eu estava cada vez mais apaixonado, romantizando tudo, fantasiando, e sofrendomuito com isso. Em uma apresentação em Uberaba eu estava de ressaca e projetei meubem-estar na companhia dele, se ele não estivesse comigo não me sentia bem e bebia mais,por autopiedade. Isso se deu em julho de 89, quando, depois de uma temporada em São Paulo, percorremoso interior de Minas Gerais. Durante o show, dediquei a música “Pais e filhos” a ele, que nãogostou, porque tinha sérios problemas, então, com sua sexualidade. Após a apresentação eufiquei cabisbaixo e pensativo, não participei da animação no camarim, não quis falar comninguém, nem dar autógrafos ou falar com a imprensa. Isso me prejudicouprofissionalmente. Não muito, mas poderia ter aproveitado a situação para sedimentarnosso sucesso, o que não fiz, dando espaço para minha reputação de difícil, mal resolvido eproblemático (o que me causaria prejuízos bem maiores no futuro próximo). Fiquei muitoressentido com isso e minha autoestima foi para o espaço.b) F. J. — Passamos a infância e momentos importantes de nossa adolescência juntos. Daspequenas brincadeiras sexuais, passei à obsessão romântica (isso durou vinte anos, e aindaestá presente hoje), enquanto ele seguiu o curso da heterossexualidade socialmente aceita.Entre 86 e 87 houve manipulação de ambos os lados. Eu lhe dava dinheiro para que elecomprasse cocaína, subentendido que haveria troca de favores sexuais. Um exemplo: emmaio de 87, como sempre, uma segunda-feira à noite, ele me chamou ao portão e insinuouestar disposto a passar a noite comigo, e não estaria eu com vontade de ficar “numa boa”?Ele sempre me pedia dinheiro (com a desculpa de estar sozinho em casa e precisar comprarfraldas para o filho, ou comida, remédios, qualquer coisa) e eu sempre cedia. Nessa noite nãofoi diferente — tive prejuízo financeiro (o que para mim não era muito, comparado à doremocional e ao sentimento de ser desprezado por quem amava, o que me levava a fingir, ame ressentir da situação em que estava e ter raiva, culpa e autopiedade por ser assim). Eletinha um componente homossexual muito forte, mas nunca o admitia e, depois de ficarmosjuntos a noite toda, houve discussão e acusações mútuas — eu querendo resgatar um poucoda minha autoestima e ele provando a si mesmo sua “masculinidade”, dizendo que, se nãofosse pelo dinheiro, ele nunca faria “aquilo”. Isso provou não ser verdade, já que no finaldesse período ele me procurava por companhia somente, por se sentir tão sozinho eincompreendido quanto eu, mas aí o mal já estava feito e eu aproveitava para tentar

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humilhá-lo e provar o que nós dois já sabíamos: estávamos na mesma situação. É difícil sermais específico do que isso — o uso de drogas e álcool me embotou a memória e essassituações se repetiram dezenas de vezes, sempre iguais. Ao longo desse tempo perdi meuautorrespeito e muito dinheiro. Me sentia sozinho, culpado, triste, com pena de mim mesmoe injustiçado. A frustração era intensa também. Lidava com isso da única maneira que sabia:me isolando e exagerando no uso de álcool e drogas. Posso melhorar (se conseguir) nãotentando controlar as pessoas, trabalhando minha autoestima e autovalorização, e seguindoo que aprendo com o programa. É difícil. Para mim a coisa mais difícil do mundo é desligar-me da pessoa que eu amo, quando essa pessoa não me ama do mesmo jeito. Só consigo issoanulando meus sentimentos e, no caso de S. e F. J., isso até hoje não foi possível,completamente.c) Com exceção desses dois casos, minha dependência de pessoas sempre foi intermitente epartindo de mim, sendo que muitas vezes eu não dependia da opinião ou sentimentos deuma só pessoa específica, mas sim da opinião e sentimentos dos meus amigos, da minhafamília, dos meus vizinhos, do meu público até, do staff da minha companhia, da opiniãopública. E, a não ser pelos dois casos das pessoas acima, o prejuízo nunca foi financeiro (eupaguei pela estadia de S. em janeiro/março de 90, por exemplo) — sempre havia mais erador emocional, solidão, ressentimento e extrema autopiedade, além, é claro, do prejuízo ameu estado de saúde, e isso a longo prazo. Por isso é difícil ser específico. Dependendo domeu estado emocional, as palavras e atitudes de um estranho, por exemplo, eram suficientespara me levar à bebida e às drogas, à tristeza e à frustração. Essa foi sempre a maneira com aqual lidava com isso, ou então trabalhava compulsivamente, ou era compulsivo em tudo —exagerando a alegria, que virava euforia, exagerando a dor, que virava sofrimento,exagerando a solidão, que virava isolamento, exagerando o medo, que virava pânico, ouexagerando a desconfiança, que virava paranoia. A antipatia se transformava em ódio, oamor em obsessão, o sucesso em dificuldade, e por aí vai. O prejuízo? É como se tivessejogado metade da minha vida fora e, para resolver isso, só voltando a querer viver, o quepretendo conseguir com este tratamento. Não consigo me lembrar de incidentes específicosporque bebia e me drogava para esquecer, o que consegui. Cabe dizer aqui que muitas vezes(a maioria das vezes) eu manipulava a mim mesmo e os outros para obter incentivo,aprovação e elogios, o que para mim não era então prejuízo, já que ficava aliviado e “seguro”com a aprovação de todos. O prejuízo, repito, veio a longo prazo, destruindo (quasetotalmente) meu autorrespeito e minha saúde. Só posso resolver isso seguindo o programae trabalhando desligamento emocional e minha autoestima.

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21/04/93Situação que tentei controlar e não consegui: não consigo me lembrar. Estou indo com acorrenteza e está sendo bom para mim. A cada dia que passa, sinto que aceito melhor oprograma, tenho participado ativamente (às vezes, penso que até demais! Falo muito!) e hojefoi um dia muito produtivo. As atividades foram todas excelentes, a meu ver, e hoje o dia foi,em minha opinião, um dia de harmonia (estou ouvindo J. S. Bach, e isso ajuda!), a palestrasobre vergonha e culpa foi ótima, tivemos dinâmica e visualização, o GA é sempreagradável, e o vídeo sobre os doze passos me emocionou, achei muito bem-feito e nadacansativo (qta. diferença daquela tristeza que foi A viagem de volta e aquele outro com a LindaBlair). Tenho sentido uma certa dificuldade para assimilar tudo (é MUITA coisa), mas tudobem. Primeiro as primeiras coisas. Fiquei muito satisfeito que minhas observações sobre oprograma de segunda-feira foram corroboradas pela própria Sv. (!) — é bom estar certo devez em quando. Tenho fumado demais, no entanto (situação que tentei controlar e nãoconsegui). E o tratamento p/ tabagismo? Ontem à noite a reunião de NA foi revelatória(descobri finalmente a importância dos grupos) e entrei como membro. Hoje AMEI avisualização (como me senti bem!). Não recebi visitas (já sabia, e não fiquei frustrado) eaproveitei para descansar bem, depois do almoço. Vou esperar sua volta p/ conversarmossobre as tarefas (que pretendo completar, mas não hoje). O L. A. (interno novo) é muitocordato e sensível (além de inteligente e culto) — me identifico com ele. Pena que asmeninas vão receber alta — desequilíbrio no grupo? Adoro meninas (a sensibilidadefeminina coloca um equilíbrio nas coisas, eu acho). Hoje fui assertivo c/ L. E., fiquei satisfeitocomigo mesmo. (Assim que ele acorda, ele desanda a falar, sozinho às vezes, e isso meincomoda e lhe disse — sem maiores problemas.) Aproveitei a tarde também p/ dar umaolhada (séria) em alguns livros: Astrologia: Alcoolismo e drogas, que me interessa mas achei umtanto vago — a não ser pelas informações sobre Netuno, o signo de Peixes e a 12a casa, oh,céus —, outro sobre tratamento de alcoólatras, que achei bom, e um ótimo, que após aleitura dinâmica decidi ler por inteiro (achei excelente): Alcoolismo: Mitos e realidade. Vouterminar o livro sobre máscaras (que estou — oh! — achando meio bobo) e Seus pontos fracos,que acho gostoso de ler (e difícil de aplicar na vida prática, mas tenho tempo). Hoje estou mesentindo tranquilo (um pouquinho apreensivo, talvez) e integrado. Gostaria de conversarsobre as tarefas e sobre minha necessidade de entrar em contato c/ meus sentimentos. Achoq. houve um mal-entendido a partir do GT sobre ressentimento — não me vejo como foicolocado na avaliação nesse aspecto (talvez um pouco). Somos todos parecidos (os DG),18mas existem diferenças — gostaria de conversar sobre isso. No mais, achei todo o resto daavaliação justa e precisa. Vou ler um pouco agora, Renato.22/04/93Hoje o dia foi bom, mas desfocalizei bastante (e vejo que é algo que NUNCA perceberia na

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ativa). Como desfocalizei? Ficando um pouco eufórico e agitado (isso foi o dia todo) — masme sinto BEM. (Mesmo com escabiose, que DEVE ser emocional — um dia vai, outro diavolta…) O passeio até o Lagoinha Country Club (v. não adora esse nome?) valeu a pena. Eunão queria ir, mas foi muito bom, principalmente por ter levado um bom susto: como estoufora de forma! Uma corrida de quinze minutos jogando futebol e meus braços “pinicaram”,fiquei muito cansado e sem ar. Suei muito também, mas logo passou, e já na hora dobasquete (sim! quem diria — acho que há vinte anos não fazia exercício assim) estava bemmelhor. Acho que preferia ter tido atividades (foi minha primeira saída de Vila Serena, e mesenti como um menino que sai de casa sem os pais pela primeira vez) — fuga? Participeiativamente das atividades (estarei me repetindo?) e evitei me envolver demais c/ o problemade seu M. — melhor para mim, eu acho. De qualquer forma, desabafei no GA e tive o apoiodos colegas. E eles disseram “sentir firmeza” em mim, o que me aliviou. Agora estou ótimo,até um pouco elétrico. Vou ler e descansar. Achei a palestra interessante mas um poucorepetitiva, e só no último minuto é que veio o que esperava: como solucionar o problema dadefesa da mente. Espero uma segunda parte: “As fortalezas da mente — II”. E seu M. pareceter mudado de ideia. Todos ficaram felizes. Vou ouvir a fita que Gl. me deu de presente.Achei muito importante isso, uma prova de confiança (os norte-americanos são meio frios etudo). Mesmo com altos e baixos começo a perceber que estou mais equilibrado. Me assustaum pouco perceber também uma série de coisas a meu respeito (que eu sabia mas abafava,ou então evitava completamente). Estou tranquilo — mas, sinceramente, este desafio émaior do q. eu imaginava. Parar é fácil — o difícil é continuar sem drogas, sem álcool. Maisdifícil ainda (para mim) é resgatar o prazer de viver. Espero chegar lá. Renato.PS: Não tentei controlar nada, que me lembre. Nova tarefa p/ a FES esta semana?23/04/93Minha cor favorita, azul-aquamarine. Bem, entre os sentimentos que eu trazia ao ingressarem Vila Serena: um ressentimento profundo em relação à minha vida (raiva, culpa eautopiedade), por me sentir incapaz de interagir com outras pessoas de maneira saudável enatural, por me sentir incompreendido e desprezado,* por saber (mesmo sem conseguirdefinir ou explicar) da minha extrema dependência de pessoas, por ser “doente”, por terperdido tanto tempo, não querendo, ao mesmo tempo, viver (já que achava que a vida era sódor, injustiça e solidão). É muita coisa. Tinha raiva do mundo, de tudo e de todos. AchavaTODAS as pessoas estúpidas e falsas (e, quando não era esse o caso, quase me via forçandosituações ou fantasiando negativamente até provar que estava com a razão) e o mundoirremediavelmente perdido. Tudo parecia justificar minha depressão e meu pessimismo.Ainda não estou livre desses sentimentos, mas já consigo um certo desligamento (qdo.assisto o Jornal Nacional, por exemplo, agora me vejo dando risadas — não me toca a

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tragédia, e sim o absurdo). O mais importante tem sido compartilhar (e descobrir outroscomo eu), ter resgatado minha paciência, ter controle sobre meu lado agressivo e estarresgatando minha autoestima, pouco a pouco, mas seguramente. Estou no começo, mas,por uma dádiva, as principais das minhas qualidades afloraram de imediato: sensibilidade(sem sofrimento), sinceridade (sem dependência emocional — ao menos não no graupresente quando da minha dependência), honestidade (sem culpa), interação e tolerância(sem medo). Ah — parece um sonho, mas não é; é real! Não estou eufórico, estou tranquiloe até feliz. Estou tentando trabalhar tudo isso e agora devo me concentrar no meuimediatismo e não tentar “morder mais do que posso mastigar”, por assim dizer. Levatempo, levará tempo — uma coisa de cada vez, primeiro as primeiras coisas! Me levo muitoa sério ainda, me pego fazendo planos para salvar o mundo (!) a partir dessas descobertas —devo salvar a mim mesmo. Pensar duas vezes (no meu caso, três!) antes de me deixar sentircoisas negativas. O livro Seus pontos fracos tem sido, mesmo com seu radicalismo, um guiapara mim, e a palestra de El. hoje (TRE) foi uma revelação. Tudo começa a começar a seencaixar (o espelho de Lacan). Nossa conversa de hoje foi, também, uma revelação. Quandoda reunião de NA, senti uma identificação mística, antiga, presente e esquecida, ao se falar de“irmandades”. Foi leve e intenso.** A Cl. é o máximo! E estou bem lírico hoje. Que bom.Começo a resgatar meus planos e a vontade de trabalhar (por mim, e não para os outros oupor obrigação). É muita coisa. Ainda me sinto inseguro ao projetar meu jeito de ser nomundo lá fora — principalmente minha sexualidade, embora sempre tenha sido firme emminhas convicções. Mas já estou filosofando um pouco. Vou tomar um banho, ler umpouco, dormir e descansar. Amanhã continuo. Renato.* Mesmo com todo o meu sucesso e reconhecimento em nível profissional.** Mais sobre isso depois. Templários, gnosticismo, Poder Superior.

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1. Para mim, insanidade é a perda de controle sobre o pensamento, sentimentos e emoções,levando a uma falta total de harmonia entre atitudes e valores pessoais e a uma perda decontato com a realidade.2.Sim. Ao voltar para casa na madrugada de 27 de dezembro do ano passado, estava já tãoafetado pelo álcool, que estava fora de mim. Tinha estado em uma festa de amigos, emBrasília, e, quando cheguei à casa dos meus pais, fiz muito barulho (tive um apagamento,mas eles me dizem que eu já estava gritando a quarteirões de distância, com raiva ehostilidade, para todo mundo ouvir). Fui agressivo com meu pai, cambaleei e caí, houve umabriga e muita discussão, meu filho se assustou e continuei a gritar pela janela, em voz muitoalta e possante: “Odeio vocês! Odeio vocês!”. No dia seguinte não me lembravacompletamente do meu comportamento, achei que meus pais tinham entrado em pânico eexagerado tudo, e, pior, achei que a história de minha agressividade com meu pai eramentira e parte de um complô para que eu me sentisse culpado e não bebesse mais. Não melembro do que aconteceu porque devo ter voltado ao álcool assim que meus pais foram aosítio de tarde com meu filho. Senti raiva, culpa e vergonha.// Em julho de 1987, estávamosem Porto Alegre para uma apresentação no Gigantinho (um estádio com capacidade paramais de 25 mil pessoas). Após o show, no quarto de um de nossos assessores, se reuniramtodos que queriam beber e cheirar cocaína, já que a norma do hotel era a de que mulheresnão podiam subir aos quartos de hóspedes masculinos sem que uma diária extra fosse paga,e muitos ali tinham ficado na mão. Entre os rapazes estava um modelo de nome C., o gaúchoque nos conseguiu a droga, e ele me interessou imediatamente. (O hotel não fazia restrição àvisita de rapazes aos hóspedes masculinos, por algum motivo.) Já armando o bote, bebi pouco, cheirei menos ainda e, vendo que a cocaína iria acabar,separei um ou dois gramas para mim (era muita quantidade). Quando a droga se foi, todosficaram a ver navios e a festa logo murchou. Acompanhei C. até o elevador e lhe disse quetinha mais, em meu quarto, e não gostaria ele de conversar um pouco? Isso era por volta das4h30 da manhã. Ficamos no meu quarto até as 9h a.m., insistindo em chegar a qualquerespécie de orgasmo, de todas as maneiras, o que foi impossível por causa do efeitocumulativo do álcool e da cocaína (e dos baseados, ao longo do caminho). Foram mais dequatro HORAS de masturbação mútua e sexo oral, sem resultados. Me senti frustrado masfeliz ao mesmo tempo, foi achei muito divertido na verdade. Hoje parece até hilário, mas foiinsanidade mesmo. Ao voltar a Porto Alegre um ano depois, nosso encontro quase serepetiu, mas ficamos tão acanhados com a lembrança do primeiro encontro, que decidimosdesistir, o que foi uma pena, porque o C. era um gato e disposto a fazer tudo. Isso éinsanidade, certamente.3. Não.

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4. Racionalizar a respeito das “injustiças” do mundo, achar que Deus era uma invenção dohomem (à sua própria imagem e semelhança, o que achava ridículo), confundirespiritualidade com religião, justificar os males do mundo a partir dos crimes cometidospela Igreja, ver em Maomé um profeta-guerreiro e em Buda resignação e sofrimento, noEspiritismo uma ilusão primária, acreditar que a fé era instrumento para a repressão,escravidão e ignorância do ser humano, no Hinduísmo ver uma insalubridade doentia(templos para ratos e baratas?) — a doença me fazia sentir onipotente, autossuficiente efechado a qualquer luz, mesmo com meu sofrimento e solidão. Achava a vida sem sentido evazia. Não consigo especificar comportamentos ou situações, mas me sentia abandonado,vazio, com medo, raiva e desesperança, pessimista e cínico. Minha atitude era sempre a deme afogar em álcool e drogas para me entorpecer e esquecer meu horror pelo mundo.5. Sim, ainda racionalizo demais, mas a cada dia de abstinência meu coração está se abrindoe estou começando a perceber que a razão não é tudo, e que existe uma força maior do que oser humano tem capacidade para compreender. E já tive, neste período de abstinência,alguns momentos de harmonia comigo mesmo e com o mundo que só podem teracontecido a partir da intervenção de um Poder Superior.6. O Poder Superior para mim é o tempo, a vida, o amor, a amizade, o sopro de esperançapresente até nos momentos mais difíceis, o mistério que me cerca, uma emoção inexplicávelque faz o tempo parar, me faz me sentir muito bem e me traz um sorriso aos lábios, minhavontade de crescer e trazer luz para os meus e os outros. Na verdade, para mim, o PoderSuperior não se explica por palavras. Sua existência é percebida não pelo intelecto, mas simpelo coração. É como o vento, não se vê o vento, mas vemos as árvores em movimento,ouvimos o som e sentimos o vento no corpo. Só que o vento se explica, e o Poder Superiornão. É importante para mim porque minha vida agora depende disso.7. Procurar acreditar na vida, trabalhar minha espiritualidade, respeitar o próximo, teresperança, ver o lado bom das coisas, compartilhar, ajudar e pedir ajuda aos outros, acreditarem mim mesmo.8. Já no terceiro dia comecei a sentir algo diferente (era Sexta-Feira Santa). Foi a Sexta-FeiraSanta mais feliz e tranquila dos últimos vinte anos, eu acho. Meu sono se regularizou,comecei a perceber vários defeitos de caráter e sentir a necessidade de trabalhá-los, etambém ver que tenho muitas qualidades. Ainda não sei se utilizei a ajuda do Poder Superiorconscientemente, por isso é difícil ser específico. O que parece é que o Poder Superior semanifestou sem que eu me desse conta disso; só com a sensação de plenitude e

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tranquilidade inexplicável é que passava a imaginar que era do Poder Superior a razão paraesta harmonia (que vai e volta de repente) — e isso só depois de tentar explicar o motivo porestar me sentindo tão confiante e sem medo. Não consegui achar uma explicação lógicavárias vezes, então só pode ter sido por causa de uma força maior, fora de mim, o mistérioprimeiro e eterno. E isso se deu a partir do meu TEMPO interior, não sei especificarmomentos, datas, atitudes. É uma sensação de satisfação plena, sem ligação com coisas eideias — estou sentindo um pouco disso agora.9. Entendi que a única saída para o alcoólatra é o caminho espiritual. A melhor coisa que umbêbado conhecido pode fazer é se tornar um alcoólatra anônimo, e para isso o únicocaminho é seguir os doze passos e aceitar a espiritualidade e o Poder Superior como guia efonte de esperança e luz — o que estou pouco a pouco e cada vez mais aprendendo.Reaprendendo, na verdade, porque a doença destruiu o meu lado espiritual que, lembrandoagora, sempre esteve muito presente em minha vida, até que eu começasse a beber e usardrogas. Agora, tudo mudou (por hoje pelo menos, 24 horas!).8-B. RELATE SITUAÇÕES DO SEU TRATAMENTO ONDE PERCEBEU-SE RECOBRANDO AS CARACTERÍSTICAS DESANIDADE, E IDENTIFIQUE COMO UTILIZOU A AJUDA DO PODER SUPERIOR EM CADA UMA DELAS:Não gosto de fazer exame de sangue, fico irritadiço e mal-humorado. No dia 3 de maio desteano, veio o moço do laboratório indicado por meu clínico até Vila Serena. Estava de jejum,perdi a comunitária e, com meu mau humor habitual, lá fui eu para o encontro com osvampiros (como eu costumo me referir à equipe do Braz Maiolino)20. Mais tarde, soube,através do enfermeiro Cr., que o moço do laboratório tem medo de mim. Não lembro de tê-lo maltratado no passado (faço exames de quarenta em quarenta dias, por causa do meufígado,* que, após uma hepatite B seriíssima e meu uso de álcool, tranquilizantes e máalimentação, ainda inspira cuidados — e a coleta é feita em minha casa). Mas semprereclamo do preço, qualquer problema é motivo para reclamação e, quando fico de carafechada, é algo realmente desagradável. Pois bem, dessa vez o mau humor veio novamente,mas me vi contando até dez e me esforçando para ser gentil ou pelo menos desligar-meemocionalmente e separar o problema da pessoa (assertividade). Isso é algo novo para mime certamente tem a ver com a recuperação de minha sanidade (não estou repetindo osmesmos erros achando que terei resultados diferentes). E, agora que já trabalhei meusegundo passo, vejo que devo isso em parte também ao Poder Superior, pois estou maiscalmo e paciente, aceitando um pouco mais as coisas que não posso modificar. Nemreclamei muito do preço, que achei absurdo, mas depois, ao converter o custo em dólares, vique foi uma bagatela. Espero que tudo tenha se resolvido, porque o motorista do laboratórioé um gato e a equipe muito atenciosa e gentil. E não quero mais fazer inimigos de graça.

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* E otras cositas más.

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1. Para mim o terceiro passo é o mais importante de todos, depois do primeiro. Entendi quea causa principal de quase todos os meus pontos fracos é minha insistência em ver satisfeitaMINHA vontade, em vez de aceitar a vida, o mundo e as pessoas como são e buscarharmonia através dessa aceitação. Minha dependência química potencializou esses defeitosde caráter e vejo agora que minha prepotência, autossuficiência e imediatismo foramjustificativa para essa mesma dependência, gerando um círculo vicioso no qual me afasteicada vez mais do Poder Superior, por achar que eu teria a condição de resolver meusproblemas eu mesmo. Isso naturalmente não é possível, nenhum ser humano tem controlesobre os caminhos do tempo, da vida e do mundo. A doença não me deixava ver isso,mesmo tendo experiências e provas constantes de que minha vontade não era a Verdade. AVerdade está no mistério e na vontade do Poder Superior. E, quanto mais eu conseguirtrabalhar minha aceitação dessa Verdade, mais próximo estarei de perceber a beleza eplenitude da Vida e estar em harmonia comigo mesmo e o mundo (e tudo que é do mundo);o medo (que é a base de minha imaturidade emocional e do que considero o mal) serásubstituído por Amor, Fé & Alegria. Nenhum ser humano é perfeito, mas a descoberta dessecaminho leva à possibilidade de aprimoramento do meu caráter e espírito, a partir tambémdos outros onze passos e da entrega e rendição à Verdade; ao Amor Infinito, Onipresente eInexplicável: meu Poder Superior. Preciso ter coragem para modificar o que posso e partirpara a ação!2. Intolerância; prepotência; arrogância; descrença; agressividade por defesa, com base nomedo e insegurança; ressentimento; prejulgamento; fantasiar negativo; culpar pessoas,fatos, situações e coisas por não ter minha vontade satisfeita e por meu sofrimento; buscarjustificativas para alimentar tristeza, pessimismo, melancolia e autopiedade; impaciência;imediatismo; mania de grandeza; supervalorização de valores mundanos, do status quo, dasopiniões de terceiros. Preciso trabalhar autovalorização, desligamento emocional eassertividade. Preciso erradicar todos os vestígios possíveis da minha dependência química eentão o que ainda ficou de negativo em minha pessoa, aprimorando minhas qualidades comconfiança e entrando em contato com meus sentimentos. Trabalhar em direção a umaharmonia cada vez mais próxima à vontade do Poder Superior. Pensar antes de falar, e agirde acordo com essa mesma harmonia. Trabalhar vergonha, culpa e preocupação. Resgatar obom humor.3. Evitar o primeiro gole, a primeira dose e ter fé. Aceitar meus limites e o que não possomodificar. Trabalhar paciência, intolerância, desligamento emocional, assertividade eprincipalmente autoestima. Seguir a programação, acreditar em mim mesmo.4. Agindo com calma, primeiro as primeiras coisas, não me levando muito a sério, pedindo

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ajuda, compartilhando. Frequentando grupos de autoajuda, praticando terapia racionalemotiva, vivendo o momento presente, só por hoje. Evitando ao máximo pessoas, locais,atitudes, pensamentos e sentimentos ligados à ativa, sempre que possível. E trabalhandominha autoestima a partir do meu contato — 5./ 6./ 8. — com o Poder Superior e arealização de que sou valoroso e tenho muitas qualidades especiais e importantes, nãominimizando essas qualidades, me lembrando de todas as coisas ótimas que posso fazer, quefaço e consigo e o que já fiz e consegui em minha vida.5. a) Na minha época de ativa me alimentava muito mal, horários irregulares, lanches edoces em vez de comida substancial. Ao contratar uma nova secretária em outubro do anopassado, decidi trabalhar isso, coordenando meu horário de almoço e janta, preparandocardápios, determinado a acordar mais cedo e, principalmente, não beber antes de mealimentar e também não ficar “beliscando” o dia inteiro, em vez de sentar-me à mesa e teruma refeição completa. Não deu certo. Não tinha companhia (o que me incomodava e medeixava triste e ressentido, porque me lembrava de quando S., meu último companheiro asério, morava comigo) e em pouco tempo voltei ao velho hábito de fazer sanduíches ecomer assistindo vídeos, ou ouvindo música. Isso aumentou minha autopiedade (quandopensava no assunto) e minha preocupação e medo (por saber que não estava atento à minhasaúde, e já bebendo muito além da conta). b) O mesmo aconteceu um ano antes, em 91 aproximadamente, também no segundosemestre, quando me encontrava ainda muito deprimido por meu relacionamento com S.não ter dado certo. Me isolei muito durante esse período e tinha hábitos extremamentesedentários, ficando deitado no sofá da sala de vídeo, ou sentado à minha mesa de trabalhono quarto de som a noite inteira. Dormia durante o dia, das oito da manhã até, por vezes, asdez da noite. Já com a saúde afetada (depressão, cansaço, tosse nervosa, dores nas costas edor de cabeça e vista irritada), decidi seguir as recomendações do meu clínico desde minhavolta dos Estados Unidos, em março de 1990, e mudar meu horário e caminhar na praia tododia de manhã (ou na Lagoa). Poderia também andar de bicicleta ou praticar natação, mas, aofinalmente conseguir acordar mais cedo perto do feriado de Sete de Setembro, após dormirmais de dezesseis horas seguidas e passear um pouco na Lagoa, achei tudo tão chato quedecidi pensei em desistir. Sair de casa de manhã para andar sozinho só aumentou minhadepressão, e me sentia muito incomodado com as pessoas que me reconheciam e ficavamrindo e cochichando. Me sentia inadequado por ser visto sozinho e me achava feio edeslocado entre as pessoas que faziam suas caminhadas de manhã. Tentei até beber algumasdoses para tornar esses passeios mais divertidos, mas só pensava em voltar para casa e ficarsem ver ninguém, para pensar na minha vida e me entregar a fantasias e sentimentos deorgulho, autossuficiência e autopiedade.

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6. a) Sim. Quando fiquei abstinente do álcool em 1990, por causa de uma hepatite B, insistiaque não haveria uso de álcool ou cocaína em minha casa e várias vezes me irritei muito commeus amigos, porque, sabendo que eu não tinha bebida e drogas, eles traziam suas garrafasde uísque, e papéis de cocaína (que cheiravam “escondidos” no banheiro). Isso estragava aminha noite, tive muitas algumas discussões e ficava ressentido e com raiva por não tercontrole sobre a situação, em minha própria casa. Aquelas pessoas passaram a me considerar um chato e não me visitavam mais (não com amesma frequência), o que não me incomodou, porque estava cansado e magoado por medeixar preocupar-me tanto, transformando reuniões divertidas em sofrimento. Só que, nofinal de março, S., meu companheiro na época, começou a beber muito, e isso para mim foio limite. Entre outros problemas, isso foi a gota d’água, tivemos brigas e discussões e nosseparamos definitivamente pouco depois do meu aniversário, após uma discussão séria naqual ele jogou garrafas de vinho vazias prédio abaixo. Fiquei com raiva, medo, culpa, enunca senti tanta autopiedade quanto nos três meses que se seguiram. b) O mesmo aconteceu com meu relacionamento com Cs., nos anos de 86 a 88.Morávamos na ilha do Gov., na casa dos meus avós, e eu implicava muito com ele, porquerer que ele estudasse e completasse o segundo grau, o que ele sempre adiava. No finaldesse período, eu já implicava com tudo; às vezes, quando ficava com raiva, até com seujeito de falar, seu modo de se vestir e se comportar. Isso tudo não deu em nada, era só provade minha insegurança, prepotência e dependência emocional. No inverno de 88 a situaçãoera insuportável, só nos falávamos com sarcasmo e provocações, embora, paradoxalmente,tivéssemos um relacionamento sexual ainda mais intenso. Ele trabalhava com a equipe doLegião (um erro fenomenal, esse) e, sempre que ele ficava sem dinheiro (por gastarcomprando cocaína e álcool para seus colegas de bar), eu aproveitava para tentar controlá-lo, negando empréstimos até que ele se matriculasse em um curso noturno. Tudo desculpapara meu egocentrismo e prepotência. Ele não se incomodava e ia direto para a casa de umparente meu, onde passava a tarde toda tocando guitarra e assistindo televisão, isso até queseu novo pagamento chegasse (pelo escritório de um dos meus assessores, já que ele nãotrabalhava p/ mim diretamente, mas sim p/ Legião Urbana Prod. Artísticas Ltda.). Certo dia, perto do seu aniversário, em julho ou agosto de 88 (não me lembro a data, masele era leonino), tivemos uma discussão séria onde tentei controlá-lo de vez, dizendo que, senão mudasse seu comportamento, o desligaria da equipe (era só falar c/ meu assessor). Issoo faria depender de mim completamente e, na minha cabeça, dançar conforme a música.Naturalmente não deu certo. Foram acusações de ambos os lados e fiquei tão magoado ecom tanta raiva que o chamei de “parasita” e de “inútil”, colocando-o para fora de casa. Elefez as malas e foi direto p/ a casa daquele meu parente, onde continuou exatamente comoera, sem estudar, só se drogando e sonhando em ser famoso. Ele tinha completado dezenove

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anos (eu tinha 28) e minha opinião era a de que eu podia fazer o que bem entendesse comminha vida, já que era profissionalmente muito bem-sucedido, e com curso superior aindapor cima. Eu acreditava sinceramente saber o que era melhor p/ ele, mas, em vez de deixá-loescolher seu caminho, tentei controlar sua vida e seu jeito de ser, o que acabou com umagrande amizade (e um amor sincero também) — fiquei tão frustrado e com raiva de mimmesmo que isso afetou meu trabalho e não consegui lançar o novo álbum no Natal daqueleano, como estava previsto, só o fazendo sete meses depois.7. Orgulho, euforia, imediatismo, automanipulação (prepotência, racionalização, fantasia).8. a) Quando o colega L. E. foi transferido para o quarto 3, onde estávamos eu, Sg. e J. A.,fiquei um tanto apreensivo, para não dizer chateado. Era a segunda semana de abril desteano e eu estava me adaptando à vida em Vila Serena, sem maiores dificuldadesprincipalmente porque os colegas de quarto não eram problemáticos e até brincávamos queo nosso quarto era o mais agradável aqui (mesmo com o ronco de J. A.). Só que L. E. nãoestava bem de saúde e fiquei com raiva por achar que ele devia ter ficado na enfermaria pormais alguns dias. Além de roncar também, ele reclamava muito (embora se justificassedizendo que seu ronco era “sociável”) e, ao acordar de manhã, falava sozinho sem parar,pensando em voz alta, o que me tirava preciosos minutos de descanso. Me deixava afetarcom isso, e ficar ressentido, pois percebia em mim minha intolerância, impaciência eimediatismo. Só que, como não havia solução, resolvi aproveitar a programação e colocá-laem prática. Deu certo. Com assertividade (lhe disse que ficava irritado) e as técnicas deterapia racional emotiva (não me deixava abalar como antes), o problema deixou de meincomodar e passamos a ter uma convivência tranquila, o que me deixa feliz comigomesmo. b) Meu clínico, dr. Sl., gosta muito de conversar com seus pacientes, o que faz com que aespera para a consulta às vezes leve até mais de uma hora e meia. Não gosto de esperar e,quando tenho que aguardar resultados de exames de sangue, fico ansioso, com raiva,agressivo e hostil, de cara fechada, num mau humor extremo. Até que, no começo do anopassado, decidi chegar uma hora depois da hora marcada (mesmo que ainda tivesse deesperar). Às vezes chegava exatamente na hora, sabendo que teria “motivo” para me irritar edemonstrar bastante raiva e mau humor. Isso não levava a nada, e um dia, sem dificuldadealguma, só com boa vontade, desisti de me preocupar e passei a ter mais paciência. A partirdaí, por algum motivo, passei a ser atendido com mais presteza, o que me deixou satisfeito,surpreso e feliz. Isso se deu mais ou menos na altura do meu aniversário, março de 92.9. Não. Ao entrar em contato com a programação, estou conseguindo resgatar e reconstruiro que sempre acreditei (e que tinha negado com o avançar progressivo da doença).

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10. Religiosidade (religião) é a espiritualidade (fé) organizada em um sistema inflexível deregras, códigos de conduta e valores morais, pelo homem.11. Este passo é a única saída. A partir do momento em que tenho conhecimento dessaverdade, é essencial trabalhar uma reformulação total do meu relacionamento comigomesmo, com o mundo e com o Poder Superior. Ou isso, ou então o caminho do sofrimento,da solidão e da morte, também espiritual e moral. É preciso, agora, partir para a ação!

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FALE DE SITUAÇÕES EM QUE PERCEBIA:A) FACILIDADE DE ANALISAR MUITO AS OUTRAS PESSOAS, SAINDO DO FOCO DE VOCÊ MESMO, SUASATITUDES E COMPORTAMENTOS.P. — Conheci P. no primeiro semestre de 1986, na gravadora EMI-Odeon; ela estavapreparando sua tese de mestrado e queria me entrevistar. A empatia foi instantânea.Tínhamos background e atitudes muito parecidos, e logo no primeiro dia, percebendo queisso talvez levasse a um amor não correspondido, fui sincero quanto à minha identidadesexual, em vão. Ela nutriu uma paixão por mim ao longo dos anos. Nos tornamos melhoresamigos e confidentes. De menina tímida e não assertiva, a vi se transformar em uma mulherdinâmica e independente, aos olhos dos outros. A meu ver, ela mascarava sua extremadependência emocional e carência afetiva assumindo o papel de “relações-públicas” daturma. Era ela quem ligava para todos, combinava passeios e saídas, a primeira a chegar, aúltima a sair. Sua necessidade de companhia era tal que ela pegava as pessoas em casa e davacarona na volta. Quem organizava festas. Quem sabia da vida de todos, dava conselhos,ouvia problemas, oferecia soluções. Só que ninguém sabia da vida de P., só eu. De como elaficava magoada porque ninguém se lembrava de lhe telefonar, de como ela confessava nãoconfiar verdadeiramente naquelas pessoas, de como ela se ressentia de ter pais com idadepara serem seus avós, ou de sua indecisão e teimosia para se lançar no campo profissional.Inteligente, amável, sensível, talentosa, nenhuma profissão, trabalho ou emprego era bom osuficiente para P. Pouco a pouco, ela foi se desgastando, presa às mesmas ideias, pessoas,coisas, lugares, tornando-se, para mim, uma paródia triste de si mesma. Quando seu paifaleceu, a situação piorou sensivelmente. Ela achava ridícula a noção de que o trabalhoenobrece, vivia da pensão do pai e isso começou a me incomodar. Chegou o ponto em queo mínimo que ela se esforçava por fazer tinha resultados medíocres, o que eraconstrangedor para mim. Meu sentido de solidariedade se manifestava nas longas conversasa dois, madrugada adentro, quando comparávamos impressões do mundo, planos, ideias. Eutinha a solução para todos os seus problemas e, ao enfatizar meu ponto de vista, esqueciaque tinha problemas muito parecidos, às vezes maiores. Me sentia ofendido e magoado semeus conselhos não fossem seguidos à risca — já que, em minha onipotência, eu era o donoda verdade. Sempre tive, também, extrema dificuldade em aceitar seus conselhos, e vejoagora que ela estava certa — era muito esperta e perspicaz. Oferecia soluções e alternativascom desprendimento, simpatia e compreensão. Mas eu simplesmente não queria ouvir; seouvia, ficava com raiva de mim mesmo, ou autopiedade, e adiava qualquer solução. Vejo otempo que perdi me desfocalizando ao concentrar-me seriamente nos problemas de P. Elame esclarecia com maturidade no que se referia aos meus conflitos em relação ao meusucesso, minha visão extremamente negativa do mundo e das pessoas, meu isolamento esolidão, minha depressão. P. e eu já não nos falamos. Ela está passando talvez pela maior

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crise de sua vida até agora. Sua mãe está gravemente enferma e, mesmo com tudo que fezpelos outros, ela agora está sozinha. E, que eu saiba, nunca terminou a tese de mestrado quetanto a entusiasmara há oito anos. Não sinto culpa, ou remorso — só uma leve tristeza portudo ter acontecido assim.L. — Desconfio que um dos meus assessores é também dependente químico e alcoólatra.Durante a turnê do nosso quinto LP, entre agosto e outubro do ano passado, suas decisõesprofissionais chegaram a um nível de irresponsabilidade tal que o retorno financeiro foiquase nulo e o desgaste, a tensão insuportáveis. Os cenários não ficaram prontos, forampassagens trocadas, horários errados, equipamento roubado, segurança ineficiente.Chegamos a fazer quatro apresentações em um período de oito dias, em pontos diferentesdo país, o que é um absurdo: nosso guitarrista é diabético, eu tenho problemas no fígado, eas três horas de cada apresentação me consomem física e emocionalmente, é a minha vidanas canções. O ritmo normal para a Legião é de no máximo duas apresentações por semana,sempre foi. Devido aos custos absurdos dos ensaios (L. insistiu em equipamento deprimeiríssima, o que foi pago em dólar), tivemos que ir para a estrada sem que os músicosestivessem seguros. O plano de palco mudou a cada apresentação nos quatro primeirosshows, e não havia um roteiro de luz. Foi tudo improvisado de saída, o que minou qualquerpossibilidade de segurança em relação ao trabalho, para mim o mais importante enecessário ao se subir num palco na frente de 10, 15 mil jovens. Perdi a voz já no quintoshow, o que foi excruciante para mim. Na minha opinião a turnê foi um desastre. Já nosensaios, eu, sobrecarregado de trabalho (organizo a concepção, escolha do repertório,arranjos, dou a palavra final quanto aos cenários, luz, movimentação no palco, coordenotoda a parte musical), preferi seguir em frente, pensando que tudo correria bem como nopassado. Me perdi ao tentar controlar situações que não eram da minha alçada, quandopercebi a falta de visão e o descontrole de L. E, ao tentar manejar o que não poderiamodificar, me prejudiquei a tal ponto que veio a recaída. Ignorei todos os problemaspessoais que deveria ter trabalhado, me concentrando em analisar e explicar os erros deatitude dele. Em vão. Tivemos prejuízos pelo cancelamento de shows em Manaus e Belém edesembolsei US$ 30 000 para cobrir as dívidas desse assessor. Deveria ter analisado meupróprio comportamento em vez de desfocalizar-me e, com autossuficiência e imediatismo,me responsabilizar por obrigações de terceiros. Agora estou sem dinheiro, tentando reaverminha sanidade, com minha imagem e carreira prejudicadas e num terrível impasse. Nãoconfio mais em L., mas não posso esquecer que ele nos levou ao sucesso definitivo com aturnê anterior, muito bem organizada e produtiva. Caso dispense seus serviços, não vereimeus US$ 30 000 — ele só poderá reaver esse dinheiro com sua parte em futurasapresentações do Legião, já que os seus outros artistas não têm público suficiente para isso.A situação é tal que nem sei se a LEGIÃO tem ainda a força suficiente para isso. O quero fora

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da minha vida, não o respeito mais e sinceramente não sei o que fazer. Sinto raiva e umarrependimento terminal por ter me envolvido em uma situação assim. A frustração éimensa. Ele parece um idiota quando o assunto vem à tona, e se perde explicando suaineficiência e justificando-se com o argumento de que fez o melhor para todos, sacrificando-se em nome da banda e lembrando sucessos de dois, três anos atrás, como se issocompensasse o caos em que nos encontramos atualmente. Tenho vontade de matar. Tereique ser assertivo, ir com calma e aceitar o que vier, mas isso para mim é muito difícil,dependente químico ou não.N. — Minha grande amiga, nos conhecemos no Festival Internacional de Cinema, aqui noRio, no segundo semestre de 1988, e nos apaixonamos imediatamente. Nossa dependênciaquímica e alcoolismo destruiu nosso relacionamento no começo do ano seguinte, masdepois de algum tempo voltamos a nos falar. N. procurou ajuda e é hoje membro do AA. Eutive uma hepatite B e veio um período de abstinência por necessidade, durante o qualtrocávamos impressões sobre nossas vidas amorosas. Ela com seu namorado argentino, eucom meu namorado americano. Como sempre, eu tinha as soluções exatas para seusproblemas (até no caso de conflitos profissionais), e, embora ela tivesse grande insight arespeito de minha insegurança e dependência emocional, minha dependência química ealcoolismo, minha baixa autoestima, orgulho e perfeccionismo, agressividade e problemasno relacionamento familiar e com meu filho, minha atitude, ao ouvir sua ajuda carinhosa esincera, sempre foi: se vejo o que é a solução para meus amigos, e na prática minhas teoriasinevitavelmente dão certo, EU tenho a solução também para os MEUS problemas. Meucomportamento era assertivo e criativo ao tomar para mim seus problemas (e a solução) —quando o problema era meu e o conselho dela, me sentia ressentido, ignorando suaspalavras, ela que me conhecia bem e queria me ajudar. Eu me deixava desfocalizar através domeu desinteresse, orgulho e autossuficiência. Eu não me via, e com isso perdi metade daminha vida, me entregando cada vez mais à minha doença, certo de que estava sempre coma razão e de que ninguém possivelmente saberia resolver o que se passava comigo. Ouviaseu progresso no AA com interesse, a incentivava e compartilhava de sua nova vida, semquerer aceitar que tinha o mesmo problema — minimizava e justificava minha doença aponto de ter chegado ao fundo-do-poço em março deste ano.B) EXTREMA FANTASIA (SEM LIMITES), COMO MANEIRA DE TER CONTATO COM A REALIDADE.S. — Sempre tive muita facilidade para inventar situações completamente imaginárias ou apartir de fatos, lugares, coisas e pessoas reais. Quando essa criatividade produz algo quepode ser anotado como ideia (para uma canção, uma história, uma peça de teatro, umroteiro, um poema), acho o fantasiar positivo (mesmo quando estou evitando um conflitopresente). Aprendi que esse trabalho me acalma e me alivia, facilitando meu retorno à

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realidade e a disposição para enfrentar meus problemas, já que fico satisfeito comigomesmo e minha autoestima é reforçada. Mas existem as situações nas quais meu fantasiarnão leva a lugar algum e só potencializa sentimentos de inadequação, melancolia eautopiedade. É o caso da situação que descreverei a seguir. Meu relacionamento com S. nãoterminou bem, houve incompreensão e ressentimento de ambos os lados, cada qualculpando o outro pelo fato de nosso envolvimento não ter dado certo. São muitas fantasiasnegativas: imagino que S. está morrendo de aids em San Francisco e foi abandonado portodos, família e amigos. Eu sou o único que ainda é seu amigo e sou eu quem o acompanhae o assiste em sua doença. Minha facilidade para imaginar é tanta, que passo e repassodiálogos, situações, sensações, sentimentos à vontade, com ou sem variações, quantas vezeseu quero, como um filme. Já que isso parte da minha imaginação somente e da minhanecessidade de fuga e negação da realidade, por vezes a memória de uma fantasia negativa émais clara e focalizada do que a lembrança de eventos reais. Tenho muitas variações sobre o mesmo tema. Ele morre e tempos depois recebo umaherança milionária (ele percebe a tempo que fui a pessoa mais importante em sua vida). Ouentão, uma fantasia recente, nos encontramos em uma reunião de NA e, limpos os dois,reatamos nosso relacionamento, dessa vez sem conflitos maiores causados por nossadependência. E a mais perigosa de todas: ele volta ao Brasil sem que eu saiba e pede para queeu o aceite de volta. Imagino TODOS os detalhes, posso me concentrar até em sensaçõesfísicas, nos cinco sentidos (não só audição e visão). É tudo muito prejudicial e improdutivo,principalmente porque me levo a um estado de depressão, autopiedade e falta de esperançana vida — pensando obsessivamente no que poderia ter sido. Também tenho que tercuidado, pois vejo em mim uma tendência a deixar que lembranças eufóricas transformemo passado em um sonho ideal, quando na verdade nosso relacionamento sempre foi difícil eas duas últimas semanas em que estivemos juntos, especialmente insuportáveis e dolorosas.Existem fantasias menos trágicas: como a que, depois de voltarmos a ficar juntos, já nofuturo, ele é o câmera e fotógrafo dos meus filmes como diretor e roteirista. Vivemos umavida saudável e feliz em nossa meia-idade, sem conflitos ou problemas emocionais porcausa de nosso modo de vida alternativo, do qual meu filho, Giuliano, faz parte; somosentão um exemplo saudável e bem-sucedido de um núcleo familiar homoerótico e,naturalmente, nossos filmes ganham os principais prêmios internacionais ao longo denossa carreira. Algo como um Lennon/McCartney gay ou, para ter um exemplo real, a vidade Benjamin Britten e Stephen Frears22. Tudo fuga e ilusão, que alimenta minha tristeza.DADO — O guitarrista da Legião Urbana é uma das pessoas mais admiráveis que já conheci.Além de grande generosidade de espírito, inteligência, coragem e sensibilidade, ele é um raroexemplo de beleza física aliada a sex appeal; belo, sensual e de personalidade marcante(raramente beleza vem acompanhada de inteligência e charme). Pois bem, não confundo

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trabalho com sentimentos de ordem afetiva e nunca tinha me deixado afetar com suacompanhia, até que vim a saber que Fernanda, sua esposa, e empresária da Legião de 84 a 87,se ressentia comigo, por achar que eu estava interessado em seu marido. Na verdade nuncatinha pensado nisso, mas, assim que soube de seu medo, passei a perceber Dado com outrosolhos e, embora nunca tenha levado meu interesse às vias de fato (só em pensamento), asfantasias começaram. Por muito tempo trabalhei meu desinteresse e preguiça a partir dofato de que Dado estaria nos ensaios, nos shows, poderia vê-lo e conversar com ele. Era umamor platônico por essência, mas em minhas fantasias, outra coisa, completamentediferente. Não vou detalhar ou especificar o conteúdo dessas fantasias, só dizer que entravaem contato com a realidade, às vezes muito difícil, a partir de fantasias onde ficávamosjuntos e tudo se resolvia da melhor maneira possível. Ele era o motivo para me esforçar,levar meu trabalho em frente, ter ânimo quando estava desinteressado e força quando estavaprestes a desistir. Muitas vezes resolvi problemas e encontrei soluções criativas só porqueDado ficaria feliz. Acho que ele percebe alguma coisa, mas não deixamos que isso venha aser realidade — só quero que ele esteja feliz, porque ele merece. E aqui em Vila Serena estouaprendendo que tenho todo o direito de ser feliz também, sem me prender a fantasias e fugasque reforçam o quanto tenho me sentido insatisfeito com minha vida até agora. Dado eFernanda são meus amigos e fico feliz com isso, e por saber que eles se amam de verdade.VÍDEOS DA BANDA — Ninguém no conjunto gosta de gravar vídeos. O trabalho éexaustivo e nunca chegou perto do que pretendíamos. O custo é altíssimo e nãoconseguimos explicar aos diretores o que queremos. Somos preguiçosos também. Na épocado As quatro estações, me vali da minha facilidade natural de criar fantasias para inventar osvídeos para as canções do disco. Isso, em 1989. Até descrevi essas imagens para a banda(Bonfá23 faria o storyboard, trabalharíamos com Jodele Larcher, diretor renomado de clipesaqui no Brasil e tudo o mais), só que esses planos ficaram na minha cabeça, complicadosdemais para se tornarem realidade. Já que esse projeto não vingou, considero isso umexemplo de como uso fantasias para ter contato com a realidade e fugir dela, ao mesmotempo. Lembro-me que meu raciocínio na época era: os vídeos já são tão lindos naimaginação, quem se importa se não forem feitos? Inventei também a seguinte sugestãopara os fãs do conjunto que reclamam de não termos vídeos suficientes de nossas canções:imagine e invente seu próprio vídeo! No final, tudo isso é só desculpa para minha (e nossa)preguiça, embora deva admitir que é uma política original e interessante. Me sinto feliz esem culpa com minha engenhosidade.MAS — Isso tudo é mínimo comparado às minhas fantasias realmente negativas, projeçõesfuturas de angústia e dor, nas quais prevejo alternativas de suicídio, catástrofes inomináveis,morte e sofrimento de familiares e pessoas queridas, perdas no trabalho, problemas de

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saúde, assassinatos, sequestros e o fim do mundo, guerras, violência, desespero e outrascoisas terríveis demais para se mencionar. Me levo a um estado de melancolia tal que porvezes me surpreendo com minha capacidade doentia e me sinto culpado e triste porque nãoevito tais pensamentos. Isso não é frequente e é, na verdade, contrabalançado por fantasiasde felicidade, alegria, plenitude e também pelas fantasias criativas de verdade, das quais tiro asubstância do meu trabalho e projetos futuros. Mas tudo isso, aliado a fantasias de vingançae crueldade, me deixa às vezes confuso e, até o passado recente, era justificativa para outrafuga: a do álcool e drogas. Acredito que, ao me distanciar dos efeitos destrutivos de minhadependência química e alcoolismo, conseguirei separar a criatividade proveitosa da fantasianegativa e obsessiva, limitando a tristeza à vida real pura e simples, em vez de potencializarsentimentos que me fazem sofrer sem necessidade. A DOR É INEVITÁVEL, O SOFRIMENTOÉ OPCIONAL.

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24/04/93Um bom dia, cheio de altos e baixos, tudo resolvido. Alta de Rc., como ela estava feliz!Radiante até. Hoje foi o dia do grupo familiar. Não gostei da palestra/depoimento de Mr. (aachei neurótica e autoritária), mas resolvi isso muito bem, com paciência e assertividade.Surpresas do dia: ver como as pessoas são frágeis e belas. Estou tranquilo e feliz. Meidentifico muito com o seu An. Professor de filosofia (lógica), alcoólatra, domínio da línguaportuguesa, elegante ao falar, impaciente. Me vejo nele (eu daqui a alguns anos?). Mesurpreendeu também sua idade. Ele é seis anos mais novo que meu pai! E se parece com osoctogenários da minha família! Essa doença é realmente terrível. Conversamos bastante e eleé um senhor muito educado. Adoro. A cada dia que passa, descubro e aprendo mais e mais.Só que estou (tenho estado) com preguiça. GT! (Bem, espero já apresentar alguma tarefa nasegunda — hoje quero descansar e refletir.) No mais, é só! Renato.PS: Ontem cortei o cabelo e estou me sentindo ótimo. Ci. (o cabeleireiro) era DA TRIBO(claro!) e me diverti bastante. Queer Nation Unite!25/04/93É de manhã, nada de especial até agora. Acordei como sempre, um leve mal-estar que passaassim que tomo banho, clareio um pouco as ideias e tomo o café da manhã.* Depois dacomunitária passei a trabalhar em minhas tarefas (as duas que me foram passadas por G., nasua ausência). Quase passei direto para as outras, mas achei importante tentar, mesmoprevendo uma grande dificuldade em ser específico. É quase como ser específico a respeitodo meu café da manhã. Tenho que escolher um exemplo aleatório, já que sempre tomo caféde manhã e não vario muito meus hábitos. Quanto mais minha dependência! Bem, trabalheibastante e, quando estava analisando o resultado com Z. C., o Cr. começou a passar umvídeo e pedi dois minutos, para assistir o vídeo do começo. Não fui atendido, não haviaprogramação nenhuma a esse respeito (não poderia adivinhar que às 10h45 haveria vídeo),fui pego de surpresa no meio de minhas tarefas. Resultado: estou aqui trabalhando enquantotodos estão assistindo o vídeo. Aqui vai uma reclamação: mais atenção aos HORÁRIOS,para que possamos nos programar (e nossas atividades) mais produtivamente. Agora estoucom a cabeça no meu trabalho, e sem disposição para assistir um longa-metragem comuma imagem ruim (me dá dor de cabeça), ainda mais por ser mais um drama “eu-era-adolescente-e-usava-drogas-e-isso-acabou-com-minha-vida”. Sinceramente, acho um saco.Posso aproveitar esta hora e quarenta minutos mais produtivamente. Vou ler, estudar etrabalhar. Por que não avisam que vai ter sessão de vídeo? Quando vamos ter mais vídeos doprograma? Paciência!PS: Outros colegas também foram pegos de surpresa. E., seu An., Sg. e J. A.

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A parte da tarde foi maravilhosa. Recebi muitas visitas (tio Adhemar, tia Cirene, PauloRoberto, meus pais, Giuliano, Thayssa e N.), o dia estava lindo. Céu claro, aberto, sol etemperatura amena. O GA foi ótimo (como sempre), comprei mais livros (e dediquei umpara N. e outro para meus pais). Seu An. ficou surpresíssimo que suas amigas me conheciam(“Aquele não é o Renato?”). Ele veio todo feliz comentar comigo. Assistimos a um filmebobo mas divertido, com Gene Wilder e Richard Pryor, que já tinha visto mas vi de novopara relaxar. Agora metade dos colegas assiste Fantástico (aids equina no Pantanal…) e osoutros completam, preocupados e solenes, suas tarefas. São 10h em ponto. Vou ler umpouco e dormir. Estou me sentindo bem, nem tenho muito o que escrever. Foi o melhor diaaqui, até agora. RenatoPS: Preferia apresentar a tarefa do GA no GT (ficou muito extensa).26/04/93MANHÃHoje estou novamente tranquilo e feliz. Gostei muito mesmo da palestra de Ln. sobre aJanela de Johari,24 sinto que tenho participado bem e compartilhado com o grupo. Acho aLn. um amor! Parece a irmã caçula de todos nós (que sabe mais). O GS foi espetacular econfirmou o que eu já havia percebido na avaliação. Tendo por base a “mancha cega” —onde membros do grupo percebem o que não percebemos —, acho que estou indo muitobem! Os retornos que recebi foram leves (estava esperando cobras e lagartos!) — nenhumafalha de caráter! Foram: viver 24 horas, intelectualizar menos, acreditar na base do programa(todos estes retornos reforçados), e trabalhar a rebeldia e ter confiança na vida (o retorno doseu An., que descobri ser um PADRE! Oh, céus — e eu falando de s. Paulo na comunitária! Mas tudo bem, é a minha opinião evou ficar com ela). No GS foi melhor ainda. Vejo que todos me respeitam e percebem meuprogresso — não estou usando a máscara do programa, é real! Todos concordaram com oque escrevi e sinto que eles (os colegas) estão sentindo firmeza em mim. Isso me deixa muitosatisfeito e feliz comigo mesmo. Minha autoestima voltou! Todos perceberam, no entanto, aminha ansiedade (o que é bom, significa que estou realmente entrando em contato commeus sentimentos, já que sou o primeiro a reconhecer essa mesma ansiedade). Todosdisseram também q. o mais importante agora é colocar em prática o que escrevi. L. E. disseque devo ser mais paciente e humilde e separar os dois Renatos! Achei isso de um insightformidável — não esperava de jeito nenhum (evite prejulgar!). E o seu Je. também: “Você erainfeliz e não sabia”. Ad. recomendou lembrar os dias felizes em Vila Serena, e todosreforçaram q. devo acreditar em mim mesmo. Lembro-me de um depoimento do TA25 (olivreto): “Se você se suicidasse, estaria matando a pessoa errada”. Concordo plenamente. Eu

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não era eu. Agora estou começando a ser eu mesmo de novo. Como disse quandoconversamos no pátio (adorei o seu abraço), levei um susto ontem ao ler sobreapagamentos, repressão psicológica e lembrança eufórica. Vejo agora que estava muito,muito mal — bem pior do que imaginava. Vou continuar me esforçando e trabalhando oprograma — até conversar c/ seu An. sobre o Poder Superior (ainda minha área de dúvida eincerteza). Mas sinto que, pouco a pouco, estou chegando lá. Só me deixa apreensivo umpouco o fato de estar “sentindo” o meu fígado. Não dói, e espero que seja psicológico. Achoque, não tendo acontecido nada até agora, não é depois de quase três semanas de abstinênciatotal, bom sono e boa alimentação que terei problemas. Quem sabe. Hora do almoço,segunda-feira. Deve ser esse cheiro de tinta.PS: Sei não, mas acho que NÃO VOU conversar com seu An. sobre o Poder Superior! (pós-GT)TARDEO dia hoje foi todo bom. Me sinto inseguro ainda no GT e me pergunto se estou assimilandoo programa e as tarefas com o coração ou se estarei manipulando (mesmo queinconscientemente), através do intelecto, justificativas e racionalizações. O tempo dirá,espero. Estou confuso, mas tranquilo e feliz. Acho que preciso, nas palavras de J. A., “baixar abola”, para não cair em euforia. Tenho me sentido tão bem que fico apreensivo qto. aosurgimento de novos problemas. Esta autoconfiança é real? Todos são tão carinhososcomigo — não estou acostumado com isso ainda! Gostei muito também do depoimento doRn. — enfim, uma explanação inteligente, sensível e informativa (ele inclui uma explicação einterpretação dos doze passos no seu depoimento, a partir de sua experiência pessoal, eachei isso genial). A história do J. C. também foi interessante, embora eu tenha sentido umacerta hesitação e dor até, quando emoções passadas eram revistas e relembradas. Comousamos máscaras! Eu ainda sou muito ingênuo e não consigo perceber essas nuances ainda— embora em certas áreas eu seja mestre em interpretar e identificar atitudes (dos outros!).Tenho pensado muito sobre espiritualidade, Poder Superior, lembrando que várias pessoasjá me disseram que eu tenho uma “missão”, que posso ajudar muitas pessoas, e até queestou marcando passo! O que fazer? Sempre tive uma necessidade espiritual muito intensa(que, como lembrou Jh. em sua palestra, é transferida por muitos dependentes químicospara a droga e o álcool, e eu fiz o mesmo) e está chegando a hora de enfrentar mais essedesafio. Paradoxo: a fraqueza do padre An. tem sido uma inspiração para mim, por-algum-motivo. E agora, AA (oh, céus) e bons sonhos. RenatoPPS: Pensando bem, por que não perguntar sobre o Poder Superior ao padre An.? (dúvida)

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NOITEOh, céus. Eu e minha superioridade moral. Bem feito! Assim que terminei de escrever a outraFES e fui apressadamente para a reunião de AA no salão, me deu uma coisa… Voltei a sentiro fígado, entrei em mezzo pânico e parecia que estava prestes a desmaiar. Mas, corajoso quesou, fui lá dar meu depoimento e falei justamente sobre minha preocupação com meuestado físico. Eu, que queria morrer (!), agora morro de medo ao passar mal! E não entendi oque aconteceu. Pedi para Cr. (meu enfermeiro favorito) me tirar a pressão: era 14/9 (o meunormal é 12/7, 12/8. Leve pressão alta?). Resisti até o final da reunião e fui tomar banho. Fiqueicantando o tema de amor de Romeu e Julieta, para me acalmar (pode?). Me acalmei. Agoraestou dando risadas (mas ainda sinto o fígado — psicológico?). Parecia má circulação. Emtodo caso, vou deixar essas coisas do espírito em paz! E, qto. à história do J. C., o que quisdizer com o comentário sobre as máscaras era que ele me transmitia uma segurançainabalável, por isso fiquei surpreso quando, ao longo destes dias, vi seu lado frágil e aindainseguro. Coisas da vida em Vila Serena. Talvez tenha comido rápido demais, ou foi o fígadomesmo — uma overdose de… nicotina? Que susto desagradável. E a reunião de AA foimaravilhosa. Desabafei mesmo (guardando meu segredo, aquele) e foi ótimo. Os colegasaproveitaram a ocasião para depoimentos similares: Ad., Ct., Z. C. e seu Je.! Ainda estou umpouco tonto (deve ser o cigarro e minha agitação, estou elétrico). Vou descansar e beber umpouco de chá antes de dormir. Vivendo e aprendendo. Realmente, eu e minha superioridademoral. Mordendo mais do que posso mastigar — preciso tomar cuidado. Baixe a bola,Renato!

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COMPORTAMENTOS QUE IMPEDEM QUE EU RECEBA A AJUDA DE MEU PODER SUPERIOR(x) Minha Prepotência(x) Minha Teimosia(x) Achar que o Poder Superior não se preocuparia comigo(x) Preguiça(x) Acomodação(x) A Raiva de tudo(x) Não acreditar nas pessoas e nos grupos de AA(x) Minha agressividade(x) A recuperação não ser como eu esperava(x) Não conseguir controlar minha família(x) Me achar incapaz de crescer(x) Sentir inveja de quem pode beber(x) Não desejar abrir mão de estar com colegas e ambientes da ativa(x) Receber um “não” ou muitos “nãos”(x) Não valorizar a ajuda que recebi até hoje(x) Ser desonesto ou mentiroso(x) Fazer novamente coisas que me levem ao sentimento de culpa(x) Substituir a bebida por outra ocupação perigosa (ou de risco) que possa me magoar(x) Achar que só a internação valeu para eu parar de beber ou me drogar e não darcontinuidade ao Pós-Tratamento(x)Obs.: Marcar os comportamentos que eu tenho a tendência de manifestar e apresentar aoscolegas pedindo ajuda para lidar com eles.27/04/93Hoje o dia foi bom (até agora, pós-GT). Achei interessante que o livro que terminei de ler (I’llQuit Tomorrow, de Vernon E. Johnson, Guia para tratamento de alcoolismo) tenha sidotransformado em vídeo: Amanhã eu paro. Achei o vídeo interessante, mas no final já estavacom sono. Aliás, tenho andado com muito sono. Acordei bem, sem o enjoo de sempre masainda um pouco sobressaltado. Sinto que deveria me exercitar (de dois dias para cá tenho mesentido “enferrujado” e com leves dores no corpo). Natação seria ideal! No mais, é ir com

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calma q. isso também vai passar. Terça-feira é um dia lento (por causa da caminhada e dovídeo), ainda estou pensando sobre minha próxima tarefa (dez situações de assertividade, nocaso não assertividade), e provavelmente até sexta-feira já terei concluído o trabalho. Nãotenho pressa. Estou um pouco aéreo hoje, por-algum-motivo. Comecei a ler outro livrohoje, mas estou percebendo uma certa compulsividade — overdose de informação! Todavez que tenho saudade de casa, penso: o QUE estaria fazendo em casa? Hoje pelo menosestou com vontade de explorar o dolce far niente. Preguiça é bom às vezes. Não me sintonem um pouco culpado. Ah, se eu tivesse uma rede!… O interessante é que hoje tive provasde que estou somatizando — espero: seu An., Z. C. e L. A. estavam conversando sobrebebidas favoritas, entrei na conversa desinteressadamente e lá veio o fígado. Dr. Sl. cortou oSilimalon (poderia estar tendo uma reação alérgica), e isso agora me preocupa um pouco.Também gostaria de poder me alimentar como gostaria. Acho a comida daqui um poucopesada (carne todo dia) — acho que preferia feijão-branco, pão integral, queijos, caviar…Bem, sinto falta das minhas vitaminas (e não me lembro de ter tomado leite tipo C nosúltimos vinte anos), Ovomaltine, comida japonesa, empadinhas! (Como se eu mealimentasse bem — mas estou com saudades da minha COZINHA!) Agora é a história do L.E. Dai-me forças; bem — hoje o dia está agradável. Me sinto bem, o susto de ontem colocoualgumas coisas em ordem na minha cabeça e é isto: sempre em frente que atrás vem gente. RenatoPS: Nosso GT durou quinze minutos apenas: Paraíso em Vila Serena! //Agora são 6h30 p.m. Estou aguardando a reunião de NA. Espero que seja interessante comode costume. Estou bem, mas apreensivo. Fiz mais uma descoberta (algo que devo trabalhar):não estou acostumado com o carinho e aceitação das pessoas! Isso tem me deixadoconfuso. Fiz um curso intensivo em manipulação (com meu trabalho, o marketing e aconstrução em cima de uma “imagem”) e agora, quando percebo minha falta de autoestima(na época de minha adicção) e tento reaver esse sentimento, me sinto bloqueado. Foramtantos anos de descrença em mim mesmo como pessoa (trabalho não conta) que estoulevando tempo para conseguir modificar isso. Ah, viva e deixe viver! Emiliano (um grandeamigo de Brasília) me ligou e foi muito bom — aqueceu meu coração, por assim dizer. Orádio toca a abertura de Carmen de Bizet (o nome da minha irmã), e recebi ótimas notícias deminha tia: se tudo der certo, vou cantar com Angela Maria, na entrega do Prêmio Sharp, noTeatro Municipal, dia 19 de maio.26 Pode? O meu sonho (um dos) é cantar no Municipal! Eusou maravilhoso! Eu sou maravilhoso! Eu sou maravilhoso! (Cuidado com a euforia,Renato.) Bem, por enquanto é só. Desabafei no GA e foi muito bom para mim. O L. E. meconfunde, entretanto. Não consigo SENTIR o que ele diz. Mas foi bom porque a partir dissofiz uma autoanálise do meu comportamento e da minha HONESTIDADE em relação ao

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tratamento. Não sou matraca (a Janela de Johari)! Mas vou refletir sobre tudo isso e casoesteja manipulando, mesmo inconscientemente, darei um BASTA! aos procedimentos.Estou feliz. Isso me assusta — não estou acostumado. Retorno de Z. C.: “Não tenha medo deser feliz!”. É mais difícil do que parece, mas bem-vindo o desafio! Renato. // A reunião deNA foi muito boa, é diferente do AA. No NA sinto a “irmandade”, parece uma seita secreta(adoro essas coisas), e é mais underground, e parece até que a união e o carinho entre aspessoas são mais intensos, o desejo de se recuperar (24 horas) mais “desesperado”. Me sintoespecial no NA. No AA, só mais um alcoólatra em recuperação (o que não é pouco,convenhamos!). Deve ser porque o álcool é socialmente aceito — mas não devo romantizar.São meu bem-estar e sobrevivência que estão em jogo. E. fez uma fogueirinha no pátio comas páginas do seu inventário — estou me sentindo tão ritualístico hoje… E tranquilo e feliz!(sensações inéditas) Amanhã é mais um dia de trabalho, vou descansar. Tenho inventadomuitas músicas novas, as boas vão ficar na memória e voltar num momento apropriado.Uma das metas para estas próximas semanas é trabalhar para levar Vila Serena comigo,quando estiver no “mundo-lá-fora”. Sorriso nos lábios, luz no coração (tenho um sorrisobobo parecido com soluço, enquanto o caos segue em frente com toda a calma do mundo//e ela disse: “Lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa”). Gostei de sua palestra.Amanhã conversaremos. Um novo quarto para mim! 9h35 p.m. Bons sonhos, q. eumereço, Renato.28/04/93Refleti bastante, conversei com os colegas e decidi não ir à reunião de AA. Estou exausto,física e mentalmente. (Já tinha pleiteado mais tempo livre, hoje de manhã, na comunitária;há dois dias já tenho lhe notificado o meu cansaço e também já citei a questão dos horários.)Não sou burro de carga, sou um adicto em recuperação. Preciso de descanso e tempo paraassimilar a massa de informações diárias do programa (sem falar no tempo necessário parareflexão e conclusão das tarefas). Vamos por partes: hoje foi um dia conturbado. Nãoaproveitei o descanso após a comunitária (a) por causa das mudanças de quarto (b) e minhanecessidade de entender os pontos da avaliação semanal que me deixaram confuso, daínossa conversa. A questão “criatividade/fuga” é importante para mim e permaneceu emaberto. Não sinto em mim ainda a capacidade para me desligar e fluir com os eventos do dia.Percebo agora que o maior problema foi o adiamento de minha alta (e não foi por causa decompromissos de trabalho, meu tratamento é mais importante). O que me deixou confusofoi o fato de sentir que estou indo bem na programação (alta 04/05) e ter a notícia de quemais dez dias foram incluídos em minha estadia aqui (alta 14/05). Isso gerou uma dúvida emrelação ao meu aproveitamento, me fazendo questionar ainda mais minhas atitudes esentimentos. A dinâmica também me distraiu, e me vi tendo que me esforçar (mais stress)para não desfocalizar e “sair dos trilhos”. Achei a dinâmica mal explicada, desenvolvida àspressas, e sinceramente não pude assimilar meta ou objetivo do exercício. Ficou tudo no ar,

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feito às pressas realmente. É minha opinião, e trabalhei esse sentimento na reunião do AAapós o almoço, na hora do jantar (com os colegas) e no GA (minha opinião foi corroboradapor vários colegas também). A entrega de chave à E. (por si só um evento importante eemocionante) não estava na programação — não houve intervalo (e hoje eu necessitava umtempo para “respirar”), vindo a história de Ad. logo em seguida. O almoço não ajudou (só osorvete de sobremesa) — estava já em um estado tal que não tive apetite. Não tive tempo dedescanso porque esperava conversar com Jh. (queria saber do seminário em Curitiba e terretorno sobre essas dúvidas todas) e isso não foi possível (ele estava repousando). Converseicom ele, entretanto, no intervalo seguinte, após a reunião de AA (quando compartilhei edesabafei em meu depoimento, falando sobre o que estava sentindo). Perdi outro intervalo.Veio o GT, onde, mais uma vez, percebi inconsistências no método, o que me deixouapreensivo. (Até G. concordou e se explicou.) A palestra sobre rendição foi ótima (como são,em geral, todas as palestras de El.), mas, no meu esforço para não desfocalizar, a confusãocontinuou. (Ag., do prog. ambulatório, estava eufórica e parecia até estar “sob o efeito”, oque me incomodou. Extroversão demais, necessidade de chamar atenção — o que meatrapalhou a concentração.) No GA desabafei novamente (para levemente perceber que nãofui compreendido e sentir falta de equilíbrio no grupo — as meninas fazem falta). Minhapsiquê é diferente da dos rapazes e isso sobressaiu (?) bastante hoje. Me senti só — cansado edeslocado. O quinto passo de Ct. também foi um momento importante, e gerou maisstress.** Ao escrever estas linhas, percebo que tomei a decisão certa. O próprio fato de vermeu nome na lista (sem aviso prévio ou uma conversa sobre meus sentimentos e preparopessoal para sair, pela primeira vez; uma surpresa total e inesperada), aliado ao meu cansaçodecorrente dos eventos do dia, gerou mais conflito. Ponderei bastante e decidi não ir. Nãoestou em condições de dar um depoimento, preciso parar e refletir. O meu cansaço medeixou apreensivo quanto à perspectiva de sair, para “o mundo lá fora”, pela primeira vez.Hoje, não. Vou tomar um banho, tentar relaxar e dormir um bom sono, se possível, para quemeu dia amanhã não seja afetado. É muito interessante o prospecto de ser possívelencontrar novos sentimentos a partir de uma nova atitude mental, mas ainda não estoupronto para controlar reações FÍSICAS — não consigo controlar EXAUSTÃO. Primeiro asprimeiras coisas; Renato.PS: Me sinto sereno (embora cansado e confuso) e assertivo a respeito desses problemas queenfrentei hoje. (Corre-corre em Vila Serena!) Adoro você (sem manipulação). Amanhã éoutro dia!PPS: Vamos encontrar um tempo para conversarmos sobre minha saída para o AA amanhã?Bom descanso e bons sonhos, que hoje eu preciso e mereço. Acho que esta é uma dasexperiências mais importantes da minha vida até agora. Real life!PPPS: Pedi retorno para Mc. e El. E… Xô, frustração! Xô, imediatismo! Xô, autopiedade!

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Sempre em frente, que atrás vem gente.29/04/93Oh, céus. Comprei Tudo que eu devia saber aprendi no jardim de infância para — quem?!? — S.; emNova York, antes de visitá-lo em S. Francisco. (Eu estava lhe ensinando a ler e o incentivavacom livros de poucas páginas e grande conteúdo: Fernão Capelo Gaivota, O velho e o mar, Opequeno príncipe, Ratos e homens, Um ianque na corte do rei Artur, Junky, On The Road.) É bom melembrar das minhas próprias letras — tenho bloqueado isso. (Acho que este é o começo deuma bela amizade — ADOLPHE MENJOU*** p/ HUMPHREY BOGART, última fala deCasablanca, 1939.)27 Eu também comia biscoitinhos com leite na escola (mas não era o jardimde infância, eu já era grande! Tinha sete anos!). Como essa doença é terrível realmente. Nãotenho palavras para lhe dizer como fico feliz em ter seu apoio e ajuda, seu insight éformidável — não me lembro de alguém que me entendesse tão plenamente. Hoje o diafoi maravilhoso. Terminei minhas tarefas, não estou cansado, percebo que ontem talveztenha sido o dia mais importante de minha estada em Vila Serena até agora. Tenho medo,sim, por saber que estou voltando a ser quem era — acho que sempre me anulei por nãoentender a maldade do mundo, o desinteresse, a repressão. Quero a simplicidade, sim,harmonia, beleza, poesia. E me fechei, me isolei, por não suportar a intensidade dos meussentimentos e não querer ser incompreendido e ridicularizado. Não tinha a força parasuportar isso. Mas transformei a dor em sofrimento, autopunição, insanidade. Vou guardarsuas palavras dentro da minha Bíblia. Tenho muito que aprender e trabalhar — ainda. Nãosei aonde estou indo, só sei que não estou perdido.28Mil vezes obrigado. Conte comigo. Seu amigo, Renato.PS: A dinâmica foi o toque de luz que colocou tudo no lugar. Agora é comigo — sempre emfrente que atrás vem gente!PPS: Acabei dando meu exemplar de Tudo… jardim de infância (depois de uma de nossasbrigas, S. e eu) para um rapaz tímido que me deu carona, eu bêbado ainda, esfarrapado, aquilômetros de S. Francisco, sentindo toda a raiva do mundo. Ele me deixou no Sheratonmais próximo. Não quis me aproveitar dele (ele insistiu em me acompanhar até meu quarto,atencioso e carente de afeto) — lhe dei o livro em vez disso. Gozado, nem me lembrava maisdessa história. Ele era tão sozinho quanto eu — o livro lhe cabia como uma luva.Força sempre e bons sonhos.* Devo ainda estar em processo de desintoxicação.** Positivo, mas stress de qualquer forma.*** Ou será Claude Rains?

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ELABORAR UMA LISTA COM DEZ EXEMPLOS ESPECÍFICOS DE COMPORTAMENTO ONDE VOCÊ NÃO FOIASSERTIVO E QUAL A ALTERAÇÃO A SER FEITA PARA USAR DE ASSERTIVIDADE:1. A gravação do quinto álbum da Legião Urbana, entre julho e novembro de 1991, foi tensae difícil. Estávamos há dois anos sem lançar um disco (o disco anterior, As quatro estações,inesperadamente, foi nosso maior sucesso — 1 milhão de cópias vendidas até hoje). Em 91 aimprensa se voltara contra a “geração 80”, e os discos das outras duas bandas do triunviratodo rock nacional, Paralamas e Titãs,29 tinham sido um grande fracasso de crítica e público.Todas as expectativas se voltavam para a Legião. Eu estava preocupado também com a criseeconômica, nosso relacionamento com a gravadora (péssimo nessa época) e minhaaparente inabilidade em escrever novas letras. Foi o “parto” mais difícil — e o V30 é meudisco favorito. Mas tivemos muitos problemas. Eu estava abstinente desde dezembro de 89,mas ainda com todos os aspectos negativos de personalidade de dependente químico:autoestima quase nula, ressentimento, confusão mental, insegurança. Nosso produtor,Mayrton Bahia, era agora diretor artístico de uma gravadora rival e, mesmo sendo possívelseu trabalho conosco (a partir de contrato), ele não se mostrou presente como nascolaborações anteriores. Em novembro de 1991, na fase de mixagem, com o disco já gravado,percebi que não teríamos o tempo necessário para ajustar os detalhes de maneira ideal. Aalternativa seria lançar o disco em março de 1992. Cedendo a pressões dos outroscomponentes da banda e ao entusiasmo de nosso produtor (que insistia que o discovenderia 1 milhão de cópias), concordei, contra minha vontade, em lançar o disco (na minhaopinião, ainda inacabado) para o Natal. Essa falta de assertividade me trouxe muita raiva,culpa e ressentimento e, embora o disco tenha sido um sucesso considerável (250 mil cópiasvendidas em duas semanas e três canções chegando ao primeiro posto nas paradas),31 sabiaque tinha colocado nossa carreira em risco, e minha decisão interferiu em nosso trabalho oano todo que se seguiu. Fiquei com tanto remorso que me recusava a ouvir o disco depois dejá lançado, por ver defeito em tudo e ver o que poderia ter sido.2. Por falta de assertividade (depois de tentar explicar meu ponto de vista de todas asmaneiras que encontrava, acabava desistindo), sempre cedi aos caprichos do baterista dabanda, Marcelo Bonfá, que na época tinha um grande ressentimento em relação à minhapessoa. Tentando evitar problemas maiores, decidi, junto com o guitarrista, Dado Villa-Lobos, que usaríamos o estúdio de gravação (equipamento de última geração, capacidade p/42 canais, digitalizado e computadorizado) para ENSAIOS,* pagando em dólares os períodoshora/gravação, só porque o baterista não queria usar fones de ouvido. Perdemos muitotempo e dinheiro, não achei os resultados plenamente satisfatórios e, pior, foi o primeirodisco do nosso novo contrato, de acordo com o qual bancaríamos toda a produção.Naturalmente, essa situação vinha já de longa data. Por eu não ser assertivo, Bonfá se achava

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indispensável e sempre que possível dificultava as coisas, para se valorizar às custas dogrupo. EU sempre cedia, também porque não suportava rejeição e queria ser amado. Sórecebi de volta um produto que não me agradou e senti raiva, remorso, culpa e frustração,além de me sentir fraco e inadequado. Isso foi duplamente desnecessário: fomos eleitosmelhor banda, melhor disco, melhor música (“O teatro dos vampiros”), melhor letrista emelhor vocalista pelos leitores da revista Bizz (especializada em rock), e “O teatro dosvampiros” foi eleita a segunda melhor música do ano pelos leitores do Jornal do Brasil, ondeganhamos também o prêmio de melhor grupo e outros que não me lembro mais. Isso,entretanto, não aumentou minha autoestima. Minimizei tudo, tolamente.3. Na sexta-feira de Carnaval deste ano, quando viajaria para Búzios com mais dois colegas,acordei cedo, para fazer as malas, num extremo mau humor. Estava no banheiro,reclamando do mundo, e ouvi Ena, minha diarista, cantando alegre e feliz enquanto passavaroupa. Aquilo me enfureceu e logo arrumei um motivo para gritar com ela: no caso, que ospratos e talheres não tinham sido devidamente limpos. Diante do meu descontroletemperamental, ela deu de ombros e não quis me enfrentar, fazendo um comentário jocoso,que considerei um desrespeito inaceitável. Fiquei uma fera, gritei muito, minha pressãosubiu, devo ter batido portas com violência (um truque favorito) e, no bate-boca que seseguiu, a despedi veementemente e disse coisas terríveis, tal o meu descontrole. A cena foipresenciada por Sandra, minha secretária, que ficou estarrecida, e meus dois colegas Marcose André, que ficaram abismados. Me tranquei no quarto, fiz as malas praguejando e tudo deuerrado: o táxi atrasou muito, quando chegou era o motorista errado, todos estavam muitonervosos, apreensivos e com medo de mim. Ena pegou suas coisas e foi embora. Já exaustoe me sentindo culpado, desci para beber licor de laranja (outro truque favorito) para me“acalmar”. Bebi muito e já sob o efeito do álcool tornei-me indiferente e distante. Em Búziostive uma crise de remorso e telefonei para Sandra — como resolveríamos a situação? Mesenti tão culpado que passei mal, nem os tranquilizantes ajudaram. O que faria sem Ena, queera um amor de pessoa, trabalhava muito bem e gostava tanto de mim? A história teve umfinal feliz e, a partir daí, passei a beber sozinho no meu quarto, sem esbravejar comninguém, o que de certa forma piorou ainda mais as coisas.4. Em agosto do ano passado, tinha hora marcada com meu clínico geral para receber oresultado dos exames relativos ao estado do meu fígado, que, desde a hepatite B de ano emeio atrás, ainda inspirava cuidados. Em minha prepotência recusei esperar mais do queminha pouca paciência permitia (no caso, uma hora e quinze minutos, o que é realmentemuito tempo, mas essa era uma situação da qual já tinha conhecimento; cheguei no horáriomarcado já sabendo, mesmo que inconscientemente, que iria me irritar e demonstrar minhairritação com veemência). Escrevi um bilhete insolente, mal-educado e muito bem escrito, e

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fui-me embora. Dr. Sl. ficou tão magoado comigo que sugeriu ser a única solução encontrar-se outro médico para mim. Só então percebi a extensão da minha estupidez. Me senticulpado, envergonhado, com raiva de mim mesmo, o perfeito idiota. Como sempre,entretanto, a história teve um final feliz e tudo se resolveu. Mas não gosto nem de melembrar e este exercício está sendo um tanto difícil para mim.4.? Em janeiro deste ano, quando estávamos nos estúdios da EMI-Odeon, em Botafogo,fazendo a pré-produção do nosso novo disco,32 ainda a ser lançado, o diálogo entregravadora e banda era quase inexistente. Teríamos uma reunião importante entrerepresentantes da gravadora e nossos advogados no dia seguinte (uma quinta-feira), e pustudo a perder. Em vez de ser assertivo, esperar a reunião e o resultado, e tentar um diálogo eum compromisso viável, ordenei a nosso roadie (assistente de estúdio e palco) quecomprasse uma lata de spray (ali perto existem muitas oficinas mecânicas). O documentocom nosso ponto de vista já estava preparado, mas resolvi resumir esse mesmo ponto devista com pichações “decorativas” no quarto andar, o departamento administrativo dacompanhia, com os tapetes persas, portas de mogno e quadros imensos, discos de ouro eplatina nas paredes. Meu ato de protesto poderia ter me colocado na cadeia, por depredaçãode propriedade alheia, e colocado em xeque nosso futuro junto às multinacionais daindústria do disco, sem falar na própria EMI-Odeon. O alto escalão ficou horrorizado, foramfaxes e mais faxes para a Inglaterra, nossa reunião foi adiada, mas finalmente decidiu-se queisso era rebeldia rock ‘n’ roll — pagaríamos pelo prejuízo e ponto final. Me sentienvergonhado e derrotado, com raiva de mim mesmo e sentindo autopiedade por terdeixado a situação chegar a esse ponto. Poderia ter sido assertivo, enfrentando a fera defrente, com lucidez e desligamento emocional, mas preferi agir como um moleque,agressivamente e sem chegar a um compromisso viável. Isso só aconteceu mais tarde, masaí já estava chegando ao meu fundo-de-poço, isolado de todos e, novamente, pondo tudo aperder.5. Pouco depois do Ano-Novo, em 92, fui com meus amigos a uma festa na casa de ummúsico por quem nutro uma paixão secreta. Toda a turma estava lá e todos se excederam nabebida e nos baseados, como sempre. Deveria ter ficado em casa, já que estava abstinentenessa época e sabia como eram as festas da turma na casa dele. Não fui assertivo e me deixeiconvencer por todos e lá fui eu. Foi uma experiência excruciante, me senti totalmentedeslocado e inadequado, as brincadeiras de todos, completamente bêbados, meincomodavam bastante e eu só pensava em ir para casa. Acabei ficando até as 5h30 damanhã, contando os minutos, porque não tive coragem de ir sozinho para casa. Nãoconsegui dizer não. Não quis resolver a situação (chovia muito e o serviço de radiotáxiestava complicado), e me senti frustrado, ansioso e com raiva de mim mesmo por dependertanto da aprovação de pessoas que, no fundo, eu não respeitava. E não adiantou nada,

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porque estavam todos tão ridiculamente embriagados que nem me deram atenção. Mas euqueria me sentir aceito e fiquei muito ressentido comigo mesmo, com a situação e aspessoas envolvidas.6. Na turnê do nosso segundo disco33 (o qual inclui “Eduardo e Mônica”, “Índios” e “Tempoperdido”, entre outros sucessos) faríamos apresentações em Curitiba, onde moram quasetodos os meus familiares. Isso se deu em 1986, outubro ou novembro. A esposa de nossoguitarrista era nossa empresária na época, o que gerava atritos e ressentimento, já que eu mesentia menosprezado, e tratado como um empregado qualquer, logo eu, o líder da banda.Havia muito terrorismo emocional nessa época, de todas as partes: eu tinha voltado a usarcocaína e meu comportamento era hostil, arrogante, eufórico e imprevisível. Já tinhaespecificado que esperava ficar em Curitiba no mínimo dois dias, para visitar a cidade (queadoro) e minha família. Ficamos em Curitiba menos de 24 horas; depois do show fomosdireto ao aeroporto, para São Paulo. Não fui nem um pouco assertivo: briguei com todos,minha raiva se estendeu até a membros da equipe que não tinham nada a ver com oproblema; além de agressivo fui arrogante e excessivo no meu uso de drogas e álcool,deixando todos também com raiva e muito preocupados. Como ainda não tínhamosdinheiro na época, não pude ficar em Curitiba por conta própria, e além do mais teríamosuma apresentação de última hora em um clube new wave em São Paulo. Me torneiintratável, rancoroso, e me isolei de todos. Senti muita raiva e frustração, e o grupo quaseacabou nesse período. Se tivesse sido assertivo ao explicar minha vontade de ficar na cidadepor mais tempo, talvez tudo isso não tivesse acontecido. Devo ter sido prepotente earrogante, porque Fernanda me disse, anos mais tarde, que quis com sua atitude me dar umalição. Somos grandes amigos agora, mas na época aproveitei a situação para usar de minhaagressividade, externando minha autopiedade e raiva por me sentir desprezado.7. Sempre compro discos e CDs na Modern Sound,34 uma loja de discos importados emCopacabana. Naquele dia, no final de 90, não foi diferente. Havia um novo vendedor (queconhecia de seu trabalho como discotecário nos clubes da cidade) com quem simpatizava.Sempre conversávamos sobre música, discos raros, a indústria musical e tudo o mais. Mesenti manipulado e infeliz naquele dia porque, para provar que eu era um bom cliente,comprei vários discos que não me interessavam (e que detestei) só para não passar peloembaraço de dizer não ao meu então amigo. Fiquei tão decepcionado e infeliz que nemvoltei à loja para trocar os discos por outros. Acabei dando todos de presente para pessoas aquem não daria presentes, no Natal. Pelo menos dessa vez eu aprendi, e nunca mais essasituação se repetiu, não com discos.8. O síndico do meu prédio é um intrometido e chato (na minha opinião) e cheio de não me

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toques. Qualquer assunto referente à sua cobertura é motivo para infindáveis problemas. Eleparece sentir prazer em dificultar a vida dos outros, principalmente a minha: e parece teruma inveja crônica em relação à minha pessoa, meu sucesso profissional e meu modo devida. Pois bem, comprei uma televisão JVC, importada, 35 polegadas, um sistema completode vídeo e laser, e qual não foi a minha surpresa quando, desde o começo do ANOPASSADO, passei a ter dificuldades em instalar uma antena externa. O motivo? O síndiconão quer fios e instalações no seu telhado (“Nas minhas telhas de amianto, nem morta!”, eleme diz) e só permite a instalação em cima da caixa-d’água. Isso é um grave problema paratodos os técnicos contratados para o serviço, e sempre é necessário ajustar a antena porcausa da precariedade do lugar onde está instalada. Depois de tentar ser paciente e assertivoao longo desse tempo, perdi o controle e, no começo de março, bêbado, lhe disse tudo queestava entalado na minha garganta. Não me lembro de nada disso, porque tive umapagamento, mas minha secretária me garante que ele exige que lhe peça desculpas, senãofico sem antena, sem imagem e sem poder assistir televisão (não aproveitando meuinvestimento de mais de 10 mil dólares). Tenho uma raiva assassina por causa disso e, atéaprender sobre assertividade aqui em Vila Serena, me via planejando meios criativos parame “vingar”.9. Me enamorei por um rapaz chamado Júnior quando nos conhecemos numa festa gay, naBarra, em homenagem a Victor Fasano. Ele trabalhava na Mr. Wonderful em Ipanema, poronde eu passava sempre que saía para reuniões no escritório dos meus advogados, ou parair ao meu videoclube, ou para visitar as livrarias e lojas de discos de Ipanema. Várias vezescomprei camisas na loja, uma desculpa para conseguir seu telefone e sairmos juntos um dia.Eu realmente gostava das roupas da Mr. Wonderful, sem problemas. Até que um dia ele medisse ter roupas de Bali, que vendia a domicílio para ganhar um dinheiro extra. Agarrei aoportunidade, marcamos dia e horário, e lá foi ele até meu apartamento. Eu só queria seraceito (quem sabe teria sorte dessa vez?) e comprei várias coisas que não tinham utilidadepara mim. Isso se deu em novembro do ano passado. Acabei distribuindo as compras noNatal, ele deixou de trabalhar na Mr. Wonderful, e, mesmo trocando telefones e tudo, elenunca me ligou e nunca mais o vi. Me senti triste e sozinho, com muita pena de mim mesmopor ser tão infeliz no amor.10. Vários conhecidos famosos formaram um “grupo de estudos” para debater Nietzsche eA origem da tragédia. Isso foi no começo do ano passado, era a moda do fim de verão entreglobais e gente da indústria musical. Adorei a ideia, pois, como para todos ali, era difícilestudar em uma escola normal com pessoas normais. Questão de anonimato e atéesnobismo. Não fui nem um pouco assertivo durante os dois meses nos quais o grupotentou sobreviver. No início o entusiasmo era geral, mas logo começaram as faltas às

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reuniões, as desculpas, os atrasos, os desinteresses e as panelinhas. Detesto panelinhas.Achava M., a cantora, insuportavelmente chata, com cara e atitudes de quem tinha comidoum limão azedo. Nunca lhe disse isso, era passivo e “bonzinho” ao extremo, tudo para mesentir aceito entre “iguais”. Fazia perguntas, participava “alegremente”, mas já na terceirareunião não estava mais interessado (era fácil fingir, porque sei manipular situações muitobem, como todo dependente químico, e utilizava minha inteligência como arma, para medefender e espantar o tédio). Na verdade, aquelas pessoas me enfastiavam com suaarrogância, preconceitos e seus ares de “superioridade moral” (com exceção de dois ou trêsamigos verdadeiros, sim, pois nem tudo é tragédia, ninguém ali estava realmente interessadoem aprender alguma coisa). A sensação que dava era a de que se reuniam para seautoelogiarem (“M., você está um DO-CE com esse seu conjuntinho. ON-DE vocêconseguiu? Eu PRE-CI-SO ter um I-GUAL-ZINHO”) e falarem mal de tudo e de todos. Cansei,mas não consegui ser assertivo e reorganizar o grupo só com as pessoas q. estavamrealmente interessadas. O grupo se desintegrou, quem estava realmente disposto einteressado em estudar ficou a ver navios, e garanto que M. e seus asseclas acham que souum bobo fácil de ser manipulado, ou então que realmente A-DO-RO o modo de vida falso epernicioso que é tão comum entre gente “importante”. Me sinto envergonhado earrependido por ter sido tão passivo, anulando minhas qualidades e, novamente, precisandoser aceito por pessoas que, na verdade, não respeito. É assim a doença — e só posso resolverisso usando técnicas de assertividade (disco rachado, asserção negativa, autorrevelação etudo o mais); trabalhando minha autoestima, me valorizando; sendo fiel a mim mesmo,custe o que custar; praticando desligamento, e trabalhando minha dependência e carênciaemocional. (Eu mereço.)* Para a gravação do quinto lp, entre julho e agosto de 91.

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30/04/93Hoje foi um dia e tanto. Não estou cansado (tive oportunidade de descansar, o dia foi leve etranquilo — mesmo com alguns problemas), e percebi que grande parte do meu cansaçofísico se deve à tensão e a sentimentos conflitantes (não só noites maldormidas). O que estáescrito no livro Viver sóbrio é mais do que certo: não posso me cansar (me esforçar demais) ouficar com muita fome! O que nunca tinha percebido é que, agora, esforço mental e situaçõesde stress se manifestam rapidamente no meu aspecto físico (antes me anestesiavaprontamente com o que quer que estivesse à minha frente). Gostei muito da história do seuAn. e também da sua honestidade no GFR (que não gostei tanto; a noção de SA35 me soa umtanto ridícula, uma paródia dos doze passos — mas não devo ser intolerante, os brancos quese entendam). Tenho progredido gradualmente. Ad. é um homofóbico extremo (não gostade dar as mãos durante as orações (!) e “respira” sarcasmo e ironia o dia inteiro. O alvo? ATRIBO!), mas — sempre em frente que atrás vem gente. EU SEI o que está por trás dehomofobia crônica (trá-lá-lá). Estou me sentindo tão bem… As dez situações de nãoassertividade me valeram um satisfatório direto. (Em dez minutos fiz um rascunho commais de VINTE, para poder escolher à vontade — ô autoestima. É meu principal problemaagora.) Me senti ridículo lendo a tarefa (até dei risadas) — como essa doença é absurdatambém! O que não fiz para me sentir aceito! Aproveitei o tempo livre para planejar minhapróxima tarefa, que devo apresentar (espero) até terça-feira. Bem, o cansaço bateu agora.Hoje, depois do vídeo, tive uma recaída — me vi querendo Valium! Acho q. são ostranquilizantes o perigo maior (dentre todos os perigos — a diferença é mínima na verdade).Desabafei no GA e no NA e foi bom. Problemas: estou quase sem dinheiro — NÃO SEDESESPERE! (eu). Um dos meus assessores me deve US$ 30 000 e logo me vi ressentido,rancoroso, querendo VINGANÇA (ou, de preferência, meu dinheiro já!). Mas — (acordecelestial) —, ao telefonar, consegui ser assertivo, e como! Sem ironia, sem autodefesa!(Confesso que fiquei um pouco nervoso, mas tudo bem.) Não há espaço para contar tudoaqui (e nem sobre a ineficácia de Sandra, minha secretária — outro problema). Possoconversar sobre tudo c/ você depois, se for relevante. Oh, céus — começo a ver que talveztenha que reformular aspectos da minha vida que nem percebia serem áreas problemáticas(e como). Bem, vou descansar. Na minha confusão, fantasiei negativamente (tudo me afetoudiretamente — não consegui me desligar). É bom saber disso. (É quase como esquizofrenia,achar q. tudo é um sinal — negativo — para mim. E isso não é verdade.) Resumo do dia: até ovídeo, tranquilidade. Após o vídeo: problemas, insegurança e confusão. Agora: cansaço eserenidade. Alívio. Estou até um pouco tonto. Um pouco de medo, será que vou conseguir?Aceitação, amor, fé. Renato. Não sei se fui muito claro, espero que sim.PS: A outra FES é para você guardar — a achei nas minhas coisas. Acho que era a q. faltava.

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01/05/93O dia hoje foi muito bom mesmo, para mim. Só que agora estou me sentindo um poucoassim, com saudade não sei de quê. Pena que perdi o depoimento de G. (todos adoraram),mas terei outra oportunidade. Hoje estou com saudade dos meus pais, do Giuliano, daminha família. Somos todos tão frágeis (e belos). Amanhã eles vêm (virão) me visitar. Estoutranquilo, foi bom ter conversado com drs. Ms. e Sl. — adorei a dinâmica (rubi mágico), foium dia leve e feliz (e o tempo estava glorioso). Seu An. me deu um susto, mas agora eleparece estar bem. Conversamos durante o jantar e ele tem vídeos do Pasolini, Visconti,Derek Jarman! (Pode?) Os colegas com quem mais me identifico são seu An., L. A. e J. A.Gosto de todos na verdade, sem exceção. C’est la vie! Sandra me trouxe incenso e vitaminaC, minha correspondência… Meu novo quarto é melhor do que o primeiro. Estou meacostumando à vida aqui. Vou sentir saudades. Mc. estava tão feliz, que bom. (Ele tem umperfil de Botticelli, você já reparou?) Gosto muito do seu M. também e do seu A. (queADORA uma baixaria, e tem uma risada tão honesta, é até folclórica). Não tenho muito maiso que dizer. Não estou com vontade de trabalhar, mas também não estou com sono ainda.São 7h30 p.m. Hoje é o tipo de dia em que gostaria de ter alguém, para ficar junto assistindotelevisão. Eu chego lá. Renato.

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02/05/93Hoje senti que o dia foi difícil, estive chateado e triste, mesmo lidando com isso muito bem(sem sofrimento). Adoro meus pais, minha tia e Giuliano, e senti uma leve tristeza, porprojetar perdas futuras, e refletir sobre a maldade do mundo e a fragilidade do ser humano.Bem, nem tudo é tragédia — foi ótimo que eles tenham me visitado (tristeza e saudadeantecipada?). Acho que vou direto para Brasília (talvez) quando terminar o tratamento aqui.Quem sabe. Agora estou bem melhor, desabafei no GA e no AA. Vimos The Lost Weekend elhe conto detalhes interessantes sobre a produção do filme, se v. quiser. Acho que vai lheinteressar. Fui eleito vice (o J. A. é o coordenador). Me senti deslocado entre meus colegashéteros insatisfeitos e problemáticos, mas isso já passou. Terminei o trabalho para o GT(onze páginas). Prolixo perde. A tarefa mexeu MUITO comigo e pela primeira vez reescrevipáginas e páginas por não estar satisfeito com o resultado. Todos gostam dos meus incensosindianos. Que bom. Percebo as máscaras que os outros usam (não percebo mais as minhas— me acho sincero e honesto). Quem sabe! Hoje tive vontade de ir para casa, mas já passou.Amanhã é um dia cheio de atividades, que bom. Os vampiros vêm me ver amanhã também(exame de sangue). Life goes on. Fico satisfeito que estou aprendendo a lidar comdificuldades. Bons sonhos. Renato

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AVALIAÇÃO SEMANALNOME: RENATO MANFREDINI JUNIOR1. METAS DA SEMANA ANTERIOR (DE 26/04/93 A 03/05/93)A) Alcançadas: manter o que já alcancei controlar imediatismo aprender a identificar meus sentimentos ter fé ter calma humildade viver 24 horas acreditar na base do programaB) Não alcançadas: simplificar praticar desligamento emocional não racionalizar demais buscar o Poder Superior intelectualizar menos trabalhar rebeldia ter fé2. METAS QUE PRETENDE ALCANÇAR NA SEMANA DE 03/05/93 A 10/05/93

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As que não alcancei, assertividade, autoestima, carência afetiva e dependência emocional,manter o que já consegui, trabalhar descrença e melancolia, fantasia. (Não desfocalizar.)3. RETORNOS DO GRUPO PARA A SEMANA DE 03/05/93 A 10/05/9303/05/93Pela primeira vez não consigo colocar em ordem os eventos significativos do dia. Foi um diae tanto! O exame (coleta) de sangue correu sem maiores problemas (perdi a comunitária,mas vou ler a meditação agora à noite). Estou muito feliz por ser o vice-coordenador. Ocarinho e respeito dos colegas e da equipe são uma bênção. (Ai, explode, coração! Se vocêvisse o motorista do laboratório… Ele foi usar o banheiro e quase tive um troço! Saíperguntando na administração quem era o rapaz do bigodinho, olhos azuis, tímido,uniforme — na esperança de ser um novo residente! Fantasias, mas meu ânimo voltou nahora. Já estava deixando a ansiedade e o mau humor dominarem e tudo passou!) Gosteimuito da dinâmica, da palestra da Ln. (sobre recaída) e também do Grupo Sentimento sobreo segundo passo (que espero entregar até quinta-feira). A chegada dos novos internostambém trouxe um certo frisson (nas palavras do L. A.) à rotina do dia. En. é um rapazconfuso (MUITO confuso) etc. etc. etc. Satisfatório no GT! J. A. também me surpreendeu —após um começo inseguro como coordenador (na avaliação semanal) e o retorno doscolegas (e meu também), ele assumiu a responsabilidade do cargo com firmezasurpreendente. Mc. ingressou no AA (surpresa) e me escolheu como padrinho (para entregara ficha). Temos uma grande responsabilidade agora, eu e J. A.: guiar o grupo (que está maisheterogêneo) com segurança, democracia e assertividade. Tive muitas oportunidades hojede treinar minha assertividade e estou aprendendo. A chegada dos novos internos reforçouo quanto já aprendi aqui em Vila Serena. Me vi satisfeito e surpreso ao colocar em práticaessas ferramentas — e ter dado certo! O GT foi bom, foi a tarefa que mais mexeu comigo atéagora. Aproveitei a avaliação semanal para assertivamente sugerir a Ad. menos ironia esarcasmo no trato com os colegas (o seu Je. é sempre alvo fácil) e DEU CERTO! Ad. tem umgrande coração (é bom vê-lo compartilhando isso, mesmo que pouco a pouco) e L. E. estávoltando a ser L. E.! É tão bom perceber essas mudanças nas pessoas, sem fantasiar e semestar sob o “efeito”. O bom é que SEI (sinto) que estou feliz e não eufórico. Vou descansaragora, um bom banho, chá de camomila. Xô, desejo imperioso! Renato.04/05/93Hoje apresentei meu segundo passo, só preciso refazer um item. Foi um dia bom, gostei dasatividades, senti não ter participado do “grupão”, mas aproveitei para trabalhar. Acordei mal,só a partir da caminhada voltei a me sentir bem; o que me aliviou, já que agora sei que essemal-estar matutino é sequela da doença e não ALGO MAIS SÉRIO. Terça-feira é sempre umdia um pouco mais difícil (tem sido até agora) — sinto falta de atividades. Estou bem, me

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sinto mais assertivo a cada dia que passa, mas hoje, neste momento, estou me sentindo umtanto apreensivo, uma sensação de perda, novamente a impressão de que meu esforço é emvão (o que imagino que tenha sentido o irmão do filho pródigo, quando este voltou paracasa). Não sei. Acho que estou com medo de enfrentar minha nova vida — e não tenhoescolha. Me vi hoje não querendo voltar à minha vida antiga — não sinto falta das pessoascom quem convivia, não percebo em mim a necessidade de me expressar — meus novosamigos aqui em Vila Serena são minha vida agora. Nunca me interessei muito por outraspessoas (mesmo antes de minha dependência) — isso é um desabafo. Quero colo! Acaboude tocar no rádio “Just the Way You Are” e agora entrou “Be My Baby”. Poder Superior! Achoque vou conseguir. Renato.(Xô, autopiedade)PS: Vamos conversar sobre meu segundo passo?Desabafei no NA e agora estou bem, que bom. Conversei com sr. Lc. e com En. (que achouma pessoa muito especial). Ele me confessou (segredo) ser homossexual, pode? Baixinho,preocupado com sua revelação, medo, insegurança. Seu maior tesouro! Fiquei tão feliz, vocêimagina. Aceitar isso é quase como o primeiro e o quinto passo em um só. Que bom ter aconfiança de um rapaz como ele, ele vai ser um rapaz muito forte, se ele se permitir. Masfujamos da armadilha do “se”. Lhe disse que o ideal seria conversar com você. Até o invejo, J.E., que felicidade poder ajudar um irmão! (Eu preferi não interferir, vistos meus própriosconflitos ainda!) En. tem um grande coração, me vejo nele, e sua mudança de atitude mesurpreendeu — espero não ter sido fogo de palha. Tempo ao tempo, primeiro as primeirascoisas. Poder Superior. Vou assimilando com o tempo, ainda racionalizo demais.“Vida é o que acontece com você quando você está ocupado fazendo planos.” — JohnLennon.Bons sonhos!

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05/05/93Um dia cheio de problemas. Vou apresentar os problemas práticos na comunitária (livropreto). O que me interessa agora é trabalhar meu nervosismo e ressentimento. Hajaassertividade. Tentarei ser o mais claro possível. O GA foi caótico. J. A., que é o coordenador,não me avisou que não estaria presente (estava conversando com El.) e fui pego de surpresa.Tivemos duas tarefas a serem trabalhadas, o que, depois de um dia complicado, estendeu ohorário do GA até 6h20 p.m. — horário da janta. Houve reclamações e desânimo de muitoscolegas: Sn., Je., En., Lc., Ad. — i o clima foi ruim, derrota geral. En. aproveitou para encenarseu drama e a tensão não foi aliviada pelos colegas — a meu ver, todos se portaramimaturamente.ii Eu também. Tentei ser assertivo e levantei a voz (não de maneira agressiva,mas sim deixando transparecer meu nervosismo). Mas me expliquei, pedi ajuda aos colegase estava uma pilha no final. Ao jantar, revi alguns dos retornos dos colegas e subitamenteEn. encenou seu gran finale. Um desmaio dramático no refeitório, com direito a cadeirascaídas e pose teatral, gemidos, frisson entre os colegas. Com MUITA calma fui providenciarum copo de água com açúcar, enquanto Cr. (o enfermeiro) se dirigia ao refeitório com oandar e o porte de um superior que se vê “superior” (lento, cabeça erguida, olhar displicente)mas que passa aos outros arrogância e desprezo até, além de falta de solidariedade. E setivesse sido sério? Você devia ter visto a “pose”. Fazer gênero em uma situação deemergência não é de bom-tom — na minha opinião; por mais que essa tenha sido umaatitude profissional (terapêutica). Fui assertivo ao lhe dizer que achei sua atitude fria e rígida(ser um pouco humano é vergonha?). Não havia açúcar, tive que abrir o açucareiro e rasparo fundo com uma colher. Bem — o caos era generalizado, principalmente pelo estadoatônito dos colegas (parecia Um estranho no ninho). Todos se dirigem a mim com suas dúvidas,queixas e pedidos de orientação. J. A. nunca está presente, ao que parece. A dúvida principalera: como haveria tempo para jantar, um banho, troca de roupa, se a saída para o AA era às7h? (Faltavam poucos minutos a essa altura dos acontecimentos.) Fui atender o telefone (otelefone SEMPRE toca no meio de confusão, ao-que-parece) e disse à N. que me ligasse maistarde, por favor. Vi seu An. (o coordenador do grupo de AA de hoje à noite) conversandocom Cr. (sua pose real — de realeza — é permanente, ao-que-parece) e com MUITA calma ointerpelei sobre a dúvida em questão. V. foi chamado, a saída colocada para 7h20 e tudo foiresolvido. Voltava para o meu jantar (esquecido a essas alturas) e J. A. veio me repreender,dizendo com-muita-calma — mas manipulando ao extremo, na minha opinião — que eudeveria não me envolver e que, a partir dali, ele se prontificaria a tomar para si aresponsabilidade do cargo,iii deixando mais do que claro que tinha se ressentido com minhaintervenção. Disse-lhe que, em vista de sua omissão,iv achei apropriado tentar resolver aquestão (1. os colegas vieram a mim; 2. fui o coordenador do GA e assumi a responsabilidadepelo atraso do jantar e consequências) eu mesmo. Ele passou a tentar me fazer perder a

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calma, repetindo ad nauseam: “Você está descontrolado, você está nervoso, calma” —claramente me provocando. Devo dizer que acho Cr. omisso também v (atitude lavo-minhas-mãos, vocês-que-se-virem), o que ficou patente com a lista da saída para o AA e ofato de L. A. ter tomado banho e se aprontado às pressas para o NA (Neuróticos Anônimos)para me dizer que Cr. veio dar uma contraordem (L. A. não sairia p/ o NA). É Cr. que faz essaslistas. Bem, ISSO NÃO É MEU DEPARTAMENTO. Vou preparar minha lista de assuntospráticos p/ o livro preto e descansar. Agora estou me sentindo ótimo. Como bonsmanipuladores (e dependentes químicos da gema), eu e J. A. já fizemos as pazes. Eu adoro oJ. A. Como já lhe disse em outra FES, é grande nossa responsabilidade e está TUDO BEM!Hoje os ânimos estavam realmente exaltados. Haja paciência para ser assertivo com En. (eSn. caiu na real hoje). Fora pequenos problemas pessoais (os “normais” não se entendem!)com secretária, família, o de sempre. Deu uma ventania agora, foi tarefa voando para tudoque é lado! Estou feliz — e bem-humorado! Isto é sanidade, ver o humor nas coisas — sórindo. Não é possível me levar a sério. (Ventania em Vila Serena! G.: Je., fez a tarefa? Je.(franzindo a testa): Bem… eu… G. (carinhosa e repreensiva): Je.!… Je.: Voou. G.: Voou? Saiuvoando, Je.? Só faltava essa! Je. (franzindo ainda mais a testa): É, sim, voou na ventania, foiparar no telhado! Ventania em Vila Serena? EXPLOSÃO em Vila Serena! (gritinho do En.) e…falta de luz! Agora estão todos animados, eu e seu Je. estamos completando as tarefas na salade visitas, os outros conversam alegremente no pátio. Cs. (o enfermeiro da noite) estápassado. En. esqueceu seu eterno sofrer e está amabilíssimo, contando seus casos. É o PoderSuperior, sem dúvida. Ressentimento pra quê? É lua cheia! Renato.

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06/05/93Pontos altos do dia:Sv. (Dor e Luto)GFR com dr. W. (MAIS GFR com dr. W.!)dinâmica e visualização com El. (e mais trinta)visita de trinta profissionais curiososMorte e Renascimentovisita de E. para pós-tratamentominha saída para o NArever minha vizinhança (e locais de ativa)irritação e impaciência com alguns colegassaudade do Mc.tranquilidade, assertividade07/05/93alta do Je.convulsão epiléptica do En. durante caminhadaimpasse no GS com J. A.decido não ser mais vice-coordenadortristeza, mágoa, ressentimentoretornos de Sv., Ln., G., El. e colegascompromisso com J. A. (amigos novamente)explico minha decisão no GAreunião de NAsolidariedade de An., A. e En.dinâmica (assertividade), contentamento, serenidade08/05/93Sábado familiar! Reunião do grupodinâmica (fotolinguagem)/Poder Superior no GAter completado oito itens do terceiro passoE… a partir disso, decidir reescrever FES’sPercebo agora que TUDO é significativo, e que os altos e baixos são por demais frequentes— mais constante ainda tem sido a solução desses mesmos problemas. Não sinto acompulsão para detalhar eventos, sentimentos, emoções. Aceitação. Entrega. TerceiroPasso! Beijos, Renato.

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09/05/93Dormi um pouco após a comunitária e acordei um tanto ansioso. O vídeo do James Taylorfoi interessante. Dormi depois do almoço e acordei também ansioso (lição: não dormirdurante o dia!). Meu organismo ainda está se adaptando mesmo. Comprei tortas erefrigerantes para o Dia das Mães e foi bom (se bem que um tanto anticlimático, mas todosgostaram). Meus pais, Giuliano, Thayssa e tia Socorrinho vieram me visitar, mas ficarampouco tempo. Ponto alto do dia: conversar com meu pai sobre seu trabalho junto aosvicentinos. Saudade. Desabafei no GA e no AA e foi (sempre) ótimo. Estou virando junkie degrupos! Que bom (tinha uma certa aversão, agora não acho nada impossível o programa denoventa dias). Vídeo: Quick Change, com Bill Murray e Geena Davis, vi de novo e foi gostoso.Terminei o terceiro passo. Exausto. Feliz.10/05/93Dia complicado. Não vai ter GT? Como? — Ainda bem, Ln. mudou de ideia. (Imediatismomesmo, mas, se não apresentasse o terceiro passo, ia-ter-um-troço!) Dor de barriga, mãosfrias, ansiedade, e tivemos “visitas” e repeteco das palestras do Jh. (as MESMAS piadas, masgostei). Je. recaiu e por um momento levei um susto: você?// Terceiro passo SATISFATÓRIO! Estou trabalhando minha euforia (CALMA, Renato). Ed.voltou, ele é sincero e simpático (e careca). Acho que os rapazes se identificaram muito comele. En. está desfocalizando muito, o que é, bem — deixa pra lá. Fiquei cantando baixinhotemas favoritos da Noviça rebelde. Pode? Vamos conversar amanhã?“E O AMOR ILUMINA NOVAMENTE/ A CIDADE E A COVA DO LEÃO/ A GRANDE RAIVADO MUNDO/ AS VIAGENS DOS MENINOS-HOMENS” — W. H. Auden, “Carta de Ano-Novo” (1940). em inglês é perfeito.11/05/93O vídeo O valor da vida, que conta a história de Bill W., nossa conversa, a palestra sobre sexo edependência química (mesmo repetida). A chegada dos novos internos. Desligamento do Sg.Saída para o grupo Rio de Janeiro (AA) — não gostei. As salas são pequenas e MUITObarulhentas e achei o nível baixo (prepotência? orgulho?). Em todo o caso, às vezes eu nãoENTENDIA o que estavam dizendo (e não me identifiquei com ninguém, parecia NA, poucaou nenhuma assertividade — parecia gente ressentida e hostil). Mas valeu por ter conhecido.Falei bem (e todos me acharam “inteligente”, o que me incomodou um pouco).De noite ficamos conversando no pátio, foi divertido. A história do En. foi um fiasco só —que sorte a minha (Poder Superior, na verdade) ter um grupo forte e unido durante minhaestada aqui. (J., Rc., Ct., Mc. — tenho saudade.) O grupo como está parece ser composto decolegas que não querem se ajudar, e isso me incomoda e é algo que devo trabalhar urgente,

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porque me vejo voltando à intolerância, onipotência, orgulho e impaciência. Haja paciência,na verdade. O nível está muito baixo. E a comida de uma semana para cá está abaixo donível. Tentei completar meu dia com frutas e pães etc. (não tive como enfrentar o almoço,ou a janta). Três milhões e meio por dia para comer carne de terceira TODO DIA? Hora de ir!Tenho problema com falta de educação (por mais “simpáti-co” que seja o colega).12/05/93Hoje havia um aviso no banheiro de que faltaria água: alguém decidiu economizar? Claroque não. É cada um por si (o verniz é conversa de malandro e as repetições ad infinitum daprogramação, sem que eu perceba inteligência ou honestidade). Dá vontade de bater, mascom paciência — bem, hoje estou irritado (me deixando irritar) porque acho que estougripado. Bom dia! Gostei muito do seu retorno. Vamos conversar mais? Bom tempo, sópor hoje, seu amigo13/05/93Ontem faltou água o dia inteiro, não me preocupei. O que me incomodou um pouco foi teracordado com uma sensação de que uma-gripe-já-está-chegando (e com força total), mastomei vitamina C e, ao amanhecer, já estava bem melhor. O grupo está desunido, En.impossível, Lc. reclamando de tudo etc. Etc. mesmo. Decidi descansar bastante e trabalharmeu quarto passo de madrugada, o que foi bom. Hoje acordei melhor, embora ainda nãocem por cento. Mc. chegou — quarto passo! Explode, coração!PS: Consegui alcançar TODAS as minhas metas p/ a semana! Beijos, Renato.i Não sobre a janta, mas sim sobre as dificuldades do dia (insatisfatórios, quero voltar pra casa etc.).ii “Somos ratos ou homens?”, perguntei ao grupo!iii Tá boa, santa!iv Ou ausência, depende do ponto de vista.v Ou ausente, depende do ponto de vista.

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EXERCÍCIO DE TREA) Situação, ou fato ocorrido: Fiz um empréstimo muito alto a um dos meus assessorespara que ele cobrisse custos da última turnê, que deu prejuízo por sua irresponsabilidade enão sei se ele conseguirá me pagar.B) Pensamento: Vou concordar com o empréstimo porque me sinto responsável em sersolidário, embora o ache um idiota inapto (nesta situação) e exista manipulação, mas ele estáacuado, é meu amigo e faria o mesmo por mim.C) Sentimentos: Raiva, culpa, ressentimento, empatia, responsabilidade, solidariedade.D) Ações ou reações: Busquei outras soluções, conversar, chegar a um acordo, tentarganhar tempo — surpresa, choque, embaraço, pena, superioridade, indiferença.E) Questionamento: É uma questão ética a devolução do dinheiro, uma obrigação moral.F) Métodos/Metas: Ter assertividade, esperar — não mais ter um relacionamento detrabalho sem uma resposta e um acordo viável.

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FAZER UM RESUMO IDENTIFICANDO OS CONFLITOS QUE VIVIA NA ATIVA E QUE NO DESENROLAR DOTRATAMENTO FOI ABORDANDO, FACILITANDO O SURGIR DE SUAS QUALIDADES, E COMO SE SENTE NESTAALTURA DO TRATAMENTO, QUAIS OS ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS QUE ESTÁ DESCOBRINDO DURANTESUA ESTADA COMO RESIDENTE.O maior conflito que vivia na ativa era o de só me sentir bem comigo mesmo quandoalcoolizado ou drogado, e, por fim, nem isso mais estava conseguindo. Tudo para mim erador, solidão e injustiça. Achava o mundo cruel e sem sentido, e as pessoas estúpidas,ignorantes, falsas e más. A autopiedade e a culpa se revezavam com agressividade,intolerância e hostilidade. Parecia fazer tudo por obrigação: me alimentar, dormir (quandonão dormia para esquecer, fugir ou por cansaço), me relacionar com as pessoas, trabalhar.Ser feliz era uma obrigação, tentar manter o bom humor, a esperança e a vontade de viver,idem. A droga e o álcool me traziam momentos de euforia e então fazia planos, conversavaalegremente com amigos, percebia o meu potencial, aproveitava o resultado do meutrabalho, apreciava ter casa própria com todos os requintes desejados, uma ótima biblioteca,uma sala de som completamente equipada, a geladeira abarrotada de produtos importados,uma sala de vídeo com laser e tudo. Tudo em vão. Não conseguia me sentir plenamente feliz,e isso tudo era fuga. Passei a desconfiar dos meus amigos, e tudo que percebia como falso(ou contra minha vontade ou jeito de ver as coisas) era justificativa para que me isolasse cadavez mais, só procurando as pessoas que realmente me entendiam. Eu era várias pessoas emuma só (usava muitas máscaras) e só com dois amigos continuei a ser quem eu era. O restonão me interessava. Me sentia desprezado e incompreendido. Tinha raiva, culpa,autopiedade e quase nenhuma autoestima verdadeira. Agora, na segunda para a terceirasemana de tratamento, está tudo mudado. Tenho me alimentado regularmente, estoudormindo bem, estou me sentindo tranquilo e feliz. Os primeiros dias foram difíceis. Me viacético, ressentido e alheio ao programa. Isso logo mudou. Pouco a pouco estou entrandoem contato com meus sentimentos, descobrindo o valor das pequenas coisas, ficandosurpreso por conseguir dominar minha impaciência, irritabilidade, raiva e intolerância.Minha autoestima está voltando, assim como meu interesse e carinho por outras pessoas.Entre os aspectos negativos está o meu não conformismo (que é mais forte do que pensava)e a minha necessidade de me sentir especial e diferente (o que devo trabalhar). O mais difícilpara mim é praticar o desligamento emocional (me identifico demais às vezes com outraspessoas) e entrar em contato com o Poder Superior. Isso é muito difícil para mim, já que atéagora o pessimismo e a desesperança têm sido traços básicos da minha personalidade.Também me irrita ainda tudo que percebo como sendo autoritarismo e/ou arbitrariedade.Ainda não tenho paciência nesse campo. Me isolei nos meus estudos por muito tempo, oque aguçou meu espírito crítico. Sou ainda perfeccionista e exigente (principalmente nocampo estético), mas tudo bem. Quem conhece Pasolini e Ernst Lubitsch não vai gostarmuito do Domingão do Faustão, por exemplo (acho o programa vulgar, manipulador e

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“fascistoide”, apelando para instintos baixos e preconceitos — mas agora é até divertido paramim, de tão idiota). Antes fazia questão de me isolar em sofisticação e estéticas “superiores ealternativas”. Agora me vejo aproveitando as coisas simples da vida. Mas não pretendoexagerar, já que prezo muito minha inteligência, sensibilidade e cultura. Primeiro eu, mesmoque eu pareça estar sendo esnobe. Não é nada disso. Qualquer pessoa que comprou umbom sistema 3×1 sabe que é difícil voltar à vitrolinha portátil do passado. O que devotrabalhar é meu incessante fantasiar (preciso definir limites p/ minha imaginação) e minhadependência de pessoas. Desligamento e assertividade, sempre! No mais, espero progredircomo ser humano, a cada 24 horas, sempre ciente da minha doença. Isso vai ficar cada vezmenos difícil, porque, a partir do programa, minhas principais qualidades estão ressurgindonaturalmente: honestidade, sinceridade, inteligência, sensibilidade, senso prático, coragem,independência e pioneirismo — além, é claro, da minha criatividade. Sempre me achei omáximo, mas agora tenho uma boa razão para isso! Estou voltando a ser eu mesmo!PS: Devo trabalhar uma tendência que tenho para o orgulho, arrogância e prepotência,definindo limites naturais. E creio que, ao aprender a gostar de mim mesmo, poderei gostarde outras pessoas e não terei os problemas que tive nos meus relacionamentos do passado,ou com minha sexualidade. Terei problemas, é certo, mas nada como na época da minhadependência. Serão os problemas normais, comuns a qualquer pessoa, e não a tragédiagrega em Cinemascope que era a minha vida até chegar a Vila Serena. Se conseguirtrabalhar meu imediatismo (a vontade de ser sempre o primeiro e ter meus desejossatisfeitos na hora), minha tendência para racionalizar e seguir a Oração da Serenidade e osdoze passos, eu chego lá.

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NOTAS DESTA EDIÇÃO1. O Programa dos Doze Passos foi criado por Bill W. e Dr. Bob S., fundadores dos Alcoólicos Anônimos. Consiste numa série deetapas que guiam o processo de recuperação do dependente. Os passos são os seguintes: 1. Admitimos que éramos impotentesperante o álcool — que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas. 2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmospoderia devolver-nos à sanidade. 3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que Oconcebíamos. 4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos. 5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmose perante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas. 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removessetodos esses defeitos de caráter. 7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições. 8. Fizemos uma relaçãode todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados. 9. Fizemos reparações diretasdos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem. 10.Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente. 11. Procuramos, atravésda prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas oconhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade. 12. Tendo experimentado um despertarespiritual, graças a esses Passos, procuramos transmitir essa mensagem aos alcoólicos e praticar esses princípios em todas asnossas atividades.2. Num dos capítulos de Narcóticos Anônimos, o livreto oficial da entidade, lê-se: “Diga para você mesmo: só por hoje meuspensamentos estarão concentrados na minha recuperação, em viver e apreciar a vida sem drogas. só por hoje terei fé em alguém dena, que acredita em mim e quer ajudar na minha recuperação. só por hoje terei um programa. Tentarei segui-lo o melhor que puder.só por hoje tentarei conseguir uma melhor perspectiva da minha vida através de na. só por hoje não terei medo, pensarei nos meusnovos companheiros, pessoas que não estão usando drogas e que encontraram uma nova maneira de viver. Enquanto eu seguir estecaminho, não terei nada a temer”. O capítulo inspiraria Renato a escrever a letra “Só por hoje”, do álbum O descobrimento do Brasil.3. Legião Urbana, 1985 (emi).4. Renato Rocha, o “Negrete”. O músico saiu da banda em 1989. Ele foi encontrado morto num quarto de hotel no Guarujá (SP), emfevereiro de 2015.5. O “(sic)” é do autor.6. Narcóticos Anônimos, apelidados de “Neuróticos Anônimos” por Renato na p. 142, grupos fora da Vila Serena a que os pacientesiam acompanhados.7. Alcoólicos Anônimos, grupos fora da Vila Serena a que os pacientes também iam acompanhados.8. Grupo de Apoio.9. Grupo Tarefa, uma das terapias do tratamento de Renato, que ele apelidará de “grupo do terror”. Ali se apresentavam as tarefasdesignadas pelo coordenador, que eram avaliadas por ele e pelo grupo.10. Grupo Sentimento, outra forma de terapia. Reuniões em que os internos da clínica expunham problemas e dificuldadesenfrentados no tratamento.11. Quarto disco da Legião Urbana, lançado em 1989 pela emi.12. Filho de Renato.13. Grupo Formas de Relacionamento, no qual eram abordados especificamente os problemas com relacionamentos afetivos,familiares, sexuais.14. Folha de Eventos Significativos, formulário em que os internos da instituição relatavam seu dia a dia.15. Não localizamos referências às “comunitárias” no material da Vila Serena. Provavelmente, Renato se refere às dinâmicas degrupo, um dos pilares do tratamento na clínica.16. O grupo, nascido em 1978, tinha em sua formação original Renato Russo (baixo e vocal), André Pretorius (guitarra) e FelipeLemos (bateria).17. Terapia Racional Emotiva.

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18. Dependentes químicos.19. O questionário referente a estas respostas não foi localizado nos arquivos de Renato nem nos da Vila Serena.20. Laboratório de Patologia Clínica no Centro do Rio de Janeiro.21. O questionário referente a estas respostas não foi localizado nos arquivos de Renato nem nos da Vila Serena.22. Renato parece querer se referir ao cantor lírico britânico Peter Pears, este sim parceiro de Britten.23. Baterista da Legião Urbana.24. Sistema desenvolvido por Joseph Luft e Harry Ingham que busca compreender as relações interpessoais a partir de umarepresentação gráfica semelhante a uma janela.25. Toxicômanos Anônimos.26. No Prêmio Sharp daquele ano, Renato cantou “Gente humilde”, de Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buarque. A ediçãohomenageou Angela Maria e Cauby Peixoto.27. O filme, na realidade, é de 1942.28. Frase que depois Renato usaria na letra de “Só por hoje”, do álbum O descobrimento do Brasil.29. Os grãos e Tudo ao mesmo tempo agora, respectivamente.30. O disco foi lançado pela emi.31. “O mundo anda tão complicado”, “Teatro dos vampiros” e “Vento no litoral”.32. O descobrimento do Brasil (emi), lançado em 1993.33. Dois (emi), lançado em 1986.34. Loja que foi referência no Rio de Janeiro; fechou em 2010.35. Sexólicos Anônimos.

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LISTA DE OBRAS E ARTISTAS CITADOSMÚSICA“A Whiter Shade of Pale” [“Um tom de palidez mais branco”] (1967), Procol Harum.“Be My Baby” (1963), The Ronettes.Benjamin Britten (1913-76), compositor, maestro e pianista britânico.Bob Dylan, nascido em 1941, cantor e compositor norte-americano.Capital Inicial, banda fundada em Brasília no início da década de 1980.Carmen (1875), de Georges Bizet.Cazuza (1958-90), compositor e cantor carioca que integrou o Barão Vermelho.Elton John, nascido em 1947, compositor e cantor britânico.Emerson, Lake & Palmer, banda britânica da década de 1970.James Taylor, nascido em 1948, compositor e cantor norte-americano.Janis Joplin (1943-70), compositora e cantora de rock norte-americana.Jim Morrison (1943-71), músico norte-americano, vocalista do The Doors.Jimi Hendrix (1942-70), compositor, cantor e guitarrista norte-americano.Jodele Larcher, nascido em 1955, diretor carioca de clipes musicais brasileiros.Johann Sebastian Bach (1685-1750), compositor alemão.John Lennon (1940-80), britânico, integrante dos Beatles.“Just The Way You Are” (1977), de Billy Joel.Kurt Cobain (1967-94), músico norte-americano, integrante do Nirvana.Midnight Oil (1976-2009), banda australiana.Paralamas do Sucesso, banda carioca fundada em 1977.Paul McCartney, nascido em 1942, músico britânico, integrou os Beatles.Peter Pears (1910-86), cantor lírico britânico.Raul Seixas (1945-89), compositor e cantor baiano.Rita Lee, nascida em 1947, compositora e cantora paulistana, integrou os Mutantes.Titãs, banda paulistana formada em 1982.CINEMAA noviça rebelde (1965), de Robert Wise.A viagem de volta (1990), de Emiliano Ribeiro.Adolphe Menjou (1890-1963), ator norte-americano.Casablanca (1942), de Michael Curtiz.Derek Jarman (1942-94), diretor de cinema britânico.Ernst Lubitsch (1892-1947), ator e diretor de cinema alemão.Geena Davis (1956), atriz norte-americana.Gene Wilder (1933) e Richard Pryor (1940-2005), atores norte-americanos.Humphrey Bogart (1899-1957), ator norte-americano.Linda Blair (1959), atriz norte-americana.Luchino Visconti (1906-76), diretor de cinema italiano.Manhattan (1979), de Woody Allen.O valor da vida (1989), de Daniel Petrie.Quick change (Não tenho troco) (1990), de Bill Murray e Howard Franklin.Romeu e Julieta (1968), de Franco Zeffirelli.Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), de Pier Paolo Pasolini.Shelley Long, nascida em 1949, atriz norte-americana.Stephen Frears, nascido em 1941, diretor de cinema britânico.The lost weekend (Farrapo humano) (1945), de Billy Wilder.Um estranho no ninho (1975), de Miloš Forman.LITERATURAO nascimento da tragédia (1872), de Friedrich Nietzsche.Alcoolismo: Os mitos e a realidade (1986), de Katherine Ketcham e James R. Milan.Arthur Rimbaud (1854-91), poeta francês.

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Astrologia: Alcoolismo e drogas (1987), de Anna Maria da Costa Ribeiro.“Carta de Ano-Novo” (1940), poema de W. H. Auden.Fernão Capelo Gaivota (1970), de Richard Bach.Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão.George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-50), escritor britânico.I’ll Quit Tomorrow: A Practical Guide to Alcoholism Treatment (Guia prático para o tratamento de alcoolismo) (1973), de Vernon E.JohnsonJunky (1953), de William S. Burroughs.Marcel Proust (1871-1922), escritor francês.Mulheres que amam demais (1985), de Robin Norwood.O pequeno príncipe (1943), de Antoine de Saint-Exupéry.O velho e o mar (1952), de Ernest Hemingway.On the road (1957), de Jack Kerouac.Ratos e homens (1937), de John Steinbeck.Seus pontos fracos (1976), de Wayner Dyer.Søren Kierkegaard (1813-55), filósofo e teólogo dinamarquês.Sylvia Plath (1932-63), escritora norte-americana.Tudo que eu devia saber aprendi no jardim de infância (1988), de Robert Fulghum.Um ianque na corte do rei Artur (1889), de Mark Twain.Viver sóbrio (1990), livro com os ensinamentos do programa Alcoólicos Anônimos.Walt Whitman (1819-82), poeta e ensaísta norte-americano.William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo inglês.W. H. Auden (1907-73), poeta anglo-americano.ARTES PLÁSTICASSandro Botticelli (1445-1510), pintor italiano.PSICANÁLISEJacques-Marie Émile Lacan (1901-81), psicanalista francês.

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Ricardo Junqueira/ Acervo Legião Urbana Produções ArtísticasRENATO “RUSSO” MANFREDINI JUNIOR nasceu no Rio de Janeiro em 1960 e em1982 criou a Legião Urbana, banda que desde então vendeu mais de 20 milhões dediscos. É compositor e intérprete de canções que se tornaram clássicos do rockbrasileiro. Morto em 1996, aos 36 anos, Renato deixou incontáveis fãs e vasta obraliterária inédita, que a Companhia das Letras publicará ao longo dos próximos anos.www.renatorusso.com.br

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Copyright © 2015 by Legião Urbana Produções Artísticas Ltda.Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.Projeto gráfico, capa e imagem de capaElisa von RandowReprodução das imagensJaime AcioliOrganização e notasLeonardo LichotePreparaçãoMárcia CopolaRevisãoHuendel VianaLuciana BaraldiISBN 978-85-438-0376-0Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ S.A.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — SPTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

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