Palavra encena ato em canto; palavra em cena, ato encanto: Uma leitura da poética da Cia. Teatro Balagan em "Prometheus - a tragédia do fogo"
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Palavra encena ato em canto; palavra em cena, ato encanto - Giselle Molon Cecchini
Palavra encena ato em canto;
palavra em cena, ato encanto:
Uma leitura da poética da Cia.
Teatro Balagan em
Prometheus - a tragédia do fogo
Giselle Cecchini
© Giselle Cecchini
© Palavra encena ato em canto; palavra em cena, ato encanto: Uma leitura da poética da Cia. Teatro Balagan em Prometheus - a tragédia do fogo
1ª edição, 2018
Editado por Bubok Publishing S.L
E-Book em ePub: ISBN 978-84-685-2306-4
Impreso en España
Assessoria editorial e projeto editorial: Bubok Editorial
Capa, diagramação e projeto gráfico: Daniel Soares Duarte
Foto da capa: Cia. Teatro Balagan
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CPI)
C387p Cecchini, Giselle
Palavra encena ato em canto; palavra em cena, ato encanto : uma leitura da poética da Cia. Teatro Balagan em Prometheus : a tragédia do fogo [recurso eletrônico] / Giselle Cecchini. – Madrid : Bubok, 2018.
ISBN 978-84-685-2306-4
1. Encenação. 2. Canto – Palavra – Performance. 3. Teatro. 4. Prometheus – A tragédia do fogo. 5. Cia. Teatro Balagan. I. Título.
CDU 82-2
Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052
Reservados todos os direitos. Salvo exceção prevista pela lei, não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, nem a sua incorporação a um sistema informático, nem a sua transmissão em qualquer forma ou por qualquer meio (eletrónico, mecânico, fotocopia, gravação ou outros) sem autorização prévia e por escrito dos titulares do copyright. A infração de ditos direitos implica sanções legais e pode constituir um delito contra a propriedade intelectual.
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Dedico este livro
às vozes numinosas
aos meus filhos Gabriel e Miguel
a José
Dedico este livro
à Maria Thaís
à Ana Maria Lisboa de Mello
ÍNDICE
Considerações Iniciais: Lugares e movimentos por onde canto
Canto primeiro: AnteCanto
Canto segundo: InCanto
Canto terceiro: Canto de Prometheus
Considerações finais: Por fim, o começo
REFERÊNCIAS
ANEXO I – O mito de Prometeu, em Protágoras, de Platão
ANEXO II – Currículo curto da equipe de criação da Balagan
ANEXO III – Textos originais das traduções
ANEXO IV – Ficha técnica e premiações
Títulos e subtítulos
ou
um caminho Entre Cantos
Considerações iniciais: Lugares e movimentos por onde canto
Definido o corpus ...
A arte é pensar por imagens ...
Um paradoxo: o avanço da narrativa, um retorno ao tempo mítico ...
Canto: uma denominação antiga da linguagem narrativa ...
Ler é colher – o entorno da companhia ...
Artistas artesãos – Platão, Walter Benjamin e Jerzy Grotowski ...
Na Casa Balagan ...
A adjetivação – balagan ...
Plurais enfoques, diferentes disciplinas ...
Aos tripulantes desta narrativa, norteio a condução: sou o nós
...
In principio erat verbum ...
Canto primeiro: AnteCanto
A linguagem apresenta-se ...
Apresentar é tornar presente ...
Itinerância, um caderno de viagem ...
Um balaio de plicas – um balaio de mapas ...
Meierhold, mestre imaginário ...
Refazendo percursos à procura dos rastros ...
Verdade da arte, verdade da vida ...
Stanislávski transpõe a linha das forças motivas à linha das ações físicas ...
Um corpo que age sobre os pensamentos ...
A cada universo a sua verdade, a cada universo o seu canto ...
Reteatralização do teatro ...
Espelhamento crítico, uma relação antitética ...
Campo de representação imaginária ...
Do universo simbólico à consciência histórica ...
Uma pedagogia em gestação ...
Anatoli Vassiliev, Maria Knébel, pontes entre tempos, entre teatros ...
O espetáculo teatral, um texto cênico ...
Sete camadas, sete textos espetaculares ...
Descortinando anterioridades: Do Inumano ao mais-Humano ...
Jean Pierre Kaletrianos: Ésquilo, em grego arcaico ...
Estudos Cênicos – Etjud ...
Prometheus Nostos – um espetáculo-protótipo ...
Prometeu transita entre os gêneros ...
O poder do mito cantado/narrado por Hesíodo ...
Ato: o elo que liga o panteão de deuses gregos e o panteão afro-brasileiro ...
O corpo canta um universo e a voz canta outro ...
O Trágico e o animal: Prometheus e Recusa ...
Os Núcleos: Corpos do Teatro e Os cantos do teatro ...
Tu eres hijo de alguien ...
Liberdade ...
Canto segundo: InCanto
Otkaz, um movimento que recua ...
Gérard Genette: as distintas designações do termo narrativa ...
O canto narrativo ou a narrativa que é canto ...
Cada sistema de signos canta seu canto ...
Palimpsestes ...
Falemos do canto como poesia ...
Territórios híbridos ...
Da forma dramática para a forma épica ...
Hegel e Victor Hugo, uma forma dialética ...
Poesia em três idades ...
Nos tempos modernos: o grotesco ...
Ésquilo, o antepassado do teatro ...
A cada espetáculo, a sua poética. A cada canto, o seu canto ...
Entre poética e estética ...
Nostos à Poética de Aristóteles ...
Poesia há em todas as artes ...
A poesia e a música ...
Retorno à tragédia ...
De um lado, a elocução, a fala; de outro, a melopeia, o canto ...
Qualidades não garantem boas ações, não garantem a boa ventura ...
Seis partes, mas jamais como na Grécia antiga ...
Em Prometheus, o coro é protagonista ...
Ações unas e completas ...
Kommós um canto de lamento ...
Arion, um cantor lírico nos primórdios da tragédia ...
A tragédia é o canto do bode ...
Medèn ágan. Gnôthi sautón ...
Platão e Aristóteles ...
Os aedos ...
Troia sobre Troia ...
O passado, história ou memória? ...
A poesia é a memória ...
O aedo Demódoco ...
Odisseu, o ancestral dos velhos marinheiros ...
Aporte teórico: In principio era o canto ...
Teatralidade ...
Aporte poético: In principio era o canto ...
A epopeia sobe ao palco ...
Conceito de estilo ...
Gêneros ou modos do discurso ...
Corpo palimpsesto, corpo polifônico, espetacular ...
O poético na Balagan ...
Repensar a criação ...
O verbo é o ato criador de mundos e realidades ...
Narrativas míticas - aedos/rapsodos/atores balagans ...
O verbo-ato é a força da palavra, seu poder é dar a ver e evocar ...
Em Hesíodo, as palavras são forças divinas ...
A poética da Cia. Teatro Balagan ...
Mikhail Bakhtin e o conceito de polifonia ...
Território de encontros e criação ...
Corpo-mente-memória ...
Agentes entre
...
Tijolos compositivos ...
Postupok ...
Canto terceiro: O Canto de Prometheus
O espectador-artífice, o quarto criador ...
Texturas e tessituras ...
A música e as sonoridades ...
Pele Construída ...
Signo-canto
– signo-barro
A liberdade de recriar um percurso ...
A palavra está entre-mundos ...
Como fatiar um corpo poético teatral? ...
Variantes dramatúrgicas ...
Signos e vozes. Narração por meio de signos ...
Significantes-barro
...
O fogo é azul ...
Vivência de geografias e espaços ...
O espaço mítico ...
A coisa voz ...
A palavra e a voz poética ...
Canto de Tradição ...
A voz é uma instância narrativa ...
De la parole aux chants ...
Do canto e da palavra – entre-dois
...
Entonação afirmativa do discurso cênico ...
Mudar de forma para chegar à forma
...
Como arqueólogos, os atores/criadores balagans...
O mito de Prometeu ressignifica-se, redimensiona-se ...
Espaço cênico - Espaço teatral ...
Nós, espectadores actantes, homens/mulheres
...
Entre as cortinas habitam os deuses ...
De que lado estaremos nesse quadrante? ...
Vozes vindas de outro lugar...
Eixos de leitura ...
A composição do mito de Prometeu no espaço teatral ...
A enunciação teatral – a trama narrativa ...
Análise do discurso narrativo ...
Texto escrito – texto cênico ...
Processos globais de significações ...
Escrita testemunhal ...
Reverberam as palavras-atos em cantos ...
Considerações finais: Por fim, o começo
Considerações Iniciais:
Lugares e movimentos por onde canto
Aaah! Os atos se seguem às palavras:
a terra vacila, e das profundezas vem o estrondo do trovão;
os relâmpagos riscam o ar em trajetórias flamejantes.
Um ciclone faz rodar a poeira com a velocidade de um turbilhão.
Todos os ventos se chocam uns contra os outros,
e o éter se confunde com o mar.
ÉSQUILO
Prometeu acorrentado.
Esta tese tem como objeto específico de estudo o canto em Prometheus - a tragédia do fogo. O espetáculo da Cia. Teatro Balagan tem dramaturgia de Leonardo Moreira e é encenado por Maria Thaís Lima Santos. A estreia acontece em 14 de outubro de 2011, no Teatro da Universidade de São Paulo – TUSP. Deito meu olhar, escuta e percepção¹ sobre a peça teatral em sua forma finalizada, mas jamais fechada
. A obra de arte é sempre aberta
para o leitor do espetáculo que, a cada apresentação, se vê frente a uma nova publicação². O teatro como fenômeno artístico se dá no hic et nunc, e o encontro
³, como seu âmago, pode ser entendido como irreprodutível. O estudo se faz sobre o espetáculo que assume um formato final⁴ a partir da estreia, mas que remonta às etapas anteriores da criação.
Definido o corpus, faço algumas observações importantes. O objetivo desta tese é o estudo do canto – e suas múltiplas vozes – no texto espetacular, cênico, no fenômeno teatral, com a devida consideração de que o texto escrito – signo verbal – é parte de uma dramaturgia que se estende aos signos verbais e não verbais da cena teatral. Neste trabalho, percorro minhas memórias, rastros das muitas vezes que assisti ao espetáculo em diferentes temporadas e locais de apresentações. Na dúvida em relação ao que lembro, ou àquilo que meu cérebro decidiu esquecer⁵, conto com a gravação do espetáculo em DVD e o texto escrito Prometheus Nostos. Recorro aos elementos perenes; todavia, privilegio os vestígios das lembranças em minha mente, corpo e espírito.
É oportuno mencionar que a obra, entendida como finalizada
a partir da estreia, em 2011, remonta a 2007 e 2008, com o projeto Do Inumano ao mais-Humano, quando foram apresentados os Estudos Cênicos e, em março de 2009, o Estudo sobre o Trágico. A partir de então, a Cia Teatro Balagan dedica-se ao espetáculo-protótipo, composto por narrativas que partem do texto de Ésquilo, Prometeu acorrentado. Como um primeiro exemplar, o espetáculo-protótipo passa por muitas variantes, onde são trabalhados textos de diversos autores que propõem diferentes perspectivas do mito de Prometeu. As experimentações chegam à primeira versão do texto chamado Prometheus Nostos (2010 e parte de 2011). Nos estágios de criação, são exibidas novas versões que intentam contemplar a multiplicidade de aspectos do mito. Na sequência, o processo de criação passa a ser itinerante e é apresentado em distintos espaços culturais com o nome de Prometheus Nostos – um espetáculo-protótipo. Por onde passa, a peça de teatro se reconstrói, assimilando proposições e elementos novos que a experiência em espaços plurais proporciona.
Escritos sobre escritos. Cenas sobre cenas. Textos sobre textos. Lacunas, silêncios, aquilo que foi omitido, o que foi ocultado, ações condensadas, intensificadas, recusadas, internas, passagens escondidas, imagens internalizadas, vozes ocultas, tantas vozes, tantas versões, todos esses textos cênicos em sons e imagens, uns sob outros. Na cena teatral, podemos ver o que não é visível. Não me dedico a uma leitura genética, mas conto com o leitor que reconhece que há criações e recriações, camadas e camadas umas sobre as outras. Isso também justifica porque vemos o invisível e escutamos o indizível. Com esta consciência, podemos seguir um caminho – uma leitura possível – horizontal e vertical.
O tema que perpassa e norteia a tese é o canto – entendido como linguagem e matéria, forma e substância, signo e símbolo –, pois é ele, conforme minha proposição de leitura, que compõe e estrutura o espetáculo Prometheus - a tragédia do fogo. O canto é abordado em vários aspectos: como princípio inaugural da palavra poética na cena teatral, o canto é voz e verbo, é ato narrativo; como trama dos acontecimentos, o canto é discurso, texto narrativo; como índice de uma história, o canto é o próprio mito de Prometeu. O canto é a linguagem poética da cena polifônica da Cia. Teatro Balagan. Apresento o canto
como uma aceitação genuína de leitura, uma deliberação que incide de formas diferentes sobre a obra teatral.
As distintas perspectivas que adoto para tratar o termo convergem para um bouquet, onde o canto emerge como composição – ou, melhor dizendo, como estrutura – de uma poética de cena da Cia. Teatro Balagan, em Prometheus - a tragédia do fogo. A imagem de um bouquet – esse ramo de flores que encanta nossos olhos e atiça imaginários – não se reduz a um arranjo que concilia, mas contempla uma disposição que apresenta as diferenças e as dispõem em relação umas às outras. Viktor Chklovski, em a Arte como procedimento, começa sua explanação com a seguinte frase: "A arte é pensar por imagens"⁶. A escrita desta tese se dá, seguidamente, através de imagens que se projetam como um retorno imagético sobre o próprio objeto poético. O intento é abrir a narrativa para possíveis sentidos em projeções que entram em jogo com as palavras. Imagens e palavras, entoações e ritmos, uns sobre outros, concorrem, acorrem da cena teatral, em sua amplitude e profundidade, para esta escritura em reflexão. Partindo dos ramos de significação acerca do canto, talvez encontremos, juntos, um tronco principal e, até mesmo uma raiz, quiçá um oceano. Romântica, mas apropriada imagem – como veremos na sequência da tese – para lançar palavras e resgatar cantos.
Importante nessas primeiras considerações é pensar no canto em toda sua materialidade física e poética, sua linguagem, veículo de uma memória, de uma poesia – um canto – anterior a qualquer divisão de gêneros. Se, de um lado, é possível definir significados; de outro, por onde acostar-me dos sentidos do termo canto
? De onde esse canto de Prometheus⁷? De quando esse canto? Por onde ele ecoa? Como chegar aos sentidos de uma palavra se não em acordos com os referenciais de um enunciado ou, então, deixando-se projetar ao infinito dos imaginários? No livro Todos os nomes, José Saramago faz poesia sobre a irradiação
de uma única palavra:
Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer; ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições⁸.
O canto revelado no fenômeno teatral do espetáculo Prometheus - a tragédia do fogo é, nesta escrita, revivido e retomado em suas plurais significações, encontra seus sentidos no decorrer da narrativa, de acordo com a situação de enunciação, mas se projeta nas marés vivas entre sujeito, objeto e receptor (eu que escrevo, o espetáculo teatral e você que lê). Porém, além, o canto como elemento de análise se divide nos ramos de nosso⁹ bouquet que, espero, irradiem e ecoem para além das páginas. Faço uso, também, das metáforas para exercitar o músculo da imaginação
. A afirmação Il faut muscler l’imagination de l’acteur
¹⁰, de Ariane Mnouchkine¹¹, ultrapassa o objetivo dirigido ao ator e orientar-se, aqui, ao leitor. Peço emprestada a expressão da encenadora para jogar com escrita e leitura, deixando imagens e sons ao influxo do imaginário e exercitando o maior músculo que temos.
Situo alguns lugares e movimentos por onde canto. Estamos¹² na cena teatral, em sua realidade referencial, em sua semiótica, comportando diferentes códigos e sistemas de significantes; estamos na construção de Prometheus - a tragédia do fogo, conhecendo os tijolos compositivos
; estamos no processo de criação itinerante, colaborativo, múltiplo e diverso, que resulta na cena polifônica da Cia. Teatro Balagan; estamos indissoluvelmente imbricados no fenômeno teatral; estamos em cena, na representação de um mundo possível
ficcional; estamos no universo ritual dos mitos e da natureza do próprio teatro; estamos em cena épica, lírica e dramática, onde os atores narram / cantam / atuam; e, ainda, com toda a técnica e arte de uma equipe de criação do espetáculo, vemo-nos, nós, os espectadores, a ultrapassar a cena teatral, cruzar os tempos e transcender para outros mundos imaginários.
De fato, para se encontrar o caminho da escrita, há que se propor a aprender com ele, conhecer os espaços de meu objeto e me expor nele. Há que se fazer escolhas de materiais, de linguagens, de estruturas. Mas, sobretudo, há que se ser fiel àquela primeira escuta, primeira sensação, como um primeiro sopro¹³. Deposito confiança no sentimento que pronunciei ao finalizar o espetáculo: "Prometheus! é um canto, estou em canto, encanto. Fui atravessada por essas vozes da cena. Reverberam ainda esses cantos vindos de outros tempos e lugares. E são sonoridades, falas, gritos, sopros, enunciados, murmúrios, cores, luzes, objetos, tecidos, cortinas, instrumentos, movimentos, pedras, madeiras, argila, signos/símbolos, atos narrativos, cruzamentos significantes, tudo canta na cena da Cia. Teatro Balagan. Não há separação entre corpos e vozes, vozes e palavras. Há performance. Não há separação entre poesia, narrativa e drama. Entretanto, reajo ao se falar em gênero hibrido, pois não identifico mistura de gêneros, não vejo procedimentos de adição, mas, ao contrário, reconheço um processo de subtração, de algum modo,
uma via negativa"¹⁴, de recusa.
O trabalho de criação é de afinco, de busca de uma anterioridade, de investimento no conhecimento daquilo que nos é anterior, em respeito e reverência aos que vieram antes de nós. É um voltar atrás
à apreensão da ancestralidade e assimilação da arkhé¹⁵, do som/voz/palavra/ato em seu princípio inaugural pelo qual tudo vem a ser. Por esse caminho se compreende. Por essa via se conta, se canta. Entende-se que é no devir da narrativa que o tempo recua. É um paradoxo. Na cena teatral, o canto, a narrativa que se sequencia em narrações, em direção ao futuro, remonta, ao mesmo tempo, aos primórdios, às origens dos mitos. Os vetores se opõem e seguem em direções extremas. O avanço da narrativa – e o canto é narrativa – remete ao illud tempus¹⁶, um retorno ao tempo mítico do primeiro ato, quando se dá a fundação do mundo. Nesse passado imemorial, in illo tempore¹⁷, surgem os mitos, e assim, o mito de Prometeu. A narrativa-canto inaugura uma nova ordem após a queda de Cronos e a subida de Zeus ao trono olímpico. É o começo de uma nova era, e, nesse tempo sagrado, a narrativa se dá de forma fragmentária. Os segmentos narrativos se estruturam de forma anacrônica, combinam e subvertem a ordem dos acontecimentos.
O mito de Prometeu, na trajetória dos tempos primordiais aos dias atuais, foi ficcionalizado em diferentes versões, sempre se reatualizando. Na cena, forma-se uma constelação de figuras míticas, cuja origem advém dos tempos primordiais. A história primeva é sempre retomada, através dos múltiplos relatos e obras ficcionais que configuram a constituição da condição humana
. Em Mito e realidade¹⁸, Mircea Eliade, esclarece:
[...] Essa condição tem uma história
: certos eventos decisivos tiveram lugar durante a época mítica, e foi depois deles que o homem se tornou o que é atualmente. Ora, essa história primordial, dramática e algumas vezes inclusive trágica, deve ser não só conhecida, mas também continuamente rememorada¹⁹.
A Cia. Teatro Balagan retoma o mito, rememora, traz à memória esse estado de consciência de um passado remoto que se atualiza no âmbito atemporal do contar – do cantar. Recontar é, de alguma forma, retornar – talvez, reviver – um passado. Ao recuperar uma história primordial, entra-se em contato com conteúdos e concepções arcaicas. Ao rememorar acontecimentos, os criadores da Cia Balagan²⁰ experimentam outras formas de experienciar e assimilar os desdobramentos do mito através dos tempos. Sobrepostas, múltiplas, em suas variantes semânticas, as narrativas míticas continuam vivas e atuantes em nosso imaginário. Lembro que falar em narrativa e mito é falar em canto, juntamente com seu poder de transformar o tempo concreto em tempo mítico. Na cena, as personagens/figuras míticas atuam/narram/cantam com e sobre as outras personagens, e sobre si mesmas. O passado – o naquele tempo
– passa a ser o presente aqui e agora. Nós, espectadores, também passamos deste ao outro tempo, transitamos entre os tempos, seguindo os atores e suas invocações.
A narrativa invoca o passado no futuro, projeta o futuro no presente e transforma o ator em um agente entre-tempos. Fundamentalmente nômade e capaz de se metamorfosear, a narrativa não só transita por todos gêneros teatrais, mas, ao articular temporalidades e espacialidades múltiplas, os ultrapassa²¹.
O modo de linguagem da Cia. Balagan é a narrativa. Linguagem própria construída e reconstruída em longos períodos de pesquisa. Em leitura pessoal, como um pressuposto, nomeio essa linguagem narrativa com uma denominação antiga: canto. Peço especial licença ao chamar o espetáculo de O Canto de Prometheus - uma tragédia do fogo. Na performance, reconheço uma narrativa que canta e um canto que narra. Falo como ser ouvinte, espectadora completamente implicada na ação da peça. Esse comprometimento envolve uma questão inicial da companhia frente à criação: a relação do narrador com o ouvinte. No livro Balagan: companhia de teatro a relação é explicitada: Narrar é implicar o ouvinte no ato, é algo que exige a participação do outro na construção das imagens. O narrador fala, o ouvinte imagina a partir do que ouve, completa, envolve-se, empenha-se
²².
Lembro-me da primeira escuta, ainda sinto ... os cantos – sons e palavras –, sim, o verbo canta e os sons são verbos. Inseparáveis, a voz e o verbo, assim como o corpo do ator inseparável da voz, da palavra, do canto (narrativa). Assim se dá minha percepção como receptora, espectadora de um todo orgânico. As contradições estão presentes nesse corpo/voz/ verbo do ator, um todo jamais natural, mas absolutamente orgânico e simbólico. O canto – a voz – é linguagem que pode ser ou não verbal, veículo que pode ou não conter palavras.
A Cia. Teatro Balagan faz distinção entre voz (canto/som) e verbo (palavra), ainda que esses elementos se constituam uma única matéria e sejam regidos por princípios homólogos
²³. Outrossim, sabemos que, nos domínios da palavra, do discurso, do signo verbal, não se abstêm os atributos da voz, como tom, timbre, altura, intensidade, melodia, entonação, espessura, nuances, frequências vibratórias e, a essas qualidades, somam-se o ritmo, as cadências, as rimas, figuras de linguagens. Esses aspectos, interagindo em suas infinitas possibilidades, fazem com que cada pessoa no mundo tenha a sua voz, o seu próprio canto, que o personaliza como a uma impressão digital, como um indivíduo único.
Aponto o movimento/ação que identifico ainda no título: uma leitura da poética da Cia. Teatro Balagan, em Prometheus - a tragédia do fogo. Por tratar-se de uma leitura, coloco-me a colher as imagens/sementes – ler é colher –, e, através dessa colheita, conto um olhar e canto uma escuta. Festejo toda linha escrita, consciente de que cada enunciado é sempre uma tentativa em direção ao objeto artístico. Ao focalizar um dos espetáculos em meio ao conjunto da obra, localizo, brevemente, o entorno da companhia.
A Cia. Teatro Balagan é fundada em 1999 pela encenadora pedagoga Maria Thaís Lima Santos²⁴, juntamente com Márcio Medina²⁵. No mesmo ano, a companhia estreia o primeiro espetáculo, Sacromaquia. Posteriormente, A Besta na Lua, em 2003; Tauromaquia, em 2004 e 2005; Západ – A Tragédia do Poder, em 2006. O ano de 2014 – quando celebra quinze anos de existência – culmina com dois espetáculos em cartaz: Prometheus - a tragédia do fogo e Recusa. Os festejos estendem-se com o lançamento do livro-objeto, Balagan: companhia de teatro²⁶. A realização que se segue chama-se Cabras, cabeças que voam, cabeças que rolam, cuja estreia acontece em janeiro de 2016, em São Paulo. Não podendo me ater ao conjunto da obra, dedico minha atenção à peça teatral Prometheus.
Prometheus - a tragédia do fogo estreia em outubro de 2011, cumpre várias temporadas, é contemplada com prêmios institucionais de circulação no âmbito nacional e, atualmente, faz parte do repertório da Cia. Balagan. O espetáculo recebe o Prêmio Shell de teatro, 2011, na categoria de música para Gregory Slivar, assim como as indicações na categoria figurino, para Carol Badra e Márcio Medina, e Categoria especial (Preparação Vocal) para Jean Pierre Kaletrianos. A cooperativa paulista de teatro 2011 premia Gregory Slivar e Cia. Teatro Balagan pelo projeto sonoro, Leonardo Moreira pela dramaturgia e Cia. Teatro Balagan pelo trabalho apresentado em espaços não convencionais.
O caráter inovador na cena contemporânea e a excelência artística da Balagan são amplamente reconhecidos nacionalmente, com projeções internacionais. O valor de seus projetos artísticos é digno de todo mérito, pela exemplaridade. A direção da companhia é conduzida pela encenadora pedagoga Maria Thaís Lima Santos, cuja trajetória pessoal e artística se reflete na poética e estética das obras que assina. Os atributos conferidos à encenadora, dão-na como possuidora de uma técnica joalheira
, cujas peças nunca sonegam filigranas, aprofundamento, sofisticações
. Criadora autoral, Thaís segreda sobre o projeto artístico que é comum a toda equipe de criação: Respeitamos a singularidade de cada voz, sabendo que o nosso canto será coletivo
²⁷. A Cia. Balagan apresenta-se como um núcleo de criação que reúne artistas ao redor de uma prática teatral fundada na experimentação
, dedicando-se à investigação da linguagem teatral, sempre verticalizando processos de pesquisa que resultam em aprofundamento de linguagens e temáticas próprias.
Nestas considerações iniciais, apresento lugares e movimentos por onde canta
²⁸ a companhia: a Casa Balagan. A sede do núcleo de criação garante o espaço imprescindível à pesquisa e à prática cotidiana do fazer teatral. A casa abriga, desenvolve projetos próprios e acolhe trabalhos de outros grupos. A casa compartilha, ecoa, dissemina pensamentos e conhecimentos de grandes mestres do teatro. O lugar é de convívio, experimentações, diálogos e trocas, mas, também, de artesania²⁹, de arte, de um fazer com as mãos
. É uma casa de artistas artesãos. O termo artesão atravessa tempos e geografias, e surge aqui como mote, colocando a Balagan em diálogo com Platão, Walter Benjamin e Jerzy Grotowski. Em Górgias³⁰, Cálicles, sem ter o que responder a Sócrates, escuta: Se procurares com empenho, acharás o que dizer
³¹. Ao falar de uma forma particular de manipulação do material escolhido, o discurso estende-se à arte. O homem, ao distanciar-se do acaso,
comporta-se como os demais artesãos que, sem perderem de vista o próprio trabalho, nunca reúnem por acaso o material de que se servem, mas sempre com a intenção de imprimir uma forma particular em tudo o que manipulam. É o que poderás ver nos pintores, nos arquitetos, nos construtores de navios e em qualquer outro trabalhador que entenderes, pois coloca no lugar preciso a peça de que lança mão e a obriga a justar-se e a ficar em harmonia com as mais próximas, até compor um todo bem feito e equilibrado. Isso se observa com todos os artesãos (...)³².
Em O narrador³³, Walter Benjamin disserta sobre essa figura, o artesão, que recorre à experiência como fonte de um saber que passa de pessoa a pessoa, o saber que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição
³⁴. O espírito dessa narrativa não aspira à verificação imediata nem a plausibilidade da informação e suas explicações e contextos psicológicos da ação. Ao contrário, lembra Benjamin, os relatos antigos recorriam frequentemente ao miraculoso e extraordinário, surpreendendo o leitor ouvinte com histórias e episódios detalhados de forma artesanal.
Benjamin aclara com riqueza de imagens a figura do narrador através dos seus representantes arcaicos: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. As duas famílias de narradores aperfeiçoaram a arte de narrar, aprimorando uma comunicação artesanal. A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação
³⁵. No entanto, longe de ser uma informação ou relatório, a narrativa caracteriza-se por conter impressa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso
³⁶. As famílias de narradores correm os tempos e cruzam a história. Nós os reconhecemos, sem dúvida.
Ao dissertar sobre a obra de Nikolai Leskov, Benjamin procede às considerações sobre o autor e sua narrativa como uma arte artesanal, como um ofício manual. O pensador cita o narrador russo: A literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual
³⁷. Trata-se, então, de pensar sobre os mestres da arte de narrar, desse saber do passado, segundo Benjamin, não mais cultivado, mas estranho às técnicas industriais
. Distinguimos, no ensaio, a crítica ao homem de hoje que não valoriza mais o que não pode ser abreviado, que
não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translucidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas³⁸.
Segundo Benjamin, Paul Valéry é quem melhor descreve a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador
. Um mundo onde o trabalho é feito com precisão, em procedimentos sobre a matéria, como sobre iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas
³⁹. As camadas narrativas constituídas pelas narrações sucessivas nos remetem às antigas tradições orais, aos narradores, aedos, atores rapsodos e seus ofícios do contar, do cantar epopeias, incorporando vozes em seus cantos e, esses, aos cantos ouvintes.
A narrativa poética e oral do discurso vivo é o canto – em acepção antiga do termo – que perpassa palavras e sons, em gestos e atos, em fluxos e refluxos. Não esqueçamos que, anterior à escrita, vingava a voz, o canto de narradores anônimos que faziam ecoar o que recriavam como artesania. A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada
⁴⁰, afirma Benjamin. Indo além, o autor questiona a afinidade entre o narrador e sua matéria, a própria vida humana, como uma relação artesanal.
Esta relação que coaduna o ator artesão e as matérias que compõem o universo de estudo remete a Jerzy Grotowski. No livro Em busca de um teatro pobre ⁴¹, pode-se conferir a entrevista dada a Eugênio Barba, em 1964, quando o diretor polonês fala da pesquisa que empreende e sua significação em seu trabalho:
A palavra pesquisa significa que abordamos nossa profissão mais ou menos como o entalhador medieval, que procurava recriar no seu pedaço de madeira uma forma já existente. Não trabalhamos como o artista e o cientista, mas antes como o sapateiro, que procura o