Espelhos, reflexos, reflexões
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Sobre este e-book
O autor acrescenta ao modelo Fases de Desenvolvimento da Libido, de Freud, a fase que, na sequência oral-anal-fálica-genital, mereceria o nome de fase transcendental. Apresenta-a em "Mistérios, além do mundo dos fenômenos". Nessas considerações, entende que haveria necessidade premente da verticalização da psicanálise, o que se daria por sua transcendência, fator fundamental em sua humanização.
Em "Psicose branca, excelência em malignidade devastadora", propõe a necessidade urgente de a psicanálise lançar seu olhar para a psicopatia, dada a sua destrutividade, determinante da terceira guerra mundial que estamos vivendo: a corrupção.
Em "Crises, propulsão para uma nova dimensão de mundo", o olhar do autor torna-se otimista, ao acreditar em uma constante transformação evolutiva do mundo.
Esta coletânea de textos, escritos em diferentes épocas, é expressiva de sentimentos e questionamentos do autor, flashes de sua visão de mundo.
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Espelhos, reflexos, reflexões - Luciano Marcondes Godoy
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2017 dos autores
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À minha mulher, Maria Tereza.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à enorme riqueza afetiva de meus pais, que me ensinaram a olhar a profundidade das coisas simples e a usufruir a atmosfera desses espaços, percebendo o sentido e o mistério da vida. Disso fiz minha religião e minha razão de ser.
Agradeço ao universo a possibilidade que me foi dada de enfrentamento dos labirintos e abismos de minha mente, especialmente os becos sem saída e estradas de pedras duras.
Agradeço à minha mulher, Maria Tereza, competente, paciente e inestimável colaboradora, bem como aos meus filhos, Paulo, Gustavo e Caio, e aos meus cinco netos, que constituem fontes inesgotáveis de encorajamento.
APRESENTAÇÃO
Este livro é uma caminhada pelo infinito espaço mental, mundo sem demarcações. As citações teóricas foram instrumentos auxiliares, tudo se sucedendo na natureza desértica dos espaços percorridos, num voo que primou pela liberdade. Quis este viajante deixar-se levar pelos ventos do imaginário, ora corajosamente precipitando-se em abismos, ora sendo chacoalhado por turbulências, sem saber o que ia encontrar. O estímulo desencadeador desses escritos deveu-se a inquietações e ansiedades determinantes do urge escrever
, urge expressar
. Uma espécie de tentativa de salvação, como propõe Rilke. São, portanto, oriundos do inconsciente do autor, de forças desconhecidas e incontroláveis
, as verdadeiras autoras. São textos diferentes no espaço e tempo, reminiscências que tive vontade de compartilhar com aqueles que têm afeição a deslocamentos em labirínticas e estratosféricas paragens, percurso alheio a quaisquer alinhamentos ou classificações.
Fica para mim, ao reler estes textos, uma sensação de mergulho nos profundos abismos da mente, acompanhado da impressão de ter-me aproximado dos espaços da loucura, expressando-os com tentativas de associações produzidas pela função especulativa imaginária em mim deflagrada. Ecos de vivências psicóticas transformadas em tímidos pensamentos, que procuram apontar o abismo infinito, também estão presentes. Não obstante, uma pálida intuição determinou a necessidade desse procedimento: escrever esse livro.
Uma derradeira observação faz-se necessária, com duas citações de Clarice Lispector:
Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional
(Um sopro de vida, p. 20).
Eu gosto tanto do que não entendo: quando leio uma coisa que não entendo, sinto uma vertigem doce e abismal
(Um sopro de vida, p. 36).
PREFÁCIO EM FORMA DE PRELÚDIO
"Ser ou não ser, essa é a que é a questão: Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos E, enfrentando-os, vencer? Morrer- dormir...".
Shakespeare
(2009, p. 453-454)
Em seu livro Atenção e interpretação, Bion cita um pequeno trecho de uma carta de John Keats a seu irmão, George Keats, em 21 de dezembro de 1817. Transcrevo este trecho por sua sensatez, profundidade e sabedoria.
Não tive uma disputa, mas uma conversa com Dilke, sobre vários assuntos: muitas coisas se entrelaçaram em minha mente, e logo me ocorreu que qualidade é necessária para formar o Homem de Êxito, especialmente em Literatura, e que Shakespeare possui tão largamente — quero dizer a Capacidade Negativa, isto é, quando um homem é capaz de estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer tentativa irritável de alcançar fato ou razão. (BION, 1973, p. 138)
Chamo a atenção para a afirmação de Keats de que não houve uma disputa, mas uma conversa e, numa conversa, surgem novas ideias e pensamentos discordantes que são confrontados com o conhecido; Keats ainda diz: Muitas coisas se entrelaçaram na minha mente
. Refere-se a um movimento interno sentido pelo poeta, antes de poder expressar a indagação e a ideia-solução que lhe ocorreu: a qualidade necessária para formar o homem de êxito – a capacidade negativa. Ao se associar a Shakespeare, estabeleceu um conceito. A descrição dos elementos dispersos que causaram a turbulência emocional possibilita-nos conhecer a evolução intuitiva, intrapsíquica (insight), que lhe permitiu expressar e publicar sua ideia.
A capacidade negativa é essencial para que o ser humano viva ajustado à realidade e possa ser fiel à busca, no desconhecido, do que é o psiquicamente verdadeiro. Keats retrata ainda a disciplina necessária para o desenvolvimento desse estado mental: a capacidade de estar pacientemente em incerteza, em dúvida, abstendo-se de compreensão e de racionalizações. Está implícito, nessa disciplina, o desenvolvimento da observação dos movimentos internos e das associações, que se entrelaçam para o aparecimento de algo que tenha as qualidades do que evoluiu do incognoscível ou, como diz Milton, o que surgiu do infinito vazio e informe
.
Outra qualidade psíquica importante, para se estar de acordo com o desconhecido, é a que Samuel Taylor Coleridge descreveu e denominou Suspension of Disbelief
(suspensão da incredibilidade). Coleridge sugere que, para ficarmos imersos em um texto, poético ou dramático, e captar o sortilégio da criação, é importante suspender a incredibilidade. Suspendendo o julgamento em relação ao texto de um autor que estamos lendo, sem a preocupação a respeito da veracidade ou concordância com o nosso saber, poderemos conhecer, se dermos sentido ao novo que descortinamos, algo de uma verdade que evoluiu dentro de nós. Só assim encontraremos o âmago da comunicação e, num segundo tempo, poderemos confrontá-la com o que somos: a somação de nossas experiências e do conhecimento delas resultante, armazenado no nosso existir.
O conhecimento psicanalítico surge da experiência realizada no encontro de duas pessoas que se propõem ter um maior conhecimento, não de base sensorial, mas, de acordo com Bion (1973), uma ciência de estar de acordo com o absoluto
, o desconhecido.
Na confrontação de duas versões, a do outro e a nossa, precisamos manter o nosso norte. E o norte psicanalítico é o desconhecido
, isto é, aquilo que ainda não aconteceu. A manutenção desse norte, condicionado ao impulso humano urge to exist,
(anseio para existir), depende de uma disposição psíquica que chamo de undistractibility
(um não desvio da atenção), termo cunhado por Hugh Dingle (2010). Essa disposição, cultivada pelo indivíduo disciplinadamente, favorece o aperfeiçoamento da intuição e da capacidade de exprimi-la. Num artigo anterior, mencionei que a disciplina se faz necessária na manutenção do impulso, eliminando as solicitações sensoriais prazerosas para manter a sua disposição
undistracted" (não desviada) (ALVES, 2014, p. 290). Essa finalidade maior é uma qualidade inconsciente à espera de uma realização. A vida prática e nossa inserção no mundo nos ensinam que essas disposições são adquiridas pelo aprendizado do que chamamos de processo civilizatório, que se arrastam por milhares de anos e que são culturalmente transmitidas. Como resultado, precisamos abandonar hábitos persistentes, como o desenvolvimento da capacidade para viver o transitório e uma aptidão para conter a turbulência emocional e a turbulência grupal. São condições para que a busca do desconhecido seja o caminho nessa peregrinação para se atingir mais desenvolvimento psíquico. Para o indivíduo existir.
A minha experiência de trabalho tem-me mostrado que a nossa atenção, durante a observação psicanalítica, deve estar dirigida para a captação daqueles fenômenos que têm as características da verdade psíquica, diferente daquelas que se exprimem sensorialmente, distinguindo-se a realidade psíquica não sensorial da realidade psíquica sensorial, ou, como diz Freud, discriminando o que nos é comunicado verbalmente do conteúdo que não é explicitado, mas está subentendido no que ouvimos. A captação daquilo que é o psiquicamente real se faz pelo processo intuitivo, que resulta da observação da experiência emocional, que evolui na interação do trabalho que ocorre entre as partes interessadas na investigação do oculto. De acordo com Silva (2014), a intuição é uma experiência em si e ela é inseparável da apreensão emocional da verdade psíquica. Para que essa observação se realize é necessária uma curiosidade ativa para prosseguir, aderida à direção traçada – a procura do desconhecido – apesar das acomodações, fruto dos imperativos do comodismo e da urgente busca de satisfação. W. R. Bion (1973) correlaciona esse impulso ao desejo de apreender o desconhecido – a verdade. Parte da suposição de que a verdade existe, mesmo se não a conhecemos, e postula que a consciência de sua existência é uma das experiências elementares da mente, coincidindo com o conceito de Freud da existência de um instinto para o conhecimento. Ainda, para Bion, a verdade é o alimento essencial para a mente. Numa experiência psicanalítica, frequentemente a verdade causa pasmo, temor, medo, ódio, e incrementa o aparecimento de fantasias de onipotência, onisciência e onipresença, originando a criação de teorias, explicações racionais em detrimento da experiência inefável do vir a conhecer. A verdade exige do indivíduo modéstia: aceitar que existe muita coisa além dos recursos que dispomos num determinado momento e indagar, esperar que a verdade evolua, revele-se, experimentando-a como algo transitório e inatingível, pensamentos em busca de um pensador
. Somos, então, quando possível, participantes e observadores intuitivos de uma experiência emocional vivida a dois.
Nesse processo de observar a realização de nosso desejo de conhecer, observei uma improvisação distorcida, resultante de um engano de natureza
. Esse engano se realiza quando a natureza do observado é falseada, confundindo-se a natureza do objeto de observação ou fazendo-se uma generalização do que era particular na sua origem ou, ainda, pela repetição do que está instituído, sancionado pelo establishment. Torna-se muito importante estar atento ao que chamei de diferenças de natureza, que surgem nas situações conflitivas, manifestando-se nas exposições verbalizadas ou nos problemas apresentados. Se não atentarmos a essas ocorrências, certamente chegaremos a conclusões falsas ou a verbalizações errôneas. Sem discriminação da diferença de natureza, estaremos enganados quanto à direção que daremos a nossa busca do desconhecido. Objeto da investigação psicanalítica é o desconhecido da realidade psíquica. A discriminação da diferença de natureza consiste em separar a realidade psíquica, não sensorial, da realidade psíquica sensorial, nas associações do analisando.
Frequentemente, nesses casos, aparece uma improvisação, que chamo de substituição. A substituição disfarça a inexistência, a vacância, ao fazer uma troca da investigação do oculto por uma impropriedade, na busca do psiquicamente verdadeiro. A racionalidade é um recurso muito frequente para encobrir as falhas citadas. Torna-se, então, uma substituição, em que fica encoberto o contato com os processos psíquicos e emocionais envolvidos, responsáveis pela formação dos pensamentos oníricos e no sonhar de vigília. Reduz a intuição e, como consequência, aparece uma platitude emocional em que predominam construções verbais fundamentadas no verbo fazer, substituindo o verbo ser. A racionalidade é, pois, um recurso, uma substituição, para camuflar o real contato com a apreensão da realidade psíquica.
O conteúdo do livro de Luciano Marcondes Godoy levou-me à reflexão de como se articulam as experiências de meu trabalho com as experiências de minha vida, e assim pude formular uma disciplina pessoal de captação de observações originais, que me propiciaram um aumento do conhecimento da mente humana. Neste Prelúdio
encontram-se sugestões de disciplina para uma leitura desapaixonada. O autor expõe observações próprias e articula uma compreensão pessoal do que é observado. Sugiro aos leitores deste livro desenvolver a disciplina, suspender a incredibilidade
, para uma leitura em que é esquecido tudo o que já se conhece, para poder estar imerso no conteúdo das observações, conjecturas e afirmações do autor. Assim o leitor poderá usufruir do novo, que certamente está contido neste livro, e estar sensível às evoluções que serão despertadas em sua mente, articulando desenvolvimento. Após a leitura, estará autorizado a confrontar o apreendido com o seu saber, o já conhecido, para poder avaliar o proveito das novas ideias.
Termino com uma citação de autoria de M. J. Pires: Na vida, a disciplina é o princípio da liberdade
.
Deocleciano Bendochi Alves
Analista didata do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo