Compaixão, cruz e esperança: Teologia de Marcos
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Compaixão, cruz e esperança - Ivoni Richter Reimer
Apresentação
O livro Compaixão, cruz e esperança faz parte da segunda série de Teologias Bíblicas
, da coleção Bíblia em Comunidade. Esta série tem a preocupação de mostrar as diferentes visões de Deus que transparecem nos escritos bíblicos, por meio de textos significativos e das releituras que são feitas desde o livro de Gênesis até o Apocalipse. São dezoito enfoques diferentes sobre Deus – a partir do Êxodo, da Aliança, da Graça, da Presença, dos Profetas, Sacerdotal, Sapiencial, Feminista, Rabínica, de Paulo, Marcos, Mateus, Lucas, João, da apocalíptica, da espiritualidade bíblica, da comunicação e dos escritos apócrifos.
Precede o estudo das Teologias Bíblicas
a primeira série de Visão Global da Bíblia, que apresenta, em quinze pequenos fascículos, três fios condutores: a história construída pelos seus personagens e os fatos mais significativos, o contexto geográfico em que o povo viveu e os escritos bíblicos prováveis que foram surgindo em cada período. A terceira série, Palavra: forma e sentido
, faz uma abordagem das formas literárias e dos métodos de estudo da Bíblia. Compreende uma introdução geral aos gêneros literários, estudando os gêneros narrativo, historiográfico, normativo, profético, sapiencial, poético, apocalíptico e, também, o Evangelho e epístola. Por fim, a quarta série, Recursos pedagógicos para o estudo da Bíblia
, que oferece ferramentas que auxiliam no melhor aproveitamento das três séries anteriores, a fim de tornar mais dinâmico e interessante o estudo dos conteúdos. Está pronto o primeiro volume. O estudo da Bíblia em dinâmicas: aprofundamento da Visão Global da Bíblia.
Depois de situarmos o livro Compaixão, cruz e esperança, de Ivoni Richter Reimer, na coleção a que pertence, falemos mais especificamente sobre ele. Seu título apresenta, de forma clara, simples e profunda, a centralidade da teologia do Evangelho de Marcos. Mostra como o autor desse Evangelho escreve com paixão sobre Jesus e seu movimento. A linguagem é viva, carregada de cores fortes, ao descrever não apenas a Paixão e morte de Jesus, mas também como a cruz está presente na vida de Jesus desde o início do Evangelho. Já no primeiro capítulo, ele evidencia a admiração e o espanto dos ouvintes e discípulos de Jesus com seu ensinamento. E no final, Jesus já não podia entrar publicamente numa cidade: permanecia fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo
(Mc 1,22.27.45).
As incompreensões foram crescendo ao longo de todo o Evangelho, seja da parte dos ouvintes, seja dos próprios discípulos, que não entendiam a proposta de Jesus e muito menos os anúncios sobre a sua Paixão e morte (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34). Mesmo que a cruz seja a centralidade do Evangelho, ela não é a palavra final e, sim, a ressurreição. Esta permanece como sinal de esperança a aquelas pessoas que assumiram o seu projeto, mesmo que estivessem com medo e assustadas
(Mc 16,8).
A cruz e o sofrimento fazem parte da vida humana, a questão é o modo como esta realidade é assumida. Por isso, conhecer a experiência de Jesus e dos primeiros seguidores de Jesus pode iluminar e animar o povo de Deus hoje.
O estudo e o aprofundamento da Palavra de Deus são de fundamental importância para os cristãos, de modo especial, para as pessoas que optam por uma preparação que demanda tempo e recursos, para serem multiplicadoras dessa Palavra, no ambiente em que vivem e atuam. Essas pessoas são, mesmo hoje, muitas vezes incompreendidas na sua escolha, e muitos questionam: Para que serve esse estudo? Que perda de tempo! O que você vai ganhar com isso?
.
Vale a pena perseverar neste caminho, porque ele qualifica o conhecimento bíblico e solidifica a vivência cristã, como discípulos missionários.
Romi Auth Equipe do SAB
Introdução
O Evangelho de Marcos é um presente. Nós o recebemos após longa história de transmissão, recepção e interpretação. Ele é um presente que vem acompanhado de muita história. Traz consigo marcas e fragmentos de vida de muita gente que nos precedeu na fé, no estudo e na busca de uma visão e compreensão significativas, para a vida e a organização da vivência comunitário-social.
Marcos é um presente que pode ser aberto diariamente. A escrita, as letras, as formas literárias nele contidas, foram muito bem empacotadas
por quem organizou esta obra. É preciso abrir com cuidado para ver como o tecido, o papel, as dobras e os fios se encontram cruzados, amarrados, costurados... O pacote
faz parte deste presente.
O presente é Evangelho, Boa-nova, notícia de alegria. Como tal, ele quer fortalecer a fé, renovar a esperança e acalentar o amor. Convida a olhar para trás a fim de descortinar horizontes. Desafia a ver e perceber, abrir o coração e os olhos a fim de compreender o Evangelho de Deus que se revelou em Jesus, Filho de Deus e de Maria. Este presente quer ser aceito e acolhido.
Esta acolhida se faz caminho. Nele, podemos perceber a centralidade da compaixão de Jesus em sua práxis libertadora, com pessoas nas estradas, nos campos, nas casas, sinagogas... Esta compaixão vem acompanhada de palavra, olhar, gesto, toque, abraço, autoridade, ternura e radicalidade. Ela inclui a denúncia daquilo que machuca a vida por meio de exploração, injustiça, ganância e violência. A compaixão de Jesus como revelação do amor de Deus é ruptura com todo e qualquer sistema sociocultural, político-econômico e interpretativo-teológico que gera, causa, legitima e mantém a opressão.
A compaixão é um caminho de (no mínimo) duas vias: ela transforma a vida de pessoas que necessitam de ajuda e socorro. E, simultaneamente, modifica ou ressignifica a vida de quem age com misericórdia. Cada palavra e ação geradas pela compaixão liberta do orgulho, da autossuficiência, da resignação e da apatia. Ela põe em movimento, faz levantar e, com isso, testemunhar o amor de Deus.
Este caminho de compaixão pode curar e levantar as pessoas doentes e oprimidas, transformar corações endurecidos, possibilitar conversão. Ele propõe e reivindica inversão de valores e posturas. Por isso, não é caminho de glória e de shows, mas é caminho de cruz, porque a inversão proposta esbarra em pessoas, estruturas e sistemas que têm dinâmicas e relações assimétricas de poder. Esse poder estabelecido não quer servir, mas quer ser servido e, assim, se opõe à proposta do Reino de Deus apresentado por Jesus. Por isso, o caminho da cruz e da compaixão é também caminho de solidariedade. É preciso transformar as relações de poder e de status a partir de baixo, dos pequeninos. Isso nunca foi algo fácil, mas às vezes é colocado em prática...
O Evangelho de Marcos é presente que quer ser recebido, aberto, acolhido, compreendido e vivido. Não basta apenas olhar e tentar compreender o que Jesus realizou, conforme o relato do Evangelho. É necessário colocar-se também a caminho, assim como os discípulos de Jesus, os quais deveriam fazê-lo novamente a partir da Galileia. Sempre é tempo de recomeçar e não repetir os mesmos erros, equívocos e enganos.
No estudo deste presente-Evangelho, adentramos não apenas o texto e seus significados, mas também o contexto, as possibilidades de vida, organização, movimentos de renovação, protesto e reconstrução. Histórias se fazem presentes, desafiam nossas próprias vidas e decisões. Questionam e encorajam, denunciam e acalentam. Por isso é que o Evangelho é presente. Consegue, ainda hoje, falar para nós, nossas vidas, dificuldades, alegrias e desafios. É presente para nós.
Nosso estudo e este livro foram construídos a partir dos desafios oriundos do nosso trabalho de assessoria, com muitas mulheres e muitos homens que participa(ra)m de várias atividades de assessoria, entre elas os cursos do Serviço de Animação Bíblica (SAB), das irmãs paulinas. O texto quer dar continuidade e acompanhamento a esta missão. Porém, não se atém a isso. Ao contrário, cada pessoa que estiver interessada e animada a dedicar-se ao estudo e engajamento comprometido com o Reino de Deus e quiser pesquisar e refletir sobre as origens cristãs de tal serviço, encontrará aqui auxílio e força para essa caminhada.
O processo de estudo do Evangelho de Marcos, e especificamente a teologia e sua relevância para nossas vidas, foi organizado, aqui, em onze capítulos. Os primeiros são introdutórios, no sentido de abrir reflexões e construção de conhecimentos a respeito do contexto histórico-cultural, teológico e social do movimento de Jesus, bem como da escrita dos textos do Novo Testamento e de seu processo de canonização. Os demais, que elaboram a análise do Evangelho, orientam-se pela própria estrutura do Evangelho.
Assim, no primeiro capítulo propomos uma apresentação dos textos, como resultado de vivência e memória daquilo que se experimentou e se transmitiu acerca do movimento de Jesus. Aqui buscamos reconstruir também o processo de formação de Jesus, dentro de sua realidade histórica, religiosa e social, e a sua relevância na construção do movimento de Jesus. São tecidas considerações a respeito da continuidade desse movimento que se caracteriza em seguimento a Jesus, em comunidades que buscam organizar-se após a sua morte e ressurreição.
No capítulo dois, fizemos uma introdução ao Evangelho de Marcos, buscando compreendê-lo também como gênero literário na Antiguidade. Destacamos as fontes utilizadas na sua organização e escrita, as questões de autoria, comunidade, objetivos e, por fim, expomos resumidamente a questão sinótica, importante para a análise comparativa entre os Evangelhos.
No terceiro capítulo, traçamos algumas diretrizes teológicas, que perpassam este Evangelho como eixos centrais. Elaboramos também uma estrutura detalhada de Marcos, que ajuda no caminho de análise do conteúdo.
No quarto capítulo adentramos o Evangelho, com a análise teológica específica: a porta de entrada é oferecida pela ação e pelo compromisso de João Batista: ele é quem abre o Evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus.
No quinto capítulo abrimos o primeiro grande bloco temático, acerca do ministério de Jesus na Galileia, sendo que é proposto, aqui, conhecer melhor a casa e a missão dele, destacando como primeira prioridade o caminho de Jesus e o seu grupo que começa a se formar: proclamar, curar, ensinar e confrontar-se com reações negativas.
Caminhando com Jesus e seu grupo pela Galileia e regiões circunvizinhas, no sexto capítulo observamos a práxis libertadora dele, que se expressa em ensinos polêmicos. Tratamos de analisar a segunda grande prioridade colocada no Evangelho, que é demonstrar processos de adesão e rejeição a seu ensino.
No sétimo capítulo aprofundamos o estudo da teologia presente na terceira grande prioridade do movimento de Jesus, que é profundamente real e simbólica, propondo-se a atravessar e vencer o mar! Ressaltamos a organização do grupo e os desafios que se vão impondo também a partir do palácio. Curas, ensino e incompreensão marcam essa parte do Evangelho.
Nos três blocos temáticos acerca das prioridades da práxis libertadora de Jesus, tratados nos capítulos cinco, seis e sete, percebemos que essa práxis estava centrada no conhecimento das Escrituras e na compaixão que motivava Jesus na ação de curar, ensinar e formar um grupo comprometido com o projeto de justiça do Reino de Deus.
O capítulo oito abre-nos a segunda grande parte do Evangelho e nos conduz a trilhar, com Jesus e seu grupo, o árduo caminho a Jerusalém e, ali e nos arredores, nos desafia a conhecer e acolher o caminho da cruz. Isso só é possível pelo processo de abertura de olhos que fazemos ao caminhar com Jesus, a fim de que possamos compreender as implicações desse caminho que abrange, também aqui, cura, ensino e polêmicas.
No nono capítulo destacamos as consequências do processo de abertura dos olhos: é necessário seguirmos para renovar a fé e a esperança. A caminhada conduz o grupo a entrar juntamente com Jesus em Jerusalém e ali, entre orações e polêmicas, percebemos a profundidade do amor de Deus em Jesus, que apela para a perseverança em tempos de ameaças, sofrimentos e perseguição.
No capítulo dez fazemos uma análise da teologia da cruz do Evangelho. Propomos uma interpretação teológica, que revela a significação política da paixão e morte de Jesus. Nesse contexto, as mulheres assumem lugares relevantes na história como seguidoras, discípulas fiéis, testemunhas, anunciadoras, apóstolas. Nesse capítulo, elaboramos igualmente a análise e a reflexão acerca da ressurreição de Jesus e do protagonismo das mulheres discípulas que se tornaram, então, apóstolas do ressurrecto no anúncio da Boa-nova de que a vida venceu a morte. Reorganizar se fez e se faz necessário. Desistir mata a esperança e anuvia a práxis libertadora baseada na compaixão de Deus e das pessoas. É necessário recomeçarmos com esperança, porque ela é capaz de dar novo sentido à vida, em meio a tantos sinais que esbravejam medo, desânimo, silêncio...
Em continuidade, no capítulo onze apresentamos o final do Evangelho de Marcos, sua história literária e seu significado teológico para a história da Igreja: sempre é tempo de retornar às origens para recomeçar e reconstruir criativamente.
Desejamos que o texto bíblico, juntamente com este comentário exegético-teológico, contribua para nossos processos de abertura da visão
na atualidade. E também que nos encoraje ao enfrentamento de tantos desafios, que clamam por nossa atuação cristã nesse nosso tempo, que é tempo kairológico, tempo oportuno de salvação.
Ivoni Richter Reimer
Capítulo 1
Introdução aos Evangelhos e seu contexto histórico-social
Queremos adentrar o tema, sua teologia e interpretação por meio de uma dinâmica que nos ajude a abrir os olhos
para o texto e seu conteúdo dentro de seu contexto. Percebemos que existem várias portas ou janelas de entrada nesse texto; nós optamos pela memória da experiência transformadora que algumas pessoas tiveram com Jesus e transmitiram para outras pessoas, gerações. Propomo-nos a entender como foi o processo de construção desse Evangelho, que movimentou muitas pessoas nos primeiros tempos e continua nos colocando em movimento.
1.1. Processos de desenvolvimento: evento, memória, texto e interpretação
Todos os textos do Segundo Testamento testemunham a respeito da fé de pessoas e comunidades em Jesus Cristo, dentro de seus contextos e realidades específicos. Esta fé é a certeza e a confiança de que, em Jesus, Deus cumpre suas promessas anunciadas por profetas que apontavam para o Messias justo e salvador. Pessoas e grupos conheceram Jesus e sua práxis¹ libertadora; reconheceram ser ele o Messias anunciado e esperado por tanto tempo, na história do povo judeu e samaritano.
Os textos do Segundo Testamento falam deste Jesus, por meio da fé vivida e testemunhada por pessoas e comunidades durante anos e décadas. Primeiro aconteceu a vivência, o confronto, a aceitação ou rejeição da Boa-nova; depois veio o processo de transmitir, selecionar e organizar essa experiência para as próximas gerações. Em primeiro lugar, portanto, trata-se do tempo em que Jesus de Nazaré nasceu, cresceu e viveu junto e no meio de seu povo, nas periferias, nos centros, nas aldeias e cidades, no templo, na sinagoga, na casa, nas praças e ruas, montanhas e vales... Era o tempo da Palavra que se fez carne e habitou entre nós, o princípio do Evangelho de Deus vivido na pessoa de Jesus (1,1).
Educação de Jesus no seio da família
Jesus foi educado no seio de sua família nazarena. Desse modo, também foi introduzido nos costumes e práticas rituais de seu povo, participando ativamente das reuniões e celebrações na sinagoga ou no Templo: aprendeu a conhecer e estudar a Torá, o Livro Sagrado para judeus e samaritanos; começou a perceber e a vivenciar as alegrias e sofrimentos de seu povo; sabia como as famílias eram constituídas, notava a dinâmica do mercado, por meio das atividades agrícolas e manufatureiras de sua região na Galileia (localizada ao norte de Israel), assim como da coleta dos impostos, das taxas alfandegárias. Conhecia pessoas que manifestavam as mais diferentes doenças e via como eram marginalizadas e culpabilizadas por causa disso – tinha conhecimento da discriminação destas pessoas bem como das mulheres, crianças, pessoas estrangeiras; preparava-se para participar dos rituais religiosos diários e semanais e se alegrava quando, com seu clã, subia a Jerusalém para as grandes festas de seu povo...
Como sua gente, Jesus também percebia e vivenciava situações de alegria e angústias, preocupações e dúvidas. Como seu povo e, a partir de suas tradições bíblicas de libertação, certamente ele refletia e conversava com seus familiares e amigos a respeito de como e o que poderia ser feito para viver ou transformar as situações e condições de vida e/ou morte que faziam parte de sua cultura ou que lhes eram impostas por sistemas de dominação externos.
Assim, os textos do Segundo Testamento nos revelam Jesus dentro da vida e das realidades cotidianas e especiais de seu povo, desde a gravidez de sua mãe Maria. Ele era membro de seu povo, judeu praticante e observador da Torá e de seus mandamentos, como tantos outros meninos, rapazes e homens de seu tempo, com quem conversava e discutia sobre as possíveis interpretações da Lei. Sua identidade era, portanto,