Como ser um idiota
De Sílvio Pilau
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Como ser um idiota - Sílvio Pilau
2016
1
Tendo amigos do peito
Durante um bom tempo da adolescência e da vida adulta, tive um único pelo no peito. Era um pelo ermitão, um fio solitário, que por anos viveu triste e sem companhia em meu deserto torácico. Talvez ansiando por algum contato que aquecesse sua triste existência, situava-se junto ao meu mamilo direito, aninhando-se a ele em noites frias.
Foram anos de agruras isoladas até que, finalmente, ganhou um companheiro. Tímida e lentamente, outro pelo começou a surgir em meu mamilo esquerdo. Era o segundo morador daquela vastidão peitoral. Sedentos por companhia, prestes a entrar em depressão, eles descobriram um jeito de se encontrar: crescendo inexoravelmente. Ambos se desenvolveram. Estenderam-se. E, por fim, chegaram a um comprimento suficiente para que pudessem se tocar.
Visando aplacar a solidão de Carlos e Jeremias (sim, ambos já haviam sido batizados), eu os amarrava de vez em quando, formando um laço em meu peito. Eram longos pelos, isolados pelos, mas pelos felizes. Satisfeitos com suas vidas. Por alguma razão, no entanto, causavam repulsa na maioria das pessoas que os viam.
– Mas por que você não arranca isso? – perguntavam os infiéis, incapazes de compreender.
– Jamais faria isso – eu respondia. – Carlos e Jeremias são de estimação. São os únicos pelos do meu peito. E hoje são grandes e inseparáveis amigos.
Mas o destino tem a sua própria agenda, e ela muitas vezes é indiferente a nós.
Certo dia, ao colocar uma camisa após acordar, tomei um choque. Carlos não estava mais em seu lugar. Procurei por toda a cama. Revirei lençóis, fucei roupas, até enfiei minha mão dentro do ralo do chuveiro. Nada. Carlos havia partido, deixando Jeremias desamparado.
Chorei. Chorei como se tivesse perdido um companheiro, como se nunca mais fosse ver um familiar. Mas chorei, principalmente, por Jeremias. Sabia o quanto ele sofreria sendo o único pelo em meu peito. Sabia que sua vida, longe do inseparável amigo Carlos, seria uma vida de dores. Uma vida com prazo de validade. E eu não poderia estar mais certo.
Jeremias faleceu em uma noite gelada de julho. Sentindo-se preso para toda a eternidade a uma vida solitária, libertou-se de minha pele em um salto fatal. Seu ato suicida, seu pulo em direção ao abismo centímetros abaixo, parecia ter sido pensado e refletido à exaustão. A saudade de Carlos tinha sido maior que a força de viver.
Dei a Jeremias a despedida que ele merecia. Coloquei-o em uma pequena caixa de fósforos, recitei uma curta elegia e enterrei-o em meu quintal, sob uma lápide que dizia: Aqui jaz Jeremias, um fio de luz em nossas vidas
.
Levei dias para superar o luto. Olhava-me nu em frente ao espelho e via, novamente, o deserto em meu peito. Lágrimas brotavam sem que eu pudesse contê-las. Mas sobrevivi. E, após superar o luto, segui em frente. Houve dias em que lembrava da dupla de pelos em meu tórax, mas era uma lembrança nostálgica. Rememorava os grandes momentos que passamos juntos com alegria, e não mais tristeza.
Até que, quando eu já aceitava o fato de ter para sempre um peito desnudo, veio a surpresa. Nasceu um pelo. Depois outro. E mais outro. Em poucos dias, oito deles brotaram. Eram pequenos, porém. Não tinham a elegância longilínea e a fidalguia de Carlos e Jeremias. Pareciam diferentes. Pareciam... filhotes.
Foi quando percebi: meus antigos companheiros não eram Carlos e Jeremias, mas Carlos e Jurema. Não eram amigos, mas um casal. E haviam deixado a sua prole aos meus cuidados, adornando meu nada definido peitoral.
Quando percebi isso, chorei mais uma vez. E prometi, sobre o túmulo de Jurema e em memória do corpo desaparecido de Carlos, cuidar e amar seus filhos como os únicos pelos em meu peito.
O que, em essência, eram.
2
Sobrevivendo a longas reuniões
Em certo período de minha existência neste tempo e espaço, trabalhei em uma empresa na qual um dos banheiros ficava junto a uma sala de reuniões. Para chegar a ele, ou voltar de lá após executar certos afazeres naturais, era preciso passar pelo ambiente onde se realizam encontros com clientes, fornecedores e demais visitas.
No início de uma tarde de janeiro, após orgias gastronômicas no horário reservado ao almoço, com o estômago pedindo clemência pelos incontáveis pedaços de carne de churrasco que teria de digerir, fui chamado pela mãe natureza. Ouvi, nitidamente, a sua melíflua voz, seduzindo-me, tal qual uma sereia cantando maliciosamente para incautos piratas, a sair correndo para ir aos pés. Apressado, já no limite do que poderia conter, dirigi-me ao banheiro mais próximo.
Era o já referido e hoje amaldiçoado banheiro da sala de reuniões.
Foi um grande erro.
Vinte e dois minutos após o início dos movimentos operacionais do intestino, sentado sobre o trono como um rei de tempos distintos, escutei o som de uma porta se abrindo e de passos se aproximando. Arregalei os olhos. Parei de curtir as fotos no Instagram. Pensei: Não, não pode ser. Agora, não
.
Mas era. Havia uma reunião marcada exatamente para aquele horário.
– Esta é a nossa sala de reuniões – eu conseguia ouvir meu chefe dizendo às visitas. Podia ouvi-los claramente. – Fiquem à vontade.
Logo percebi: eu estava condenado. Tratava-se de uma reunião sobre um projeto grande, envolvendo nove ou dez pessoas, que provavelmente duraria horas. Para piorar, tratava-se de uma reunião da qual eu deveria estar participando. Na premente necessidade de atender meus fatores corporais, havia esquecido completamente do encontro. Estava ali, trancado ao lado deles, em um recinto de dois metros quadrados, sentado à privada, com a mente dominada pelas dúvidas.