Lira dos vinte anos
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Lira dos vinte anos - Álvares de Azevedo
À MINHA MÃE
Se a terra é adorada, a mãe não é mais digna de veneração?
Digest of hindu law.
Como as flores de uma árvore silvestre
Se esfolham sobre a leiva que deu vida
A seus ramos sem fruto,
Ó minha doce mãe, sobre teu seio
Deixa que dessa pálida coroa
Das minhas fantasias
Eu desfolhe também, frias, sem cheiro,
Flores da minha vida, murchas flores
Que só orvalha o pranto!
PRIMEIRA PARTE
No Mar
Les étoiles s’allument au ciel, et la brise du soir erre doucement parmi les fleurs: rêvez, chantez et soupirez.
George Sand
Era de noite: — dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração,
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!
Ah! Que véu de palidez
Da langue face na tez!
Como teus seios revoltos
Te palpitavam sonhando!
Como eu cismava beijando
Teus negros cabelos soltos!
Sonhavas? — eu não dormia;
A minh’alma se embebia
Em tua alma pensativa!
E tremias, bela amante,
A meus beijos, semelhante
Às folhas da sensitiva!
E que noite! Que luar!
E que ardentias no mar!
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!
Minha rola, ó minha flor,
Ó madressilva de amor,
Como eras saudosa então!
Como pálida sorrias
E no meu peito dormias
Aos ais do meu coração!
E que noite! Que luar!
Como a brisa a soluçar
Se desmaiava de amor!
Como toda evaporava
Perfumes que respirava
Nas laranjeiras em flor!
Suspiravas? Que suspiro!
Ai que ainda me deliro
Entrevendo a imagem tua
Ao fresco da viração,
Aos ais do meu coração,
Embalada na falua!
Como virgem que desmaia,
Dormia a onda na praia!
Tua alma de sonhos cheia
Era tão pura, dormente,
Como a vaga transparente
Sobre seu leito de areia!
Era de noite — dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração.
Sonhando
Hier, la nuit d’été, que nous prêtait ses voiles,
Était digne de toi, tant elle avait d’étoiles!
Victor Hugo
Na praia deserta que a lua branqueia,
Que mimo! Que rosa! Que filha de Deus!
Tão pálida... Ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
A praia é tão longa! E a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma...
De noite, aos serenos, a areia é tão fria...
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia...
Não corras assim...
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
A brisa teus negros cabelos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor,
Teus seios palpitam — a brisa os roçou,
Beijou-os, suspira, desmaia de amor!
Teu pé tropeçou...
Não corras assim...
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
E o pálido mimo da minha paixão
Num longo soluço tremeu e parou,
Sentou-se na praia, sozinha no chão,
A mão regelada no colo pousou!
Que tens, coração
Que tremes assim?
Cansaste, donzela?
Tem pena de mim!
Deitou-se na areia que a vaga molhou.
Imóvel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o sono fechou
E nem o seu colo de neve tremia...
O seio gelou?...
Não durmas assim!
O pálida fria,
Tem pena de mim!
Dormia: — na fronte que níveo suar...
Que mão regelada no lânguido peito...
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gélido leito!
Nem um ressonar...
Não durmas assim...
O pálida fria,
Tem pena de mim!
Aqui no meu peito vem antes sonhar
Nos longos suspiros do meu coração:
Eu quero em meus lábios teu seio aquentar,
Teu colo, essas faces, e a gélida mão...
Não durmas no mar!
Não durmas assim.
Estátua sem vida,
Tem pena de mim!
E a vaga crescia seu corpo banhando,
As cândidas formas movendo de leve!
E eu vi-a suave nas águas boiando
Com soltos cabelos nas roupas de neve!
Nas vagas sonhando
Não durmas assim...
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
E a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava tão branca no límpido véu...
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas águas do mar
Não durmas assim...
Não morras, donzela,
Espera por mim!
Cismar
Fala-me, anjo de luz! És glorioso
À minha vista na janela à noite
Como divino alado mensageiro
Ao ebrioso olhar dos frouxos olhos
Do homem, que se ajoelha para vê-lo,
Quando resvala em preguiçosas nuvens,
Ou navega no seio do ar da noite.
Romeu
Ai! Quando de noite, sozinha à janela
Co’a face na mão te vejo ao luar,
Por que, suspirando, tu sonhas, donzela?
A noite vai bela,
E a vista desmaia
Ao longe na praia
Do mar!
Por quem essa lágrima orvalha-te os dedos,
Como água da chuva cheiroso jasmim?
Na cisma que anjinho te conta segredos?
Que pálidos medos?
Suave morena,
Acaso tens pena
De mim?
Donzela sombria, na brisa não sentes
A dor que um suspiro em meus lábios tremeu?
E a noite, que inspira no seio dos entes
Os sonhos ardentes,
Não diz-te que a voz
Que fala-te a sós
Sou eu?
Acorda! Não durmas da cisma no véu!
Amemos, vivamos, que amor é sonhar!
Um beijo, donzela! Não ouves? No céu
A brisa gemeu...
As vagas murmuraram...
As folhas sussurram:
Amar!
Ai Jesus!
Ai Jesus! Não vês que gemo,
Que desmaio de paixão
Pelos teus olhos azuis?
Que empalideço, que tremo,
Que me expira o coração?
Ai Jesus!
Que por um olhar, donzela,
Eu poderia morrer
Dos teus olhos pela luz?
Que morte! Que morte bela!
Antes seria viver!
Ai Jesus!
Que por um beijo perdido
Eu de gozo morreria
Em teus níveos seios nus?
Que no oceano dum gemido
Minh’alma se afogaria?
Ai Jesus!
Anjinho
And from her fair and unpolluted flesch
May violets spring!
Hamlet
Não chorem... Que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!
Pobre criança! Dormia:
A beleza reluzia
No carmim da face dela!
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam!...
Ai meu Deus! Era tão bela.
Um anjo d’asas azuis,
Todo vestido de luz,
Sussurrou-lhe num segredo
Os mistérios doutra vida!
E a criança adormecida
Sorria de se ir tão cedo!
Tão cedo! Que ainda o mundo
O lábio visguento, imundo,
Lhe não passara na roupa!
Que só o vento do céu
Batia do barco seu
As velas d’ouro da poupa!
Tão cedo! Que o vestuário
Levou do anjo solitário
Que velava seu dormir!
Que lhe beijava risonho
E essa florzinha no sonho
Toda orvalhava no abrir!
Não chorem! Lembro-me ainda
Como a criança era linda
No fresco da facezinha!
Com seus lábios azulados,
Com os seus olhos vidrados
Como de morta andorinha!
Pobrezinho! O que sofreu!
Como convulso tremeu
Na febre dessa agonia!
Nem gemia o anjo lindo,
Só os olhos expandindo
Olhar alguém parecia!
Era um canto de esperança
Que embalava essa criança?
Alguma estrela perdida,
Do céu c’roada donzela...
Toda a chorar-se por ela
Que a chamava doutra vida?
Não chorem... Que não morreu!
Que era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!
Era uma alma que dormia
Da noite na ventania
E que uma fada acordou!
Era uma flor de palmeira
Na sua manhã primeira
Que um céu d’inverno murchou!
Não chorem! Abandonada
Pela rosa perfumada,
Tendo no lábio um sorriso,
Ela se foi mergulhar
— Como pérola no mar —
Nos sonhos do paraíso!
Não chorem! Chora o jardim
Quando marchado o jasmim
Sobre o seio lhe pendeu?
E pranteia a noite bela
Pelo astro ou a donzela
Mortos na terra ou no céu?
Choram as flores no afã
Quando a ave da manhã
Estremece, cai, esfria?
Chora a onda quando vê
A boiar uma irerê
Morta ao sol do meio-dia?
Não chorem!... Que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!
Anjos do Mar
As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d’escuma revolvem-se nus!
E quando, de noite, vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear...
E a trança luzente da nuvem flutua...
As ondas são anjos que dormem no mar!
Que dormem, que sonham... E o vento dos céus
Vem tépido, à noite, nos seios beijar!...
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!
E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar...
São beijos que queimam... E as noites deliram
E os pobres anjinhos estão a chorar!
Ai! Quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar...
Por que não consentes, num beijo de amor,
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?
Tenho Um Seio Que Delira
I
Tenho um seio que delira
Como as tuas harmonias!
Que treme quando suspira,
Que geme como gemias!
II
Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!
III
Tenho cordas argentinas
Que a noite faz acordar,
Como as nuvens peregrinas
Das gaivotas do alto mar!
IV
Como a teus dedos lindinhos
O teu piano gemer,
Vibra-me o seio aos dedinhos
Dos anjos louros do céu!
V
Vibra à noite no mistério
Se o banha o frouxo luar,
Se passa teu rosto aéreo
No vaporoso sonhar!
VI
Como tremem teus dedinhos
O saudoso piano teu,
Vibram-me n’alma os anjinhos,
Os anjos loiros do céu!
A Cantiga do Sertanejo
Love me, and leave me not.
Shakespeare, Merch. Of Venice
Donzela! Se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração:
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!...
Se tu viesses comigo
Das serras