Mestres do Terror
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Mestres do Terror - H. P. Lovecraft
Esta é uma publicação Principis, selo exclusivo da Ciranda Cultural
Editora e Distribuidora Ltda.
© 2019 Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.
Produção: Ciranda Cultural
Tradução: Silvio Antunha
Projeto gráfico e revisão: Casa de Ideias
Ebook: Jarbas C. Cerino
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
S847m Stevenson, Robert Louis, 1850-1894
O médico e o monstro [recurso eletrônico] / Robert Louis Stevenson ; traduzido por Silvio Antunha. - Jandira, SP : Principis, 2020.
96 p. ; ePUB ; 2,5 MB. – (Literatura Clássica Mundial)
Tradução de: The strange case of Dr Jekyll and Mr Hyde
Inclui índice. ISBN: 978-65-5552-049-1 (Ebook)
1. Literatura inglesa. 2. Ficção. I. Antunha, Silvio. II. Título. III. Série.
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura inglesa : Ficção 823.91
2. Literatura inglesa : Ficção 821.111-3
1a edição em 2020
www.cirandacultural.com.br
Todos os direitos reservados.
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1.
A história da porta
O sr. Utterson, advogado, era um homem sisudo que nunca sorria; frio, comedido e envergonhado na hora de falar; retraído nos sentimentos; também alto, magro, grisalho e tristonho. Apesar disso, ainda conseguia ser uma pessoa amável. Nos encontros com amigos e quando o vinho era de seu agrado, alguma coisa eminentemente humana brilhava em seus olhos; na verdade, era algo que jamais o acompanhava na conversa. Transparecia, em vez disso, não somente nos sinais silenciosos de seu rosto após o jantar, mas, com maior frequência e com maior vulto, nas atitudes de sua vida. Era austero consigo mesmo; bebia gim quando estava sozinho para testar o sabor das diferentes safras; e, embora gostasse de teatro, não passava pelas portas de um deles havia mais de vinte anos. Contudo, possuía comprovada tolerância com os outros, às vezes surpreendendo-se, quase sentindo inveja, da alta pressão dos ânimos envolvidos nas maldades dessas pessoas. E, em situações extremas, ele era mais inclinado a ajudar que a reprovar.
Tenho um pendor pela heresia de Caim
, ele costumava dizer. Deixo meu irmão se entregar ao diabo de forma peculiar: ‘por conta própria’.
Por causa desse temperamento, não raro era seu destino ser o último conhecido respeitável e a última boa influência na vida de homens desregrados. E para gente assim, tão logo chegavam a seu escritório, ele jamais demostrava a menor sombra de mudança em sua conduta.
Sem dúvida era algo fácil para o sr. Utterson, pois, na melhor das hipóteses, ele era pouco comunicativo e até sua amizade parecia se basear na mesma generosa boa índole. É característica do homem modesto aceitar em seu círculo as amizades preparadas pelas mãos da oportunidade, e esse era o jeito do advogado. Seus amigos eram parentes, gente do próprio sangue, ou pessoas que ele conhecia havia muito tempo. Seus relacionamentos afetivos, como as folhinhas de hera, desenvolviam-se com o tempo, não implicavam nenhuma aptidão do sr. Utterson em cultivá-los. Daí, sem dúvida, o laço que o unia ao sr. Richard Enfield, um parente distante, homem bom conhecedor da cidade. Para muitos, era difícil entender o que esses dois tinham a ver um com o outro, ou quais interesses poderiam compartilhar. Pessoas que os encontravam em sua caminhada aos domingos relatavam que eles não diziam nada, pareciam singularmente entediados e saudavam, obviamente com alívio, o aparecimento de algum amigo. Apesar de tudo, os dois homens atribuíam a maior importância a essas excursões, colocando-as como o momento mais precioso de cada semana e não como meras e eventuais ocasiões de prazer, pois resistiam inclusive a convites de negócios, para que pudessem
desfrutá-las sem interrupções.
Acontece que, num desses passeios, eles se encaminharam para uma viela num movimentado bairro de Londres. Era uma rua pequena, que podia ser considerada tranquila, embora sediasse um comércio próspero nos dias úteis. Pelo que parecia, todos os moradores estavam se saindo bem, todos se rivalizavam na esperança de se sair ainda
melhor e investiam o excedente de seus ganhos em embelezamento, de modo que a fachada das lojas se mostrasse com ar convidativo ao longo da via, como se fossem fileiras de vendedoras sorridentes. Mesmo aos domingos, quando revelava seus encantos mais floridos e ficava com a passagem vazia, a rua brilhava em contraste com o bairro sujo, tal como o fogo numa floresta. E com suas persianas recém-pintadas, os metais bem polidos, a limpeza geral e a alegria digna de nota, instantaneamente captava e agradava o olhar dos transeuntes.
Duas portas depois de uma esquina, na mão esquerda indo para o leste, a linha era quebrada pela entrada de um pátio. Bem nesse ponto, o bloco de uma certa construção sinistra empurrava seu frontispício por cima da rua. Tinha dois andares de altura, não mostrava nenhuma janela e nada além de uma porta no andar inferior, com um frontão cego de parede desbotado na parte superior, carregando em cada detalhe as marcas de uma negligência prolongada e sórdida. A porta, não equipada nem com campainha nem com aldrava, era descorada e cheia de bolhas. Vagabundos encostavam-se no recuo e acendiam fósforos nos batentes. Crianças colocavam coisas nos degraus, um estudante testava sua faca nos umbrais e fazia quase uma geração que ninguém aparecia para afastar esses visitantes aleatórios ou para consertar os estragos causados por eles.
O sr. Enfield e o advogado estavam do outro lado da viela, mas, quando ficaram de frente para a entrada, o primeiro ergueu a bengala e apontou.
– Já reparou naquela porta? – perguntou. Quando o companheiro respondeu afirmativamente, ele acrescentou: – Está conectada em minha mente com uma história muito esquisita.
– É mesmo? – estranhou o sr. Utterson, com uma ligeira mudança de voz. – Como assim?
– Bem, foi o seguinte – respondeu Enfield. – Eu voltava de alguma parte do fim do mundo, lá pelas três horas de uma madrugada de inverno rigoroso. Meu caminho passava por uma parte da cidade onde não havia nada a ser visto além de lâmpadas. Rua após rua, e todas as pessoas dormiam – rua após rua, todas iluminadas como se para uma procissão e tão vazias quanto uma igreja –, até que finalmente entrei naquele estado de espírito em que o homem escuta, escuta e começa a sentir vontade de avistar um policial. De repente, vi duas figuras: uma de um homenzinho que andava apressado para o leste, e a outra de uma menina de oito ou talvez dez anos de idade, que corria o máximo que podia por uma rua transversal. Muito bem, senhor, ambos acabaram se trombando quase que naturalmente na esquina. E então veio a parte horrível da coisa: o homem pisoteou calmamente o corpo da criança e deixou-a gritando no chão. Não dava para ouvir nada, mas era infernal de ver. Ele não parecia um homem, era mais como uma maldita carroça. Dei uma olhada, corri, agarrei o cavalheiro e o trouxe de volta para o local em que já havia um grupo reunido onde a criança gritava. Ele foi completamente frio e não ofereceu nenhuma resistência, mas olhou para mim com uma cara tão feia que me fez suar como se estivesse correndo. As pessoas que tinham chegado eram da própria família da garota. E, num curto espaço de tempo, o médico, a quem foi encaminhada, apareceu. Bem, a criança não estava mal, foi mais um susto, de acordo com os Sawbones. E, então, você deve ter suposto que tudo terminou assim, mas havia uma circunstância curiosa. Fiquei tomado de rancor pelo cavalheiro à primeira vista, assim como a família da criança, o que era simplesmente natural, mas foi o caso do médico o que me surpreendeu. Ele era um típico boticário, sem faixa etária ou cor da pele identificável, com forte sotaque de Edimburgo e tão emotivo quanto uma gaita de foles. Bem, senhor, ele era como qualquer um de nós. Cada vez que ele olhava para o meu prisioneiro, eu via aquele Sawbones ficar doente e pálido de vontade de matá-lo. Eu sabia o que se passava na mente dele, assim como ele sabia o que se passava na minha. E, como matar estava fora de questão, fizemos nosso melhor papel. Dissemos ao homem que podíamos e faríamos um tal escândalo a respeito disso, que o nome dele ficaria emporcalhado de um lado a outro de Londres. Se ele tivesse algum amigo ou algum crédito, garantiríamos que ele haveria de perdê-los. E o tempo todo, enquanto o lançávamos no caldeirão fervente, mantivemos as mulheres afastadas dele o quanto pudemos, pois eram enfurecidas como harpias. Nunca vi um círculo de rostos com tanto ódio. E lá estava o homem no meio, com uma espécie de frieza obscura e sarcástica. Eu podia perceber que ele estava assustado; mas, tirando isso, senhor, realmente ele parecia Satanás. Se vocês optarem por levar esse acidente às últimas consequências
, ele disse, é claro que estarei perdido. Nenhum cavalheiro, mais do que eu, deseja evitar uma cena
, ele acrescentou. Digam quanto vão querer de indenização.
Bem, exigimos cem libras dele para a família da criança. Ele claramente gostaria de dar o fora. Para nós, em tudo aquilo havia algo que cheirava a maldade. Por fim ele cedeu. O passo seguinte seria pegar o dinheiro. E onde você acha que ele nos levou, senão àquele lugar com a porta? Ele sacou uma chave e entrou. Em seguida, voltou com cerca de dez libras em ouro e um cheque do banco Coutts para o saldo restante, a ser pago ao portador, assinado com um nome que não posso mencionar, embora seja esse um dos pontos fortes da minha história; mas, enfim, pelo menos era um nome muito conhecido e muitas vezes publicado. A caligrafia dos números era grosseira, mas a assinatura era bem-feita demais para ser legítima. Tomei a liberdade de dizer ao cavalheiro que todo aquele negócio parecia apócrifo e que, na verdade, um homem não entrava pela porta de um porão às quatro da manhã e saía com um cheque de quase cem libras de outro homem, mas ele estava muito à vontade e zombou: Calma, vou ficar com vocês até o banco abrir e pagar o cheque
. Assim, todos nós nos juntamos: eu, o médico, o pai da criança, o nosso amigo, e passamos o resto da noite no meu escritório. No dia seguinte, após o desjejum, fomos em grupo até o banco. Eu pessoalmente descontei o cheque, dizendo que tinha todos os motivos para acreditar ser uma falsificação. Nada disso, o cheque era legítimo.
– Puxa vida! – exclamou o sr. Utterson.
– Vejo que se sente como eu – disse o sr. Enfield. – Sim, é uma história ruim, pois o meu cavalheiro era um sujeito que não tinha nada a ver com ninguém, era um homem realmente condenável, e a pessoa que assinou o cheque é o verdadeiro dono dos bens, também muito conhecido, um daqueles companheiros (o que é muito pior) que praticam o que chamam de caridade. É chantagem, acredito, algum homem honesto atolado até o nariz, que paga por alguma estripulia da juventude. Portanto, é de Casa do Chantagista que eu chamo o lugar com essa porta. Mesmo assim, como você sabe, isso está longe de explicar tudo – ele acrescentou.
Com essas palavras, ele entrou num ciclo de reflexão e só voltou à tona quando o sr. Utterson lhe perguntou de repente:
– Sabe se a escrivaninha onde ele guarda o cheque fica lá?
– Seria um lugar provável, não é? – respondeu o sr. Enfield. – Mas ele mora numa praça aqui perto e por acaso anotei seu endereço.
– E você nunca perguntou sobre… o local dessa porta? – indagou o sr. Utterson.
– Não, senhor, eu tive esse pudor – foi a resposta. – Eu me sinto muito mal em levantar questionamentos. É como fazer parte de algo bem ao estilo do dia do juízo final. Quando você faz uma pergunta, é como se atirasse uma pedra. Está sentado calmamente no alto do morro, atira uma pedra e depois outra. Então, um vizinho muito velho e sem graça (a última pessoa do mundo em quem você pensaria) é atingido na cabeça no próprio quintal da casa dele, e a sua família tem que mudar de nome. Não, senhor, eu faço disso uma regra minha: quanto mais parecida for com a Queer Street (a rua Estranha), menos perguntas eu faço.
– Certamente uma regra muito boa – elogiou o advogado.
– Mas estudei o lugar por conta própria – continuou o sr. Enfield. – Quase nem parece uma casa, não existe outra porta e ninguém entra ou sai de lá, a não ser o cavalheiro da minha aventura, de vez em quando. O local possui três janelas que dão para o pátio no primeiro andar, sem nenhuma embaixo. As janelas estão sempre fechadas, mas são limpas. E há uma chaminé que geralmente está fumegando, por isso alguém deve morar lá. Mas não é certeza, pois as construções são tão grudadas com esse pátio que é difícil dizer onde uma propriedade termina e onde começa a outra.
Os dois caminharam novamente por um tempo em silêncio e então:
– Enfield – disse o sr. Utterson –, essa sua regra é muito boa.
– Sim, acho que sim – retrucou Enfield.
– Então, por causa de tudo isso – continuou o advogado –, há um ponto a esclarecer: quero saber o nome desse homem que pisou na criança.
– Bem, não vejo nenhum mal nisso. Era um homem de nome Hyde – disse o sr. Enfield.
– Hum! E que tipo de homem seria? – Utterson quis saber.
– Ele não é fácil de descrever. Há algo de errado com sua aparência. Ele é desagradável, caído, repulsivo. Nunca vi um homem tão repugnante e, no entanto, mal sei por quê. Ele deve ser desfigurado em alguma parte do corpo, pois provoca forte sensação de deformidade, embora eu não possa especificar o ponto. Não é um homem de aparência normal; mas, na verdade, eu não saberia apontar nada fora do padrão. Não, senhor, não posso fazer nenhum caso disso. Não consigo descrevê-lo e não é por falta de memória, pois declaro que posso vê-lo nesse momento.
O sr. Utterson caminhou outra vez em silêncio e obviamente sob o peso da ponderação.
– Tem certeza de que ele usou uma chave? – finalmente ele perguntou.
– Meu caro senhor… – começou Enfield, surpreso consigo mesmo.
– Sim, eu sei – disse Utterson. – Sei que deve parecer estranho, mas o fato é que, se eu não lhe pergunto o nome da outra pessoa, é porque já sei quem é. Veja, Richard, sua história deu em nada. Se você foi inexato em algum ponto, então é melhor corrigi-lo.
– Acho que você poderia ter me avisado – respondeu o companheiro, com um toque de mau humor. – Mas tenho sido pedantemente exato, como você diz. O sujeito tinha a chave e, além do mais, ainda a tem. Eu o vi usá-la não faz uma semana.
O sr. Utterson suspirou profundamente, mas não disse uma palavra. E o jovem logo prosseguiu:
– Essa é outra lição de que não se deve dizer nada – falou. – Estou envergonhado da minha língua comprida. Vamos fazer um acordo para nunca mais nos referirmos a isso.
– De todo o meu coração – disse o advogado. – Estamos de acordo quanto a isso, Richard.
2.
A busca pelo sr. Hyde
Naquela noite, com o espírito sombrio, o sr. Utterson voltou para sua casa de solteirão e foi jantar, mas comeu sem gosto. Aos domingos, quando terminava essa refeição, ele costumava se sentar perto da lareira, com um volume de algum texto religioso em sua mesa de leitura, até que o relógio da igreja vizinha soasse à meia-noite, quando então ia sóbrio e agradecido para a cama. Nessa noite, porém, assim que a toalha de mesa foi recolhida, ele pegou uma vela, entrou em seu escritório, onde abriu o cofre, tirou da parte mais funda um documento em cujo envelope se lia Testamento do dr. Jekyll
e sentou-se, com a testa enrugada, para estudar seu conteúdo. O testamento era manuscrito, pois o sr. Utterson, embora tomasse conta desse documento agora que estava pronto, recusara-se a prestar o menor auxílio na sua elaboração, pois previa nada mais e nada menos, no caso da morte de Henry Jekyll, Doutor em Medicina, Doutor em Direito Civil, Doutor em Leis, Membro da Real Sociedade etc., que todos os seus bens passariam às mãos de seu amigo e benfeitor Edward Hyde
. E que, em caso de desaparecimento ou ausência inexplicável por qualquer período superior a três meses corridos
do dr. Jekyll, o dito Edward Hyde deveria se colocar no lugar do referido Henry Jekyll sem mais delongas e livre de quaisquer encargos ou obrigações, a não ser o pagamento de algumas pequenas despesas aos membros da residência do médico.
Fazia muito tempo que aquele documento horrorizava o advogado. Ofendia-o tanto como jurista quanto como apreciador dos lados sadios e costumeiros da vida, para quem ser imodesto era um capricho. Até então, a ignorância sobre o sr. Hyde era que alimentava sua indignação. Agora, depois dessa mudança repentina, era o conhecimento. Já bastante ruim quando se tratava apenas de um sobrenome do qual ele não sabia absolutamente nada, ficava bem pior quando começou a ser revestido de atributos detestáveis. E, a partir dessa alteração, as nebulosidades inconsistentes, que havia muito tempo deixavam seu olhar perplexo, agora saltavam para a apresentação repentina e definida de um demônio.
– Achei que fosse loucura – ele disse, enquanto recolocava o desagradável papel em segurança no cofre –, mas agora começo a temer que seja uma desgraça.
Com isso, apagou a vela, vestiu um casaco e partiu na direção da Cavendish Square, aquele bastião da medicina, onde seu amigo, o grande dr. Lanyon, tinha consultório e recebia uma multidão de pacientes. Se alguém souber de alguma coisa, será o Lanyon
– pensou.
O mordomo solene, que já o conhecia, recebeu-o sem submetê-lo a nenhuma espera. Apenas conduziu-o diretamente da porta para a sala de jantar, onde o dr. Lanyon estava sentado sozinho apreciando seu vinho. Tratava-se de um cavalheiro saudável, elegante, de rosto avermelhado, com uma mecha de cabelos prematuramente brancos e modos estouvados e resolutos. Ao ver o sr. Utterson, ele se ergueu da cadeira e lhe deu as boas-vindas com ambas as mãos. A simpatia, característica desse homem, era um tanto teatral aos olhos do outro, mas repousava sobre um sentimento genuíno. Afinal, eram velhos amigos, velhos companheiros, tanto de escola quanto de faculdade, respeitadores profundos de si mesmos e um do outro e, o que nem sempre acontece, homens que desfrutavam da companhia mútua.
Depois de uma breve conversa, o advogado introduziu o assunto tão desagradável que preocupava sua mente.
– Suponho, Lanyon – ele disse –, que você e eu devemos ser os dois amigos mais antigos de Henry Jekyll?
– Queria que meus amigos fossem mais jovens – brincou o dr. Lanyon. – Mas suponho que sim. O que houve? Faz tempo que não o vejo.
– É mesmo? – disse Utterson. – Pensei que vocês tivessem vínculos de interesse comum.
– Tivemos – foi a resposta –, mas isso foi há mais de dez anos, a partir de quando Henry Jekyll tornou-se demasiado fantasioso para mim. Ele começou a cometer erros, a pensar errado. E, embora eu naturalmente continuasse a ter interesse por ele, em nome dos velhos tempos, como dizem por aí, quase não tenho sabido nada a seu respeito. Tudo por causa daquele disparate não científico – acrescentou o médico, ruborizando de repente, a ponto de quase ficar roxo –, que teria distanciado até mesmo os amigos leais Damão e Pítias, da lenda grega.
Esse pequeno desabafo temperamental foi de certo modo um alívio para o sr. Utterson. Eles só discordaram sobre algum ponto da ciência
– pensou. E, sendo um homem sem paixões científicas (exceto em matéria de escrituras de compra, venda e transferência de propriedades), ele mesmo acrescentou para si: não há nada que vá além disso
. Deu ao amigo alguns segundos para recuperar sua compostura e, em seguida, fez a pergunta que lhe interessava colocar.
– Conheceu um protegido dele, um certo Hyde? – perguntou.
– Hyde? – repetiu Lanyon. – Não. Nunca ouvi falar dele, desde a minha época.
Foram essas informações que o advogado levou consigo para a grande cama escura na qual se revirou de um lado para o outro, até que as horas da madrugada começaram a aumentar. Foi uma noite intranquila para sua mente laboriosa, debatendo-se na mais pura escuridão e cercado de dúvidas.
Às seis horas da manhã, quando bateram os sinos da igreja, que ficavam tão convenientemente próximos da moradia do sr. Utterson, ele ainda estava remoendo o problema. Até então, ele o tinha tocado apenas pelo lado intelectual, mas agora sua imaginação também estava envolvida, ou melhor, escravizada. E, enquanto virava e revirava na escuridão da noite e do quarto com cortinas, a história de Enfield passava por sua mente numa sequência de quadros iluminados. Ele observava o grande campo de luzes de uma cidade noturna, depois a figura de um homem andando rapidamente, em seguida uma criança correndo do médico. Então todos se encontravam e aquela carroça humana pisoteava a menina e ia embora, não obstante os gritos dela. Ou, ainda, ele via um quarto numa casa rica, onde seu amigo dormia, sonhava e sorria durante os sonhos. E daí a porta desse quarto se abria, as cortinas da cama eram arrancadas, o dorminhoco chamado e, ao seu lado, surgia uma figura com o poder de, mesmo naquela hora morta, obrigá-lo a se levantar e a fazer o que era ordenado. A figura nessas duas fases assombrou o advogado a noite toda. E se a qualquer momento ele adormecia, era apenas para vê-lo deslizar mais furtivamente pelas casas adormecidas ou para se locomover com uma rapidez quase estonteante pelos labirintos mais amplos da cidade iluminada e em cada canto de rua, para pisotear uma criança e deixá-la gritando. E ainda assim a figura não tinha nenhum rosto a ser reconhecido. Mesmo nos sonhos, não tinha rosto. Ou, se tivesse, esse rosto o confundia e derretia diante de seus olhos. Foi assim que surgiu e cresceu rapidamente na mente do advogado uma curiosidade singularmente forte, quase desordenada, de contemplar as feições do verdadeiro sr. Hyde. Se pudesse fixar os olhos nele, achava que o mistério se iluminaria e talvez se desenrolasse completamente, como era o hábito de coisas misteriosas quando bem examinadas. Ele poderia ver alguma razão para a estranha preferência ou escravidão do seu amigo (chame-a como quiser) e até mesmo para a surpreendente cláusula do testamento. Pelo menos seria um rosto digno de ser visto. O rosto de um homem que não tinha compaixão, um rosto que só precisava se mostrar para levantar, na mente não impressionável de Enfield, um duradouro espírito de ódio.
A partir daquela noite, o sr. Utterson começou a ficar obcecado pela porta na viela de lojas. De manhã, antes do horário de expediente; ao meio-dia, quando os negócios eram muitos, e o tempo, escasso; e à noite, sob o luar embaçado pelas luzes e por todas as horas de solidão ou de ajuntamento na cidade, o advogado podia ser encontrado em seu posto preferido.
Se ele é o sr. Hyde, aquele que se esconde, então serei o sr. Seek, aquele que procura
– pensou.
Finalmente sua paciência foi recompensada, numa noite bem seca, com o ar gelado e as ruas tão limpas quanto o chão de um salão de baile. As lâmpadas, inabaláveis a qualquer vento, desenhavam um padrão regular de luzes e sombras. Às dez horas, quando as lojas estavam fechadas, a viela ficava totalmente deserta e muito silenciosa, apesar do rosnado constante de Londres por todos os cantos, pequenos sons levados ao longe, sons domésticos das casas, claramente audíveis em ambos os lados da calçada. O rumor da aproximação de qualquer transeunte o antecedia por um bom tempo. O sr. Utterson estivera alguns minutos em seu posto, quando tomou ciência de um passo leve e estranho se aproximando. No decorrer de suas patrulhas noturnas, havia muito ele se acostumara com o efeito pitoresco com que o som dos passos de uma única pessoa, embora ainda muito distante, repentinamente se destacava do vasto e ruidoso zumbido da cidade. No entanto, sua atenção nunca tinha sido tão intensa e decisivamente atraída. Portanto, foi com forte e supersticiosa previsão de sucesso que ele se retirou para a entrada do pátio.
Os passos se aproximavam cada vez mais rápido, e o som aumentou de repente, quando viraram o fim da rua. O advogado, olhando para a entrada, logo pôde ver com que tipo de homem teria que lidar. Era pequeno e muito bem-vestido. Seu olhar, mesmo àquela distância, de alguma forma contrariava fortemente a inclinação do observador. O homem seguiu diretamente para a porta, cruzando a calçada para economizar tempo. Quando chegou, tirou uma chave do bolso como se estivesse se aproximando de casa.
O sr. Utterson adiantou-se e tocou-o no ombro quando ele passou.
– É o sr. Hyde, certo?
O sr. Hyde encolheu-se de volta e respirou fundo, sibilante, mas seu medo foi apenas momentâneo. Embora não olhasse na cara do advogado, respondeu com suficiente frieza:
– Esse é o meu nome. O que deseja?
– Vejo que está entrando – respondeu o advogado. – Sou um velho amigo do dr. Jekyll, o sr. Utterson, de Gaunt Street. O senhor já deve ter ouvido falar do meu nome. E, ao encontrá-lo tão convenientemente, pensei se não poderia me receber.
– Não vai encontrar o dr. Jekyll, ele não está em casa – replicou o sr. Hyde, introduzindo a chave com violência na fechadura. E então, de repente, mas ainda sem olhar para cima: – Como me reconheceu? – perguntou.
– De sua parte – disse o sr. Utterson –, poderia me fazer um favor?
– Com prazer – o outro replicou. – E o que seria?
– Posso ver seu rosto? – perguntou o advogado.
O sr. Hyde pareceu hesitar e, então, como se fizesse alguma reflexão súbita, ficou de frente com certo ar de desafio. Os dois se encaram fixamente por alguns segundos.
– Agora já consigo reconhecê-lo de novo – disse o sr. Utterson. – Isso pode ser útil.
– Sim – respondeu o sr. Hyde –, foi bem assim que nos encontramos. E, a propósito, fique com meu endereço.
E lhe deu o número de uma rua em Soho. Bom Deus
– pensou o sr. Utterson – ele também deve estar pensando no testamento.
Mas guardou suas impressões para si mesmo e apenas grunhiu um agradecimento pelo endereço.
– E, então – insistiu o outro –, como me reconheceu?
– Pela descrição – foi a resposta.
– Quem fez a descrição?
– Temos amigos em comum – disse o sr. Utterson.
– Amigos em comum? – repetiu o sr. Hyde, um pouco rouco.
– Quem seriam eles?
– Jekyll, por exemplo – disse o advogado.
– Ele nunca falou do senhor – exclamou Edward Hyde, corando de raiva. – Não achei que o senhor mentisse.
– Convenhamos – disse o sr. Utterson –, essa não é uma linguagem adequada.
O outro rosnou alto, numa gargalhada selvagem. No momento seguinte, com extraordinária rapidez, destrancou a porta e desapareceu na casa.
O advogado demorou um pouco para se recuperar do quadro de inquietação em que o sr. Hyde o deixou. Então, lentamente começou a subir a rua, parando a cada passo ou dois, colocando a mão na testa como um homem em perplexidade mental. O problema com que ele assim se debatia enquanto andava era da mesma categoria de um daqueles que raramente era resolvido. O sr. Hyde era pálido e nanico, dava a impressão de deformidade sem qualquer malformação nomeável, tinha sorriso desagradável, havia se dirigido ao advogado com uma espécie de mistura assassina de timidez e ousadia e falava com voz rouca e sussurrante, um tanto entrecortada. Todos esses eram pontos contra ele, mas nem todos juntos poderiam explicar a desconfiança, o ódio e o medo até então desconhecidos com que o sr. Utterson o considerava.
– Deve ser outra coisa – murmurou o perplexo cavalheiro. – Há algo mais, se ao menos eu pudesse dar nome ao que é. Deus me perdoe, o indivíduo quase não parece humano! Digamos que ele possui algo de troglodítico! Quem sabe não seria como na velha história do dr. Fell, não sei por quê, mas não gosto de você
? Ou talvez não passe do mero resplendor de uma alma imunda transpirando e transfigurando seu exterior de argila? Creio que é essa última hipótese. Ora, meu pobre e velho Harry Jekyll, se alguma vez eu li a assinatura de Satanás no rosto de alguém, foi no desse seu novo conhecido.
Logo ao virar na esquina da viela, havia uma praça repleta de casas antigas e bonitas, a maior parte delas atualmente eram propriedades caras, mas decadentes, transformadas em apartamentos e cômodos para homens de todos os tipos e condições: gravadores de mapas, arquitetos, advogados e agentes de atividades obscuras. Uma casa, no entanto, a segunda a partir da esquina, ainda estava ocupada por inteiro. Foi na porta dela – que ostentava ares de grande riqueza e conforto, embora no momento estivesse mergulhada na escuridão, exceto pela luz do vitrô basculante – que o sr. Utterson parou e bateu. Um criado idoso e bem-vestido abriu a porta.
– O dr. Jekyll está em casa, Poole? – perguntou o advogado.
– Vou ver, sr. Utterson – disse Poole, recebendo o visitante enquanto falava num salão grande e confortável, de teto baixo e ladeado por bandeiras, aquecido (à moda de uma casa de campo) por uma lareira acesa e mobiliado com ricos gabinetes de carvalho. – O senhor poderia esperar aqui perto da lareira? Ou prefere que eu ilumine a sala de jantar?
– Aqui, obrigado. – Ele se aproximou e apoiou-se na alta grade guarda-fogo.
A sala na qual ele estava agora sozinho era uma fantasia de estimação do amigo, o médico. E o próprio Utterson costumava falar dela como o espaço mais agradável de Londres. Mas, naquela noite, um estremecimento percorreu sua corrente sanguínea. O rosto de Hyde pesava em sua memória. Ele sentia (o que era raro) náusea e desgosto pela vida. E na melancolia de seus humores parecia ler ameaças na luz bruxuleante da lareira, dançando nos armários polidos e no princípio incerto da sombra no telhado. Ficou envergonhado de sentir alívio quando Poole voltou para anunciar que o dr. Jekyll tinha saído.
– Eu vi o sr. Hyde entrar pela velha porta da sala de dissecação, Poole – ele comentou. – Isso é certo, mesmo quando o dr. Jekyll não está em casa?
– Não há nada de errado, caro sr. Utterson – respondeu o criado. – O sr. Hyde tem a chave.
– Seu patrão parece ter muita confiança no rapaz, Poole – retomou o outro, pensativo.
– Sim, senhor, com certeza – disse Poole. – Todos temos ordens para obedecer a ele.
– Será que já conheci o sr. Hyde? – perguntou Utterson.
– Ora, creio que não, senhor! Ele nunca janta aqui – respondeu o mordomo. – Na verdade, nós o vemos muito pouco nesse lado da casa. Na maioria das vezes, ele entra e sai pelo laboratório.
– Muito bem! Boa noite, Poole.
– Boa noite, sr. Utterson.
E o advogado partiu para casa com o coração muito pesado. Pobre Harry Jekyll
– ele pensou – a minha mente desconfia de que ele esteja se afogando em águas profundas! Ele era indomável quando jovem, mas isso foi há muito tempo, certamente. Mas, na lei de Deus, não há estatuto de limitações. Sim, deve ser isso. O fantasma de algum velho pecado, o câncer de alguma desculpa oculta: o castigo chegou claudicando, anos depois de a memória ter esquecido e de o amor-próprio ter tolerado a culpa.
Assustado com tal pensamento, o advogado meditou um pouco sobre seu próprio passado, tateando em todos os cantos da memória para ver se por acaso alguma caixinha de surpresas de alguma velha iniquidade não surgiria então. Seu passado era razoavelmente inocente. Poucos homens podiam ler as reviravoltas da vida com menos apreensão. Contudo, desceu humildemente ao pó pelas muitas coisas erradas que tinha feito, de onde ressurgiu com gratidão sóbria e terrível pelo muito que esteve tão perto de fazer, mas conseguiu evitar. Então, retornando ao seu antigo assunto, concebeu uma faísca de esperança. Se esse mestre Hyde for estudado
– pensou ele – deve ter seus próprios segredos, segredos negros pelo visto, segredos que em comparação com o pior do pobre Jekyll seriam como o sol. As coisas não podem continuar como estão. Sinto calafrios de pensar nessa criatura movendo-se furtivamente como um ladrão à cabeceira de Harry. Pobre Harry, que provação, que perigo! Pois se esse Hyde suspeitar da existência do testamento, pode ficar impaciente por causa da herança. Sim, preciso entrar em ação, basta Jekyll permitir
– acrescentou – basta apenas Jekyll permitir
. Por mais uma vez ele viu passar na mente, tão claras como transparências, as estranhas cláusulas do testamento.
3.
O dr. Jekyll estava muito tranquilo
Duas semanas depois, por feliz coincidência, o médico deu um daqueles seus agradáveis jantares a uns cinco ou seis velhos amigos, todos homens inteligentes, respeitáveis e apreciadores de bons vinhos. No final, o sr. Utterson aproveitou e ficou para trás depois que os outros partiram. Não era nenhuma novidade, mas algo que já havia acontecido antes dezenas de vezes. Onde Utterson era querido, ele era muito benquisto. Os anfitriões adoravam reter o sóbrio advogado, quando os mais afoitos e os de língua solta já estavam com o pé na soleira. Gostavam de sentar um tempo em sua companhia discreta, treinando para a solidão, acalmando a mente no rico silêncio do homem depois dos excessos e da tensão da alegria. No caso dessa regra, o dr. Jekyll, homem de cinquenta anos, grande, bem constituído, de rosto liso, talvez com um toque de malícia, mas com todos os sinais de capacidade e de bondade, não era exceção.
E agora, quando se sentava no lado oposto da lareira, era possível ver por sua conduta que ele nutria pelo sr. Utterson uma afeição sincera e calorosa.
– Ando querendo falar com você, Jekyll – começou o último.
– Sabe aquele seu testamento?
Um observador próximo poderia ter percebido que o assunto era desagradável, mas o médico aceitou-o com alegria.
– Meu pobre Utterson – ele disse –, você não deu sorte com esse seu cliente. Nunca vi um homem tão angustiado quanto você por causa do meu testamento, a não ser aquele pedante dissimulado do Lanyon, no que ele chamava de minhas heresias científicas. Ora, sei que ele é um bom sujeito, você não precisa franzir a testa, é um excelente companheiro, e eu sempre quis desfrutar mais da pessoa dele. Mas é um presunçoso dissimulado para o resto, um pedante bronco e descarado. Jamais fiquei tão desapontado com alguém como com o Lanyon.
– Como você sabe, nunca o aprovei – prosseguiu Utterson, desconsiderando impiedosamente o novo tópico.
– O meu testamento? Sim, certamente que sei disso – respondeu o médico, um pouco bruscamente. – Você já me falou.
– Bem, vou lhe dizer novamente – continuou o advogado. – Fiquei sabendo de algumas coisas a respeito do jovem Hyde.
O grande e belo rosto do dr. Jekyll empalideceu até os lábios, e uma sombra obscureceu seus olhos.
– Não me interessa saber mais nada – disse ele. – Pensei que já tínhamos concordado em encerrar esse assunto.
– O que ouvi foi abominável – insistiu Utterson.
– Não pode fazer diferença nenhuma, você não entende minha posição – respondeu o médico, com certa incoerência. – Estou numa situação difícil, Utterson. Minha posição é muito estranha, muito estranha. É um daqueles assuntos que não podem ser remendados por uma simples conversa.
– Jekyll – disse Utterson –, você me conhece, sou um homem de confiança. Fale de peito aberto, sem medo. Não duvido que eu consiga tirar você desse embaraço.
– Meu caro Utterson – disse o médico –, isso é ótimo em você, isso é muitíssimo bom em você, e eu não encontro palavras para lhe agradecer. Acredito plenamente em você, eu confiaria em você acima de qualquer homem vivo, sim, até de mim mesmo, se pudesse escolher; mas, na verdade, não é o que você imagina, não é tão ruim assim. E, apenas para tranquilizar seu bom coração, vou lhe dizer uma coisa: no momento que quiser, posso me livrar do sr. Hyde. Dou minha mão à palmatória sobre isso. E lhe agradeço de novo e muitas vezes. Vou acrescentar apenas uma palavrinha, Utterson, que tenho certeza de que você vai levar em boa consideração: esse é um assunto reservado e eu lhe peço para sepultá-lo.
Utterson refletiu um pouco, olhando para o fogo.
– Não tenho dúvidas de que você esteja perfeitamente certo
– disse finalmente, levantando-se.
– Bem, já que abordamos esse assunto, espero que pela última vez, há um ponto que eu gostaria que você entendesse – continuou o médico. – Tenho realmente grande interesse no pobre Hyde. Sei que você o viu, pois ele me contou. E receio que ele tenha sido ríspido; mas, sinceramente, tenho interesse grande, muito grande, nesse jovem. E, se eu partir, Utterson, desejo que você me prometa que vai apoiá-lo e conceder todos os direitos a ele. Acho que você fará isso, sabendo de tudo. E tiraria um peso da minha mente se me prometesse.
– Não posso fingir que vou gostar dele – disse o advogado.
– Não lhe peço isso – implorou Jekyll, colocando a mão no braço do outro. – Só peço justiça, só lhe peço que o ajude por minha causa, quando eu já não estiver mais aqui.
Utterson soltou um suspiro irreprimível.
– Bem – ele disse –, eu prometo!
4.
O caso do assassinato de Carew
Quase um ano depois, no mês de outubro de 18…, um crime de ferocidade singular assustou Londres. O episódio tornou-se ainda mais notório pela alta posição da vítima. Os detalhes eram escassos e surpreendentes. Uma empregada doméstica que vivia sozinha numa casa não muito longe do rio recolheu-se ao leito por volta das onze horas da noite. Embora uma camada de bruma rolasse sobre a cidade durante a madrugada, o início da noite estava sem nuvens. A viela que se via da janela da empregada estava sendo brilhantemente iluminada pela lua cheia. Parece que a mulher teve uma inspiração romântica, pois sentou-se na cama, que ficava bem embaixo da janela, e passou a meditar em sonhos. Nunca (ela costumava dizer em lágrimas quando narrava essa experiência), nunca se sentira mais em paz com todos os homens ou jamais pensou no mundo com tanta delicadeza.
Assim que se sentou, ela se deu conta de um cavalheiro idoso e bonito, de cabelos brancos, que se aproximava ao longo do caminho. E, avançando para encontrá-lo, vinha outro cavalheiro, pequenino, em quem a princípio ela prestou menos atenção. Quando começaram a falar (bem diante dos olhos da empregada), o homem mais velho curvou-se e abordou o outro de maneira muito elegante e cortês. Não parecia que o assunto da conversa fosse de grande importância. De fato, pelo que ela percebeu, às vezes era quase como se ele estivesse apenas perguntando sobre o caminho, mas o luar brilhou em seu rosto enquanto ele falava, e a moça ficou encantada ao vê-lo. Seu semblante parecia transpirar uma disposição para uma bondade inocente, bem à moda antiga, mas também algo mais elevado, como uma autoestima bem fundamentada. Logo o olhar da criada vagou para o outro e ela ficou surpresa ao reconhecer nele um certo sr. Hyde, que uma vez visitara seu patrão, e por cuja pessoa tinha concebido certa antipatia. Esse senhor levava na mão uma bengala pesada que não o ajudava em nada. Ele não respondia a uma única palavra, parecia escutar com uma impaciência irrefreável e de repente explodiu numa grande chama de raiva. Bateu com o pé, brandiu a bengala e assim continuou (como a empregada descreveu) feito louco. O velho cavalheiro recuou um passo, com ar de muita surpresa e um pouco magoado. Então o sr. Hyde rompeu todos os limites e o golpeou até prostrá-lo na terra. E no momento seguinte, com a fúria de um gorila, pisoteou a vítima, descarregando-lhe uma tempestade de golpes, sob os quais os ossos eram quebrados audivelmente, e o corpo saltava sobre a calçada. Horrorizada por causa dessas visões e desses sons, a criada desmaiou.
Eram duas horas da manhã quando ela voltou a si e chamou a polícia. O assassino havia ido embora fazia muito tempo, mas a vítima ainda estava ali no meio da viela, incrivelmente mutilada. A vara com a qual a ação tinha sido feita, embora fosse de madeira rara muito dura e pesada, quebrou-se ao meio sob a violência daquela crueldade impiedosa. Metade da bengala despedaçada rolou para
a sarjeta ao lado. A outra metade, sem dúvida, tinha sido levada pelo assassino. Uma bolsa e um relógio de ouro foram encontrados com a vítima, mas não havia cartões ou papéis, exceto um envelope selado e carimbado, que ele provavelmente levaria ao correio, contendo o nome e o endereço do sr. Utterson.
Esse fato foi comunicado ao advogado na manhã seguinte, antes de ele sair da cama. Tão logo tinha visto e tão logo as circunstâncias lhe foram narradas, ele murmurou um comentário solene:
– Não direi nada até ver o corpo. Isso pode ser muito sério. Tenham a bondade de esperar enquanto me visto.
E com o mesmo semblante grave apressou seu desjejum e dirigiu-se à delegacia, para onde o corpo tinha sido levado. Assim que entrou na cela, acenou com a cabeça.
– Sim – ele disse –, eu o reconheço. Lamento informar que é sir Danvers Carew.
– Senhor meu Deus, será possível? – espantou-se o policial.
E, em seguida, com o olhar iluminado pela experiência profissional, acrescentou:
– Isso vai fazer muito barulho. Talvez possa nos ajudar com o homem.
Então, narrou brevemente o que a criada tinha visto e mostrou a bengala quebrada. O sr. Utterson já havia ficado intrigado com a menção ao nome de Hyde, mas quando a bengala foi colocada diante dele não podia mais duvidar. Mesmo quebrada e destroçada como estava, ele a reconheceu como uma bengala com que ele próprio havia presenteado Henry Jekyll muitos anos antes.
– O tal sr. Hyde é uma pessoa de baixa estatura? – ele perguntou.
– Particularmente pequeno e particularmente perverso, pelo que a empregada afirma – disse o policial.
O sr. Utterson refletiu. Depois, levantando a cabeça, disse:
– Se vier comigo no meu carro de aluguel – ofereceu –, acho que posso levá-lo até a casa dele.
Nessas alturas, por volta de nove horas da manhã, o céu ainda estava encoberto pelo primeiro fog, o primeiro nevoeiro da estação. Uma grande mortalha cor de chocolate, do ar poluído pelo carvão, pairava baixa no céu. Apesar disso, o vento constantemente carregava e levantava os vapores mais densos, de modo que, à medida que o coche rastejava de rua em rua, o sr. Utterson podia observar uma incrível quantidade de graduações de tons crepusculares, pois estava escuro como ao anoitecer e surgia um brilho marrom rico, fantástico, como a luz de alguma estranha conflagração. Então, por um momento, a neblina ficava completamente esgarçada e uma nesga de luz do dia refletia entre grinaldas vaporosas que rodopiavam.
O sombrio bairro de Soho, visto sob esses vislumbres cambiantes, com seus caminhos enlameados, os transeuntes desmazelados e suas lâmpadas que nunca se apagavam nem acendiam de novo para combaterem essa triste e reiterada invasão da escuridão, parecia, aos olhos do advogado, um arrabalde de alguma cidade em um pesadelo. Os pensamentos em sua mente, além disso, eram da tonalidade mais sombria. E, quando olhava para seu companheiro de viagem, ele ficava ciente daquele toque de terror com que a lei e os oficiais da lei às vezes podiam importunar a pessoa mais honesta.
Quando o coche se aproximou do endereço indicado, o nevoeiro levantou um pouco e mostrou a rua suja, um boteco decadente, um pequeno restaurante francês, uma venda de bugigangas e saladas baratas, muitas crianças esfarrapadas na beirada das portas e muitas mulheres de diferentes nacionalidades saindo, com as chaves na mão, em busca do desjejum matinal. E, no momento seguinte, a névoa voltou a se estabelecer sobre aquela área, tão castanha quanto ferrugem, separando o advogado de seu ambiente enegrecido. Ali ficava a casa do favorito de Henry Jekyll, a casa do herdeiro de um quarto de milhão de libras esterlinas.
Uma velha de rosto amarelado e cabelos grisalhos abriu a porta. Tinha cara de má, amenizada pela hipocrisia, mas seus modos eram excelentes. Sim, ela disse que era a residência do sr. Hyde, mas que ele não se encontrava em casa. Tinha estado lá naquela noite, bem tarde, mas foi embora novamente menos de uma hora depois. Não havia nada de estranho nisso, pois seus hábitos eram muito irregulares e muitas vezes ele se ausentava por longos períodos. Por exemplo, fazia quase dois meses que não o via, até a noite anterior.
– Pois bem, queremos ver os aposentos dele – disse o advogado. Então a mulher apressou-se a declarar que seria impossível. – Acho melhor eu lhe dizer quem é essa pessoa – ele acrescentou. – Esse é o inspetor Newcomen, da Scotland Yard.
Uma espécie de alegria odiosa brilhou no rosto da mulher.
– Ah! – ela disse. – Ele está em apuros! O que foi que ele fez?
O sr. Utterson e o inspetor trocaram olhares.
– Ele não parece um personagem muito popular – observou o último. – E agora, minha boa senhora, permita a mim e ao cavalheiro darmos uma olhada por nossa conta.
Em toda a extensão da casa, que exceto pela velha senhora permanecia vazia, o sr. Hyde só usava dois cômodos, mobiliados com luxo e bom gosto. Uma despensa estava cheia de vinhos; a baixela era de prata; as toalhas de mesa, elegantes. Havia belos quadros pendurados nas paredes, com certeza presentes (como Utterson supôs) de Henry Jekyll, bom conhecedor do assunto, um verdadeiro connoisseur. Os tapetes eram de várias camadas, de cores agradáveis em degradê. Nesse momento, porém, os quartos carregavam marcas de terem sido recém e apressadamente saqueados, com roupas caídas pelo chão, os bolsos revirados de dentro para fora, e gavetas com chave deixadas escancaradas. Na lareira havia uma pilha de cinzas, como se muitos papéis tivessem sido queimados. Do meio dessas brasas, o inspetor desenterrou a ponta de um talão verde que resistira à ação do fogo. A outra metade da bengala foi encontrada atrás da porta. E como isso afiançava as suspeitas o policial
declarou-se satisfeito. Uma visita ao banco, onde milhares de libras foram encontradas depositadas a crédito do assassino, completou seu contentamento.
– Pode confiar nisso, senhor – ele disse ao sr. Utterson. – Eu o tenho nas minhas mãos. Ele deve ter perdido a cabeça, ou jamais teria deixado a bengala e, principalmente, em hipótese alguma, queimaria o talão de cheques. Ora, o dinheiro é vida para aquele homem. Não temos nada a fazer senão esperar por ele no banco e espalhar folhetos de procurado
.
Essa última providência, no entanto, não foi tão fácil de realizar, porque o sr. Hyde tinha poucos conhecidos, até mesmo o patrão da empregada só o vira duas vezes, sua família não poderia ser identificada, ele nunca tinha sido fotografado, e as poucas pessoas que poderiam descrevê-lo divergiam amplamente como observadores comuns. Apenas num ponto estavam de acordo: a assombrosa e inexprimível sensação de deformidade com que o foragido impressionava seus espectadores.
5.
O incidente da carta
Anoitecia quando o sr. Utterson seguiu caminho em direção à porta do dr. Jekyll, onde foi imediatamente recebido e conduzido por Poole pelas instalações da cozinha e por um quintal que outrora havia sido um jardim para o edifício indistintamente conhecido como prédio dos laboratórios ou das salas de dissecação. O doutor tinha comprado a casa dos herdeiros de um cirurgião renomado. E, como seus próprios gostos eram mais químicos que anatômicos, ele mudou a destinação do bloco no fundo do jardim. Era a primeira vez que o advogado seria recebido naquela parte da casa do amigo. Ele observava com curiosidade a estrutura suja, sem janelas, e olhava em volta com repugnante sensação de estranheza ao atravessar o espaço, antes cheio de estudantes ansiosos, agora abandonado e em silêncio, as mesas cheias de aparelhos químicos, o chão repleto de caixas e coberto com palha de empacotamento e a luz caindo vagamente pela cúpula embaçada.
Na outra ponta, um lance de escadas subia para uma porta coberta com um tecido grosso vermelho. Através dela, o sr. Utterson foi finalmente recebido no gabinete do médico. Era uma sala grande, equipada com prensas de vidro, decorada entre outras coisas com um espelho de cavalete e uma mesa de trabalho que fazia vista para o pátio, por três janelas empoeiradas e barradas com ferro. Fogo queimava na grelha. E uma lâmpada era mantida acesa na prateleira da chaminé, pois mesmo dentro das casas a névoa começava a ficar espessa. Ali, perto do calor, o dr. Jekyll estava sentado, parecendo mortalmente abatido. Ele não se levantou para receber o visitante, mas estendeu a mão fria e desejou-lhe boas-vindas com a voz alterada.
– E agora – disse o sr. Utterson, assim que Poole os deixou –, já ouviu as notícias?
O médico estremeceu.
– Estavam gritando na praça – ele disse. – Eu as ouvia da minha sala de jantar.
– Só uma palavra – disse o advogado. – Carew era meu cliente, assim como você. Quero saber o que estou fazendo. Você não é louco o suficiente para homiziar esse sujeito?
– Utterson, juro por Deus – gritou o médico –, juro por Deus que jamais voltarei a vê-lo. Empenho minha honra a você que terminei com ele nesse mundo. Tudo tem limite. E na verdade ele não quer minha ajuda. Você não o conhece como eu. Ele está em segurança, está bem resguardado. Anote minhas palavras, ele jamais voltará a ser visto.
O advogado escutou entristecido. Não gostava da maneira febril de o amigo falar.
– Você parece ter convicção sobre essa pessoa – comentou. – Então, espero que esteja certo. Se houver um processo, seu nome pode aparecer.
– Tenho certeza a respeito dele – respondeu Jekyll. – Possuo embasamentos para tal certeza que não posso compartilhar com ninguém, mas há uma coisa em que você pode me aconselhar. Recebi uma carta e estou em dúvida se deveria mostrá-la à polícia. Gostaria de deixá-la em suas mãos, Utterson. Você pode julgar com sabedoria, estou certo. Tenho enorme confiança em você.
– Você teme, suponho, que isso possa levar à localização dele?
– perguntou o advogado.
– Não – respondeu o médico. – Não posso dizer que me importo com o que Hyde se tornará. Está tudo completamente acabado entre nós. Estou pensando em mim, pois esse assunto odioso já me deixou bastante exposto.
Utterson ruminou pensamentos por alguns instantes. Estava surpreso com o egoísmo do amigo; mas, ao mesmo tempo, sentia-se aliviado por ele.
– Bem – ele disse finalmente –, deixe-me ver a carta.
A carta, escrita de maneira estranha com a mão na posição vertical, estava assinada Edward Hyde
e simplesmente solicitava ao dr. Jekyll, benfeitor do signatário a quem ele, havia muito tempo, retribuía milhares de atitudes generosas de modo tão indigno, que trabalhasse sem fazer alarde pela segurança dele, já que era possuidor dos meios de fuga necessários para colocá-lo em alguma dependência segura. O advogado gostou muito da carta, que esclarecia melhor aquela convivência que até então ele tinha conseguido entender. E ele ainda se culpava por algumas suspeitas passadas.
– Você tem o envelope? – ele perguntou.
– Queimei – respondeu Jekyll –, antes de saber do que se tratava, mas não tinha selo nem carimbo postal. A nota foi entregue em mãos.
– Devo ficar com ela e guardá-la? – perguntou Utterson.
– Quero que julgue como se fosse eu – foi a resposta. – Perdi a confiança em mim mesmo.
– Bem, vou levar isso em consideração – respondeu o advogado. – E agora só mais uma palavra: foi Hyde quem ditou os termos em seu testamento sobre a questão do desaparecimento?
O médico pareceu tomado por uma sensação de vertigem. Cerrou a boca com força e concordou com a cabeça.
– Eu sabia – disse Utterson. – Ele queria assassinar você. Você conseguiu encontrar uma boa saída.
– Consegui encontrar muito mais que isso – respondeu o doutor solenemente. – Consegui aprender uma lição, Utterson. Ó Deus, que lição aprendi! – E por um momento cobriu o rosto com as mãos.
Ao sair, o advogado parou e trocou uma ou duas palavras com Poole.
– A propósito – falou –, uma carta foi entregue hoje. Lembra-se de como era o mensageiro?
Mas Poole mostrou-se convencido de que nada havia chegado senão pelo correio.
– Aliás, por falar nisso, apenas folhetos – acrescentou.
Essa informação renovava os temores do visitante. Com certeza a carta chegara à porta do laboratório. Possivelmente, na verdade, tinha sido escrita no gabinete. E, sendo assim, devia ser julgada de modo diferente e tratada com mais cautela. Os jornaleiros, quando ele saiu, estavam roucos de tanto gritar ao longo das calçadas:
– Extra, extra, edição especial. Assassinato chocante de um membro do parlamento.
Era como se fosse a oração fúnebre do amigo e cliente. E ele não podia evitar certa apreensão de que o bom nome do outro amigo não viesse a ser sugado pelo redemoinho do escândalo. Havia ao menos uma decisão sensível que ele precisaria tomar. E, embora autossuficiente como era por costume, ele começou a acalentar o desejo de se aconselhar. Não diretamente, mas quem sabe se jogasse uma isca talvez pudesse fisgar algo, imaginou.
Logo depois, sentou-se num dos lados da própria lareira, com o sr. Guest, seu chefe de escritório, no lado oposto e no meio do caminho, a uma distância bem calculada do fogo, com uma garrafa de determinado vinho antigo que descansava ao abrigo do sol no porão de sua casa, havia muito tempo. O nevoeiro ainda pairava adormecido sobre a cidade sufocada, onde as lâmpadas cintilavam como furúnculos. E, pelo abafamento e pela sufocação dessas nuvens baixas, o movimento da vida na cidade continuava a rodar pelas grandes avenidas, com o som de um vento poderoso.
Mas a sala estava alegre com a luz da lareira. Dentro da garrafa, fazia tempo que os ácidos estavam sedimentados no fundo, a cor púrpura já suavizada com o tempo, assim como a luz que fica mais intensa nas janelas com vitrais; o brilho das tardes quentes de outono dos vinhedos nas encostas dos morros estava pronto para ser liberado e dispersar os nevoeiros londrinos.
Imperceptivelmente, o advogado desmoronou. Não havia nenhum homem de quem ele guardasse menos segredos que o sr. Guest. Nem sempre tinha a certeza de que os guardava tanto quanto ele gostaria. Guest muitas vezes ia a negócios à casa do médico. Conhecia Poole; este dificilmente poderia ter deixado de ouvir algo a respeito da familiaridade do sr. Hyde com a casa. Ele podia tirar conclusões. Então, talvez fosse interessante que visse a carta que colocava aquele mistério nos eixos. E, acima de tudo, será que Guest, sendo um grande estudante e crítico de caligrafia, consideraria a peça natural e indispensável? O funcionário, além disso, era um homem com discernimento e raramente lia um documento tão estranho sem manifestar alguma observação. Assim, com essas análises, o sr. Utterson poderia determinar seu futuro rumo.
– O que aconteceu com sir Danvers é um assunto triste – afirmou.
– Sim, senhor. Despertou uma grande dose de comoção no público – replicou Guest. – O outro homem, é claro, estava louco.
– Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso – respondeu Utterson. – Tenho aqui um documento com a caligrafia dele. Isso fica entre nós, pois mal sei o que fazer a respeito. É um negócio feio, na melhor das hipóteses, mas dê uma olhada nisso. Aqui está, bem na sua cara, o autógrafo de um assassino.
Os olhos de Guest brilharam. Ele se sentou imediatamente e examinou com atenção.
– Não, senhor – ele disse. – Não se trata de um louco, mas tem uma caligrafia estranha.
– E por todos os relatos o dono da caligrafia também é muito estranho – acrescentou o advogado.
Nesse instante, um criado entrou trazendo uma nota.
– Veio do dr. Jekyll, senhor? – perguntou o funcionário. – Achei que conhecia a letra dele. Alguma coisa particular, sr. Utterson?
– Só um convite para jantar. Por quê? Quer ver?
– Um momento. Obrigado, senhor. – O funcionário colocou as duas folhas de papel lado a lado e comparou criteriosamente o conteúdo de ambas. – Obrigado, senhor – disse por fim, devolvendo-as. – É uma assinatura muito interessante.
Houve uma pausa, durante a qual o sr. Utterson lutou consigo mesmo.
– Por que as comparou, Guest? – perguntou de repente.
– Bem, senhor – respondeu o secretário –, há uma semelhança bastante singular. As duas caligrafias são em muitos pontos idênticas, apenas diferem na inclinação.
– Bem interessante – disse Utterson.
– É, como o senhor diz, bem interessante – respondeu Guest.
– Eu não comentaria a respeito desse bilhete com ninguém, como você sabe – disse o patrão.
– Não, senhor – respondeu o funcionário. – Entendo.
Tão logo ficou sozinho naquela noite, o sr. Utterson trancou a nota no cofre, onde ficou guardada daquele instante em diante. Puxa vida!
– ele pensou. – Henry Jekyll fez uma falsificação para ajudar um assassino!
– E o sangue correu frio em suas veias.
6.
O notável incidente do dr. Lanyon
O tempo passou. Milhares de libras foram oferecidas em recompensa, pois a morte de sir Danvers foi ressentida como uma ofensa pública, mas o sr. Hyde desapareceu das vistas da polícia como se nunca tivesse existido. Muita coisa de seu passado foi desenterrada. Eram, na verdade, fatos vergonhosos: surgiram relatos da crueldade desse homem como alguém ao mesmo tempo insensível e violento, da sua vida vil, de seus estranhos companheiros, do ódio que parecia cercar sua carreira; mas, sobre seu paradeiro atual, nem sequer um boato. Desde que saíra da casa em Soho na manhã do assassinato, ele simplesmente sumira. E gradualmente, com o passar do tempo, o sr. Utterson começou a se recuperar da intensidade do susto e a ficar mais quieto consigo mesmo. A morte de sir Danvers, no seu modo de pensar, foi mais que compensada pelo desaparecimento do sr. Hyde. Agora que essa influência do mal tinha sido retirada, uma nova vida começou para o dr. Jekyll. Ele saiu de sua reclusão, renovou as relações com os amigos, tornou-se novamente um convidado assíduo e um anfitrião. E, como sempre foi conhecido pela caridade, não era menos distinto pela religiosidade. Estava sempre ocupado, passava um bom tempo ao ar livre, sentia-se bem. Seu rosto parecia aberto e iluminado pela consciência interior de servir. E por mais de dois meses o médico