A paixão segundo Antonio Gramsci
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RODRIGO DANTAS
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A paixão segundo Antonio Gramsci - Eduardo Granja Coutinho
Para Beatriz e Luna,
minhas filhas.
E para Muniz Sodré,
sempre.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo das estrelas nas mãos.
[ CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ]
SUMÁRIO
[ PREFÁCIO ]
Gramsci e Sorel: a tradução realista do conceito de mito
Gramsci, herdeiro de Lenin: o problema da relação entre teoria e paixão
Mito e tradição em Mariátegui
As cinzas de Gramsci
: Pasolini e a crise da vontade revolucionária
Gramsci, Reich e o fascismo
[ NOTA BIBLIOGRÁFICA ]
[ SOBRE O AUTOR ]
[ CRÉDITOS ]
PREFÁCIO
O que há de comum entre a insurreição e a submissão? Mais explicitamente, o que faz com que os homens se revoltem contra a tirania ou se curvem voluntária e entusiasticamente a ela?
O ponto de partida aqui é uma conhecida afirmação de Hegel: "nada de grandioso no mundo foi realizado sem paixão (2001, p. 69). Todos os fatos de grande importância na história — pense-se na Queda da Bastilha, no Soviet de Petrogrado, na Marcha sobre Roma, na Guerra Civil Espanhola, na Revolução Cubana — todos eles foram realizados por indivíduos e povos movidos por essa força que age e dá impulso a feitos de alcance universal, a paixão. Ocorre que para o idealista alemão não são os homens os verdadeiros sujeitos da história. Existe uma consciência absoluta que governa o mundo e determina a realidade humana. Entendida como sujeito, essa consciência, que é a própria razão universal, se vale dos interesses e das paixões dos indivíduos para realizar seus próprios fins. É isso que Hegel chama de
astúcia da razão".
Essa temática , como se sabe, é herdada pelo materialismo histórico, que a subverte, afirmando que são os homens os sujeitos, e que eles fazem a sua própria história, movidos por suas vontades, sim, mas sob circunstâncias materiais que não são de sua escolha. É precisamente a resultante dessas inúmeras vontades atuando em direções diferentes e de suas variadas repercussões no mundo exterior que constitui a história
(Engels, 1975, p. 134). Segundo os filósofos da práxis, por detrás dessas forças que põem em movimento as grandes massas humanas é preciso reconhecer, na própria história, as causas que as determinam.
Trazer à luz do dia as causas motoras que no espírito das massas em ação e no dos seus chefes (...) se refletem de um modo claro ou confuso, diretamente ou sob uma forma ideológica ou mesmo divinizada, como objetivos conscientes, esta é a única via que nos poderá levar à descoberta das leis que nas diferentes épocas e países dominam a história. Tudo o que põe os homens em movimento deve passar necessariamente pelos seus cérebros, mas a forma que aí vier a tomar dependerá muito das circunstâncias (ibid., p. 136).
Tais circunstâncias objetivas — ligadas e transmitidas pelo passado, disse Marx — são, na realidade, as condições materiais de existência a partir das quais os homens se organizam. Portanto, se quisermos explicar o conteúdo da vontade (por que se quer precisamente uma coisa e não outra qualquer), é preciso entender que a vontade (seja a do indivíduo, seja a do Estado) é condicionada pelas necessidades em mutação da sociedade, pela supremacia de uma classe ou outra, em última análise, pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de troca
(ibid., p . 139).
Nessa perspectiva materialista e dialética, a questão da razão — e da paixão — na história é retomada pelo pensador italiano Antonio Gramsci. Como um político prático, o dirigente comunista está preocupado com aquilo que mobiliza a classe trabalhadora para a transformação da sociedade. A questão da formação da vontade coletiva nacional-popular ocupa um lugar central em seu pensamento. Daí a importância que ele atribui ao mito
, particularmente ao mito do moderno príncipe
(o partido político), como uma ideia-força capaz de expressar a teoria revolucionária, seu núcleo intelectual, e impulsionar a ação das massas, alinhando emoção¹ e razão. Para Gramsci, o mito é essa razão apaixonada, a fantasia concreta
que confere aos homens a força necessária para o embate político.
Escritos entre 2015 e 2020, os cinco ensaios desta coletânea têm como referência a problemática gramsciana das relações entre paixão, mito, vontade coletiva e hegemonia. Em cada um deles, busca-se estabelecer um diálogo entre Gramsci e pensadores da tradição marxista, abordando diferentes aspectos dessa problemática.
O artigo introdutório fornece o enquadramento conceitual para os demais textos. Nele, procuro observar que a categoria de mito que se encontra na teoria política gramsciana, designando uma representação coletiva que atua sobre o povo disperso para despertar e organizar a sua vontade política, é uma tradução realista do conceito especulativo de mito
do influente revolucionário francês Georges Sorel. Veremos que Gramsci incorpora criticamente esse conceito, depurando-o, porém, de seu caráter espontaneísta, voluntarista, romântico. De forma semelhante, ele traduz o conceito abstrato de paixão, homólogo ao de mito, do neo-hegeliano Benedetto Croce.
A tradução crítica de tais conceitos por Gramsci — e a própria superação da concepção idealista da história que marcou a sua formação juvenil — só se torna possível, como se pretende mostrar no segundo ensaio, a partir do momento em que Gramsci assimila a noção de práxis, nos anos que se seguiram à Revolução Russa. Graças à decisiva influência teórica de Lenin, a categoria gramsciana de vontade coletiva adquire determinações propriamente materialistas. A paixão política revolucionária passa a ser compreendida como algo dialeticamente relacionado à razão, isto é, à consciência da necessidade histórica.
Dos autores da tradição marxista que se apoiam no subjetivismo de Sorel para romper com o marxismo mecanicista da época da II Internacional, destaca-se pela sua originalidade o peruano José Carlos Mariátegui. Exilado na Itália após a Primeira Guerra e influenciado pelo mesmo caldo de cultura revolucionária que marcou o jovem Gramsci, Mariátegui reflete de forma bastante heterodoxa sobre a importância do mito no processo histórico. O homem, diz ele, é um animal metafísico
: necessita de uma crença superior
, uma esperança sobre-humana
, para se mover. Na tradição encontram-se os mitos conservadores e revolucionários que atuam ética e politicamente na transformação da história. Como se verá no terceiro ensaio, ele propõe que a classe trabalhadora peruana busque na cultura indígena, ligada ao passado inca, os mitos desencadeadores do movimento revolucionário.
A crise da vontade revolucionária de que nos fala Pier Paolo Pasolini em seu poema As cinzas de Gramsci
é o tema do quarto ensaio. Findo o pós-guerra, a revolução sai do horizonte dos homens e já não arde a paixão dos que lutaram contra o fascismo. O poeta se encontra diante das cinzas do líder da classe operária italiana e indaga-se sobre a serventia da razão, quando ela já não é capaz de mover os homens, iluminando o seu futuro. Ao mesmo tempo, ele percebe a inocuidade da paixão quando desconectada da inteligência e faz a crítica do historicismo místico dos partidos comunistas derrotados, que lançam mão da pura paixão
para incutir nas massas uma coragem ilusória.
No quinto e último ensaio, busca-se estabelecer um contraponto entre as abordagens de Gramsci e Reich acerca do fenômeno fascista. Considera-se que, para ambos, a questão da submissão voluntária dos homens ao fascismo é indissociável do problema da manipulação política das emoções. Entretanto, diferentemente do italiano, que compreende a servidão consentida dos homens como resultante de um processo de hegemonia, no qual os sentimentos das massas são atrelados às ideias políticas da classe dirigente, o marxista austro-húngaro a explica sob um viés psicanalítico. O fascismo, segundo ele, possui um componente psíquico. É o desvio místico das emoções — por meio da repressão sexual — que suscita toda forma de misticismo autoritário. A luta antifascista, nesse sentido, não pode deixar de envolver a liberação das emoções de suas couraças históricas.
Hoje, quando se vive uma fase histórica de derrota catastrófica das forças do trabalho e uma profunda crise da vontade revolucionária, o problema da paixão e do mito parece ser fundamental para os que, como Gramsci, ainda lutam pela construção de uma comunidade humana. No atual processo de regressão cultural, particularmente nos regimes protofascistas, em que a hegemonia se funda no misticismo, seja sob forma religiosa (neopentecostal) ou profana (a fé fundamentalista do mercado), é necessário que as classes inovadoras considerem a importância do mito, mas de um mito crítico e realista que mobilize ideias e emoções e se faça hegemonia. Nessa perspectiva, o presente livro pretende contribuir não apenas para um entendimento de como os grupos dirigentes exercem a sua liderança intelectual e moral hoje, mas também para se pensar a construção de uma vontade coletiva contra-hegemônica.
Rio de Janeiro, junho de 2020.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEGEL, G.W.F. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. São Paulo: Centauro, 2001.
MARX, K., ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e outros textos filosóficos. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.
NOTAS
1 Emoção guarda aqui o significado do verbo latino emovere, colocar em movimento
. Note-se que a palavra francesa émotion (sec. XV), formada a partir do latim motio movimento
, tinha também o sentido de tumulto
, agitação de uma massa popular
. Émeute, motim
, possui a mesma origem etimológica.
Gramsci e Sorel:
a tradução realista do conceito de mito
PARA GUIDO LIGUORI
Hoje com meus desenganos
me ponho a pensar
que na vida, paixão e razão
ambas têm seu lugar.
[ FERREIRA GULLAR E PAULINHO DA VIOLA
SOLUÇÃO DE VIDA (MOLEJO DIALÉTICO)
]
Em versos proverbiais, o poeta satírico Juvenal deplora o fato de que os cidadãos romanos, outrora poderosos, tenham se tornado escravos de prazeres corruptores e passado a reclamar apenas duas coisas: pão e circo (panem et circensis)². Repetida ao longo dos séculos, a expressão se refere a um fato elementar da política, o de que a satisfação limitada das necessidades e as emoções manipuladas têm sido fundamentais para se manter o povo afastado dos processos decisórios. Dos Césares, que construíram enormes circos, a Berlusconi, dono de um império de telecomunicações, passando pelos papas da Igreja que fizeram da Inquisição um caloroso espetáculo e por Mussolini, que soube muito bem explorar o sentimento nacionalista por meio de apoteóticas marchas e demonstrações de força, nem sempre houve pão para o povo, mas o circo persiste como um instrumento político de obtenção do consentimento da dominação: as paixões populares nunca deixaram de ser contempladas pela paternal solicitude dos donos do poder.
Desviando o interesse popular da arena política para a dos gladiadores, o circo patrocinado pelas elites se presta, em suas múltiplas formas, a uma estratégia sensível
(Sodré, 2006) de controle dos afetos populares. Essa estratégia foi claramente identificada por Maquiavel. O fundador da ciência política moderna ensinou em O Príncipe que, para garantir a manutenção dos Estados, os governantes precisam manter o povo ocupado com festas e espetáculos nas épocas convenientes
(1939, v. 2, p. 84).³ Essa ideia é ilustrada em