Declínio de um homem
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Sobre este e-book
O livro é estruturado em três cadernos, nos quais o autor, por meio do personagem alter ego Yozo — um jovem estudante provinciano que tenta sobreviver na capital Tóquio — relata em primeira pessoa diversos episódios sobre as hostilidades da vida que ele tem de enfrentar. Yozo é um depressivo contumaz cuja tristeza se espraia nele como uma metástase, contaminando suas energias e impedindo-o de recuperar uma alegria de viver que, na verdade, nunca sentiu. Se a princípio o jovem Yozo até se esforça para "ser aceito" pelos outros, esse esforço mascara uma dificuldade que lhe é atroz: sem a personalidade própria dos carismáticos, o rapaz recorre ao estratagema de fazer "palhaçadas", de modo a parecer divertido aos olhos de outrem. As momices, que podem incluir até esforços físicos — levar um tombo, por exemplo — muitas vezes funcionam, mas, quando desmascaradas, traumatizam ainda mais o personagem.
Afastado da família, e com dificuldades financeiras, ele sobrevive escrevendo histórias e fazendo desenhos de qualidade duvidosa — e com incursões na pornografia — para alguns periódicos populares. Nem mesmo as mulheres que se apaixonam por ele o fazem minimamente feliz, de modo que, com o passar do tempo, as manias de Yozo se tornam cada vez mais perturbadoras, pintando-o como um "jovem Werther japonês". O êxito editorial de Declínio de um homem talvez possa ser explicado pela maneira catártica com que Dazai escreve: diferentemente de seus pares mais tradicionais da literatura japonesa, em geral caracterizados pela sutileza e por tons etéreos, Dazai escreve com as vísceras, não se importando em trazer à tona fantasmas interiores mais obscuros. Sua escrita angustiada o coloca numa posição especial dentro do mapa da literatura nipônica.
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Avaliações de Declínio de um homem
534 avaliações10 avaliações
- Nota: 5 de 5 estrelas5/5Que drama envolvente, o personagem vai se degenerando e tornando-se um ser humano perdido em suas próprias emoções e medos, dessa forma acaba desperdiçando sua vida com prazeres mesquinhos, penso que a história deste, nos permite refletir a importância de buscar um significado transcendente para nossa existência!
- Nota: 4 de 5 estrelas4/5No Longer Human captured my attention in a way that The Setting Sun didn't quite manage to. Considering that this is a mildly autobiographical interpretation of the author himself, I'm cautious in how willing I am to call Oba Yozo out for his inclinations and behaviors, and am far more curious to try and understand where he is coming from.If I came away with nothing else, it's that there are a limitless number of ways in which a person can be pathetic, there are several instances where characters who are not Oba Yozo disqualify themselves from a standard that would classify them as a decent human being, and that no one is exempt from the concept of feeling or appearing no longer human.Also noteworthy is Oba Yozo's decline at the hands of drugs and alcohol. There came a certain point in the story where I began to noting several noteworthy similarities between Osamu Dazai's story, another titled Junky, by the American author, William S. Burroughs.
- Nota: 4 de 5 estrelas4/5This is a remarkable book. Loneliness and suicide, but with a new look. Sparse and moving words.
- Nota: 3 de 5 estrelas3/5No Longer Human has a certain cult reputation due to its bleak storyline and unremittingly pessimistic main character. With the exception of the notebooks' final line, which was quite a punch to the gut, I was strangely unmoved by the novel. Some people complain that Catcher in the Rye is just one long whinge; I'd disagree with that but such a complaint would match my thoughts on NLH. Perhaps that's because there's so little written in the novel to make us feel sympathy for Yozo. He's a completely wretched character and apart from one vaguely addressed incident when he was a child you're presented with little that makes you want to root for him. Yozo doesn't even help himself and seems only determined to ruin everyone else and debase himself as much as possible. This isn't a story like David Foster Wallace's The Depressed Person that highlighted the issues such individuals can face, the adverse problems that result from that, whilst simultaneously making you feel sympathy for a person who could be viewed as a pain in the neck.A human element does seem lacking from this novel and, despite the novel's title, I don't think that's the point. It made for quite a detached read that failed to bring me in to Yozo's world and feel his pain. The other pieces of fiction already mentioned in this review are works that succeed much better, in my opinion, at portraying a person feeling depressed or alienated and stoking emotions in the reader. For something sad, I'd recommend them, rather than NLH.
- Nota: 4 de 5 estrelas4/5The quiddity of No Longer Human was a game of antonyms. I found the novel heartbreaking because of the protagonist’s clarity; this isn’t a ready world for such vision.
- Nota: 4 de 5 estrelas4/5No Longer Human is only the second work by Osamu Dazai that I’ve read, the first being The Setting Sun. The Setting Sun was also the first of Dazai’s works to be translated into English. In 1958, No Longer Human became the second. New Directions then later republished Donald Keene’s translation in a paperback edition in 1973. The novel was in the middle of serialization in Japan in 1948 at the time of Dazai’s death. Along with The Setting Sun, No Longer Human is one of Dazai’s most well known novels. It also remains one of the top bestselling books in Japan to this day. The story has received several adaptations, including a manga adaptation by Usamaru Furuya to be published in English by Vertical in 2011. I have been meaning to read No Longer Human for some time now. Since it played such an important role in Mizuki Nomura's Book Girl and the Suicidal Mime, which I recently read and enjoyed, I figured it was about time I got around to it.To all appearances, Oba Yozo is a normal young man. The youngest son of a respectable family, leading a good life, and well liked by others, very few people would guess at his personal turmoil. He feels completely alienated from human society and finds it difficult to understand what exactly it is that is required of him. To cope, he becomes the class clown, hoping that if he can keep people amused and distracted they won’t notice his failings as a human. He is absolutely terrified that he will be revealed as a fraud. Because of this, he finds himself easily taken advantage of and subject to other people’s influence and desires for better and for worse.No Longer Human spoke to me on a very personal level and considering how well received the novel is I’m assuming I’m not the only one. I identified very closely with the protagonist and his worldview, although admittedly we have dealt with our issues in drastically different ways. It is this potential for empathy that makes No Longer Human so compelling. There are very few people in this world who haven’t felt some sort of disconnect between themselves and the rest of society at one point or another. Dazai captures this feeling of alienation honestly and completely in No Longer Human. The novel almost reads like a confession. In some ways, while being very personal, Yozo’s struggles are also incredibly universal.As with many of Dazai’s other works, No Longer Human incorporates many semi-autobiographical elements, lending to the novel’s sense of authenticity and immediacy. The story is tragic and probably not something you would want to read if you’re already feeling down or depressed. Yozo is arguably an unreliable narrator, certainly other characters don’t entirely believe him and assume much of his story is exaggerated, but I am convinced he is being truthful. In fact, the others' disbelief helps to emphasize his feeling of separation from those around him. The structure of the novel is interesting in that Yozo’s narrative is bookended by a prologue and epilogue by another, unnamed character who provides a supposedly objective view of the events described. No Longer Human is not a particularly long novel but it is still a potent story. I wouldn’t be surprised to find myself returning to read it again.Experiments in Manga
- Nota: 4 de 5 estrelas4/53-4 stars rounded up. I more admired this book than enjoyed it. The narration is deeply indebted to Dostoevsky (Notes from the Underground) and reads like Sartre and Camus (or Baldwin’s Giovanni’s Room), then the narrator directly names Crime and Punishment. It mines that same claustrophobic, self-absorbed, self-hating, misanthropic, misogynistic vein.
- Nota: 2 de 5 estrelas2/5Well, supposedly no longer human, but really very human, very bourgeois. I have heard this is assigned in the Japanese school curriculum: and nothing gets assigned in an official curriculum unless it supports the middle class. (Sorry, I've been reading to much Bernhard recently, especially "Gathering Evidence.")
- Nota: 5 de 5 estrelas5/5Feeling suicidal? This is not book for you. No Longer Human tells the story of a person who has to maintain a cheerful, chirpy attitude, while he is dying inside. Playing the part for so long, he no longer can identify his facade from himself, and thus, he is in despair.
- Nota: 4 de 5 estrelas4/5Reminiscent of Camus’s The Stranger. Many of my students recommended this to me because it resonated with them on some level. The language (even in translation) is powerful and sometimes beautiful. The main character is unlikeable- which, I guess, is the point.
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Declínio de um homem - Osamu Dazai
Epílogo
Prólogo
Vi três fotos daquele homem.
Na primeira, uma fotografia de infância, ele aparenta ter por volta de 10 anos, de pé, à beira do lago de um jardim, cercado por várias meninas (imagino que fossem suas irmãs e primas), vestindo um hakama¹ de listras largas, com a cabeça inclinada cerca de trinta graus à esquerda, mostrando um sorriso feio. Feio? Não é dizer que não existisse no sorriso daquele menino uma sombra do que se chama de gracioso
, suficiente para que pessoas insensíveis (ou seja, indiferentes à estética) fizessem, sem muito interesse, algum comentário vago — que menino bonitinho, não é?
— e isso não soasse como um elogio totalmente vazio. Contudo, qualquer um com alguma experiência com a estética, por menor que seja, ao olhar essa foto provavelmente murmuraria com enorme desagrado, que criança horrorosa!
, e a lançaria para longe, como quem afasta uma taturana.
De fato, quanto mais olho para o sorriso daquele menino, mais desconfortável me sinto. Em primeiro lugar, isso não é um sorriso. O menino não está sorrindo nem um pouco. A prova disso é que ele está parado apertando ambos os punhos com força. Nenhum ser humano consegue sorrir apertando os punhos desse jeito. É um macaco. É o sorriso de um macaco. Está apenas franzindo o rosto de forma grotesca. Que menino encarquilhado!
, é o que dá vontade de dizer diante dessa expressão tão esquisita, até mesmo obscena, do tipo que deixaria qualquer um estranhamente nauseado. Eu nunca havia visto um menino com uma expressão tão desconcertante.
Já na segunda foto, sua aparência está tão transformada que causa espanto. É um estudante. Talvez de ensino médio ou universitário, não há como saber ao certo, mas é um estudante extremamente belo. Contudo, também essa foto, inexplicavelmente, não passa a menor impressão de se tratar de um ser humano vivo. Ele veste o uniforme escolar, com um lenço branco saindo do bolso do peito, e está sentado de pernas cruzadas em uma cadeira de vime, novamente sorrindo. O sorriso agora não é mais aquele sorriso enrugado de macaco como antes, e sim um sorriso agradabilíssimo. Mas, por algum motivo, não parece o sorriso de um ser humano. Sua expressão não tem nem, digamos, o peso do sangue, nem a austeridade da vida, nada, nem um pouco dessa sensação de completude; é leve, não como uma ave, mas como uma pluma, uma folha de papel em branco, e está sorrindo. Em suma, passa uma impressão de artificialidade do início ao fim. Se dissesse se tratar de afetação, não bastaria. Se dissesse se tratar de superficialidade, não bastaria. Se dissesse se tratar de efeminação, não bastaria. Se dissesse se tratar de elegância, é claro que não bastaria. Além disso, olhando-o com cuidado, há algo também nesse belo estudante que provoca uma sensação desagradável, como uma história de terror. Nunca havia visto um jovem com uma beleza tão estranha.
A terceira foto é a mais estranha de todas. Não sei dizer ao certo quantos anos ele devia ter ali. Seus cabelos parecem um pouco grisalhos. Está no canto de um quarto muito sujo (a foto mostra claramente a parede do quarto rachada em três lugares), aquecendo as mãos em um pequeno braseiro, e dessa vez não sorri. Não tem expressão nenhuma. Para ser mais exato, é uma foto realmente repugnante, sinistra, como se, sentado com as mãos sobre o braseiro, ele estivesse morto. Mas o estranho não é somente isso. Nessa foto seu rosto está um pouco maior, então pude estudar em detalhes sua estrutura, mas sua testa era comum, as rugas ali também comuns, seus ombros comuns, seus olhos comuns, seu nariz, sua boca, seu queixo. Ah!, esse rosto não só não tem expressão, como nem ao menos deixa alguma impressão ao ser visto. Não tem nada de característico. Por exemplo, se observo a foto e fecho os olhos a seguir, no mesmo instante já me esqueci do rosto. Lembro do quarto, da parede, do braseiro, mas a impressão do rosto do personagem dentro do quarto desvanece, e não consigo lembrar dele por mais que tente. É um rosto que não poderia ser desenhado. Que não poderia se tornar nem mesmo uma caricatura. Abro meus olhos. Não sinto nem mesmo a alegria de um Ah, então era assim o seu rosto, lembrei
. Sendo um pouco extremo, diria que mesmo olhando para a foto, talvez não lembre de seu rosto. E, sentindo-me apenas incomodado e enojado, tenho vontade de desviar os olhos.
Até mesmo o rosto de um moribundo teria mais expressão, despertaria mais impressões; talvez se colocassem a cabeça de um cavalo no corpo de uma pessoa o resultado fosse semelhante. De todo modo, a foto causa espanto ou náusea a quem a vê. Certamente, nunca vi um homem com um rosto tão desconcertante.
Primeiro caderno
Vivo uma vida repleta de vergonha.
A vida humana é algo que não consigo entender. Tendo nascido no interior do Nordeste, já era um menino crescido quando vi um trem a vapor pela primeira vez. Eu subia e descia pela passarela da estação, sem perceber que ela era uma maneira que as pessoas tinham para passar por cima dos trilhos do trem. Achava que aquilo havia sido instalado ali para transmitir uma ideia ao mesmo tempo de complexidade e descontração, de sofisticação, como se o prédio da estação fosse um parque de diversões estrangeiro. Passei muito tempo acreditando nisso. Subir e descer a passarela era para mim, antes de tudo, uma brincadeira refinada, e achava que, dentre os serviços prestados pela companhia ferroviária, aquele era o mais elegante. Mais tarde, quando descobri que aquilo não passava de uma escada de uso prático para que os passageiros passassem por cima dos trilhos, meu interesse desapareceu instantaneamente.
E, ainda criança, quando via o desenho do metrô num livro ilustrado, não achava que aquilo fosse algo inventado em função de necessidades práticas, mas sim porque andar em trens que correm sob a terra era uma brincadeira mais divertida e excêntrica do que andar naqueles que ficavam acima dela.
Por ter uma saúde debilitada quando criança, eu vivia de cama e, deitado, pensava que lençóis, fronhas e capas de almofadas eram adornos muito sem graça, até que, com quase 20 anos de idade, descobri que são acessórios práticos e fiquei decepcionado com o comedimento humano.
Eu desconhecia o que era sentir fome. Não quero dizer com isso que venho de uma família abastada, não é nesse sentido idiota, mas eu desconhecia por completo qual é a sensação de ter o estômago vazio. Pode parecer estranho dizer assim, mas, mesmo que estivesse com fome, eu não percebia. Quando voltava da escola primária e, mais tarde, do ginásio, me recebiam dizendo: "Você deve estar com fome! Sabemos como é isso, a fome aperta no caminho da escola para casa! Quer feijão doce? Tem castela² e pão também, viu? Para mostrar o espírito bajulador que me é natural, eu sussurrava
que fome!", apanhava uns dez feijões doces e socava na boca, sem jamais ter sabido o que era estar de estômago vazio.
É óbvio que eu comia muito, entretanto, não tenho praticamente lembrança nenhuma de precisar comer para saciar a fome. Quando achava que algo era raro, comia. Quando achava que algo era luxuoso, comia. Também quando saía de casa, me forçava a comer tudo o que me ofereciam, até não poder mais. E assim, os momentos mais penosos da minha infância, na realidade, eram as refeições familiares.
Na minha casa no interior, as cerca de dez pessoas da família sentavam-se em frente a suas respectivas mesinhas de refeição, dispostas em duas fileiras postas frente a frente, sendo que o filho mais novo, eu, sentava-se obviamente no assento mais distante. Durante a hora do almoço, todos os dez membros da família comiam em sepulcral silêncio, naquele recinto sombrio que me dava arrepios. Além do mais, como era uma casa do interior, conservadora, os pratos servidos eram quase sempre os mesmos, e ninguém deveria esperar iguarias raras ou refinadas. Mais e mais eu temia a hora das refeições. Tremendo de frio em meu assento naquela sala escura, pegava pequenas porções de comida e as enfiava na boca, perguntando-me por que as pessoas precisavam comer três vezes por dia. Chegava a pensar se aquilo não seria só uma espécie de cerimônia, em que três vezes por dia a família decide um horário para se reunir num quarto escuro, enfileirar mesinhas de refeição e, mesmo sem vontade, comer de olhos baixos, em absoluto silêncio, talvez como uma forma de orar pelos espíritos que perambulam pela casa.
A frase Se você não comer, você morre
sempre soou para mim como uma ameaça detestável. Essa crendice (ainda hoje me parece que isso não passa de crendice), contudo, sempre me inspirou receio e medo. As pessoas trabalham para ganhar seu pão, pois se não comem, morrem.
Para mim, não havia frase mais obscura, difícil de entender e, ao mesmo tempo, que soasse mais ameaçadora do que essa.
Em resumo, eu ainda não compreendia nada sobre as ocupações das pessoas. O receio de que a minha noção de felicidade estivesse totalmente em desacordo com a noção de felicidade do resto das pessoas fazia com que, noite após noite, eu me revirasse de um lado para o outro na cama, gemendo, quase a ponto de enlouquecer. Será que eu era feliz? Desde