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O império da necessidade: Escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo
O império da necessidade: Escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo
O império da necessidade: Escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo
E-book550 páginas6 horas

O império da necessidade: Escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo

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Sobre este e-book

Em fevereiro de 1805, um experiente navegador da Nova Inglaterra cruzou com uma embarcação perdida nas águas revoltas do Atlântico Sul. Tratava-se do veleiro espanhol Tryal, que transportava negros africanos para as Américas, cujo capitão, Benito Cereño, havia sido feito refém por um grupo de escravos rebeldes.
Essa história incrível que serviu de inspiração para Benito Cereno, obra-prima de Herman Melville, é o ponto de partida para uma investigação ampla e profunda sobre escravidão e liberdade nas Américas.
Com o mesmo talento que lhe valeu elogios por Fordlândia, o historiador Greg Grandin, finalista do Prêmio Pulitzer e do National Book Award, acompanha os africanos ocidentais na terrível travessia do Atlântico, no frio dos Andes, e analisa como a fé no Corão os diferenciava dos outros escravos vindos da África. Grandin também segue Delano pelo Pacífico e retrata uma geração de homens do mar que estavam informalmente colonizando as ilhas da América do Sul.
Este livro conta a história de um mundo em pleno processo de revolução. Como disse Melville, "buscando conquistar uma liberdade maior, o homem apenas amplia o império da necessidade".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de set. de 2014
ISBN9788581224626
O império da necessidade: Escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo

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    O império da necessidade - Greg Grandin

    Para Eleanor

    SUMÁRIO

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    INTRODUÇÃO

    PARTE I: PEIXE FRESCO

    1 – Falcões à espreita

    2 – Mais liberdade

    3 – Um leão sem coroa

    4 – Corpo e alma

    5 – Uma conspiração de levante e tiros

    INTERLÚDIO: Nunca consegui olhar para a morte sem calafrios

    PARTE II: PEIXE SOLTO

    6 – Um guia para o êxtase

    7 – O sistema de nivelamento

    8 – Sonhos dos mares do sul

    INTERLÚDIO: O negro sempre terá algo de melancólico

    PARTE III: O NOVO EXTREMO

    9 – O comércio de peles

    10 – Decadência

    11 – A travessia

    12 – Diamantes nas solas dos pés

    INTERLÚDIO: A percepção do céu

    PARTE IV: ADIANTE

    13 – Matando focas

    14 – Isolados

    15 – Uma terrível autoridade

    16 – A escravidão tem graus

    INTERLÚDIO: Um alegre repasto

    PARTE V: SE DEUS QUISER

    17 – Noite do poder

    18 – A história do San Juan

    19 – A seita maldita de Maomé

    INTERLÚDIO: O abominável, desprezível Haiti

    PARTE VI: QUEM NÃO É UM ESCRAVO?

    20 – Desespero

    21 – Ilusão

    22 – Retaliação

    23 – Condenação

    INTERLÚDIO: A maquinaria da civilização

    PARTE VII: AVARIA GROSSA

    24 – Lima ou a lei da avaria grossa

    25 – A Ditosa

    26 – Solidão

    EPÍLOGO: Os Estados Unidos de Herman Melville

    Notas sobre fontes e outros temas

    Arquivos consultados

    Notas

    Agradecimentos

    Créditos das ilustrações

    Créditos

    O Autor

    Buscando conquistar uma liberdade maior, o homem apenas amplia o império da necessidade.

    Autor desconhecido, usado como epígrafe de The Bell-Tower, de Herman Melville.

    INTRODUÇÃO

    Quarta-feira, 20 de fevereiro de 1805, pouco depois do nascer do sol, no Pacífico Sul

    O CAPITÃO AMASA DELANO ESTAVA DEITADO EM SEU CATRE QUANDO SEU oficial de quarto veio avisar que uma embarcação tinha sido avistada se aproximando pela ponta de Santa María, uma pequena ilha inabitada na costa do Chile. Quando Delano acabou de se vestir e subiu, o estranho navio, como ele mais tarde o descreveu, tinha afrouxado as velas e naquele momento estava à deriva com o vento, em direção a uma ponta de rocha submarina. Para sua perplexidade, não trazia bandeira. Parecia estar em situação difícil e, caso se aproximasse mais dos rochedos, ficaria em perigo. Delano apressadamente mandou carregar um bote com água, abóboras e peixe fresco. Ordenou que baixassem o bote ao mar e embarcou.

    O tempo naquela madrugada estava encoberto e corria uma brisa constante, mas o raiar do sol revelou uma baía calma. Do outro lado da ilha, de onde veio a misteriosa embarcação, o mar estava revolto. Ondas infindáveis, recifes pontiagudos submersos e penhascos íngremes tornavam a costa impenetrável, proporcionando refúgios para as focas que em outras partes tinham sido caçadas quase até a extinção. Mas no leste da ilha, onde o Perseverance havia ancorado, o mar estava tranquilo, o fim do verão no Hemisfério Sul oferecia uma harmonia reconfortante de tons de terra, marrons, solos reluzentes, um mar esverdeado e céus azuis sem nuvens. Altos promontórios cobertos de cardos silvestres vermelhos protegiam uma enseadinha arenosa, um porto seguro usado por caçadores de focas e baleias para se reunir, entregar sacos de correspondência para navios que retornavam a seus países e refazer os estoques de água e lenha.

    À medida que o bote se aproximava do tal veleiro, Delano pôde ver o nome Tryal, pintado em inglês em letras brancas desbotadas ao longo da proa. Ele também pôde ver que o convés estava cheio de pessoas de pele negra, que pareciam ser escravos. E quando subiu a bordo, o capitão nativo da Nova Inglaterra, de pele de alabastro, se viu rodeado por dezenas de africanos, alguns marinheiros espanhóis e mulatos contando suas histórias e compartilhando mazelas numa Babel de línguas.

    Eles falavam wolof, mandinga, fula e espanhol, uma torrente de palavras indecifrável no detalhe, mas bastante tranquilizadora para Delano. Um pouco antes, quando seus homens remavam em direção ao navio, ele tinha observado que as velas estavam todas rasgadas. O que deveria ter sido uma rede ordenada de cordame e talhame era agora uma mistura lanosa desencontrada. O casco, calcificado, coberto de musgo, e arrastando uma longa esteira de algas marinhas, tinha um tom esverdeado. Mas ele sabia que era um ardil comum de piratas fazer seus navios parecerem em dificuldades, de modo a atrair vítimas a bordo. Napoleão tinha acabado de se coroar imperador dos franceses, Madri e Paris estavam em guerra com Londres, e corsários andavam atacando navios mercantes ao bel-prazer, mesmo no distante Pacífico Sul. Agora, contudo, rostos encovados e olhos frenéticos confirmavam que o sofrimento era real, e transformavam os temores de Delano em sentimentos de pena.

    Amasa Delano ficou a bordo do Tryal durante cerca de nove horas, de aproximadamente sete da manhã até pouco depois das quatro da tarde. Havia mandado sua equipe de volta para a ilha para encher os barris do Tryal de água, e assim passou a maior parte do dia sozinho em meio aos viajantes, conversando com o capitão, ajudando a distribuir a comida e a água que havia trazido, e cuidando do navio para que não ficasse à deriva. Delano, um primo distante de Franklin Delano Roosevelt, de uma família respeitada de armadores e pesqueiros da costa de Massachusetts, era um homem do mar experiente que estava no meio de sua terceira navegação ao redor do mundo. Mesmo assim, não conseguiu perceber que eram os escravos do Tryal, e não o homem que se apresentou como capitão, que estavam no comando.

    Liderados por um homem mais velho chamado Babo e seu filho, Mori, os africanos ocidentais tinham tomado o controle do Tryal quase dois meses antes e executado a maior parte dos tripulantes e passageiros, junto com o comerciante de escravos que os estava levando para Lima. Então fizeram com que Benito Cerreño, o dono e capitão do navio, os levasse para o Senegal. Cerreño havia se esquivado, temeroso de fazer a travessia do Cabo Horn com apenas alguns marinheiros e um navio cheio de escravos amotinados. Ele havia navegado primeiro subindo e depois descendo pela costa chilena, antes de cruzar com o Perseverance de Delano. Os escravos poderiam ter lutado ou fugido. Em vez disso, Babo propôs um plano. Os africanos permitiram que Delano subisse a bordo e se comportaram como se ainda fossem escravos. Mori se manteve ao lado de Cerreño e fingiu ser um criado humilde e devoto. Cerreño fingiu ainda estar no comando, inventando uma história sobre tempestades, calmarias e febres para justificar o estado do navio e a ausência de qualquer oficial, exceto ele próprio.

    Delano não sabia o que pensar de Cerreño. Continuava a se sentir incomodado na presença dele, mesmo depois de ter-se convencido de que não era um bandido. Delano confundiu o olhar vago de Cerreño – efeito de fome, sede e de quase dois meses sob a ameaça de morte, depois de ter presenciado a execução da maioria de sua tripulação – com desdém, como se o espanhol de aparência aristocrática, vestindo um paletó de veludo e calça larga preta, se achasse bom demais para conversar com um homem da Nova Inglaterra vestindo uma jaqueta de marinheiro. Os africanos, especialmente as mulheres, também deixavam Delano pouco à vontade, embora ele não soubesse dizer por quê. Havia quase trinta mulheres a bordo, entre elas mulheres mais velhas, mocinhas e cerca de nove mães amamentando bebês de colo. Depois que a comida e a água foram distribuídas, as mulheres pegaram seus bebês e se reuniram na popa, onde começaram a entoar um canto fúnebre com uma melodia que Delano não reconheceu. Ele também não compreendia a letra, embora a canção tenha produzido nele um efeito oposto ao do coro tranquilizador de línguas misturadas que o havia acolhido na chegada.

    Também havia o criado de Cerreño, Mori, que nunca saía do lado de seu senhor. Quando os dois capitães desceram para a coberta, Mori os seguiu. Quando Delano pediu a Cerreño que mandasse o escravo se retirar, de modo que pudessem ter uma conversa a sós, o espanhol se recusou. O africano era seu confidente e companheiro, insistiu, e Delano podia falar livremente na frente dele. Mori era, disse Cerreño, capitão dos escravos. De início, Delano achou graça na atenção que Mori dedicava às necessidades de seu senhor. Contudo, começou a se incomodar com sua presença, culpando-o vagamente pelo desconforto que sentia com relação a Cerreño. Delano ficou obcecado com o escravo. Mori, escreveu ele mais tarde, despertava meu espanto. Outros africanos ocidentais, inclusive o pai de Mori, Babo, estavam sempre por perto, sempre escutando. Eles pareciam antecipar os pensamentos de Delano, rodeando-o como um cardume de peixes-pilotos, levando-o ora para cá, ora para lá. Todos eles me olhavam com admiração, como um benfeitor, escreveu Delano em suas memórias, A Narrative of Voyages and Travels in the Northern and Southern Hemispheres, publicadas em 1817, ainda confundindo o que achava da maneira que os rebeldes o viram naquele dia, com como realmente o viram, mesmo doze anos após o acontecido.

    Foi somente perto do final da tarde, por volta das quatro horas, depois que seus homens tinham voltado com os alimentos e suprimentos adicionais, que a trama armada pelos africanos se revelou. Delano estava sentado na popa de seu barco de serviço, a ponto de voltar para o Perseverance, quando Benito Cerreño saltou do navio para fugir de Mori e veio se espatifar a seus pés. Foi naquele ponto, depois de ouvir a explicação de Cerreño para todas as coisas estranhas que tinha visto no Tryal, que Delano se deu conta da extensão do engano. Ele então preparou seus homens para reagir e desencadear um terrível ato de violência.[1]

    COM O PASSAR DOS ANOS, este caso notável – na verdade uma pantomima com elenco completo, em um ato de nove horas, sobre a relação senhor/escravo desempenhada por um grupo de homens e mulheres desesperados, famintos e sedentos, a maioria dos quais não falava a língua de seus pretensos captores – inspirou um grande número de escritores, poetas e novelistas, que viram na encenação lições para seu tempo. O poeta chileno Pablo Neruda, por exemplo, acreditava que a audácia dos escravos refletia a inconformidade da década de 1960. Nos últimos anos de vida, Neruda começou a escrever primeiro um poema longo e depois um roteiro de cinema que ele intitulou Babo, o Rebelde. Mais recentemente, em 1996, o uruguaio Tomás de Mattos escreveu um romance no estilo caixa chinesa, La Fragata de las máscaras, que usava o engodo como uma metáfora para um mundo onde a realidade não era o que estava escondido por trás da máscara, mas a própria máscara em si.[2]

    No entanto, de longe a história mais famosa inspirada pelos acontecimentos no Tryal e uma das mais impressionantes obras escritas da literatura norte-americana, é Benito Cereno, de Herman Melville. Quer ele tenha ficado impressionado com a artimanha dos escravos ou intrigado com a ingenuidade de Amasa Delano, Melville pegou o capítulo 18 do longo livro de memórias de Amasa Delano, "Particulars of the Capture of the Spanish Ship Tryal", e o transformou no que muitos consideram sua outra obra-prima.

    Melville usa o próprio navio fantasmagórico para criar o cenário, descrevendo-o como se tivesse vindo não do outro lado da ilha, mas das profundezas, envolto em mantos de vapor, movimentando-se como um carro fúnebre, deixando um rastro de grinaldas escuras de algas, sua corrente de âncora enferrujada parecendo corrente de escravos e suas balizas expostas através do casco como ossos. Os leitores sabem que o mal está a bordo, mas não sabem quem ou o que ele é ou onde poderia estar à espreita.[3]

    Exceto por um final totalmente inventado, Benito Cereno, publicado em capítulos numa revista chamada Putnam’s Monthly no final de 1855, é em grande medida fiel ao relato de Delano: depois que a artimanha é revelada, o navio é capturado e seus rebeldes, entregues às autoridades espanholas. Mas são os acontecimentos no navio, que ocupam dois terços da história, que levaram os críticos da época a comentarem sobre sua estranha narrativa e a descreverem sua leitura como um horror crescente.[4]

    A maior parte de Benito Cereno é ficção de Delano. Páginas e páginas dedicadas aos devaneios dele, e os leitores vivenciam o dia a bordo do navio – que Melville enche de estranhos rituais, comentários misteriosos, símbolos peculiares – como ele o vivencia. Melville mantém em segredo, do mesmo modo que foi mantido em segredo para Delano, o fato de os escravos serem fugitivos. E como o Delano real, a versão de Melville fica pasma com o relacionamento do capitão espanhol com seu criado pessoal negro. Na história, Melville combina o Babo e o Mori históricos em um único personagem chamado Babo, descrito como um homem magro de rosto aberto. A ideia de que o africano pudesse estar não só em pé de igualdade com o capitão espanhol, mas ser seu senhor estava além da compreensão de Delano. Amasa observa Babo cuidar delicadamente do indisposto Cereno, vestindo-o, limpando cuspe de sua boca e aconchegando-o em seus braços negros quando ele parece desmaiar. Enquanto senhor e criado estavam postados diante dele, o negro sustentando o branco, escreve Melville, o capitão Delano não pôde deixar de refletir sobre a beleza daquele relacionamento capaz de apresentar tamanho espetáculo de fidelidade de um lado e de confiança de outro. A certo ponto Melville faz Babo lembrar Cereno de que está na hora de fazer a barba, e então faz o escravo torturar psicologicamente o espanhol com uma navalha, enquanto Amasa, sem desconfiar de nada, assiste.

    Melville escreveu Benito Cereno entre o fracasso de venda e crítica de Moby-Dick em 1851 e o início da Guerra Civil Americana em 1861, em um momento em que parecia que o autor e o país estavam enlouquecendo. Limitado a um dia e ao convés de uma escuna de tamanho médio, o conto transmite uma claustrofobia que poderia ser aplicada a Melville (ele tinha nesta altura se isolado do mundo, no norte frio de sua fazenda de Berkeshire) ou a uma nação presa, apanhada numa cilada (como Amasa Delano foi apanhado numa cilada) de seus próprios preconceitos, incapaz de ver e assim evitar o conflito que se aproxima. Pouco depois de acabar de escrevê-lo, Melville sofreu um colapso e a América entrou em guerra. É uma história forte.[5]

    De fato, tão forte que é fácil esquecer que o incidente original em que é baseada não ocorreu nos anos 1850, às vésperas da Guerra Civil, nem nos recintos habituais onde historiadores dos Estados Unidos estudam a escravatura, como num navio no Atlântico ou numa plantation. Aconteceu no Sul do Pacífico, a oito mil quilômetros de distância do centro nevrálgico da escravatura americana, décadas antes que o comércio negreiro se expandisse no Sul e avançasse rumo ao Oeste, e não envolvia um senhor de escravos racista ou paternalista, mas, em vez disso, um republicano da Nova Inglaterra que se opunha à escravidão. Os acontecimentos no Tryal iluminam não uma América a caminho da Guerra Civil, mas um momento anterior, a Era da Revolução, ou a Era da Liberdade. A revolta dos escravos ocorreu no final de 1804, quase que exatamente na metade do caminho entre a Revolução Americana e as guerras hispano-americanas pela independência, um ano depois de o Haiti se declarar livre, criando a segunda república das Américas e a primeira de todos os tempos em qualquer lugar, nascida de uma rebelião de escravos.

    EDMUND MORGAN, DE YALE, nos anos 1970, foi um dos primeiros historiadores modernos a explorar plenamente o que ele chamou de paradoxo central dessa Era da Liberdade: ela também foi a Era da Escravidão. Morgan estava se referindo especificamente à Virgínia colonial, mas o paradoxo pode ser aplicado a todas as Américas, do Norte e do Sul, do Atlântico ao Pacífico, como revela a história que conduz aos acontecimentos no Tryal e o próprio episódio em si. O que era verdade para Richmond não era menos verdade para Buenos Aires e Lima – que liberdade para muitos era a liberdade de comprar e vender pessoas negras como bens.[6]

    Para ser exato, a Espanha trazia africanos escravizados para as Américas desde o início dos anos 1500, muito antes que o republicanismo subversivo, juntamente com todas as qualidades atribuídas a um homem livre – direitos, interesses, livre-arbítrio, virtude e consciência pessoal – começasse a se espalhar pelos Estados Unidos. Mas a partir da década de 1770, o tráfico de escravos passou por uma transformação impressionante. A Coroa espanhola começou a liberalizar sua economia colonial e as comportas se abriram. Comerciantes de escravos começaram a importar africanos para o continente de todas as maneiras que podiam, trabalhando com corsários para descarregá-los em praias vazias e enseadas escuras, transportando-os rios acima para as planícies e contrafortes do interior e levando-os em marcha forçada por terra. Os mercadores foram rápidos em adotar a nova linguagem associada à economia do laissez-faire para exigir o direito de importar ainda mais escravos. E eles não mediram palavras para dizer o que queriam: queriam más libertad, más comercio libre de negros – mais liberdade, mais comércio livre de negros.

    Mais escravos, inclusive Babo, Mori e outros rebeldes do Tryal, chegaram ao Uruguai e à Argentina em 1804 do que em qualquer ano anterior. Na ocasião em que Amasa estava navegando pelo Pacífico, uma febre de comércio de escravos, nas palavras de um historiador, havia se disseminado de Buenos Aires a Lima. Cada região das Américas tem sua própria história de escravatura, com seus próprios ritmos e pontos altos, mas tomando o Hemisfério Ocidental como um todo, o que estava acontecendo na América do Sul no princípio do século XIX era parte de uma explosão do tráfico de escravos no Novo Mundo que havia começado anteriormente, no Caribe, e estava bastante avançada no Brasil, colônia de Portugal, e, depois de 1812, atingiria o Sul dos Estados Unidos com força especial, com o movimento do algodão e do açúcar na Louisiana, atravessando o Mississippi na direção do Texas.

    Tanto nos Estados Unidos como na América Espanhola, o trabalho escravo produziu riqueza que tornou possível a independência. Mas a escravatura não era apenas uma instituição econômica. Também era uma instituição psíquica e imaginativa. Em uma época em que a maioria dos homens e quase todas as mulheres viviam alguma forma de ausência de liberdade – presos por obrigação, seja a contratos de aprendizagem, contratos por dívida, arrendamentos de terras, casas de trabalho ou cadeias, a um marido ou a um pai –, definir o que era a liberdade podia ser difícil. Dizer o que não era, contudo, era fácil: um escravo da Guiné. O ideal do homem livre, portanto, respondendo por sua própria consciência pelo controle de suas próprias paixões interiores, livre para buscar seus próprios interesses – o homem racional que se encontrava no centro de um mundo esclarecido –, era aprimorado em oposição ao seu contrário fantasiado: um escravo, preso tanto a seus apetites quanto o era ao seu senhor. Por sua vez, a repressão do escravo era uma metáfora conhecida para a maneira como a razão e a vontade devem reprimir desejos e impulsos se quisermos ser realmente livres e capazes de reivindicar uma posição de igualdade em uma civilização de homens igualmente livres.[7]

    Poderia parecer uma abstração dizer que a Era da Liberdade também foi a Era da Escravidão. Mas considerem os seguintes números: dos 10.148.288 africanos de que se tem conhecimento embarcados em navios negreiros com destino às Américas entre 1514 e 1866 (de um total que historiadores estimam ser de no mínimo 12.500.000), mais da metade, 5.131.385, foram embarcados depois de 4 de julho de 1776.[8]

    O PAS DE TROIS NO PACÍFICO SUL entre o nativo da Nova Inglaterra Amasa Delano, o espanhol Benito Cerreño e o africano ocidental Mori, coreografado por Babo, é dramático o suficiente para provocar espanto em qualquer historiador, capturando o choque de povos, economias, ideias e fés que era a América do Novo Mundo no início do século XIX. O fato de Babo, Mori e alguns de seus companheiros serem muçulmanos significa que três das grandes religiões monoteístas do mundo – o catolicismo de Cerreño, o protestantismo de Delano e o islã dos africanos ocidentais – se confrontaram no navio-palco.

    Além de pura audácia, o que é mais fascinante com relação ao engano de um dia inteiro é a maneira como expõe uma falsidade maior, na qual todo o edifício ideológico da escravatura se apoiava: a ideia não apenas de que escravos eram leais e simplórios, mas que não tinham vidas ou pensamentos independentes ou, se eles tivessem um eu interior, este também estava submetido à jurisdição de seus senhores, era também propriedade, que o que se via por fora era o que existia por dentro. Os africanos usaram talentos que seus senhores diziam que eles não possuíam (astúcia, razão e disciplina) para mostrar a inconsistência dos estereótipos nos quais os encaixavam (simplórios e leais). Naquele dia a bordo do Tryal, os escravos rebeldes é que foram os senhores de suas paixões, capazes de adiar seus desejos de, digamos, vingança ou liberdade imediata, e controlar seus pensamentos e emoções para desempenhar seus papéis. Mori em particular, como um oficial espanhol que examinou o caso escreveu posteriormente, era um homem habilidoso que representou com perfeição o papel de um escravo humilde e submisso.[9]

    O homem que eles enganaram, Amasa Delano, estava no Pacífico caçando focas, uma indústria predatória, sangrenta e, por um breve período, tão lucrativa quanto a pesca de baleias, mas ainda mais predatória. É tentador pensar nele como o primeiro de uma longa fila de americanos inocentes no exterior, ignorantes das consequências de suas ações, ao mesmo tempo que levam a si mesmos e todos ao redor à ruína. Delano, contudo, é uma figura mais envolvente. Nascido no movimento ascendente do otimismo cristão que deu origem à Revolução Americana, um otimismo que afirmava que os indivíduos estavam no comando de seus destinos, na vida após a morte e nesta vida, ele encarnava todas as possibilidades e limites daquela revolução. Quando inicialmente partiu da Nova Inglaterra como marinheiro, levava com ele as esperanças da juventude. Acreditava que a escravatura era uma relíquia do passado, certamente destinada a desaparecer. Contudo suas ações no Tryal, a descida de sua tripulação ao barbarismo e seu comportamento nos meses que se seguiram falavam de um futuro por vir.

    HERMAN MELVILLE PASSOU QUASE toda sua carreira de escritor refletindo sobre o problema da liberdade e da escravidão. Contudo ele o fez na maior parte do tempo de forma elíptica, com a intenção, aparentemente, de separar a experiência das peculiaridades de cor de pele, economia ou geografia. Ele raramente escrevia sobre a servidão humana como uma instituição histórica com vítimas e algozes, mas sim como uma condição comum a todos. Benito Cereno é uma exceção. Mesmo em tal obra, embora Melville, ao obrigar o leitor a adotar a perspectiva de Amasa Delano, esteja menos preocupado em expor horrores sociais específicos do que em revelar a ilusão fundamental da escravidão – não apenas a fantasia de que alguns homens eram escravos naturais, mas a de que outros podiam ser absolutamente livres. Percebe-se na leitura de Benito Cereno que Melville sabia, ou temia, que a fantasia não iria acabar, que depois da abolição, se a abolição um dia viesse, ela se adaptaria às novas circunstâncias, tornando-se ainda mais enganosa, ainda mais enraizada nas questões humanas. É esta percepção, este temor, que faz com que Benito Cereno seja uma história tão duradoura – e Melville um avaliador tão astuto do verdadeiro poder e legado durador da escravidão.

    Tomei conhecimento de que Benito Cereno era baseado em fatos reais quando escolhi a história para um seminário que lecionei sobre o excepcionalismo norte-americano. Aquela turma explorou como uma ideia geralmente atribuída só aos Estados Unidos – de que a América tinha uma missão providencial, um destino manifesto, de conduzir a humanidade a um novo amanhecer – era na verdade pensada por todas as repúblicas do Novo Mundo. Comecei a pesquisar a história por trás de Benito Cereno, pensando que um livro que se concentrava estritamente na rebelião e no estratagema podia ilustrar muito bem o papel que a escravidão desempenhava em autoentendimentos daquele tipo. Mas quanto mais eu tentava compreender o que havia acontecido a bordo do Tryal, e quanto mais eu tentava descobrir os motivos e valores dos envolvidos, de Benito Cerreño, Amasa Delano e, sobretudo, de Babo, Mori e dos outros africanos ocidentais, mais convencido ficava de que seria impossível contar a história – ou, melhor dizendo, impossível transmitir o significado da história – sem apresentar o contexto mais amplo. Eu a todo momento me via impelido a avançar pelo campo da atividade humana e da crença não imediatamente ligadas à escravidão, por exemplo, a pirataria, a caça às focas e o islã. Esta é a grande questão quando examinamos a escravatura norte-americana; ela nunca se limitou apenas à escravidão.

    EM SUAS MEMÓRIAS, DELANO usa um termo de marinheiros agora obsoleto, mercado de cavalos, para descrever o amontoado explosivo de marés convergentes, forte o suficiente para afundar navios. É uma boa metáfora. Era nisso que as pessoas a bordo do Tryal estavam presas, um mercado de cavalos de correntes históricas se chocando, de livre comércio, de expansão norte-americana, e escravidão, e de ideias conflitantes de justiça e fé. As rotas diferentes que conduziram todos os envolvidos no drama para o Pacífico revelam exatamente o paradoxo de liberdade e escravidão na América, tão persuasivo que podia capturar não só escravos e mercadores de escravos, mas também homens que não eram nem uns nem outros.

    PARTE I

    PEIXE PRESO

    Primeiro: O que é um peixe preso? Vivo ou morto, um peixe é tecnicamente preso quando conectado a um navio ou barco, por todo e qualquer meio controlável pelo ocupante ou ocupantes – um mastro, um remo, um cabo de nove polegadas, um fio de telégrafo ou um fio de teia de arame, dá tudo no mesmo.

    – HERMAN MELVILLE, MOBY-DICK

    CAPÍTULO 1

    FALCÕES À ESPREITA

    NO INÍCIO DE JANEIRO DE 1804, UM PIRATA FRANCÊS DE UM BRAÇO SÓ CHEGOU no porto de Montevidéu. Os espanhóis de sua tripulação multinacional tinham dificuldade de dizer o nome dele, de modo que o chamavam de capitão Manco – manco sendo o termo genérico em espanhol para aleijado. François-de-Paule Hippolyte Mordeille não se incomodava com o apelido. Era do posto que ele não gostava.

    Mordeille era um navegador jacobino. Ele comandava homens que usavam cinturões vermelhos, cantavam a Marselhesa e trabalhavam no convés ao ritmo de canções revolucionárias, Longa vida à República! Morte para todos os reis da terra! Enforquem todos os aristocratas na verga! Comandando navios chamados Le Brave Sans-Culottes, Révolution e Le Démocrat, ele patrulhava a costa da África da Île de France (hoje Maurício) no Oceano Índico até o Senegal, no Atlântico, perseguindo os inimigos da Revolução Francesa e protegendo seus amigos. Mordeille, fiel ao seu espírito republicano, preferia ser chamado de citoyen – cidadão – ou Citoyen Manco, se necessário. Mas não de capitão.

    Navegando para o sul desde o Brasil, Mordeille embicou para estibordo e contornou a costa enquanto entrava no Rio da Prata, a grande estrada de água que leva a Montevidéu, Buenos Aires e a pontos mais além. O largo golfo parecia acolhedor. Mas era raso, cheio de recifes e pedregulhos. Seus afluentes de águas rápidas – era a foz de vários rios – corriam por algumas das regiões mais secas da América do Sul, despejando toneladas de sedimentos no estuário, levantando bancos de areia e redirecionando rotas marítimas. Fortes ventos trazendo nuvens escuras vindos dos pampas eram especialmente traiçoeiros (no original, é inserido aqui o mesmo mapa da contracapa) quando batiam na água na maré baixa. Alguns anos antes um vendaval tempestuoso havia destruído oitenta e seis navios de uma só vez. Mesmo a margem norte, considerada a rota mais segura e ao longo da qual Mordeille navegou, era conhecida como costa do carpinteiro, uma vez que tais profissionais que trabalhavam com madeira ganhavam a vida recuperando e reutilizando caibros de navios danificados trazidos pelas águas.[1]

    Das duas cidades do Rio da Prata, Buenos Aires, situada mais para o interior na margem sul, era mais rica. No entanto, os marinheiros preferiam Montevidéu, na margem norte. Era abarrotada de cascos de navios afundados e ainda não tinha um cais nem um píer, mas seu porto era mais profundo que o leito de rio raso ao largo de Buenos Aires e, portanto, preferível para carregar e descarregar. Mordeille entrou velejando, pilotando seu navio, o Hope, pelas águas lamacentas da baía, até encontrar ancoragem segura. Atrás dele vinha o Neptune, um navio que Mordeille e sua tripulação haviam capturado perto da baía de Biafra.[2]

    COM FUNDO DO CASCO de cobre, estrutura de teca, três mastros e três conveses, o Neptune de 343 toneladas com um talha-mar pontudo de ângulo afiado adornado por uma carranca com belo trabalho de entalhe: um leão sem coroa, como os espanhóis mais tarde descreveriam a figura de proa. Era grande e parecia um navio de combate. Seu propósito, contudo, era transportar carga, e não guerrar. Não era adversário à altura de embarcações menores, mais bem armadas como o Hope, um fato que seu capitão, David Phillips, descobriu a grande custo.

    Enquanto o navio estava ancorado ao largo de Bonny Island, Phillips ouvira relatos de que uma corveta francesa navegava pelas rotas marítimas, se mantendo entre ele e alto-mar. Mas com o porão cheio, decidiu se arriscar a um confronto e partir para Barbados. Quando viu o Hope se aproximando rapidamente da popa, Phillips deu ordem de fuga. Mas seu perseguidor foi mais rápido, cortando o navio mercante pela proa, obrigando-o a reduzir a velocidade. Mordeille então deu meia-volta, rizando as velas de sua embarcação e dando de cara com o Neptune. Phillips estava sem saída.

    Se o objetivo fosse destruir o alvo, a luta teria acabado rapidamente. Mas as regras de corso diziam que Mordeille poderia ficar com toda a carga do Neptune, de modo que seus homens apontaram os canhões não para o casco, mas para o estaiamento e as velas. Os tiros continuaram enquanto grumetes corriam de um lado para outro jogando água no convés do Hope para impedir que pólvora explodida incendiasse o navio. Um grupo de homens se preparou com machados para tomar o Neptune a mão. Armas que não foram necessárias. Uma bala atingiu o leme, tornando impossível conduzir o navio, e, depois de cerca de mais uma hora de disparos, com onze de seus tripulantes mortos e outros dezesseis feridos, e suas velas furadas e cordame em pedaços, o capitão Phillips se rendeu.

    Quando os homens de Mordeille abriram a escotilha do porão do Neptune, encontraram quase quatrocentos africanos, principalmente meninos e homens com idades entre doze e 25 anos, mas também algumas mulheres e crianças.

    Eles estavam acorrentados e vestidos com batas de algodão azul.

    DOCUMENTOS ESPANHÓIS INDICAM que alguns dos rebeldes do Tryal estavam entre eles. Mas não dizem quem ou quantos. O nome Mori era comum entre os cativos embarcados em Bonny. De acordo com um banco de dados de nomes africanos, de todos os homens registrados chamados Mori que deixaram a África como escravos, um número grande, pouco menos que 37 por cento, partiu de Bonny. Variações de Babo – Baboo, Babu, Baba e assim por diante – também se encontravam entre os escravos embarcados em portos próximos. Os registros judiciais mencionam os nomes de apenas treze outros participantes no motim, todos homens: Diamelo, Leobe, Natu, Qiamobo, Liché, Dick, Matunqui, Alasan, Tola, Yan, Malpenda, Yambaio, ou Samba e Atufal. Os 57 outros homens e mulheres da África Ocidental a bordo do Tryal permanecem anônimos.

    A maioria dos homens e mulheres que Mordeille encontrou no Neptune já viajava há semanas, em alguns casos meses, navegando ao longo dos afluentes principais e secundários do enorme Níger, uma rede muito extensa alcançando os recônditos do interior. Bonny era uma escala muito procurada naquela época, uma vez que grandes navios de considerável calado podiam ancorar no leito de areia dura e embarcar grandes carregamentos, em alguns casos de até setecentos africanos. O rio era espaçoso e profundo, relatou um marinheiro inglês na época em que o Neptune teria chegado, mais largo que o Tâmisa. A qualquer momento poderia haver uma fila de até quinze navios, muitos deles de Liverpool, alinhada ao longo da costa da ilha, esperando pelos mercadores de escravos que vinham do interior a cada quinze dias. Os mercadores chegavam em flotilhas de vinte a trinta canoas, cada uma contendo até trinta cativos para serem trocados por armas, pólvora, ferro, tecidos e brandy.[3]

    Os europeus que trocavam mercadorias por escravos, em Bonny e em outros locais da África Ocidental, não tinham nenhuma ideia de onde os escravos vinham. Ainda em 1803, a Real Companhia Britânica da África instruiu seu agente em Cape Coast Castle, na Costa do Ouro, a oeste de Bonny, a investigar de quem os mercadores africanos compravam seus escravos: eles vinham para a costa em pequenos grupos ou caravanas? Quais eram os nomes das cidades ou vilarejos por onde passavam? As pessoas nestas cidades eram muçulmanas ou pagãs? Se eles vinham do Grande Deserto, qual era o nome de suas tribos? Se vinham de além do Níger, o que eles sabiam com relação ao curso do rio? Eles tinham alguma informação sobre a grande cadeia de montanhas que se acreditava estender da região dos mandingas até a Abissínia? Os britânicos tinham estado na Costa do Ouro por mais de cem anos – eles controlavam Cape Coast Castle desde 1664 –, e apesar disso o agente deles podia dar apenas respostas vagas a estas perguntas.[4]

    Os africanos embarcados em Bonny, ainda que seus escravizadores não conhecessem sua origem, tinham uma reputação de serem obstinados e dados ao fatalismo. Estas duas qualidades podem parecer contraditórias, mas elas frequentemente resultavam na mesma ação: suicídio. Um médico de navio, Alexander Falconbridge, em sua condenação do tráfico de escravos de 1788, relata o fato de que quinze escravos embarcados em um navio em Bonny se atiraram no meio de um cardume de tubarões, antes que o navio deixasse o porto. Outro viajante em um navio negreiro de Bonny, um garoto que foi mantido acordado pelos gritos daqueles negros, descreveu três cativos que conseguiram se soltar e saltar pela borda: eles ficaram dançando em meio às ondas, gritando a plenos pulmões o que me pareceu ser uma canção de triunfo, até que suas vozes foram se tornando cada vez mais fracas no vento.[5]

    O NEPTUNE ERA UM NAVIO negreiro de Liverpool, o que significava que, para Mordeille, sua captura era mais do que potencialmente lucrativa. Era pessoal. O francês havia perdido o braço ao fugir de uma masmorra espanhola, mas tinha sido durante um bloqueio em Portsmouth, depois de ser capturado por um corsário de Liverpool, que ele havia desenvolvido seu ódio tenaz pelos britânicos.[6]

    Liverpool havia entrado na luta contra o republicanismo com excepcional fervor. Quando chegou a notícia no início de 1793 de que os franceses haviam executado seu rei, Luís XVI, os altos representantes da cidade tinham baixado a bandeira da Grã-Bretanha hasteada sobre a alfândega de Liverpool a meio mastro. O pesar levou à raiva, e a raiva à ação contra os regicidas, para impedir que, advertia um jornal, o barrete vermelho da liberdade fosse levantado, a bandeira da morte fosse desfraldada, a Marselhesa, entoada, o racionalismo, proclamado, e a deusa e sua guilhotina se tornassem permanentes em Piccadilly. Os traficantes de escravos, os fazendeiros e os transportadores financiaram uma grande frota mercenária composta de sessenta e sete navios corsários, navios velozes, equipados com vinte canhões ou mais para levar a luta contra o jacobinismo para o mar. Por algum tempo, os navios franceses ficaram à sua mercê.

    Mas então Paris começou a pôr em campo seus próprios corsários, inclusive Mordeille, e a ascensão de Napoleão levou a um aprimoramento das forças navais da república. Quando o Hope finalmente atacou o Neptune, a França não só podia se defender melhor em mar aberto, como podia partir para a ofensiva, atacando navios de carga e negreiros britânicos enquanto estes viajavam indo e vindo das plantações de açúcar do Caribe. Navegando sob uma bandeira holandesa e com uma carta de corso francesa, Mordeille estava entre os mais tenazes destes vingadores, saudado pela imprensa napoleônica como o flagelo de Liverpool: Mordeille! Mordeille! Pequeno e frágil, mas na hora da luta tem o tamanho e a força dos heróis.[7]

    O Neptune era de propriedade de John Bolton, um dos maiores financiadores da frota mercenária da cidade e fornecedor de um esquadrão privado de quase seiscentos homens que ele havia batizado de Invencíveis de Bolton, armados para proteger Liverpool de inimigos internos e externos. Nascido como menino pobre, filho de um boticário de aldeia, iniciou sua carreira como aprendiz de balconista nas Índias Ocidentais e diz a lenda que ele transformou um saco de batatas e um pedaço de queijo no capital inicial do que se tornaria um império do tráfico de escravos. Abandonando sua esposa de cor e filhos sem um tostão no Caribe, ele voltou para Liverpool, dividindo o tempo entre seu escritório de contabilidade na Henry Street e a Storrs Hall, uma mansão rural construída no meio de um pomar ornamental em um promontório com bosques e vista para o Lago Windemere, onde recebia políticos conservadores e poetas românticos, inclusive seu amigo William Wordsworth.

    Bolton podia ter nascido humilde, mas a riqueza produzida por no mínimo 120 viagens de tráfico de escravos lhe permitiu ser enterrado em um caixão de luxo, envolto em veludo negro cravejado de pregos de prata. Seu cortejo fúnebre conteve

    à frente, oito cavalheiros lado a lado, trezentos meninos da Escola Naval em seis fileiras, duzentos e cinquenta cavalheiros a pé, em seis fileiras, sessenta cavalheiros a cavalo, trinta carruagens particulares em uma fileira. Vários troles. (...) Quatro pranteadores a cavalo. Três coches fúnebres, cada um puxado por quatro cavalos. A carruagem particular do Sr. Bolton, puxada por quatro belos cavalos puro-sangue, fechava o cortejo.

    Foi uma memorável despedida ao estilo de Liverpool e observadores relataram que os sinos de St. Luke dobraram com beleza excepcional no dia em que Bolton foi enterrado.[8]

    À MEDIDA QUE SE preparavam para fazer a travessia do Atlântico, o Hope e o Neptune eram contradições flutuantes da Era da Revolução. A bordo de um

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