A cobrança
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A cobrança - Mário Rodrigues
Agradecimentos
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza
(Art. 5º, Constituição da República Federativa do Brasil)
1
(...) para curar a cegueira da imaturidade, filho, basta o colírio do tempo (...) os joelhos tocam o gramado áspero e mentiroso enquanto você recorda a frase dita por seu pai — compreende a derradeira sentença daquele homem, o fiapo de voz (...) os olhos estão lacrados; vai abri-los em instantes, mas por ora prefere gozar desta provisória cegueira, deste labirinto translúcido, destas ondas de cinza e fosforescência: o avesso psicodélico das pálpebras; e, que ironia!, mesmo sem enxergar nitidezes, só você, neste momento, consegue vislumbrar o futuro — pois será o futuro, fará o futuro (...) os braços estão sobre os ombros dos colegas, formam um polvo suicida-aleijão; colegas, apenas; não amigos, não companheiros, não irmãos, inexistem afeições aqui; vocês, de certa forma, se odeiam; concorrem: por contratos em clubes estrangeiros, por publicidades, por entrevistas na tv, por mulheres (...) já se cansaram de seus corpos e almas: nos últimos cinquenta dias, estiveram juntos e nus: mediram a extensão e a espessura de seus sexos, alisaram recreativamente suas bundas, dividiram banheiros e banheiras, gelos e saunas, vestiários e túneis, preleções e passes, concentrações e bordéis; com um desses atletas, você divide o quarto desde a granja comary, em teresópolis (...) contudo, repito: não há afeição aqui; muito menos neste coletivo abraço-protocolo no meio deste campo de futebol (...) e você está mudo, mudo?, é estranho, sempre gritou demais neste gramado retangular; sempre foi o que mais reclamou com colegas indolentes; é o chamado líder — não pela técnica, essa malvada, que nunca o bafejou —, é o líder pela garra, pela abnegação, pela entrega sempre demonstrada; não há uma parte exterior do seu corpo que não tenha se desgastado neste solo verde (...) e continua cabisbaixo: a posição dos humildes, posição tão sua conhecida; lembra-se: no piso de cimento queimado, ouvia o técnico de futsal da escola; no piso de barro vermelho, concordava com o técnico da várzea; no piso de grama rala, apoiava o técnico dos juniores; na grama alta, bajulava o técnico dos aspirantes; na grama podada milimetricamente e molhada como catimba — dando à bola velocidade que poucos, bem poucos, interpretam a contento —, você endossava, fingindo crença, as platitudes do mais famoso técnico do país; sempre baixou a cabeça, sempre lhes ouviu as instruções: olhando, óbvio, para o chão (...) resiliência-obediência: esse foi seu retrato (...) mas, agora, aqui está você: de joelhos, de olhos lacrados, de abraços trocados, de boca fechada, de cabeça reclinada — embora saiba, e só você sabe disso, que neste momento é poderoso: é o mais poderoso entre duzentos e tantos milhões de brasileiros
2
Cinco de outubro, 1988. Era primavera. Aquela tarde em Brasília, a capital federal, estava nublada. Um vento frio e extemporâneo lufava sobre as águas do Paranoá. Ouviram-se tiros de canhão e o Hino Nacional em fanfarra. Debaixo de fogos de artifícios — explodidos contra um céu gris que lhes furtava a cor, como se a luz de fato não pertencesse àquele momento —, os presidentes da Constituinte, da República e do Supremo Tribunal Federal chegaram, em comitiva, ao Congresso Nacional, subiram a rampa. Às 15h50, ouvia-se: Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude. Que isto se cumpra!
Essas palavras foram gritadas, em voz rasgada, por um velho com sotaque démodé, prosódia de outros tempos. A voz embargada, emocionada, oferecia promessas que jamais seriam cumpridas pelas décadas adiante. Era a sétima vez, desde 1824, que o país teria uma Carta Magna. Foi apelidada de Constituição Cidadã, pois houvera intensa participação popular na elaboração do texto — porque quem quis se manifestou e foi acolhido
, isso foi o que disse o sujeito que à época presidia a mais alta corte judicial do país. Durante o anúncio, outros velhos que estavam à mesa da Câmara se levantaram aplaudindo o momento histórico. Entre eles um romancista, o então presidente do Brasil. (Em minutos, quando do seu juramento, a mão do maranhense estaria espalmada e trêmula. Metáfora perfeita do que viria pela frente: uma democracia espalmada e trêmula.) Todos usavam paletó e gravata e estavam, também, orgulhosos do que fizeram. Os aplausos foram seguidos pelas centenas de pessoas que, num plano subalterno à mesa, no que chamam de plenário, batiam palmas exageradas e bradavam como se estivessem em um circo — estavam em um circo de carpete verde. À noite, no onipresente telejornal da maior rede de TV do país, o apresentador de cabelos completamente alvos e de voz percuciente anunciou à população — de maneira solene e soturna — o que aquelas centenas de deputados constituintes e puxa-sacos úteis presenciaram in loco: a nação tinha um novo conjunto de leis. Os principais repórteres da casa — o do noticiário político e o do noticiário econômico — repercutiram a boa-nova com frases de efeito: É a Constituição de todos, porque foi aprovada pela maioria dos representantes do povo brasileiro. Ela pretende ser a Constituição da primavera de um Brasil novo. Se, com ela, vai vir um novo Brasil, depende de nós.
Apesar dos esforços midiáticos, o povo, de quem todo o poder emana
, ignorava, como sempre, o que aqueles indivíduos debateram na Assembleia Nacional Constituinte, entre 1º de fevereiro de 1987 e 22 de setembro de 1988 — e, afinal, colocaram no papel. Há quem diga que o senhor presidente da Constituinte — cujo nome era o de um mitológico herói grego e que, diferente deste, não escaparia dos arcanos e da fúria dos ventos e dos mares — chorou quando a sessão terminara. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela: discordar, sim; divergir, sim; descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria.
3
As pernas bambas formavam um V (medonho) e estavam apoiadas nos suportes afixados nas laterais da mesa de obstetrícia.
As coxas foram mal depiladas porque a vaidade da mulher minguara nos últimos meses de enjoos, pés inchados, gulodice incontrolável e estrias ramificadas.
Os grandes lábios vaginais ficaram escancarados e encarnados.
O topo da cabeça cabeluda e úmida do menino apontava para o mundo. Mas a criança emperrou nas bordas do sexo da mãe.
A mulher gritava.
Mais: praguejava — com olhos injetados, cara amarfanhada e cabelos assanhados.
Não havia fórceps por perto para mecanicamente ampliar o grotesco daquela abertura por si só grotesca.
A auxiliar de enfermagem empurrou a barriga da mulher de cima para baixo: um braço fazia a alavanca e o outro — com o antebraço servindo de espátula — realizava o movimento.
O menino continuava emperrado.
Episiotomia era a solução: afinal o doutor não tinha tempo a perder e tinha que rodar a maternidade.
Um bisturi percorreria veloz da vagina ao ânus.
A lâmina gelada escorrendo sobre a lidocaína e rasgando o períneo: língua afiada lambendo e arando o couro de suas vergonhas.
(Contudo, a lâmina ainda estava no invólucro de alumínio, e os segundos que a auxiliar de enfermagem — misto de atrapalho e irresponsabilidade — perdeu, tentando tirar o bisturi da embalagem, foram prestações de agonia que traspassaram a mulher esgarçada em decúbito dorsal, penetrada pela senhora de todas as dores.)
À espera. À espera de um filho: um filho que nunca quisera — nunca quisera e nunca planejara. E aquele entojo estava lacerando-a para o resto da vida, afolozando-a, marcando o que ela tinha de mais íntimo e de seu exclusivamente: o prazer e o sexo.
À espera de um filho: filho de um homem que a aceitara quando ela perdera a virgindade com o caminhoneiro incógnito e fora estapeada pelo pai marchante em praça pública, virando assunto único na pequena cidade durante meses. E, depois desses anos de relação, a tal bondade parecia a ela o pior dos castigos.
À espera da morte: a morte —