Gracias a la vida: Memórias de um militante
De Cid Benjamin
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Sobre este e-book
Líder estudantil, figura destacada na guerrilha urbana contra a ditadura militar, um dos idealizadores do sequestro do embaixador americano, Charles Burke Elbrick – do qual participou ativamente – e dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), Cid viveu o movimento de massas em 1968, a prisão, a tortura e a clandestinidade.
Em seu longo exílio, trabalhou como engenheiro numa fábrica de confecções em Cuba, e ganhou a vida como funcionário administrativo numa escola e professor numa creche na Suécia. De volta ao Brasil, em setembro de 1979, Cid Benjamin foi fundador e dirigente do PT, partido do qual acabou se afastando para filiar-se ao PSOL.
Jornalista, desenvolveu suas qualidades de escritor, tornando-se um dos grandes contadores da história de sua geração. Com memória implacável – e, eventualmente, até com senso de humor –, Cid mobiliza na linguagem seu poder de contar as muitas esperanças e alguns dos horrores que atravessam a obra literária do século XX.
Assim como não se reduz um grande escritor a seu tempo, os ensaios críticos de Cid não se limitam a imprimir seus anseios e seus protestos ao movimento da história contemporânea. Eles são um valioso instrumento para a luta daqueles que querem uma sociedade mais humana. Cid Benjamin nunca desiste de lutar para fazer justiça.
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Gracias a la vida - Cid Benjamin
Cid Benjamin
Gracias a la vida
Memórias de um militante
1ª edição
Rio de Janeiro, 2013
© Cid Benjamin, 2013
Reservam-se os direitos desta edição à
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 − 3º andar − São Cristóvão
20921-380 − Rio de Janeiro, RJ − República Federativa do Brasil
Tel.: (21) 2585-2060
Produced in Brazil / Produzido no Brasil
Atendimento direto ao leitor:
Tel.: (21) 2585-2002
ISBN 978-85-03-01233-1
Capa: HÉLIO DE ALMEIDA
Livro revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B416g
Benjamin, Cid
Gracias a la vida [recurso eletrônico] : memórias de um militante / Cid Benjamin ; prefácio Milton Temer. - 1. ed. - Rio de Janeiro : José Olympio, 2013.
recurso digital
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-03-01233-1 (recurso eletrônico)
1. Marighella, Carlos, 1912-1969. 2. Movimentos de libertação nacional - Brasil. 3. Revoluções - Brasil - Filosofia. 4. Comunismo - Brasil. 5. Guerrilhas - Brasil - História. 6. Atividades subversivas - Brasil. 7. Brasil - Política e governo - 1964-1985. 8. Livros eletrônicos. I. Temer, Milton, 1938-. II. Título.
13-05815
CDD: 981.063
CDU: 94(81).088
A meus pais, Ney e Iramaya
AGRADECIMENTOS
Pelo estímulo para que este livro fosse escrito e pelas valiosas críticas e sugestões, ficam aqui meus agradecimentos a Ângela Dias, Ary Miranda, Cristina e Leandro Konder, Jander Duarte, José Sérgio Rocha, Julita Lemgruber, Manuela Oiticica, Milton Temer, Paulo Passarinho e Teresa Sopeña.
SUMÁRIO
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
E o cerco se fechou
Na cova dos leões
De tortura, torturados e torturadores
A saída do inferno
Um golpe de mestre
A opção pela militância
Encarte
E o castelo de areia ruiu
Das ilusões à aventura
O exílio começa de verdade
A hora e a vez da estrela
A estrela perde o brilho
A estrela se apaga
Navegar é preciso
EPÍLOGO
ANEXO I
ANEXO II
CRONOLOGIA
PREFÁCIO
MILTON TEMER
Este livro de Cid Benjamin vem na esteira temática do excelente Marighella, de Mário Magalhães. Mas vai mais longe. Porque Cid, para além de jornalista de larga experiência, foi parte ativa da história recente do Brasil. Ou seja, viveu a pesquisa.
É o próprio banco de dados de um texto autobiográfico, mas, ao mesmo tempo, fundamental para o conhecimento do que se passou em nosso país e do que foi a vida no exílio de uma geração de brasileiros que não se dobrou ao assalto às instituições republicanas no golpe de 1964. E que, com o garrote político, parlamentar e sindical consequente do famigerado Ato Institucional n˚ 5, teve suas razões para enveredar pelo caminho da luta armada.
Tanto no combate à ditadura que nos assolou por duas décadas, quanto na transição — quando a afirmação de um Partido dos Trabalhadores (PT) e de uma Central Única dos Trabalhadores (CUT) nos encheu de alegria, posteriormente frustrada — e no marasmo que nos assola desde o período FHC, Cid viveu tudo com intensa atividade militante. Desde o guerrilheiro ousado — um dos mais importantes operadores do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick — ao ativista partidário e ao jornalista e professor universitário de nossos dias, sua memória nos garante estar diante de um dos mais consolidados e objetivos relatos sobre esses anos de nossa história recente.
Cid não renega seu período de luta armada, como vários dos que o precederam em balanços e avaliações literárias sobre o tema da guerrilha urbana brasileira. Não se preocupa em ser bem aceito pelo sistema que antes contestava, porque continua contestando-o. Ele faz compreender, até àqueles que já na ocasião não concordavam politicamente com a opção, porque o movimento foi legítimo e porque jovens não hesitaram em colocar suas vidas em jogo diante de um aparato de repressão monstruoso e cruel, no qual a implantação do terror de Estado operava como política preventiva. Nele, o terror era aplicado deliberadamente, mesmo de forma exagerada, com o objetivo de gerar o pânico antecipado. Cid consegue avaliar a razão dos equívocos com racionalidade e distanciamento. Não mitifica a valentia, nem supervaloriza os atos de coragem. Mas também não é um texto de arrependido ou derrotado.
Por isso passa inteira credibilidade aos relatos sobre os grandes confrontos e os principais personagens.
E por que ressalto essas características? Porque é isso que sinto diferenciar o relato de Cid das revisões históricas iniciais, prenhes de distorções do que de fato ocorreu naquele fim dos anos 1960 e início dos 1970. Obras que se tornaram até best-sellers, em que seus autores, como que olvidando leitores que com eles conviveram nos debates e divergências, renegam seu tempo de guerrilha como se nele não se inscrevessem entre os mais sectários.
Ridicularizam episódios, como se já naquela ocasião cumprissem tarefas sabendo-as absurdas. Falsidades que só concorrem para a desinformação histórica.
Se há, portanto, alguma crítica a fazer a Cid Benjamin, é não ter se proposto há mais tempo a cumprir a faina deste relato. Teríamos sido poupados de fábulas que chegaram a gerar filmes; de lendas sobre falsos autores de textos que a guerrilha impôs à ditadura ler em cadeia nacional, antes de libertar presos políticos por conta de sequestro de embaixadores. Teríamos sido poupados de autopromoção de falsos protagonismos nos episódios mais marcantes. Tudo isso se esclarece neste livro sempre acelerado, no ritmo de roteiro de filme de aventura, impedindo descanso ao leitor que o acompanha.
Testemunho o que afirmo por conta de ter vivido roteiro paralelo, em posição divergente de Cid. Ele, na célebre Passeata dos Cem Mil, gritava: Só o povo armado derruba a ditadura!
Eu, militante do PCB, com o Só o povo organizado derruba a ditadura!
, palavra de ordem que, por incrível que hoje possa parecer, tinha um ar antipático, de freio num período histórico em que a Revolução Cubana, a luta armada em vários países da América Latina e a anunciada derrota norte-americana no Vietnã tornavam a ruptura pela luta armada algo aparentemente muito mais eficaz do que a paciente luta pela hegemonia nas condições adversas da ditadura feroz que se consolidava.
Tivesse Cid posto sua versão a público bem antes, reitero, a verdadeira versão do que foi, a despeito dos erros de avaliação, uma história real dos heroicos anos vividos por uma juventude corajosa e pronta a entregar a vida por uma causa, a realidade não teria sido agredida de forma tão bem-sucedida por autores de best-sellers que se projetaram por renegar aquilo do que deveriam se orgulhar, se não tivessem passado para o outro lado do alambrado.
Enfim, last, but not least, e fora do cenário específico da luta ideológica, Cid vai fundo em algo não divulgado de forma ampla em outros episódios importantes da história acidentada do PT na década de 1990. De pronto, com a recuperação da primeira denúncia contra atos eticamente duvidosos na vida do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, por conta de comissão de investigação aberta no próprio partido, em 1995, para apurar denúncias feitas por Paulo de Tarso Venceslau, e dos fatos paralelos e comprometedores nos episódios dos assassinatos de dois prefeitos do partido — Toninho, em Campinas, e Celso Daniel, em Santo André. É quando o livro sai do roteiro da aventura e passa para o terreno do thriller policial.
O que torna, por conta do conjunto, Gracias a la vida uma leitura imperdível.
APRESENTAÇÃO
"A memória guardará o que valer a pena.
A memória sabe de mim mais do que eu;
E ela não perde o que merece ser salvo."
EDUARDO GALEANO
Desde que voltei do exílio, em 1979, amigos me cobravam um livro de memórias. Por muito tempo não me animei a escrevê-lo. Em primeiro lugar, porque a militância política e a necessidade de garantir a sobrevivência me ocupavam por completo.
Mas havia outro motivo para a empreitada ser adiada. Não queria me limitar a um mero relato do que tinha vivido. Isso teria sido fácil. Mas, em alguma medida, repetiria o que já tinha sido feito por outros. E não teria o ineditismo que atraiu a atenção para os primeiros livros do gênero. Achava que só valeria a pena escrever se pudesse ir além do factual e contribuísse para a reflexão sobre questões que me parecem instigantes e ainda atuais. Para tal, precisava decantar melhor as experiências.
Cheguei a me lembrar da resposta de Chou-En-Lai, um dos mais importantes dirigentes chineses, diante de uma pergunta sobre as consequências da Revolução Francesa de 1789 para a humanidade: Ainda é cedo para uma avaliação mais precisa
, respondeu ele, quase dois séculos depois dos acontecimentos.
Em certos momentos, cheguei a ter a impressão de que este livro nunca nasceria. A possibilidade não me incomodava. Se tivesse que ser assim, paciência.
Ele não é exatamente uma biografia. É uma espécie de memórias — precoces, porque ainda não estou me aposentando — em que aproveito passagens da minha vida para refletir a respeito de questões as mais variadas.
Os capítulos, em sua estrutura e conteúdo, são diferentes uns dos outros. Alguns apresentam, sobretudo, relatos de episódios vividos. Outros trazem uma reflexão mais teórica. Tenho consciência do risco ao optar por esse caminho. Relatos podem interessar mais a um tipo de leitor; análises, a outro. Espero não decepcionar um desses grupos. Ou ambos, o que seria pior.
Nos dois primeiros capítulos, por exemplo, há uma descrição da vida na clandestinidade e dos primeiros dias de prisão. O terceiro é uma reflexão sobre a tortura. Em outras partes do livro uso o mesmo mecanismo: relato e, depois, análise.
Não se espere, aqui, neutralidade. Tomo partido, explicito opiniões. E quando não tenho resposta para determinados problemas, digo abertamente.
Mas, se no livro não há neutralidade, há isenção, tanto nos fatos descritos como nas análises.
Trato de ter a mesma honestidade intelectual com que reflito sobre a experiência da luta armada ao analisar as trajetórias do PCB e do PT, ou ainda a do incipiente PSOL. Não escondo as críticas (ou as autocríticas) que considero pertinentes.
Tento fugir das armadilhas da memória. Muitos acontecimentos relatados datam de 40 anos ou mais. Nos casos em que tive dúvidas, consultei pessoas que viveram as experiências para confrontar lembranças e diminuir a possibilidade, sempre real, de equívocos.
Tenho especial cuidado para não cometer exageros. Mantive na lembrança algo que o mestre Graciliano Ramos recomenda em seu Memórias do cárcere: Não caluniemos nosso pequenino fascismo tupinambá; se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito.
Esta observação pode parecer desnecessária, mas não é. Já vi militantes de esquerda exagerando — e, até mesmo, mentindo — em denúncias dos crimes da ditadura. Como se isso fosse preciso para mostrar as iniquidades que ela cometeu...
Não faço ajuste de contas individuais, até porque não tenho desafetos. Quando me reporto a situações embaraçosas para um companheiro, no mais das vezes omito seu nome.
Não procuro engrandecer meu papel, nem douro a pílula. Minha imaturidade política — assim como a de militantes próximos — demonstrada em alguns episódios, é retratada com tintas vivas.
Busco, ainda, fugir de um problema recorrente em certos livros, em que a crítica a posições equivocadas é feita sem ficar explícito que o autor foi também defensor delas em tempos pretéritos.
Deixo claro que as autocríticas foram fruto de um processo coletivo de avaliação e amadurecimento, e não resultado unicamente de reflexão individual minha. Ainda que isso, claro, não me exima das responsabilidades por erros, lacunas e insuficiências de posições apresentadas aqui.
Trato do exílio e de suas dificuldades. Não só das de ordem material, mas também das de caráter existencial, pouco lembradas pelos que não viveram a experiência.
Falo da volta ao Brasil, com a anistia — que significou o reencontro com tudo o que, ao longo de dez anos, tinha sido objeto de sonhos. A reinserção na política, num momento de intensa participação popular na vida do país, representou experiência muito importante para nós que estivemos exilados e, como tal, não poderia deixar de ser tratada.
Descrevo a minha participação, integrado de corpo e alma na construção do PT, num período rico, de atividade febril e prazerosa. Aquele PT era algo romântico, mas decerto mais puro e idealista, e que não se parecia com a caricatura em que a legenda veio a se transformar depois.
Tenho consciência de que as análises que faço não agradarão a alguns. Mas, se contribuírem para um diálogo honesto e fraterno, destituído de preconceitos, meu objetivo terá sido alcançado.
Por fim, devo dizer que, apesar das críticas e autocríticas aqui apresentadas, não se deve esperar um livro derrotista ou de algum renegado — palavra que, aliás, me causa arrepios.
Tenho orgulho de fazer parte de uma geração que tentou alcançar as estrelas e mudar o país e o mundo, que viveu com ardor a política no seu sentido mais nobre. Que não hesitou em tomar partido e, de forma corajosa, se jogou em defesa das propostas mais generosas para a humanidade.
Política e ideologicamente moldada pelo exemplo então recente da Revolução Cubana, pelas lutas libertárias de 1968 e pela resistência à ditadura militar, essa geração viveu com enorme intensidade. Muitos de nós conhecemos a clandestinidade, a prisão, a tortura e o exílio. E, todos, tivemos amigos e companheiros de jornada que perderam a vida na flor da idade ou que ainda guardam sequelas das violências de que foram vítimas.
O fato de alguns, posteriormente, terem abandonado os ideais de outrora e passado a ver na política um caminho para a ascensão social e a realização de negócios
não diminui o valor e a importância daquela geração.
Malgrado os erros políticos que cometemos, temos o direito de afirmar, com orgulho, que estivemos sempre do lado dos humilhados e explorados, lutando para construir uma sociedade em que as pessoas fossem respeitadas e vivessem com dignidade. E que, em todos os momentos, nos orientamos pelos ideais de justiça social e fraternidade.
Não restrinjo esse reconhecimento aos participantes da guerrilha. Estes costumam ser mais lembrados. No entanto, revolucionários que não optaram pela luta armada, por considerarem que, naquelas circunstâncias, esta não era o melhor caminho para derrubar a ditadura e caminhar para o socialismo — e, de fato, não era —, merecem tanto respeito quanto os que pegaram em armas.
Mantenho a opção socialista, mesmo admitindo não ter — e diria que ninguém tem — um modelo desse tipo de sociedade que vá além do previsto de forma teórica pelos clássicos. As diferentes experiências práticas de socialismo, por razões as mais diversas, não permitem que sejam apontadas como esse modelo. Pelo menos a mim elas não satisfazem integralmente — embora, na maioria dos casos, tenham representado inegáveis avanços se comparadas ao que antes existia.
Reconheço que essa falta de um modelo a apontar é uma séria lacuna. Mas, antes de ver essa insuficiência como um problema que impeça a opção pelo socialismo, prefiro vê-la como desafio, até por não acreditar que o capitalismo possa resolver problemas cruciais da humanidade — o que, aliás, é demonstrado a cada dia.
É verdade que, hoje, valorizo em grau muito maior a democracia do que em tempos pretéritos — e registre-se que nunca fui defensor de sociedades com partido único. Mas essa maior valorização da democracia não inibe a opção socialista. Ao contrário, a fortalece e qualifica.
A defesa da ética está também presente neste livro. A meu juízo, ela é condição para uma prática transformadora.
E não deve ser confundida com um legalismo despolitizado e desligado de situações históricas concretas. Assim, se rejeito peremptoriamente a concepção de que os fins justificam os meios
, pois uns e outros estão vinculados de forma indissolúvel, afirmo que a busca de direitos conduz, com frequência, a choques com legislações caducas e injustas.
Por isso mesmo, ao longo da história, lutas pelo aprofundamento da democracia muitas vezes se viram diante de um arcabouço legal conservador e autoritário, e forçaram o alargamento de suas margens e, mesmo chocando-se com a legalidade vigente, as empurraram para limites mais amplos.
A resistência à escravidão levou a revoltas e à formação de quilombos. A conquista do direito de greve exigiu a realização de paralisações ilegais. A batalha pela reforma agrária é impulsionada pela ocupação de terras improdutivas.
Todos esses exemplos configuraram, a seu tempo, ilegalidades. Mas, de todo, justificáveis. E que, por serem defensáveis do ponto de vista político, ético e moral, não impediram a indispensável luta pela hegemonia política e ideológica na sociedade. Muito pelo contrário.
E aqui chegamos a um ponto crucial: uma ação justa e necessária, com condições de ser justificada politicamente, pode ser desenvolvida, mesmo que se choque com a legalidade vigente. Que ela seja levada a cabo ou não é uma questão de conveniência política numa dada conjuntura.
Por outro lado, se determinada ação não pode ser abertamente justificada, com certeza ela será ilegítima e incorreta do ponto de vista político.
Eis aí uma diretriz sobre a qual o PT atual deveria refletir com mais profundidade.
Encerro esta apresentação lembrando algo dito por Darcy Ribeiro:
Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei construir uma universidade séria, não consegui. Mas meus fracassos são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem venceu.
E o cerco se fechou
É o sonho que mostra o caminho.
GOFFREDO DA SILVA TELLES JR.
21 de abril de 1970.
Era um dia parecido aos anteriores. O Jornal do Brasil, o principal diário do Rio de Janeiro na época, trazia como manchete de primeira página uma declaração do general ditador de plantão. Sua frase, seja lá o que viesse a significar, perdeu-se no tempo: Médici lança a política externa de mãos livres.
Ainda na primeira página do JB, uma chamada, com foto, informava que Pelé recebera na véspera uma comenda do governo militar brasileiro. Outra chamada trazia a notícia de que Nixon retiraria mais 150 mil soldados do Vietnã. A seção de esportes destacava a escalação de Tostão e Rivelino no amistoso do Brasil contra a Bulgária, que seria disputado no dia seguinte e serviria de preparação para a Copa de 1970.
O feriado, pelo aniversário da morte de Tiradentes, não mudava minha rotina. Saía pouco do aparelho
em que morava, um apartamento de sala e dois quartos no segundo dos quatro andares de um modesto prédio na esquina das ruas Pedro de Carvalho e Aquidabã, no Lins de Vasconcelos, bairro da Zona Norte do Rio. Vivia lá há pouco mais de um mês.¹
No aparelho
do Lins, passava os dias lendo, escrevendo e pensando no futuro — tanto o meu como o da organização da qual era dirigente: a Dissidência Comunista da Guanabara, que depois adotaria a sigla MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro). Com este último nome tínhamos assinado, ao lado da Ação Libertadora Nacional (ALN), o manifesto cuja divulgação era uma das condições para a libertação do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, quando ele foi sequestrado. O MR-8 tinha sido inicialmente o nome de uma organização armada destruída um ano antes pelo Cenimar (Centro de Informações da Marinha).²
Apesar de muito jovem — só completaria 22 anos seis meses depois, em outubro —, naquele momento eu era uma espécie de bola da vez. Para os não iniciados em sinuca, explico: bola da vez é aquela que deve ser encaçapada prioritariamente num dado momento do jogo. Depois dos golpes que minha organização tinha sofrido naqueles últimos meses, o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna) —, o organismo policial-militar que centralizava o combate às organizações de esquerda, sabia que só eu tinha sobrado da última direção da organização, eleita em novembro de 1969.³
Os organismos de repressão dispunham, também, da informação de que a FTA (Frente de Trabalho Armado) da Dissidência fora reorganizada e eu passara a chefiá-la. Isso, aos olhos dos militares, que valorizavam em especial os militantes da linha de frente na luta armada, me fazia mais importante ou, para usar a linguagem deles, de maior periculosidade
— embora não necessariamente representasse a verdade.
Outro fator contribuía para que fosse muito procurado: a grande quantidade de ações armadas de que tinha participado. Na contabilidade que constava de um caderninho particular do tenente Dulene Aleixo Garcez dos Reis — um militar com veleidades de estatístico — eu era apontado como recordista na participação em ações de guerrilha urbana no Rio de Janeiro até o momento em que fui preso. Garcez mostrou-me esse caderno no fim de abril de 1970, no DOI-Codi.
Eu não poderia supor que 42 anos depois, no dia 19 de junho de 2012, ele seria denunciado publicamente como torturador por cerca de dois mil jovens, numa grande manifestação diante do prédio em que morava, à rua Lauro Muller, na Urca. Foi mais um dos chamados escrachos
.⁴
Esse recorde no número de ações de guerrilha urbana tinha explicação. Integrei o primeiro grupo armado do MR-8, que começou suas ações em fevereiro de 1969. Nos meses seguintes, o grupo passou por pequenas mudanças, mas continuou muito ativo. Depois do sequestro do embaixador norte-americano, em setembro, foi desfeito, e seus integrantes, transferidos para outros setores e locais, por estarem queimados. No entanto, para que a experiência acumulada não se perdesse, fiquei com a incumbência de reorganizar o setor armado da organização. A consequência é que, quando fui preso, tinha participado de todas as ações de guerrilha do MR-8 até aquele momento — as realizadas pelo primeiro grupo, tanto o original como o modificado, e, ainda, as que se sucederam quando o setor foi reestruturado. E, na época, o MR-8 era a organização armada mais ativa no Rio.
Imagino que não tenha permanecido muito tempo com essa espécie de recorde e que, poucos meses depois de minha prisão, tenha sido ultrapassado no número de ações, não só por militantes do MR-8, como de outras organizações.
Só punha os pés na rua para encontrar os demais membros da direção, em geral umas duas vezes por semana; encontrar os responsáveis pelos três grupos da FTA, que se reportavam a mim, também umas duas vezes por semana; checar levantamentos para as ações armadas; e, depois, comandá-las. Essas ações eram realizadas, em média, a cada dez ou quinze dias.
Circulava sempre com uma pistola Colt calibre 45 e portando documentos que me identificavam como outra pessoa. A experiência de usar nome falso numa cidade em que fui criado trazia, muitas vezes, situações difíceis. De vez em quando cruzava com um conhecido que nem sempre tinha ciência da minha situação. Não podia deixar de dar-lhe atenção, mas o fazia sempre com um olho na missa e outro no padre.
A clandestinidade trazia, também, situações imprevistas, como quando, em fins de 1969, resolvi tingir os cabelos para me disfarçar. O resultado não poderia ter ficado pior: eles ficaram de cor acaju e chamavam a atenção por onde eu passava. Para remediar a situação, tive que cortá-los bem curtos e tingi-los outra vez de preto. Ainda assim, não ficaram com aparência natural.
Outro episódio curioso aconteceu quando fui me vacinar contra tifo, depois que as autoridades da área de saúde recomendaram que a população tomasse essa precaução, diante de um surto da doença. Fui a um posto médico na rua Barão de Bom Retiro, entre Grajaú e Vila Isabel. Estava de terno e gravata e levava a arma numa pasta. Tinha recebido fazia pouco tempo um jogo de documentos falsos, cujos dados memorizara. Ao chegar a minha vez de ser atendido, sentei-me diante da auxiliar de enfermagem que anotava os dados das pessoas que se vacinariam. Era uma mulata gorda, simpática e expansiva, que, em meio ao serviço, aproveitava para conversar, em voz alta, com todo mundo.
Ela perguntou, entre outras coisas, a minha data de nascimento, que eu disse de pronto, e a minha idade. Percebi, então, que tinha memorizado os dados da carteira, mas não sabia quantos anos tinha. Respondi automaticamente. Ela parou, fez lá um cálculo e disse, em voz alta:
— Meu filho, já novinho assim você anda escondendo a idade. Se você nasceu em tal dia, tem tantos anos...
Fiquei com cara de idiota, dei um sorriso sem graça e respondi:
— Ah, é...
Mas nada aconteceu, a não ser as pessoas em volta rirem da situação.
Na época, estava sendo montado pela organização um esquema de proteção que tornaria mais difícil a minha prisão. Eu passaria a não entrar mais em pontos (assim eram chamados os encontros de rua entre militantes). Haveria um companheiro cuja única função seria ir nos meus pontos e me levar