Pró ou contra a bomba atomica
De Elsa Morante
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Pró ou contra a bomba atomica - Elsa Morante
Sumário
Ensaios disparatados
Davi Pessoa ¹
Cesare Garboli, crítico literário responsável pela publicação dos ensaios de Elsa Morante em 1987, ou seja, dois anos após a morte da escritora, afirma em seu prefácio ao volume Pró ou contra a bomba atômica que o projeto de reunir esses textos era, de fato, de Morante. Porém, ela sempre mudava de opinião, pois sentia muita insegurança em vê-los publicados, talvez porque compreendesse que o ensaio é o testemunho do sacrifício de um intelectual, caso aceitemos que o lugar do intelectual é o lugar do impossível, o lugar do cruzamento de paradoxos. Elsa, segundo Garboli, sabia que seria impossível publicar o livro por sua editora, a Einaudi, mas via a possibilidade de publicá-lo pela Il Saggiatore, pois tinha simpatia por Alberto Mondadori e também porque se sentia protegida, já que naquela mesma época Garboli trabalhava nessa editora. No entanto, após algum tempo, a editora foi à falência e o projeto morreu, segundo o crítico italiano.
No final de seu prefácio, Garboli se pergunta: «Elsa era uma ensaísta?». Logo em seguida, acrescenta:
Por mais esforço que eu faça, não consigo classificá-la sob nenhuma das três categorias identificadas por Alfonso Berardinelli: não é uma historiadora da cultura, não frequenta a iluminação epistemológica e muito menos a pedagogia e a autobiografia literária. Sua grande paixão pela realidade também se explica com a impossibilidade de encontrar nela uma resistência, um limite para a ficção. Teria sido uma ensaísta se tivesse sido questionada sobre essa flexibilidade, de onde provinha e por quê.²
É importante destacar, aqui, o papel de Garboli na crítica literária italiana, que, segundo Berardinelli, tal como lemos em seu ensaio «À procura de um cânone italiano», foi singular:
Garboli nos faz compreender o quanto a literatura italiana do século XX é uma província, uma doença de província, uma série de episódios desventurados e disformes, e, além disso, como tais episódios ainda são iluminados por uma luz estranha e feliz de séculos distantes (assim se entende também que o verdadeiro mestre de Garboli é, antes, Roberto Longhi).³
Em outro ensaio, «Ensaísmo e estilos de pensamento 1980-2000», Berardinelli argumenta que na escritura crítica de Garboli «entra de tudo: autobiografia, filologia, psicologia, história, competências teatrais e figurativas», e mais uma vez afirma que «seu modelo é Longhi, seu autor é Molière».⁴ Não poderíamos esquecer, ao trazer à tona a figura de Roberto Longhi, a partir das reflexões de Berardinelli, das impressões de Pier Paolo Pasolini (amigo muito presente na vida de Elsa Morante), o modo como Longhi dava suas aulas e como construía suas prosas críticas. Para isso, Pasolini parte de duas perguntas: «O que fazia Longhi naquela salinha deslocada e quase impossível de localizar na universidade da rua Zamboni? Uma espécie de ‘história da arte’?». A lembrança de Pasolini, segundo ele mesmo, é a lembrança de uma contraposição ou nítido confronto de «formas», em que:
Na tela eram, de fato, projetados alguns diapositivos. A totalidade e os detalhes dos trabalhos, contemporâneos e executados no mesmo lugar, de Masolino e de Masaccio. O cinema agia, mesmo como mera projeção de fotografias. E agia no sentido de que um «enquadramento» representando a amostra do mundo de Masolino – naquela continuidade que é, sem dúvida, típica do cinema – se «opunha» dramaticamente a um «enquadramento» que representava, por sua vez, uma amostra do mundo de Masaccio. O manto de uma Virgem opondo-se ao manto de outra Virgem… O primeiro plano de um Santo ou de um espectador no primeiro plano de outro santo ou de outro espectador… O fragmento de um mundo formal se opunha, portanto, fisicamente, materialmente, ao fragmento de outro mundo formal: uma «forma» a outra «forma».⁵
Como poderíamos, então, ler os textos aqui reunidos? Há uma forma fixa neles? Ou Elsa Morante estaria, de algum modo, ensaiando uma nova possibilidade de escritura-leitura a partir do movimento de um gesto ao outro? Em um dos ensaios, «Sobre o romance», lê-se:
Todo romance, por isso, poderia, por parte de um leitor atento e inteligente (mas infelizmente tais leitores são muito raros, em especial entre os críticos) ser traduzido em termos de ensaio e de «obra de pensamento». E se for verdade que alguns romances (ao contrário daqueles que se fiam à representação pura) se valem, dentro de suas estruturas, de modos e formas declaradamente ensaísticos, essa diferença não se verifica apenas na época moderna, mas é comum a todos os tempos. A divina comédia, ao contrário da Ilíada, é um romance ensaístico; Os noivos é um texto ensaístico, ao contrário de Os Malavoglia. Assim como hoje o romance de Musil é ensaístico, ao contrário de Hemingway; porém, a mesma e válida coexistência desses dois autores talvez prove que não se pode estabelecer uma prevalência decisiva de uma forma sobre outra no romance contemporâneo.
Portanto, nesse sentido, parece existir a quebra de uma hierarquia: os textos não se enquadram numa forma fixa, já que provocam uma metamorfose da própria forma. Assim, não se trata do desdobramento de uma unidade, pois cada um dos livros citados por Morante coloca em jogo a diferença do mesmo que não retorna ao mesmo, ou seja, que não retorna a si mesmo. Os ensaios parecem ter em comum essa ausência de comunidade e, desse modo, podem com(partilhar) a diferença por si ou em si. Segundo minha opinião, nesse compartilhamento se dá a contemporaneidade desses textos, já que com(partilham) outro tipo de diferença, e não aquela que diz respeito à sua origem ou a determinado «gênero» textual.
Outro caso exemplar, nessas narrativas, quando pensamos na confluência dos modos de escrita que lhes são peculiares, é o das «três personagens fundamentais, que representam exatamente as três atitudes do homem diante da realidade», como ela diz em «Vermelho e branco», a saber:
1) O calcanhar de Aquiles, ou o Grego da Idade Feliz: para ele a realidade se mostra viva, fresca, nova e absolutamente natural;
2) D. Quixote: a realidade não o satisfaz e lhe inspira repugnância, e ele procura salvação na ficção;
3) Hamlet: a realidade também lhe inspira repugnância, mas ele não encontra salvação e, no final, decide não ser.
Apesar das diferenças que possam existir entre essas personagens, «os heróis dos poemas, tragédias ou romances não são nada mais do que encarnações novas ou precedentes (ou ainda derivações) das personagens aqui citadas», como ela escreve em seguida. Poderíamos pensar, portanto, em diferenças paralelas, ou semelhanças oblíquas, ao ler os «ensaios» de Pró ou contra a bomba atômica?
Elsa Morante, de modo paradigmático, compreende que o emaranhado de vozes provenientes da linguagem de tantas escrituras parodia justamente a literatura. Esta hospeda a quem lhe torna, por sua vez, hóspede, e nessa ação se estabelece um duelo de forças. «Naturalmente, como já mencionamos, dessas três personagens-atitudes fundamentais se originam os híbridos, produzidos por enxertos, derivações e contaminações», ela diz nesse mesmo texto, e a realização dessas metamorfoses por enxertos parece repensar o problema da força que surge da biografia de cada uma dessas personagens. Assim, poderíamos pensar tais ensaios como leituras de entrelaçamento: são, ao mesmo tempo, reunião e dispersão, como o arquivo que se monta a partir do cruzamento dessas personagens em «Vermelho e branco»:
Dessa forma, o Grego da Idade Feliz se reconhece em Fabrício Del Dongo, em Manon Lescaut, e também em Tchitchikov, de Almas mortas.
Ninguém vai me negar que o Idiota de Fiódor Dostoiévski e Emma Bovary não sejam apenas reencarnações de D. Quixote. Quanto ao Hamlet, suas reaparições, sobretudo nos dias de hoje, são tão numerosas e evidentes que qualquer um conseguirá reconhecê-las por si só.
[…] Assim, Orestes é uma combinação de Aquiles, D. Quixote e Hamlet. O mesmo pode-se dizer de Werther. Raskólnikov é uma contaminação entre Hamlet e D. Quixote. Adolphe é um D. Quixote enxertado em Hamlet. Oblómov é um D. Quixote enxertado em Hamlet que queria ser o Grego da Idade Feliz.
Retomando a pergunta feita por Garboli – «Elsa era uma ensaísta?» –, poderíamos respondê-la positivamente se tomamos o ensaio como gesto que se adota no ato da escrita, no momento em que se escutam vozes heterogêneas sem buscar uma unidade, ou seja, como uma espécie de rapsódia. Não por acaso, lemos logo no início de «O beato propagandista do paraíso»:
Uma de suas características singulares é ter três nomes distintos. O primeiro (seu nome de nascimento) é Guido di Pietro: conhecido, pelos íntimos, como Guidolino (talvez porque, desde jovenzinho, crescesse frágil, sendo de estatura baixa? Por motivos semelhantes, um de seus «pais», o dominicano Pierozzi Antonio, tornou-se Antonino, depois santo Antônio).
O segundo nome, Giovanni da Fiesole, foi assumido por ele no momento da descoberta de sua vocação religiosa: provavelmente pela intenção consciente de honrar mais um de seus «pais», o dominicano Giovanni Dominici; mas, talvez, também por causa de outra escolha inconsciente e necessária, como depois vamos destacar.
Esses dois nomes fazem parte de sua história; porém o terceiro, Beato Angelico, foi oferecido a ele, como vivo e como morto, por sua lenda popular. E não por nada, coube-lhe apenas ficar com este último nome, pois era mais comum, familiar a todo mundo.
A proliferação das vozes, produzidas pela linguagem dessas escrituras, como as vozes que escutamos em «Sobre o romance», mesclam-se àquelas de criticozinhos