As Pensadoras Vol. 1
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Sobre este e-book
Finaciamento: FAPEAM - Fundação de Amparo a Pesquisa do Amazonas.
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As Pensadoras Vol. 1 - Rita de Cássia Fraga Machado
À memória de dona Nina.
A melhor parte de conhecer as regras é encontrar uma maneira aceitável de quebrá-las.
Anne with an E
Me leia enquanto estou quente
.
Lygia Fagundes Telles
Sumário
Nota da editora
As Pensadoras – Uma experiência de cânone feminista
A ação como traço essencial da condição humana. Uma leitura acerca das ideias arendtianas
Vozes singulares e relacionalidade no pensamento de Adriana Cavarero
Margaret Cavendish e a impetuosidade da palavra
Para além dos costumes
Aspectos históricos e políticos do feminismo negro nos Estados Unidos
Feminismo, subalternidade e decolonialidade
Silvia Rivera Cusicanqui, a tecedora de uma Sociologia do Abya Yala
Lélia Gonzalez, presente!
Sobre as autoras
Landmarks
Cover
Copyright Page
Title Page
Nota da editora
Oregistro do conhecimento produzido por meio da Escola As Pensadoras e o objetivo de tornar essa produção amplamente acessível motivaram a criação da Editora As Pensadoras.
Editar livros, definir o que e quem publicar, como e quando publicar é um exercício de poder.
O mercado editorial tradicional tem 72% de seu território ocupado por autores do sexo masculino, brancos, residentes nas regiões sudeste e sul do Brasil, que se declaram heterossexuais. Estes dados se referem às escolhas feitas pelas maiores editoras brasileiras em atividade e integram a pesquisa acadêmica coordenada pela professora Regina Dalcastagnè (UnB) e equipe de alunos pesquisadores¹.
É entre as pequenas editoras, especialmente as independentes, que a bibliodiversidade se manifesta. Nestes espaços de poder dominados pelos grupos diversos (mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, entre outros grupos sub-representados) fica evidente a infiltração
de células transformadoras da cadeia produtiva do livro e do mercado editorial, corroído pela crise econômica agravada por obsolescência nos modos de operar.
A Editora As Pensadoras se identifica com frentes que buscam rupturas e reinvenções. Criada em 2020, se apresenta favorável ao redimensionamento do papel social de agentes estratégicos: de autor/autora a leitor/leitora, incluindo editoras, distribuidoras e livrarias neste movimento. Assim, alinhada com o mercado editorial independente, a editora apoia a propriedade intelectual fortalecida.
A coleção As Pensadoras é nosso projeto editorial de estreia, uma estratégia de difusão da produção acadêmica sobre feminismos. Disponível em formato físico e e-book, o volume 1 reúne nove artigos, com apresentação assinada por Rita Machado, coordenadora da Escola As Pensadoras.
Os textos aqui publicados foram organizados contemplando diversidade de pensamento, a começar pela influência arendtiana sobre poder, política e resistência, que se encontrará ao final com a eloquências de pensadoras latino-americanas, enraizadas em sua cultura, mas com produções que reverberam pelo mundo, integrando o pensamento feminista negro transformador.
¹ DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Editora da Uerj, 2012.
As Pensadoras –
Uma experiência de
cânone feminista
Segundo Charles Darwin no segundo volume de A origem do homem , publicado em 1871, o homem é mais poderoso em corpo e mente que a mulher, e no estado selvagem ele a mantém numa condição de servidão muito mais abjeta que o faz o macho de qualquer outro animal; portanto, não surpreende que ele tenha ganhado o poder de seleção. O que representa essa passagem do pensamento de Darwin? Apesar da repugnância que essa afirmação nos causa, rebaixando as mulheres a uma condição de selvageria sem qualquer capacidade intelectual, o que a passagem procura explicitar é que fazer filosofia ou pensar é uma atividade reservada aos homens e que as mulheres não estariam à altura dela, condenadas a uma situação de servidão e de inferioridade
.
Não é sob essa fundamentação misógina que nós, mulheres, queremos fazer filosofia. Queremos um lugar plural em que o questionamento seja acessível a todas. Questionar por que as mulheres não fizeram parte da história do pensamento oficial parece primordial para as pensadoras, assim como é fundamental questionar de que modo lidamos com o pensamento das mulheres. A prática da reflexão faz parte da nossa tarefa histórica e social como pensadoras da contemporaneidade.
O cânone filosófico tradicional desenvolve-se a partir do que Jeanne Marie Gagnebin chama de visão provocadora da padroeira dos filósofos
, ou seja, uma visão que inferioriza as mulheres na filosofia, colocando-as num lugar de superficialidade e de violência do discurso e do pensamento.
Para a autora:
[...] o discurso filosófico e naquilo que diz ou não se diz das mulheres, há uma hipótese. Não tentemos distinguir entre os filósofos feministas e os filósofos machistas, entre os esclarecidos e os preconceituosos. Não chama a atenção quão reacionário
pode ser um filósofo revolucionário
quando fala das mulheres, seja Rousseau, ditando a educação das meninas (de Sofia, de nome tão revelador!), seja Nietzsche, denegrindo as feministas de sua época?³
Concordando com Jeanne Marie, ratifico que:
Prefiro, contudo, questionar a constituição do discurso filosófico, propondo a hipótese de que ele se constitui em torno de um duplo controle do feminino
(veremos mais tarde a razão destas aspas): ele o exclui, declarando-o impróprio a filosofar, e, ao mesmo tempo, o admite quando consegue subordiná-lo a um valor
mais alto
.⁴
E para demonstrar essa visão inferior
das mulheres, basta olharmos para como Platão as representa.
Segundo Jeanne Marie:
As flautistas são cortesãs músicas que enfeitam os jantares masculinos da Atenas clássica. Nestes jantares, os convivas comem e bebem e, terminada a refeição, continuam bebendo. Decide-se, então, do programa da noite. Vai-se beber até à embriaguez completa, apreciar música e declamações de poesia, ou vai-se beber com certa moderação e discutir um tema mais filosófico? Ao tomar a decisão de discutir e de filosofar, uma conclusão prática se impõe: mandar as mulheres tocadoras de flauta para dentro da casa com as outras mulheres e ficar entre homens.⁵
E, nesse ato comum conhecido pela história da filosofia, ressalta-se a questão: a quem caberá a tarefa de pensar? Podemos estar enganadas sob tais circunstâncias, mas de fato não. Aqui os filósofos convidam as mulheres a se retirar da atividade do pensar, do escrever e do refletir.
Trata-se de perguntarmos:
[...] é de fato o feminino, enquanto essência imutável, que foi recalcado no discurso filosófico ocidental? Não seria, antes, que aquilo que foi deixado de lado, rejeitado, excluído, foi, depois, atribuído às mulheres (ou também às crianças, aos selvagens, aos loucos) e, consequentemente, descrito como tipicamente feminino (ou também como infantil, primitivo, louco)? Nesta distribuição, as mulheres teriam recebido a sensibilidade e a natureza, o silêncio e o jogo, mas também a tagarelice, a inércia e a insuficiência, enquanto, do outro lado da divisão, erige-se o sujeito masculino, pleno, autônomo e detentor do discurso verdadeiro. Uma reflexão filosófica – e feminista! – não me parece, portanto, dever reivindicar uma essência da feminilidade, nem tentar uma aproximação cada vez mais eficaz do paradigma masculino, mas deve, sim, questionar a verdade deste discurso.⁶
Entretanto, apenas dizer que não fizemos parte dessa história clássica da filosofia e que estivemos sempre invisibilizadas não nos parece suficiente. É preciso propor um novo lugar em que haja espaço para as mulheres; lugar do fazer filosófico feminino no qual o pensamento e os questionamentos múltiplos das mulheres não tenham sua legitimidade questionada enquanto produção de conhecimento. E há um pressuposto razoável nesta questão: o de fundar um cânone feminista.
As Pensadoras⁷ se propõem a essa atitude que é pensar como postura filosófica feminista. A prática filosófica que se apresenta a nós é a de fundar um cânone liderado por mulheres, com a presença e o protagonismo das mulheres. Quando olhamos para a história sob uma perspectiva de gênero, encontramos mulheres que pensaram, questionaram e propuseram reflexões importantíssimas para a sua época. Assim, é possível afirmar que estamos produzindo conhecimento há muitas décadas. Ainda há de se considerar que esses conhecimentos mudaram rumos históricos e educacionais, como podemos comprovar nos estudos de Nísia Floresta, Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft. Elas produziram reflexões aprofundadas e associadas a questões como ser mulher, importância da educação das mulheres, misoginia, educação, direitos, filosofia, entre tantas outras. Não há nenhuma concessão ao argumento da produção de uma companheira melhor para o homem
⁸.
É assim, por exemplo, que a demanda por educação tem por objetivo exclusivo permitir o livre desenvolvimento da mulher como ser racional, fortalecendo a virtude por meio do exercício da razão e tornando-a plenamente independente.⁹
Nesse sentido, diante da imensa desigualdade de gênero, marca fundacional do cânone filosófico clássico, é que propomos As Pensadoras como possibilidade de transformação. Esse projeto, cujo pressuposto se funda no pensamento interdisciplinar de mulheres, assume a responsabilidade de suprir as lacunas e a exclusão promovidas pelo cânone oficial. É importante esclarecer que não estamos nos limitando apenas à proposta de criação de um cânone integrado por mulheres, de forma petrificada, para fixar conceitos e promover um pensamento metafísico desconectado da realidade, mas de fazermos justiça de gênero − conceito ainda tão desconhecido entre as mulheres.
Reconhecer que as mulheres participaram da construção histórica do pensamento é propor uma reflexão séria e levar em conta com rigor um passado filosófico que também teve a participação feminina. Esse movimento de fundação consiste em reafirmar outra epistemologia, a feminista.
Na coleção As Pensadoras, as autoras aqui presentes reúnem argumentos, conteúdos e metodologias exigidas na prática filosófica. Estabelecemos um lugar e um método próprios para as mulheres como intelectuais, mas com uma forte diferença: nós produzimos conhecimento, permitindo que toda e qualquer prática humana, desde que criteriosa, também seja afetiva. Não há uma separação entre pensamento e vida, entre razão e emoção − pelo contrário, há uma dialética entre eles. Esse movimento, sobretudo, é a proposta de epistemologia feminista a que nos referimos anteriormente.
Para fundar o cânone feminista, é preciso trazer as mulheres para o centro do pensamento, merecedoras de um tratamento cuidadoso e do honroso reconhecimento de sua efetiva participação na história do pensamento. As Pensadoras fazem parte de um presente que quer estudar o pensamento de mulheres, seus pressupostos e métodos, a fim de se engajar em uma filosofia feminista¹⁰. É fundamental trazermos outras mulheres pensadoras para que apresentem suas proposições filosóficas na ética, na estética, na política, na educação, na filosofia, nas ciências sociais e em outras áreas do conhecimento, sempre a partir do movimento concreto da vida. Engajar mulheres na construção de um cânone feminista é o desafio que se impõe e nós temos toda coragem para assumi-lo. Estamos protagonizando!
É necessário, então, nos debruçar teórica e metodologicamente sobre o modo pelo qual essas pensadoras fizeram filosofia e, junto com elas, promover um movimento de estudo e formação, formulando problemas filosóficos que interessam às mulheres. Caso contrário, o cânone feminista não se justifica.
Nessa direção, e num fazer filosófico situado na ética e na política, encontramos nesta antologia o texto de Cecília Pires sobre a filósofa Hannah Arendt. Cecília, com sua potência de pensadora e com a coragem de mulher intelectual, o que é sempre peculiar em seus textos, oferece uma apresentação política do pensamento de Arendt. Ela nos provoca, assim, a compreender que o pensamento político transcende as questões de seu próprio campo e sua "formulação mais simples é a questão: o que é o homem?"¹¹.
Um questionamento sobre o político que é próprio da centralidade da autora, pois "Hannah Arendt, pensadora política do século XX, como gostava de ser identificada, tem o tema da liberdade como a âncora de suas reflexões, destacando a importância do pensar como o fundamento teórico do agir"¹². Cecília e Arendt não são sistemáticas, pelo contrário, seus textos abordam uma realidade subjetiva em profundidade, que, pelos pressupostos teóricos, dá condições à criação filosófica do humano político.
O tom feminista chega com a voz de Adriana Cavarero através de Carla Milani Damião e Carmelita Brito de Freitas Felício. O pensamento de Cavarero, segundo as autoras, caminha "de mãos dadas com o feminismo e uma militância acadêmica que a fez recontar os mitos que envolvem personagens femininas como Diotima, Penélope, a ninfa Eco em oposição a Narciso, como uma das fontes instituidoras da diferença original na filosofia¹³. Nesse sentido, podemos afirmar que o feminismo é uma forma também de narrativa filosófica, e as críticas de Cavarero
dirigem-se mais a Aristóteles do que a Platão, que, com todas as ressalvas ao modelo patriarcal no qual estava inserido, mas não por ele inventado, escreveu de forma dramática, evocou e criou mitos como um crítico e concomitantemente como um executor da mimese que atribuiu a poetas e produtores"¹⁴. Cavarero faz uma crítica própria ao cânone filosófico e a seus fundamentos masculinos.
O movimento crítico evidenciado nos textos sobre a realidade das mulheres torna ainda mais instigante o pensamento de Seyla Benhabib. Quem dá voz a ele é Loiane Prado Verbicaro, que apresenta o seguinte caminho para a compreensão da obra de Benhabib:
Diante da vastidão de possibilidades e perspectivas de abordagens da sua teoria, considero que uma importante chave de leitura da sua obra é analisá-la e compreendê-la à luz da construção de um projeto moderno de democratização da democracia e de um universalismo ético sensível ao contexto, passando pela concepção de um modelo de espaço público que equacione as contribuições do feminismo à filosofia moral e que ainda seja pautado pela abertura a diálogos com vozes historicamente silenciadas.¹⁵
A pensadora em questão nos oferece ainda um modelo forte de democracia, em contraponto à perplexidade provocada pelo neoliberalismo. Nesse sentido, é possível afirmar que as mulheres são as que podem construir de forma radical outro modelo de democracia.
Do mesmo modo, Margaret Cavendish, pelo engajamento intelectual que teve em seu tempo histórico, parece reivindicar para as mulheres um lugar de igualdade. Janyne Sattler apresenta Cavendish como sendo detentora de uma palavra impetuosa. A pensadora não se conteve em escrever cartas e poemas ao amado William. Sattler destaca que Cavendish foi
nomeada Mad Madge por seus contemporâneos, talvez justamente porque suas loucuras e extravagâncias fossem por demais autônomas e ambiciosas para o seu sexo, ou porque suas pretensões filosóficas, científicas e literárias se impusessem apesar das reiteradas observações de insulamento intelectual tal como previsto, senão imposto, mesmo às mulheres da nobreza ou da elite financeira da Inglaterra.¹⁶
Essas questões envolviam seu próprio modo de pensar com o corpo − seus escritos corporificavam a palavra.
O feminismo¹⁷ é um conceito importante no pensamento dessas mulheres. Os diálogos possíveis e as narrativas expostas em suas obras