As muitas Faces de um Sábio: Teoria Política e Disputas pelo Poder sob Afonso X (Castela – 1252-1284)
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As muitas Faces de um Sábio - Almir Marques de Souza Junior
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
AGRADECIMENTOS
Este livro é o resultado de minha pesquisa de doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Assim, não posso deixar de agradecer aos professores e funcionários com os quais dividi minha vida por quase uma década entre a graduação, o mestrado e o doutorado.
Ao professor Mário Jorga da Motta Bastos, medievalista de Água Santa e orientador ao longo de boa parte desses anos na UFF. Obrigado pela paciência e pelo bom humor no transcorrer deste longo percurso.
Aos professores João Cerineu, Andreia Frazão e Edmar Checon, que gentilmente estiveram presentes na banca examinadora; à professora Renata Vereza, que não só esteve presente na banca examinadora como também proporcionou valiosas observações na qualificação e ao longo de toda a pesquisa; à professora Vânia Fróes, por mostrar os caminhos da pesquisa, ainda na iniciação científica da graduação.
Aos meus pais, Nelma e Almir, que sempre encorajaram meus estudos e minhas escolhas profissionais.
À minha sogra, Vera, por me tratar como filho e me incentivar de igual maneira, principalmente no lançamento deste livro.
À Manuela, companheira de vida e esposa, por me proporcionar os melhores momentos de minha existência. Seu carinho me fez enxergar o mundo com outra perspectiva e me chamou atenção para as coisas que realmente importam.
À Stella, minha obra-prima. Sua chegada em minha vida trouxe inúmeras mudanças, todas para melhor, fazendo com que eu divisasse com mais esperança o futuro.
PREFÁCIO
Almir Marques de Souza Junior é filho dileto da Universidade Federal Fluminense! Ali realizou, com destaque, a maior parte de sua formação acadêmica, instituição onde leciono há 29 anos e onde tive a oportunidade, a sorte e o prazer de conhecê-lo ainda um (mais) jovem historiador. O gosto pela História Medieval se manifestou desde cedo, tornando o nosso autor frequentador assíduo e participante ativo das disciplinas e dos laboratórios de pesquisa que tomavam aquela fatia de duração do tempo como objeto primordial de seus interesses.
Para mim, parece evidente que a filiação
referida expressa-se plenamente na obra que o(a) leitor(a) tem em mãos – e com a qual, eu garanto, vai se deliciar – originada em anos a fio, dedicados ao estudo da realeza ibérica, temática preponderante nas pesquisas que fundaram, ainda em 1988, o setor de História Medieval do Programa de Pós-Graduação em História daquela universidade e que vem contribuindo ainda hoje para a afirmação do seu prestígio.
É que o objeto em questão – a realeza medieval, na diversidade de suas expressões e contextos de manifestação – foi favorecido por algumas das mais brilhantes páginas desde sempre dedicadas ao medievo, decorrendo algumas centenas delas da perspicácia e do brilhantismo daquele que reina no Olimpo da medievalística e que foi íntimo da musa Clio, o grande historiador francês Marc Bloch, opositor do regime nazista, assassinado na França ocupada (o que não deve jamais ser esquecido).
Publicado originalmente no ano de 1924, Les Rois thaumaturges. Étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale particulièrement en France et en Angleterre só não deve ser referida como uma obra a frente do seu tempo
porque, como historiador, não me parece razoável apoiar tal descontextualização. Mas, que se trata de obra pioneira em muitíssimos aspectos não resta dúvida. Ali, Marc Bloch nos apresenta a diversidade de tradições, perseguidas em suas pistas com grande maestria, que convergiram em prol da promoção da crença de que as realezas francesa e inglesa seriam, desde os primórdios da Idade Média central, dotadas de poderes miraculosos em meio aos quais se destacava a taumaturgia, em especial manifesta no toque régio e no seu potencial para promover a cura do mal das escrófulas.
Outro grande clássico propiciatório do tema devemos ao historiador alemão Ernst Kantorowicz, The King’s Two Bodies. A Study in Mediaeval Political Theology. Publicado em 1957 e particularmente dedicado ao estudo da teologia política medieval, a obra destaca os esforços do pensamento político desde fins da Idade Média por separar, na geminada figura régia de então, o corpo natural
e finito dos reis e o corpo político
, esse imortal, inscrito na realeza.
Se considerarmos mais especificamente a historiografia ibérica dedicada ao tema, merece destaque a obra de José Manuel Nieto Soria, intitulada Fundamentos ideológicos del poder real en Castilla (siglos XIII-XVI), publicada em 1988. Nela, talvez possamos dizer que o autor, acima de tudo, rebela-se
contra a suposta pobreza simbólica ou do imaginário do poder atribuído à monarquia castelhana a partir de comparações implícitas e/ou explícitas, com os exemplos
referidos. O aparelho ideológico instituído pelo poder na península não ficaria nada a dever, pretendeu demonstrar o autor, às suas homólogas inglesa e francesa, e a ausência da configuração taumatúrgica teria sido contemplada por uma série de imagens e de funções diversas atribuídas precipuamente ao poder régio, diferenciando-o e potencializando-o em relação aos demais poderes instituídos.
Estabelecida, brevemente, a rica linhagem, não se trata, obviamente, de requisitar ao nosso jovem autor e à sua obra o peso da responsabilidade dos clássicos referidos, mas de inscrevê-lo numa já longa tradição de estudos historiográficos da realeza medieval que a constitui como um dos temas mais frequentados pelos medievalistas, descortinando-se aquele objeto na complexidade e diversidade de sua configuração.
Esse é – e o afirmo sem receio de me equivocar –, o pedigree da obra que o(a) leitor(a) tem em mãos. Nela, nosso autor estabelece um quadro amplo e aprofundado de todos os esforços de investimento de sentido(s) na monarquia castelhana de Afonso X, que governou os reinos de Castela e Leão entre os anos de 1252 e 1284. Mais conhecido pelo cognome de Rei Sábio
, o atributo em questão talvez constitua apenas uma das muitas faces mobilizadas pela monarquia visando realçar a primazia do seu poder. Os reis eram figuras multifacetadas e multifuncionais, sorvendo de fontes diversas expressões que, agregadas à realeza, procuravam fundar e afirmar uma ascendência decorrente da multiplicidade e amplitude superior do campo de ação do poder régio.
Almir Marques de Souza Júnior esquadrinha tal poder começando por reunir seus autopronunciamentos: quase podemos distinguir as vozes
de Afonso X em meio à voz predominante de nosso autor. Assim, a teoria política afonsina se apresenta plena em toda a diversidade de suas expressões. Porém, para desespero dos poderosos, nenhuma teoria produz, estabelece, cria, mecânica e imediatamente, a prática do poder, via de regra contraposta por limites e contradições também as mais diversas e impossíveis de superar nos quadros em que se manifestam. Todo poder possui limites que se manifestam em sua prática e, em meu juízo, a equilibrada caracterização desses limites constitui uma não menor contribuição desta obra ao conhecimento da realeza medieval, em especial da afonsina. Que o autor continue nos cativando com uma prática historiográfica que se dilate no tempo.
Mário Jorge da Motta Bastos
Professor Associado 4 do curso de graduação em História da
Universidade Federal Fluminense
APRESENTAÇÃO
A pesquisa que se inicia tem como proposta a realização de uma análise sobre produção e circulação de um discurso político no âmbito do reino de Castela e Leão, durante a segunda metade do século XIII. Em especial, nossa temporalidade será restrita aos anos de 1252 até 1284, mesmo período em que o reino foi governando pelo rei Afonso X, chamado pelos historiadores de o sábio
.
A alcunha de sábio
associada ao soberano faz referência a ampla e extensa produção cultural que ocorreu no reino de Castela e Leão graças a sua iniciativa. A lista de obras que foi produzida ou traduzida por sua corte é longa e não se detém em um único campo da cultura, indo desde narrativas históricas, códigos legislativos e tratados de astronomia, chegando até mesmo aos domínios da música e dos jogos de xadrez.
Dentro desse vasto repertório, principalmente nas obras de natureza histórica e jurídica, buscaremos identificar e compreender o discurso político que era disseminado junto a essas produções culturais e estava contido em seus textos. Tal narrativa, além de ser produzida pelo rei, ou mesmo a mando dele, também era focada em sua própria figura. Tratava-se de apresentar o governante de forma relativamente única para a sociedade ou pelo menos aos leitores dessas obras. Esses livros e códigos legislativos, por sua vez, serviam como veículo de transmissão e divulgação dessas ideias forjadas pela Monarquia. Juntas, o conjunto dessas noções construía uma imagem
da realeza, que vai sendo gradativamente difundida pelo território, à medida que as obras vão alcançando novas regiões.
Na esfera política, o enfoque se dá em função dos atores sociais envolvidos na situação aqui analisada serem parte do mesmo grupo social tradicionalmente associado à esfera do poder. Dessa forma, acreditamos que o projeto propagandístico monárquico tinha como principal interlocutor não apenas a população do reino de forma geral, mas especificamente os membros da elite guerreira que se afastavam da influência do governante, situação muito recorrente conforme será visto mais adiante. A mensagem propagada nesse discurso procurava difundir não apenas uma mensagem acerca da importância da figura régia na hierarquia social. Também deixava claro que todos os demais membros daquele grupo estavam subjugados a ela.
Acreditamos que essas ações estavam diretamente relacionadas a uma conjuntura específica pela qual o reino de Castela e Leão passava em meados do século XIII. Durante aquele período, o rei e a instituição monárquica foram envolvidos em uma série de disputas políticas com outros núcleos de poder, tanto dentro quanto fora do reino ibérico. Tais disputas teriam levado o detentor da dignidade régia a tomar uma série de atitudes de natureza propagandística, visando não apenas legitimar a sua posição perante a sociedade, mas também confirmá-lo como a figura de maior autoridade dentro de seu próprio território.
Essa imagem da Monarquia ibérica afonsina muitas vezes foi compreendida pela historiografia como uma tentativa precoce de centralização dos poderes do rei, antecipando, inclusive, características políticas que só viriam a se tornar uma tendência séculos depois. Ainda de acordo com essa visão, tal projeto teria sido interrompido frente às grandes pressões e forte oposição militar que o rei sábio teria sofrido ao longo do seu reinado.
Nossa proposta aqui é compreender todo esse processo por outro prisma. Não é nosso intendo identificar elementos que supostamente teriam antecedido o Estado Moderno em plena Idade Média, mas perceber como a teoria polícia daquele período se relacionava com os próprios conflitos que existiam dentro do grupo que detinha o poder. Isso porque, nesse complexo cenário, o rei, por mais que fosse uma figura de destaque, não era o único ator a fazer parte da esfera de governo.
Faziam parte da elite dirigente de Castela, sem igual medida, os líderes da aristocracia detentora de terras. Senhores de vasto poder territorial que comandavam seus próprios exércitos privados eram responsáveis também por exercer a justiça e proteger os seus domínios. Estes, por sua vez, não abririam mão de tamanho poder apenas para dar vazão às ambições da Monarquia. Justamente em função dessa realidade, o discurso político não pode ser visto como consenso de toda a sociedade, mas como tentativa de convencimento por parte do rei acerca da sua própria visão do poder.
Assim, nosso primeiro capítulo abordará as principais questões teóricas que orientaram nossa investigação. Nele, consideraremos a questão do poder como objeto de estudo da História, ressaltando as principais tendências da história política na atualidade. Por mais que nossa proposta se volte mais especificamente para o discurso político, mostraremos que a política não se limitava ao aspecto discursivo, sendo também uma prática social. Também faremos uma breve menção às teorias de análise propostas pela Escola de Cambridge, que muito se dedicou à questão das ideias políticas e da teoria das formas de governo, mas não nos vincularemos diretamente a ela. Por meio de uma crítica promovida à Cambridge, em especial aos trabalhos de Quentin Skinner e John Pocock, apresentaremos a nossa proposta teórica que tem como base a história social do pensamento político proposta por Ellen Wood. Estabeleceremos como as reflexões da autora britânica poderão nos auxiliar a compreender a dinâmica de tensões que se dava entre o rei e a aristocracia fundiária no medievo.
O capítulo dois promoverá uma ampla apresentação do reinado de Afonso X, destacando seus momentos principais. A primeira parte do capítulo será dedicada às primeiras décadas de governo, quando o rei preocupava-se em sedimentar as conquistas militares e a expansão territorial protagonizada por Fernando III. Veremos, aqui, a esquematização dos principais projetos de expansão da autoridade régia, entre os quais estava a busca pelo título de imperador do Sacro Império Romano Germânico e a tentativa de empreender uma conquista militar no norte do continente africano. Na segunda parte do capítulo destacaremos os problemas enfrentados pelo rei e que acarretaram na interrupção de boa parte de seus projetos políticos. Alguns dos momentos mais marcantes da segunda metade de seu governo vincularam-se à sublevação da nobreza condal castelhana, à invasão marroquina que, propositadamente, coincidiu com a guerra contra o reino de Granada, e a difícil questão sucessória que se apresentou diante do rei após a morte do seu filho primogênito. O estabelecimento desses últimos eventos será de fundamental importância para conseguirmos compreender a dinâmica de forças sob as quais as principais obras da teoria política do período foram elaboradas.
O terceiro capítulo abordará as principais concepções políticas divulgadas pelas obras que foram compiladas a mando do rei. Vários elementos da teoria política apresentada pelas obras afonsinas não destoavam muito das demais representações elaboradas nos outros reinos da Europa Ocidental. Todavia, o caso castelhano guardava características únicas e algumas das ideias que estavam em voga no continente ganhariam projeção no reino ibérico, assumindo novas características. Um desses casos ao qual nos referiremos consistia na concepção da realeza sagrada. Verificaremos que, em Castela, as formas de se perceber o sagrado apresentavam-se de maneira distinta daquelas que são tradicionalmente mostradas pela historiografia. Ainda nesse capítulo, apresentaremos as principais funções que a teoria política associava aos monarcas e a relação que existia entre esse tipo de discurso e a conflituosa conjuntura do reino. Ao fim desse capítulo, consideraremos a forma como o poder monárquico era concebido, verificando como o rei expressava as distinções e as aproximações entre a sua autoridade e a autoridade dos grandes senhores de terra.
O quarto e último capítulo considerarão as últimas, mas não menos importantes, teorias acerca do poder régio. Observaremos até que ponto as transformações econômicas e sociais pelas quais o reino passou ao longo dos séculos XI, XII e XIII influenciaram na forma de se conceber a potestade real e a função que o supremo governante do reino deveria exercer na sociedade. Observaremos, ainda, a relação que se estabeleceu entre o monarca e as formas de difusão do conhecimento, principalmente aquelas que diziam respeito às instituições de ensino e à aprendizagem.
Por fim, trataremos de um importante elemento característico da teoria política afonsina: o mito da reconquista. Veremos quais eram as principais ideias que, em pleno século XIII, fomentaram a noção de que seria justo, por parte dos príncipes castelhanos e leoneses, estabelecerem uma retomada dos territórios hispânicos que se encontravam nas mãos de povos que não seguiam a fé cristã. Da mesma forma, analisaremos quais eram as pretensões que embasavam a construção desse discurso e os interesses que sustentavam a reprodução desse mito político.
AS FONTES DESTE ESTUDO
Um estudo sobre a teoria política nos tempos de Afonso X acaba tendo como característica a utilização de um corpus documental relativamente vasto, em função da farta produção documental do período e da grande quantidade desses documentos, que conseguiram atravessar o tempo até os dias atuais. Muitas obras aqui utilizadas não tinham uma finalidade diretamente relacionada à esfera da política, mas, mesmo assim, constituem-se em excelentes fontes para que possamos conhecer o pensamento político associado à autoridade central do reino de Castela e Leão. Muitos desses documentos possuem uma importância significativa não apenas pelas informações contidas em suas páginas, mas também pelo protagonismo histórico que desempenharam em meio aos eventos que transcorreram entre os anos de 1252 a 1284.
Um primeiro grupo de fontes pode ser colocado sob uma mesma categoria, que são os códigos afonsinos
. Trata-se do Fuero Real, do Especulo e das Siete Partidas, obras de cunho jurídico-legislativo que foram compiladas em diferentes momentos do reinado de Afonso X. Se for possível tecer alguma generalização acerca desses documentos, ela está na amplitude de temas abordados por cada um deles. Os códigos afonsinos não se limitam a ser um conjunto de leis, normas e punições. Eles também ambicionavam determinar e padronizar diversos aspectos da vida dos homens em Castela. O grau de especificidade e a amplitude dos temas variam em cada uma dessas obras, mas o perfil normativo e impositivo com que o texto se dirige ao seu interlocutor é uma marca constante, principalmente no primeiro caso. De maneira geral, esses códigos afonsinos nasceram do desejo da Monarquia em remediar uma situação jurídica caracterizada pela existência de uma multiplicidade de foros nos territórios do reino, unificando todas essas leis sob a sua própria iniciativa.
A primeira das obras que citaremos é conhecida como Fuero Real.¹ As leis apresentadas nesse código eram dispostas de forma breve, uniforme e regularmente sistematizadas. Está organizada em quatro tomos, que se subdividem em 72 títulos, sendo que o primeiro livro, com doze títulos, trata de assuntos