O Português à Descoberta do Brasileiro
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O Português à Descoberta do Brasileiro - Fernando Venâncio
Título: O Português à Descoberta do Brasileiro
Autor: Fernando Venâncio
© Autor e Guerra e Paz, Editores, Lda., 2022
Reservados todos os direitos
A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Revisão: Ana de Castro Salgado
Design: Ilídio J.B. Vasco
Mapa: Carlos Filipe Nogueira
Isbn: 978-989-702-736-9
Guerra e Paz, Editores, Lda
R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.
1150-105 Lisboa
Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489
E-mail: [email protected]
www.guerraepaz.pt
Para
Carlos Faraco
Marcos Bagno
Sérgio Rodrigues
Índice
Contactos brasileiros
Um português à solta
Um antibrasileirismo larvar
Música e banda desenhada
Um pouco de história
Uma norma brasileira
Entretanto, no Brasil
Auto-imagem e a imagem do outro
Mas antes disso…
Brasileirismos: dados actuais de um paradoxo
Brasileirismos: que unidade?
A língua do Brasil e a actual ficção portuguesa
O brasileiro sem mestre
Esta língua bendita
O português dos outros
Redesenhando o português
Marcas brasileiras
O problema das traduções
A língua pródiga
O goleiro e o ouro do Brasil
Tróia ao barulho
Algumas curiosidades
«Mi àmará ela?»
Machucar, enxergar
Ora, pois!
Bicha vs. paneleiro
Só que
Queria… Podia…?
Chamar de
Uma palavra mais
Não tem pressa
Vocabulário avulso
Cair a ficha
Meu maridão
Demais
O que eu não posso dizer
E se afinal fosse verdade?
Um post no Facebook
«É próclise? Está errado!»
E o futuro?
Bibliografia essencial
Contactos brasileiros
No Verão de 1988, tendo eu regressado definitivamente à Universidade de Amesterdão (onde iria ficar até à reforma, em 2010), soube que estava incumbido das matérias de História e Literatura do Brasil. Eram cadeiras de nível introdutório, mas mesmo assim passei as férias em releituras de estudos e de obras literárias. Nestas, recordo-me de Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e Rubem Fonseca.
O meu primeiro contacto com a realidade além-oceano tinha-se dado em plena infância. Bastantes histórias aos quadradinhos (hoje banda desenhada ou BD) chegavam-nos em edições brasileiras. Aí predominava uma linguagem informal, aquela mais marcadamente diferente da nossa, o que não nos impedia o deleite. A rádio, também ela, transmitia frequentemente modinhas do Brasil. Delas e das histórias aos quadradinhos falarei adiante. Em nada disso, de resto, me distinguia de qualquer miúdo da minha idade em meios citadinos, nesses anos de 1950. E foi aos 10 anos que tive, finalmente, contacto com brasileiros genuínos. Um deles iria ser meu professor de língua portuguesa.
O padre Celso Figueiredo, assim se chamava, contava-nos histórias da sua cidade natal, Santos. Recitava-nos poemas de autores brasileiros, entre eles Gonçalves Dias, estudante em Coimbra nos anos de 1840, definhando de saudades: «Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá. / As aves que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá.» Ensinava-nos o sacerdote palavras que supunha, e bem, de menor circulação em Portugal: canhenho, bestunto, cotejar, entrosar. E ajuntava, com um sorriso travesso, traquejo e traquejar. Ter um brasileiro como professor enriquecia-nos.
Nada, porém, nos fazia suspeitar que, passados 20 anos, agora através da televisão, crianças e adultos portugueses iriam ter contactos com o português do Brasil numa ordem de grandeza inimaginável. Desse cenário então futuro se ocupará este livro, centrando-se a atenção em matérias pertencentes à estrutura do idioma.
Um português à solta
Quando falam e quando escrevem, os brasileiros exprimem-se – é o menos que se pode dizer – diferentemente de nós. A esse respeito, circulam entre os portugueses duas apreciações que diremos alucinadas. Uma sofre de imparável euforia. «Olha como eles dizem! Tão queridos!» É o célebre ‘português com açúcar’. No extremo oposto, acham-se indivíduos horrorizados: «Eles nem português sabem falar!»
Temos, assim, o clube dos eufóricos, pessoalmente orgulhosos de terem criado a nação brasileira, e o clube dos inconsoláveis por verem os brasileiros obstinados no seu ‘crioulo’ (sic).
Estes últimos, os inconsoláveis, são os mais complicados. Não se percebe se esperam que o Brasil consiga algum dia exprimir-se num português decente, ou se antes desejam que ele, de uma vez por todas, vá à sua vida, abandonando o grémio dum idioma incorruptível.
Esta última posição esconde uns pingos de verdade. ‘Eles’, de facto, não sabem o ‘nosso’ português. Mas também o dispensam. E vamos ser sinceros: nós também não somos fortes no português deles. Se virmos bem, a expressão brasileira mostra, até, um indesmentível bom gosto. Desde que foram deixados à solta, os brasileiros produziram modos de dizer que nunca nos passariam pela cabeça e que são, não raro, um sumo de inventiva. Alto! Dissemos que os falantes brasileiros foram deixados à solta? Não é inteiramente exacto. À solta estiveram eles sempre. Nós é que só muito tarde reparámos nisso. (Anote-se que essa acertada caracterização de «o português à solta» foi, no passado, proposta por Agostinho da Silva.)
Em finais do século xix, o brasileiro Artur Azevedo publicou uns Contos Fora da Moda. Num deles, «A Praia de Santa Luzia», narra-se o triste mal-entendido amoroso entre certo Maurício e uma moça por ele apaixonada.
Estavam as coisas neste ponto – o fogo ao pé da pólvora – quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta a Maurício.
– Esta que Sinhazinha mandou.
O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de Medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la na Alfândega.
Me escreva e me diga como chama-se, em que ano está e cuando se forma, e quero saber se gostas de mim por paçatempo ou se pedes a minha mão a minha família, que é meu Pay, minha Mãy e um irmão. Desta que lhe ama, Adélia.
Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera uma monstruosidade. Nunca lhe passara pela cabeça idéias de namoro, amava muito sua mulher, a mãe do seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma pobre menina que o supunha solteiro […]
Reparemos nas diferentes sintaxe e morfologia de que o narrador e a apaixonada se servem. A moça diz: «Me escreva e me diga», «como chama-se», «desta que lhe ama». Eram, já então, características da expressão informal brasileira. A gramática do narrador, por sua vez, prescreve: «foi abri-la», «era incapaz de traí-la», «que o supunha». E que constatamos? Que a gramática informal mostrou sempre uma persistência, uma coerência, que não se adequam à displicente designação de ‘crioulo’.
Esse uso de lhe e lhes como complemento directo (substituindo os pronomes o, a, os, as) generalizou-se na informalidade, não obstante a obstinada resistência dos gramáticos, e é encontrável até em textos de linguagem particularmente vigiada.
Conhecido exemplo é «Essa noite eu quero lhe usar», em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, de que existem variantes em curso («Se dispa, por que vou lhe usar», «Deite, que vou lhe usar»).
Na canção «Com açúcar, com afeto», de Chico Buarque, de 1967, achamos:
E ao lhe ver assim cansado,
Maltrapilho e maltratado.
Como vou me aborrecer?
Este emprego de lhe tem uso na expressão informal angolana. Cito de Estação das Chuvas, de 1996, de José Eduardo Agualusa: «rasgavam os documentos e talvez lhe matavam mesmo», «O comandante lhe conheço bem, é meu amigo». Ajunte-se que, também aí, o clítico pessoal pode figurar no início absoluto da frase: «Estás assustado, não é? Me disseram que pareço o fantasma sem cara.»
Insista-se nessa referida persistência. Como em tantos outros pormenores do idioma, fenómenos que diríamos de recente data revelam-se duma antiguidade que mal imaginávamos. Dá-se, mesmo, um caso deveras curioso. Aquela sintaxe «como chama-se», dada em 1894 como índice de deficiente domínio do idioma, achava-se já em clássicos como José de Alencar e Machado de Assis, que dela se serviam com naturalidade. Vamos vê-lo adiante.
Um antibrasileirismo larvar
A inícios de Julho de 2021, em comentário a artigo do jornalista Nuno Pacheco no diário Público, certa leitora assim se exprimia:
A Língua Portuguesa, a nossa única riqueza, encontra-se sob dupla ameaça existencial: o lixo analfabeto brasileiro e o parolismo e o provincianismo de portugueses que, a limpar sanitas ou a comprar diploma de analfabeto, passaram ou passam algum tempo em países anglófonos. Muito grave e triste.
Atente-se no dramatismo. O nosso idioma é «a nossa única riqueza» (presume-se que dos portugueses), e ela acha-se sujeita a uma «ameaça existencial» (perceba-se que em perigo de sobrevivência).
Primeiro factor de risco: o «lixo analfabeto brasileiro». Seja dito que analfabetismo é conceito recorrente em reflexões internéticas portuguesas sobre a expressão dos brasileiros, tida por irremediavelmente incorrecta.
O segundo factor de risco, o papel dos portugueses limpadores de sanitas britânicas, é aqui puxado pelos cabelos, pois as nossas queixas sobre anglicismos eram já frequentes nos primeiros decénios do século xx.
Facto é que existe, em bastantes mentes portuguesas, um antibrasileirismo primário, irracional, e por isso de difícil erradicação. Ele pode ser entendido no contexto duma larga insegurança que em Portugal reina no atinente ao próprio idioma. Esta insegurança tem vindo, em anos recentes, a ser exacerbada, e explorada, por autores pouco informados em matéria linguística, quando não simples charlatães. Forçando um pouco a nota: uma genérica desqualificação dos usos linguísticos brasileiros seria jogar na defensiva, distraindo-nos da má auto-imagem de falante europeu.
Baldada tarefa seria, porém, tentar chamar tal gente à razão. Segundo o linguista Morris Hale, «a linguística tem, a sério, uma coisa em comum com a prostituição: num terreno e no outro, deveria o profissional perder a ilusão de poder competir com o amador».
Certo. Mas