Eufrásia e Francisca: As Irmãs Teixeira Leite e o Seu Tempo – Uma História Romanceada
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Sobre este e-book
Não obstante, Francisca teve um papel importantíssimo na vida de sua irmã, como partícipe e conselheira que foi nos momentos de indecisão. Em verdade, os marcos referenciais para a reconstituição das vidas e atividades das irmãs são escassos e não muito claros, o que dificulta a compreensão das atividades daquelas irmãs, como vanguardistas que foram, na participação da mulher nas atividades humanas, até então, reservadas com exclusividade ao gênero masculino.
Neste romance, buscamos mostrar as irmãs Teixeira Leite na qualidade de duas mulheres que, órfãs de pai e mãe, em curto espaço de tempo, emancipadas e herdeiras de considerável fortuna, mas prisioneiras das injunções sociais de seu tempo, reagem decisivamente e moldam as suas trajetórias de vida de forma inusitada e vencedora.
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Eufrásia e Francisca - José Carlos Vargens Tambasco
Prefácio
Numa manhã do início do inverno de 2021, recebi a ligação de um grande amigo e confrade com quem há muito não falava, muito menos encontrava, devido às circunstâncias do isolamento social pela pandemia da Covid-19. Para minha surpresa, o diálogo iniciou-se com uma expressão "estou te ligando para te fazer uma consulta, imediatamente disse:
deveria ser o contrário", uma vez que eu, como ainda mestre, deveria me dirigir ao doutor para tirar as minhas dúvidas na profissão de historiador. Logo, o Prof. Dr. José Carlos Vargens Tambasco disse-me que a consulta era para fazer um convite, o prefácio desta obra, que ora apresento a você leitor. Fiquei extremamente emocionado pela honra desse convite e aceitei prontamente o desafio.
O Prof. Dr. José Carlos Vargens Tambasco atuou como engenheiro metalúrgico durante sua vida profissional e, depois de sua aposentadoria, dedicou-se a uma nova área, a de História. Assim, matriculou-se na graduação e fez, em sequência, o mestrado e, por fim, o doutorado em História.
Sua experiência profissional em Engenharia Metalúrgica e seu conhecimento histórico proporcionaram aos seus amigos, confrades e admiradores a possibilidade de leituras sobre questões econômicas do Brasil e do mundo, seja no período colonial, imperial ou do Brasil Republicano.
Nesta obra, José Carlos Vargens Tambasco propõe um romance histórico que tem os fatos históricos – políticos, econômicos, sociais e culturais – como pano de fundo. Com a liberdade desse gênero literário, cria diálogos para descrever a trajetória de duas sinhazinhas do interior fluminense na capital francesa, seu cotidiano, suas impressões, relacionamentos familiares, amorosos, sociais, culturais e religiosos, quer seja em Vassouras, em Paris, quer seja em outros partes do Brasil e da Europa.
O ato de escrever sobre duas mulheres do Oitocentos – uma delas, Eufrásia, que ainda viveu as primeiras décadas do século XX, vindo a falecer em 1930 – mostra a capacidade do autor em articular os fatos históricos e a vida cotidiana de forma romanceada. No entanto, algumas personagens, pela força de sua personalidade, com o tempo, tornam-se cristalizadas, e ultrapassar as barreiras impostas pela quase canonização
dessas figuras históricas demonstra que ainda se tem muito por interpretar e decifrar as decisões, seja no campo afetivo, seja no financeiro, a partir do contexto histórico em que viveram.
O leitor vai se surpreender com fatos, muitas vezes, desconhecidos ou desapercebidos do público em geral sobre a história do Brasil e do mundo.
Boa leitura!
Em Vassouras, aos 10 de julho de 2021
Angelo Ferreira Monteiro
Professor assistente III; pesquisador; editor executivo da Mosaico – Revista Multidisciplinar de Humanidades da Universidade de Vassouras; supervisor pedagógico da Especialização em História e Cultura da África, Afro-Brasileira e Indígena; responsável pelo Núcleo de Integração, Empreendedorismo Sociocultural e de Negócios da Pró-Reitoria de Integração, Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Relações Externas; doutorando em História pelo PPGH – Unisinos; mestre em História – Programa de Mestrado em História da Universidade Severino Sombra – USS (atual Universidade de Vassouras); graduado em Licenciatura Plena em História pela USS; membro titular da Academia de Letras de Vassouras (ALV), cadeira n.º ٧ – Patrono Casimiro Cunha; membro colaborador do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras (IHGV); patrono da cadeira n.º ٧ da Academia Juvenil de Letras de Vassouras – AJLV.
Sumário
À guisa de introdução 8
Capítulo 1
A vida tem início 16
Capítulo 2
Origens 42
Capítulo 3
A grande inflexão 64
Capítulo 4
A viagem 80
Capítulo 5
O amor e suas indecisões 94
Capítulo 6
Os tempos da juventude 116
Capítulo 7
Os tempos da maturidade 130
Capítulo 8
Novos rumos 180
Capítulo 9
Gerindo a solidão 206
Capítulo 10
O retorno 232
BIBLIOGRAFIA 246
À guisa de introdução
O nome de Eufrásia Teixeira Leite evoca as mais diversas e instigantes representações, sobremodo a imagem da mulher que se tornou em um enigma na história das personalidades fluminenses.
De fato, no imaginário originado das livres interpretações dos registros históricos do município de Vassouras, jamais foi construída tão variada gama de representações sobre a personalidade de alguém: a mulher fatal
; a mulher misteriosa; a jovem amante de Ramiro – velho escravo de seus pais e pai de Cecília, mucama tardia de Eufrásia, que a acompanhou desde o decênio que antecedeu o falecimento de Francisca Bernardina, sua irmã, até o falecimento da própria Eufrásia –, a habitante de Paris. Fizeram-na a mulher orgíaca, no seu palacete da Rua Bassano, n.° ٤٠, amante de nobres, entre os quais o conde d’Eu, ou o próprio imperador deposto, D. Pedro II. Dos seus últimos oito anos de vida no Brasil, inventaram-se outras estórias, em particular aquela do legado testamental ao burrico Pimpão, de pequena fortuna para sua aposentadoria
.
Contudo não eram essas as únicas estórias ainda hoje contadas. Outras foram até reproduzidas em romances abordando a família Teixeira Leite ou, mesmo, a vida de Eufrásia. Por exemplo, conta-se que ela conheceu Joaquim Nabuco – o grande amor de sua vida – entre os anos de 1868 e 1870, durante as visitas que ele teria feito a Vassouras, participando das primeiras atividades da campanha abolicionista. Em que pese ter-se iniciado o movimento abolicionista bastante cedo, entre 1868 e 1870, nessa época Joaquim Nabuco estava no Recife, mais preocupado com o seu dandismo que com a abolição; também cuidava da sua vida acadêmica e participava de júris populares, naquela cidade. Em janeiro de 1870, ele colava grau de bacharel em Direito, regressando em seguida para o Rio de Janeiro, onde permaneceu mais como um dândi de inspiração byroniana, nos salões da corte, do que como um advogado, profissão que nunca exerceu, nem militante de qualquer causa ideológica. Até fins de 1873, permaneceu mais como um gozador da vida, além de namorador de jovens e belas esposas de sisudos cavalheiros e personalidades importantes na Corte imperial. Jamais foi um abolicionista engajado, no referido período de tempo, e, certamente, jamais esteve em Vassouras com aquele propósito humanitário!
O enigma Eufrásia Teixeira Leite não surgiu, pois, do fato de ela se ter enamorado de Joaquim Nabuco, mas antes por ter conduzido a sua vida pessoal de forma inusitada para a época e para a sociedade patriarcal da qual era oriunda e na qual vivera, tal como o próprio Joaquim Nabuco.
De fato, em consequência de sua tão súbita e sofrida orfandade, de mãe e de pai, ocorridas, inesperada e sucessivamente, entre 1870 e 1872, seguida do falecimento de sua avó, em princípios de 1873, Eufrásia e sua irmã mais velha, Francisca Bernardina (doravante referida apenas por Francisca), órfãs, emancipadas e herdeiras de considerável fortuna, decidiram residir sozinhas em Paris e ali conduzirem suas vidas.
O inusitado dessa decisão não era apenas o fato de duas jovens mulheres, emancipadas, passarem a residir sozinhas em país estrangeiro. O que mais chocou às famílias Teixeira Leite e Corrêa e Castro foi a recusa ao apadrinhamento pelo tio paterno, o barão de Vassouras – que era considerado o patriarca da família Teixeira Leite – e pelo tio materno Cristóvão Corrêa e Castro, que poderia ter apresentado intenções semelhantes. Qualquer que fosse a origem das pressões, a atitude das duas irmãs quebrava, decisivamente, uma tradição avoenga dos costumes familiares.
Tudo indica que as filhas de Joaquim José Teixeira Leite e Ana Esméria Teixeira Leite (nascida Corrêa e Castro) foram educadas em padrões diferenciados daqueles usuais na época, quanto aos conceitos de liberdades pessoais das mulheres. De fato, não conhecemos referências às eventuais contratações de casamentos que houvessem sido ditados por interesses familiares e dirigidos pelos seus pais, tanto para Francisca (então com 25 anos) como para Eufrásia, cinco anos mais nova. Ressaltemos, aliás, que naquelas idades seriam ambas percebidas como jovens sem dotes e, por consequência, sem pretendentes, já que nessa época as mulheres se casavam a partir dos 16 anos completos.
No caso presente, não seria crível que tivesse havido falta de pretendentes, não só pelos dotes que estariam envolvidos mas também pelo prestígio da família Teixeira Leite. Tudo indica que os pais dessas jovens haviam deixado a elas mesmas a decisão e a conveniência dos seus casamentos, com quem livremente escolhessem. Seria, pois, uma postura inusitada e muito avançada para a época, razão pela qual uma autora imaginou certa trama entre Ana Esméria e seu irmão Cristóvão, a despeito de Joaquim José, para o casamento de Francisca e Eufrásia com os filhos daquele tio.
Parte daí o nosso entendimento sobre a decisão, tão surpreendente, das irmãs. Entendemos que órfãs que ficaram, seu tio, o barão de Vassouras, teria insinuado – ou mesmo indicado abertamente – alguns casamentos de conveniência. Também é possível que tenha desejado orientar, ou mesmo dirigir, a aplicação da fortuna das irmãs nos negócios, então, decadentes da lavoura e da exportação do café, no Vale do Paraíba. Certamente, elas estavam bem informadas pelas lições paternas sobre os grandes riscos dos investimentos no Vale do Paraíba, sobremodo em vista de uma previsível abolição da escravidão¹, fato encarado com enorme recalcitrância pelos fazendeiros daquele Vale, aí incluído seus próprios tios.
Esses fatos, acobertados pelas circunstâncias da dor da perda dos pais e da avó materna, sucessivamente ocorridos no curso de dois anos, levaram as irmãs, sem conflitos de maior monta com as famílias, ao projeto da sua residência em Paris, para desfrutarem da sua fortuna. Era um projeto aceitável, conquanto criticável por alguns setores familiares mais sensíveis e conservadores, preferindo as alternativas habituais às tradições sociais da época.
Contudo, como aflorado anteriormente, Eufrásia não era a única a decidir sobre os destinos que seguiriam; sua irmã, Francisca, sempre foi uma partícipe ativa dessas decisões. Fato de explicação árdua, pois Francisca é constantemente ignorada, seja pelos romancistas da vida de Eufrásia, seja pela historiografia daquela notável mulher. Francisca era a detentora da metade da fortuna por elas herdada, além de ter recebido a mesma educação que Eufrásia, e não se tem notícias de que fosse portadora de qualquer limitação intelectual, o que poderia justificar a sua ausência decisória. Na verdade, se alguma diferença houve na educação das duas irmãs, terá sido quanto à compreensão dos meandros dos investimentos internacionais e em bolsas de valores, áreas nas quais seu finado pai era um experto e cuja ação Eufrásia acompanhara com interesse, já Francisca não se adequava.
Tudo parece indicar que Francisca jamais tenha se interessado, ou atuado nessas áreas das finanças, embora não fosse uma leiga no assunto. Contudo, se ocupou, muito mais, com a administração patrimonial do cotidiano das suas vidas.
Embora se retirando do país, as irmãs Teixeira Leite sempre conservaram seu patrimônio imobiliário vassourense: o solar onde haviam nascido e vivido até partirem para a Europa. Essa atitude indicava que desejavam preservar as raízes, apesar das conhecidas alegações epistolares de Eufrásia a Joaquim Nabuco – em algumas de suas cartas, alegava não pretender voltar a viver no Brasil, em vista do sofrimento pessoal pelo qual passaram. Percebemos que tais alegações não tinham a determinação absoluta que projetavam. Em realidade, elas jamais quiseram perder o vínculo com Vassouras.
A preservação desse patrimônio poderá ter servido também como forma encobridora das suas reais intenções quanto às eventuais oposições familiares ao seu plano de deixar o país. Aquela viagem não seria mais que uma aventura caprichosa! Logo, logo, os gonzos se encaixariam nos seus eixos
, teria dito o velho barão às suas recalcitrantes filhas. Ademais um profundo mergulho na cultura e civilização francesas ser-lhe-á de grande utilidade porque, quando retornarem, poderão se dedicar, com muita proficiência, à educação de qualidade das nossas descendentes
, teria ele completado.
Entendemos que quem sofre uma dor angustiante, insuperável, não deseja voltar ao palco daquele sofrimento. De fato, preservando para si, e por longo tempo, os locais do sofrimento – salvo no caso de uma psicopatia manifesta, o que certamente não era o caso – demonstra desejos de continuidade, voluntariamente não explicitados, em que pese o fato de ter sido grande o sofrimento das irmãs naquele período das grandes perdas familiares.
Francisca faleceu prematuramente, aos 53 anos, em Paris. Passado o tempo mínimo legal, Eufrásia fez a exumação dos seus restos mortais e os transladou para o cemitério da Conceição, em Vassouras. Aproximadamente, quinze anos após, sentindo-se debilitada, Eufrásia voltou a residir na Casa da Hera, alternando suas estadas entre Vassouras, Rio de Janeiro e Paris. Não pode haver dúvidas: o vínculo de Eufrásia com Vassouras se manifestava. Ele viria a se extinguir somente no dia 13 de setembro de 1930 e morreria com ela, como demonstrou seu testamento.
A notoriedade bibliográfica de Eufrásia não se deveu, inicialmente, a qualquer singularidade marcante da sua personalidade nem pelo destemor de mulheres fadadas a desafiar e mudar o eixo cultural das sociedades em que viviam. Tampouco essa notoriedade resultou de um relacionamento sentimental de Eufrásia com personalidade que viria a ter grande notoriedade política no Brasil de fins do século XIX, Joaquim Nabuco. Essa notoriedade adveio após seu falecimento e em consequência do processo judicial que foi movido por duas de suas primas, filhas do finado barão de Vassouras, que buscavam a anulação do seu legado testamental à Santa Casa de Misericórdia de Vassouras. Os representantes daquele ramo familiar desenvolveram a tese de insanidade mental de Eufrásia, tese essa que não prosperou. Não obstante, as mídias de então exploraram o momentoso tema da personalidade enigmática da jovem Eufrásia e, em consequência, seu relacionamento amoroso com Joaquim Nabuco. Em tal contexto, explicar-se-ia a ausência de Francisca. Era uma personagem cuja discrição pessoal em vida a tomaria invisível às mídias dos tempos posteriores.
O que poderemos dizer daquele relacionamento amoroso? Certamente Eufrásia e Joaquim já se haviam conhecido em algum salão da corte, pois que a família de Eufrásia possuía um palacete no bairro das Laranjeiras, onde passavam temporadas e frequentavam vários salões da sociedade do Rio de Janeiro. Voltaram a se reencontrar a bordo do vapor Chimborazo, em fins de agosto de 1873, quando da ida das irmãs para Paris e de Nabuco para uma viagem de estudos, na Europa. Apaixonaram-se, contraíram noivado durante a viagem e combinaram de se casarem em Paris. Já em Paris, e antes que pudessem realizar o matrimônio, durante um festejo do Ano-Novo de 1874, brigaram e romperam o noivado. Razões? O comportamento dândi e hedonista do jovem Nabuco confrontando os ciúmes gerados na também jovem, e ainda muito insegura, Eufrásia. Teríamos, então, presenciado o primeiro ato de uma peça romântica que se prolongaria em atos sucessivos, com intervalos longos entre esses atos, de vários anos, até o seu desfecho, em 1886.
Contudo não presenciamos, nesse desenrolar de um amor que se mostrara impossível, qualquer constrição ou impedimento de origem familiar porque, do lado da família de Nabuco, as manifestações do seu pai – o senador Nabuco de Araújo – foram as mais entusiásticas. Pelo lado de Eufrásia, como ela era emancipada – e muito consciente dessa emancipação –, os desagrados que possa ter havido não passariam de narizes torcidos. Não foi revivido, pois, nenhum clima de um novo drama à feição de Romeu e Julieta!
Porém – se perguntarão os leitores – algo de determinante deve ter havido que tenha impedido a união e a felicidade a dois daquele par. De fato, duas personalidades muito fortes, dos protagonistas, defrontaram-se causando sucessivos desencontros. De um lado, Joaquim Nabuco, com uma personalidade romântica e sonhadora, o grande tímido no trato com as mulheres, escondendo-se por detrás de um dandismo afetado e inconsequente. De outro lado, Eufrásia, dona de uma personalidade pragmática, voluntariosa e dominadora. Era tudo o que Nabuco, inconscientemente, nunca poderia aceitar, porque um modo de ser que agredia o que lhe insinuavam suas recordações inconscientes, formando suas raízes patriarcais nordestinas. Dessas, geravam-se as expectativas sobre uma companheira dona do lar e praticante da mais doce obediência consentida.
Nesse ponto, vale a pena lembrarmo-nos da análise feita por Ângela Alonso² sobre os dois amores da vida de Nabuco, ao comparar Eufrásia com Evelina, esposa e amor definitivo de sua vida. Ana Benigna, sua mãe, matriarca da família de Nabuco, dominadora e resoluta, que ele viera a conhecer apenas após os oito anos, assimilada à Eufrásia, e Ana Rosa, sua madrinha e mãe de criação no Recife, até os seus oito anos, que ele sempre conhecera e lembrava suave e doce, católica praticante, fulcro renovador das saudades e emoções uma vez vividas no sítio-engenho Massangano, que jamais seria esquecido. Foi Evelina quem lhe propiciou a segurança interior de um retorno, sempre desejado, à sua infância protegida e encantada.
Do romance vivido pelos dois, em momento de desesperança, contrariedades e sentindo-se ferido em seu amor-próprio, Nabuco virou a página para sempre. Encontrou em Evelina seu lenitivo e a parceira de transmissão da sua descendência, como sentia ser-lhe conveniente e urgente. Eufrásia, por seu lado, jamais voltou a mencionar o nome dele, após três tentativas de reconciliação, sem que tivesse nenhuma resposta. Que nunca o esqueceu, podemos afirmá-lo, não apenas pelo fato de se ter mantida celibatária até o fim da seus dias, mas sobremodo por sua declaração peremptória sobre a correspondência que Nabuco lhe havia endereçado durante os diversos períodos do seu namoro. Diria ela, em uma das suas últimas cartas, em 16 de maio de 1886: "[...] quanto a sua correspondência, considero-a propriedade minha, como tal guardo-a e por nada consentirei a entrega-lo (sic). [...] Não tenha susto, ninguém a lerá".
Seria preciso prova maior sobre os sentimentos de Eufrásia?
Complementando esse raciocínio, lembremo-nos de que, alguns dias antes do seu falecimento, Eufrásia determinara ao seu advogado e testamenteiro, o Dr. Antonio José Fernandes Junior, a destruição daquelas cartas, após a sua morte, no que foi atendida segundo o testemunho presencial de Cecília, sua mucama até o fim dos seus dias. Afora a correspondência que Nabuco recebera de Eufrásia, e que ele nunca devolveu, vindo a integrar-se no acervo epistolar do Instituto Joaquim Nabuco, pouco podemos contar, como fontes primárias, para balizar a reconstituição da sua vida. Dispomos de fontes indiretas para a compreensão da sua infância e juventude; de fontes cartoriais abrangendo o seu testamento e fatos relativos à sua munificência para com a cidade de Vassouras. De quase nada dispomos sobre os 48 anos da sua vida social em Paris, 26 dos quais juntamente com sua irmã, Francisca. Uma pesquisa aprofundada e extensiva nos arquivos dos periódicos parisienses da época – principalmente nas colunas de eventos sociais, do jornal Le Figaro, contemporâneo ao estabelecimento de Eufrásia e Francisca em Paris. Infelizmente, as buscas realizadas, por meio de pesquisadores associados, não foram tão extensas como desejávamos, em decorrência de termos ficado impossibilitados de o fazermos, pessoalmente. Dessa forma, o escopo inicial – uma história bem documentada de Eufrásia e sua irmã – evoluiu para uma forma de romance histórico, balizado em fatos documentados, já conhecidos e indubitáveis. Complementando-o, construiríamos as imagens consentidas, por plausíveis, dos demais momentos não documentados, das vidas das nossas personagens.
Estabelecidas essas premissas, restou a definição da forma da narrativa, a qual deveria envolver o leitor em uma atmosfera de curiosidade expectante: quem melhor do que a própria Eufrásia poderia narrar as suas memórias?
Essa solução estética já tem sido utilizada por outros autores da língua portuguesa, em particular por Machado de Assis, no seu festejado Memórias Póstumas de Brás Cubas. Porém, no tempo de Machado de Assis, e para o pensamento ocidental, o mundo era explicado e compreendido apenas por meio do pensamento religioso judaico-cristão e adaptado, aqui e ali, às conquistas muito evidentes da Ciência. Contudo, desde o início do século XX, surgiu uma nova perspectiva para aquela compreensão, não mais aquela do mundo terráqueo apenas; mas agora do cosmos como um todo, que nos envolve. Apoiado sobre as interpretações matéria-energia, evidenciadas pelas teorias da relatividade geral, além da maior compreensão dos fenômenos energéticos possibilitados pela novíssimas concepções da física quântica, delineou-se aos poucos o que hoje é conhecido por racionalismo cristão. Valemo-nos das suas posturas para articularmos a história de Eufrásia quando, falecendo, inicia reflexão em torno do que fizera de sua vida para, então, segundo as suas opções em vida, seguir a sua destinação espiritual.
Procuramos fazer dessa solução estética o estrito uso literário. Nela buscamos não colocar, por meio da livre apropriação dos conceitos usados, quaisquer juízos de valores, filosóficos ou religiosos, ambos absolutamente estranhos aos objetivos e propósitos atuais do autor, para o presente trabalho.
Em Vassouras, junho de 2021.
Capítulo 1
A vida
tem início
Como sempre vem a ocorrer na vida de todos os pobres viventes, um dia eu morri. Ao me aproximar da morte, tinha plena consciência de que esse evento haveria de ocorrer, por isso preparei-me o mais convenientemente possível, dando destinações finais aos meus bens materiais, buscando orientá-los num sentido do maior proveito social que, então, eu poderia antever. Lembro-me agora do que meu pai dizia quando, na sua biblioteca da Chácara da Hera, ele convocava a mim e à Francisca, com o objetivo de nos preparar para a sua futura ausência de nossas vidas: "Tenho a certeza de que desaparecerei deste mundo, mas que este mundo que me circunda permanecerá para todo o sempre. À primeira vista, isso parece injusto, porque eu sei do meu destino, e todo o mundo material circundante não o sabe. Mas está aí o nosso galardão e a nossa dignidade: o saber, o Conhecimento, o próprio espírito, sede do saber e da razão".
Nem eu nem Francisca compreendíamos bem o que ele queria nos dizer. De minha parte, nunca fui dada ao pensar filosófico e não atinava que papai reafirmava a sua convicção sobre o pensamento de Descartes³ que ele também sintetizava como: Se penso, eu existo!
Imagine! Nunca, em um só momento, pensei que a nossa existência material fosse apenas um viés dessa outra. E como me custou entendê-lo!
Era o dia 13 de setembro de 1930, e eu estava no meu apartamento da Ladeira da Glória, na bela cidade do Rio de Janeiro, que eu tanto amava, depois de Vassouras e Paris. Era um sábado, e o mal que me atingiu, o fez quando o sol já havia ultrapassado o meridiano, perto de 13h, mais ou menos.
Não se pense, com este introito, que eu tenha pretensões à imitadora do delicioso estilo de Machado de Assis, ainda mais porque o seu personagem, Brás Cubas⁴, extinguiu-se às 14h de uma sexta-feira; ele num mês de agosto, eu em setembro. Além das diferenças de dia da semana e hora do evento, ele teria conhecido a fonte de vida em sua chácara, no Catumbi; eu a conheci no apartamento da Glória, que alugava; ele com 64 anos, eu já com oitenta; ele dizendo-se rico, eu sem disso fazer alarde, lego a Vassouras, a quase totalidade dos meus haveres, que não eram poucos, enquanto aqueles de Brás Cubas não montavam a tanto. Além disso, não dedico a quem quer que seja essas minhas reflexões póstumas nem ouso dizer que as registro com a pena da ironia e a tinta da melancolia. Apenas revivo minhas emoções, porque tenho que fazê-lo. Por tudo isso, não me queiram atribuir qualquer falta de originalidade, se é que possa haver qualquer traço desse modo de ser, nesse momento transcendental da existência de qualquer ser humano.
Mesmo porque, em decorrência da minha habitual reserva, ultimamente, e de forma voluntária, não desejei aproximar-me de quaisquer acadêmicos, mormente daqueles da Academia Brasileira de Letras. Não que alimentasse qualquer prevenção contra eles, mas por motivos estritamente pessoais. Nunca se pode imaginar o que assacariam a respeito as pessoas habituadas aos mexericos e menos consequentes das suas ações! Enfim, eu sou – ou melhor, eu fui – Eufrásia Teixeira Leite e nunca tive necessidade de apresentar-me, a quem quer que fosse, com o uso de argumentos artificiosos e menos leais.
É indizível a experiência de nos sentirmos libertos dos referenciais materiais a que estávamos habituados! Refiro-me àquilo exigido pelos nossos cinco sentidos, enquanto seres materiais. No entanto como é chocante a compreensão (Eu não deveria ter dito a adaptação
?) em uma nova dimensão das sensações!
De fato,