A "Arte de Sujar os Sapatos" com a Grande Reportagem Social
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Sobre este e-book
Este livro é uma versão revista e atualizada da dissertação ganhadora do Prêmio Adelmo Genro Filho de Pesquisa em Jornalismo 2021, na categoria "trabalho de mestrado". A premiação é concedida anualmente pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
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A "Arte de Sujar os Sapatos" com a Grande Reportagem Social - Luiza Gould de Souza
A arte de sujar os sapatos
com a grande reportagem social
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Luiza Gould
A arte de sujar os sapatos
com a grande reportagem social
Aos (extra)ordinários
protagonistas destas páginas
À Ernestina Maia, que com suas flores de papel crepom plantou doçura
A Harry Gould, por um dia sorrir para mim e me mostrar o que é alteridade
A quem me transcende, a quem me ascende. Às palavras-semente
.
AGRADECIMENTOS
Para as palavras brotarem, foi necessário o plantio. Algumas sementes que constituem a minha própria história, advêm dos meus pais, dos meus avós maternos e paternos, raízes que me elevam do chão, me apresentam o mundo, mas também me fazem perceber o quão pequena sou. As linhas são semeadas, de pouquinho em pouquinho, a partir de incontáveis encontros. Eu não seria capaz de nomear todos, nem seria justa ao fazê-lo, mas sou grata por cada um deles: pelo que chamo de meu bem, pelos que chamo de amizade, por quem me transpassa e, por isso, me leva a escrever. Semente inseparável da certeza de que só o encontro promove ascensão, crescimento. Sou grata pela sementinha que desde cedo faz com que eu me encante por histórias e me motiva a preencher com vida todo o espaço disponível. Semente inseparável da fé, do entendimento de que o amor vem de quem nos transcende, brota em nós e pela terra vai se espalhando. Sou grata pela escuta, pelo olhar atento de tantos profissionais que constroem narrativas com o devido respeito e, por isso, me inspiram. Sou grata aos capítulos e mais capítulos que leio nos olhares de pessoas comuns e extraordinárias, da moradora em situação de rua à criança curiosa. Sou grata à multiplicidade que compõe um a um e àqueles que trabalham o meu olhar para que eu possa percebê-la.
Para esta obra brotar, foi necessário que Carla aceitasse arar a terra comigo com muito cuidado e gentileza; que Fabiana, seja enquanto repórter seja enquanto pesquisadora, plantasse em mim aquele olhar necessário, crítico e generoso; que Larissa me dissesse para fazer colheita ampla, em forma de dissertação e livro. Sou grata a essas três mulheres, integrantes da minha banca de mestrado. Sou grata às discussões em sala de aula e fora dela, na universidade pública, da qual sou fruto, e no dia a dia de minha atuação profissional. Discussões tão necessárias quando se parte do pressuposto de que, para plantar, é preciso muitas mãos. Palavras-semente, assim chamadas pela amiga Marcella Tovar, só podem nascer coletivamente.
Sou grata a você, que se interessou pelo que vem neste conjunto de páginas. Eis o meu desejo: que brote aí dentro, como brotou em mim, uma imensa gratidão às linhas do Outro, um Outro com cicatrizes por conta de processos diversos de exclusão e violência, mas, principalmente, um Outro que é protagonista.
Histórias importam. Muitas histórias importam.
(Chimamanda Adichie)
PREFÁCIO
Pode parecer, à primeira vista, que sujar os sapatos
com a pauta social represente aqui a ideia de que o repórter deve ir para a rua
e gastar sola de sapato
apurando, de modo intenso e persistente, suas pautas sobre temas sociais, como defendem os livros didáticos sobre a prática jornalística. Não é. Ou melhor, é mais do que isso. Neste trabalho, fruto de sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense (PPGMC/UFF), pesquisa essa contemplada com o Prêmio Adelmo Genro Filho 2021, Luiza Gould quer saber se a grande reportagem voltada para temas sociais é capaz de produzir não apenas visibilidade, mas também alteridade e reconhecimento às pessoas comuns que retrata, personagens (extra)ordinários
do cotidiano brasileiro. Seria possível ao jornalismo, por meio de seu formato mais nobre, produzir narrativas capazes de retratar com potência o mundo complexo em que vivemos? Como?
As questões perseguidas a colocam diante do que ela chama de paradoxos: como pregar a pluralidade de discursos, mas utilizar critérios de escolha de fontes que privilegiam lugares de saber e poder já reconhecidos socialmente e que, invariavelmente, reiteram as estruturas hegemônicas? No jornalismo, isso se concretiza na definição de que algumas realidades são mais noticiáveis do que outras ou na limitação a fontes que sejam autoridades. Onde está, e onde deveria estar, o lugar de fala do personagem comum no jornalismo? Como trazê-lo à tona sem limitá-lo às passagens que o telejornalismo chama de o povo fala
ou à seleção de frases banais que o jornalismo escrito chama de aspas do personagem
?
Para discutir essas questões, ao mesmo tempo com amor pelo jornalismo e olhar crítico sobre a atividade, a pesquisadora recorre à linha francesa da Análise de Discurso para destrinchar a estrutura de reportagens premiadas pelo Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo. As análises permeiam todos os capítulos e são realizadas de modo sensível e eficiente. Luiza mergulha, por exemplo, na narrativa da reportagem sobre um adolescente em situação de rua que levou três anos sendo apurada pela repórter Letícia Duarte, do Zero Hora. Outra, realizada pela Agência Pública, narra o drama de famílias que tiveram suas casas removidas por determinação da prefeitura do Rio de Janeiro para atender ao projeto urbanístico dos Jogos Olímpicos de 2016. Além das análises densas, são cinco no total, Luiza recorre a exemplos que ajudam a compreender suas questões de pesquisa. Ela descobre que a ruptura com padrões que engessam o jornalismo nem sempre ocorre, embora esteja potencialmente presente no espaço da grande reportagem. Só lendo para entender como isso acontece.
Larissa Morais
Jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense
Sumário
INTRODUÇÃO
MAIS DO QUE SUOR, ALTERIDADE
CAPÍTULO 1
ANÔNIMOS VIVEM SUAS HISTÓRIAS
1.1 VIDA ATRELADA AO COTIDIANO
1.2 VIDA EXPOSTA: À MARGEM E ESPETACULARIZADO
1.3 VIDA QUE NINGUÉM VÊ
1.4 VIDA DO FILHO DA RUA
1.5 VIDA NUA: QUANDO NÃO SE MERECE
VIVER
LIMIAR
CAPÍTULO 2
QUAL O VALOR DA HISTÓRIA DE UM POVO?
2.1 EXTRA! EXTRA!
: VIDAS EXTRAORDINÁRIAS DEMAIS PARA VIRAREM NOTÍCIA
2.2 MAIS DO QUE VISIBILIDADE, JUSTA REPRESENTAÇÃO
2.3 SEM LIMITAR-SE À SUPERFÍCIE: A IMERSÃO EM 100 HISTÓRIAS. 100 REMOÇÕES. 100 CASAS DESTRUÍDAS PELOS JOGOS OLÍMPICOS 2016
LIMIAR
CAPÍTULO 3
GRANDE REPORTAGEM: CONVIVER COM UMA HISTÓRIA
3.1 PELA DEFINIÇÃO DE UM GÊNERO JORNALÍSTICO
3.1.1 Por outras temporalidades
3.1.2 Por limites: quem é o protagonista?
3.2 NODOS DA MESMA RAIZ: GRANDE REPORTAGEM E OUTROS HORIZONTES
3.3 UM COTIDIANO CONTADO EM QUATRO ESTAÇÕES
LIMIAR
CONSIDERAÇÕES FINAIS
MODOS DE OLHAR: A RECONQUISTA DO PARAÍSO
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS DAS REPORTAGENS ANALISADAS
Introdução
MAIS DO QUE SUOR, ALTERIDADE
Quando fui até sua casa pela última vez, para me despedir e voltar para o Brasil, Sonia me agarrou pelos dois braços e disse: ̶ Não me deixe morrer. Senti que meus olhos batiam pelas paredes esburacadas de sua casa, porque eu temia encarar os olhos dela. Eu disse à Sonia o que digo sempre, e digo porque acredito, que eu contaria sua história para o mundo. Mas eu e Sonia sabíamos que contar a sua história para o mundo não seria suficiente para salvar a vida dela, nem para salvar a vida de todas as meninas e meninos que eram rasgados por vampiros de dois centímetros que só não tinham sido erradicados porque essas crianças habitam a porção do mundo dos que podem morrer. Contar sua história para o mundo não seria suficiente porque o mundo pouco se importa com a vida e com a morte de meninas e meninos com olhos de velho.¹
Eliane Brum se descobre em um impasse. Com mais de 20 anos de carreira, marcada pela produção de reportagens, ela se dá conta de que olha para uma personagem não só desconhecida pela sociedade, mas também esquecida e questiona o seu fazer como jornalista. Pergunta a si mesma o quanto o seu trabalho pode mudar aquela realidade. Sonia, a menina boliviana de 11 anos, é vítima do mal de Chagas, doença que continua a existir em países pobres por negligência. Devolver à menina a visibilidade que possui, mas lhe é tirada, é o que está ao alcance de Brum, conforme ela atesta em autocrítica. É o que ela pode fornecer na tentativa de chamar a atenção para o problema social enfrentado na região de Aiquile.
Esta obra volta-se para tal preocupação e nasce do incômodo diante de alguns paradoxos no jornalismo, como a máxima de que a profissão atua em nome de todos, embora, com frequência, colabore para a constituição de uma imagem estereotipada de grupos marginalizados; ou ainda, quando alude à pluralidade de discursos, mas oculta que a existência de determinados critérios limita o espaço de quem tem lugar sonoro próprio, lugar de fala. Ao não concedê-lo a esses personagens, a profissão que se presta a comunicar silencia. E, assim, na era em que ser visto é fundamental, crescem invisibilidades
por sobre raízes de exclusão. Diante de números, versões oficiais e rituais estratégicos², entre eles o ouvir os dois lados
reduzido a uma atitude mecânica, a abordagem sensível ao Outro muitas vezes é deixada de lado, mesmo sendo tão cara ao fazer jornalístico. Nas rotinas produtivas, o tempo, necessário à apuração, é escasso; prioriza-se o urgente. Paradoxos. Faces de uma realidade que faz, por exemplo, as presidiárias brasileiras serem esquecidas pelas bibliotecas, citadas em matérias superficialmente, mas lembradas nas novelas quando, nas cenas finais, as vilãs pagam por seus crimes³. No livro-reportagem Presos que menstruam, Nana Queiroz quer e faz diferente ao visitar penitenciárias das cinco regiões do país durante quatro anos, em busca das histórias dessas mulheres, trazendo à tona sentidos indesejáveis
para muitos.
O investimento humano e financeiro, o convívio com personagens, a disponibilidade de tempo e a escrita cuidadosa são alguns dos requisitos que constituem o romanticamente considerado gênero estrela
do jornalismo, para o qual deveríamos voltar
, segundo Gabriel García Márquez⁴. O jornalista e Prêmio Nobel de Literatura exalta a reportagem diante do que descreve como o domínio de repórteres enviados para apurações rápidas, com o desafio de sintetizar o conteúdo em duas colunas, espaço que pode ser ainda mais reduzido após entrar um anúncio na edição. Como abordar, dessa forma, a complexidade da doença de Chagas na Bolívia ou a situação de abandono das presidiárias brasileiras? O hard news é necessário, assim como são necessárias abordagens mais críticas nas coberturas diárias, que não podem ser renegadas enquanto a reportagem emerge intocável em um pedestal, como a solução dos problemas, como se não tivesse problemas. Porém é inegável o diferencial da profundidade para contemplar pautas como essas.
Questionam-se aqui causas e consequências pouco exploradas no texto, presentes, por sua vez, em algumas das páginas de O Cruzeiro, Diretrizes, Realidade, O Jornal, Diário Carioca, O Globo, Jornal da Tarde, para citar, com o auxílio de J. S. Faro⁵, veículos que historicamente se dedicaram a longas imersões no país, mas também contempladas em iniciativas do jornalismo independente, em portais, agências, revistas, a partir do trabalho freelancer. O foco é a grande reportagem, cuja apuração pode levar de meses a anos, e a dedicação ao texto é igualmente exigida:
Ouvi certa vez que os grandes repórteres de Realidade chegavam a perder 2 quilos no processo de escrever (e editar) aquelas peças que chegavam a ter 6 mil-7 mil palavras cada uma. Tinha gente que se fechava no apartamento e ficava às vezes uma semana inteira hibernando, para só sair com o texto pronto. E quantos não eram levados a reescrever duas, três vezes?!⁶
No caso de Eliane Brum, foram sete quilos perdidos em duas semanas, com o impacto do pedido de Sonia: não morrer. Esses são casos extremos, embora seja preciso repensar a pressão a que jornalistas estão sujeitos no desenvolvimento de reportagens. Trazemos os exemplos por ambos constatarem o empenho comumente relacionado ao gênero, que pode caminhar, de maneira perigosa, para a idealização da figura do repórter. É preciso sujar os sapatos
, como sintetiza o jornalista Ricardo Kotscho ao explicar a sua presença constante na Alameda Santos, sentado na cadeira de engraxate⁷. As razões para sujá-los, porém, devem ser prioridade. Por isso, para Brum⁸, mais do que sair à rua, a reportagem exige atravessar a larga rua de si mesmo
; não exige apenas suor, exige alteridade
. Exige um movimento em direção ao Outro, que muitas vezes vive realidade oposta à do repórter. É a menina boliviana, são as presidiárias. São os anônimos em situação de vulnerabilidade social, os esquecidos.
Os que não estão sob holofotes e precisam inverter a seu favor o cenário estabelecido motivam o ensaio A invenção do cotidiano, de Michel de Certeau. Herói comum. Personagem disseminada. Caminhante inumerável [...] Este herói anônimo vem de muito longe. É o murmúrio das sociedades
⁹. Muitos são os heróis para o intelectual francês, chamados também por ele de ordinários
¹⁰. Em sua classificação, cabem da dona de casa aos oprimidos, esses sim retratados nas reportagens aqui investigadas. Este livro também investiga textos que ultrapassam o idealismo de Certeau, por discorrerem sobre pessoas sem possibilidade de forjar astúcias para sobreviver, porque a decisão sobre suas existências está a cargo de outros; trata-se da vida nua ou matável
estudada pelo filósofo marxista Giorgio Agamben¹¹. Este livro contempla, por meio da reportagem, vidas que a sociedade ignora, finge não ver¹², sendo essa invisibilidade
igualmente fabricada pela mídia. Este livro apresenta as representações de mulheres, homens, jovens, crianças colocados à margem, mas protagonistas de trabalhos de longa imersão. Por representações, consideramos as leituras midiáticas feitas de personagens reais, a partir de subjetividades inerentes aos jornalistas e de ideologias que integram discurso, conceito aqui considerado a partir da linguista Eni Orlandi¹³.
O ponto de partida para analisar essas leituras são dois dilemas: pode a grande reportagem constituir discursos que permitam conhecer, em sua alteridade, o marginalizado social, um dos múltiplos personagens a povoar a vida cotidiana? De que forma? Motivam essas perguntas centrais várias outras inquietações. Para externalizá-las, voltemos à situação do mal de Chagas na Bolívia. Em obra na qual reúne e comenta algumas de suas reportagens, Eliane Brum¹⁴ informa que esteve em povoados nos quais 70% da população sofria à época, em 2011, com a patologia. São regiões pobres, sem políticas de eliminação do barbeiro, onde as pessoas não podem pagar por tratamento e, portanto, onde a indústria farmacêutica não chega, como lembra a repórter. Brum se interessa e escreve reportagens sobre o problema de saúde pública para a revista Época e para o livro Diginitá!, da organização Médicos sem Fronteiras. Pautas de cunho social como essa estão presentes na imprensa com as abordagens necessárias ao relato de uma sociedade desigual?
Podemos buscar por respostas considerando um assunto mais próximo do cotidiano dos brasileiros. A retirada dos moradores cariocas de suas casas por conta das obras para a Olimpíada de 2016 possuía chances de ser noticiada segundo critérios do jornalismo, afinal se tratava de assunto polêmico envolvendo um grande evento esportivo no país. Não foi o que ocorreu. A construção de uma imagem positiva acerca do Rio Olímpico talvez explique o pouco interesse da imprensa pela elaboração de matérias a partir das perspectivas dos moradores afetados, excluídos do progresso
que era anunciado em emissoras e jornais. Um dos trabalhos jornalísticos mais robustos sobre o tema é Especial 100
, reportagem examinada neste livro. Após as remoções, a Agência Pública mobiliza esforços de apuração para reconstituir histórias de 100 pessoas que lidaram com a ameaça e a perda de suas casas. Surgem mais dúvidas: caso as realidades pouco discutidas ou apenas superficialmente presentes na mídia motivem uma longa imersão jornalística, será que o realce dado ao anônimo caminha junto de novas abordagens sobre ele? Quais seriam essas abordagens? Como condições de trabalho impactam as possibilidades disponíveis ao repórter?
Tantas perguntas são feitas para que seja viável descobrir, nas páginas que seguem, como se constituem os discursos acerca de múltiplas realidades sociais no gênero jornalístico grande reportagem. Essa pluralidade, por sua vez, está por trás da relevância de um estudo que se volte à pessoa inúmeras vezes silenciada. Apesar de defender o silêncio fundante, que abriga muitos sentidos, Eni Orlandi¹⁵ fala sobre os perigos de outro tipo de silêncio, o silenciamento, quando se apagam os sentidos indesejáveis
. O dizer por si só é inseparável do silenciamento, pois sempre se deixará de lado outros sentidos possíveis, o que torna o discurso lugar de contato entre língua e ideologia, como anteriormente já afirmava Michel Pêcheux. Porém, no jornalismo, em que a seleção é prerrogativa, desde a escolha da pauta até a publicação das histórias, o impacto de considerar um sentido indesejável pode ser maior, principalmente se ele estiver atrelado a personagens vítimas de alguma violência.
Talvez pareça paradoxal, já que se fez referência à necessidade de espaço para quem tantas vezes não o tem na mídia, mas é por conta dessa violência anterior que Eliane Brum possui receio de escrever sobre ribeirinhos do Tapajós e do Xingu. Isso, apesar de todo o cuidado que possui na apuração, usando dois gravadores, para ser fiel ao que é dito verbalmente, atenta aos detalhes e realizando anotações, para registrar gestos, expressões, formas de dizer do corpo. Brum sabe que a escrita já os tirou de suas terras por meio de documentos falsos:
Não tinha convicção de que era ético converter em letra a palavra oral que pertencia a um outro – e a um outro que persistentemente era violado pela palavra escrita. Temia que o que eu nomeava como encontro pudesse ser violência.¹⁶
O temor afirma muito a respeito do pressuposto do qual a jornalista parte. Ela se preocupa com o Outro, se importa com ele, não quer contar a história de qualquer forma, quer respeitá-lo. Assim como no caso de Sonia, Brum acaba se reconciliando consigo ao dar-se conta que a escrita é resistência.
O norte para solucionar as interrogações apresentadas é o entendimento preliminar de que a grande reportagem tem potencial de ser um espaço para a vida ordinária
, matável
e invisível
estar presente, ser protagonista, ter a sua voz contemplada e um olhar mais fidedigno voltado à sua história. O que não anula a necessidade de representação dessas vidas nas notícias diárias, que cristalizam determinadas visões de mundo. Por exigir imersão do repórter, em convívio direto e contínuo com as suas fontes, a grande reportagem seria capaz de apresentar, de maneira aprofundada, os problemas de uma sociedade diversa e desigual, quando junto do respeito a cada história. Parte-se dessa possibilidade, mas sempre considerando mudanças de rumo. Elas podem acontecer durante a investigação aqui proposta, de trabalhos jornalísticos cujos personagens vivam em seus cotidianos as grandes temáticas sociais
, de que trata Ana Beatriz Magno¹⁷. Em dissertação sobre reportagens vencedoras do Prêmio Esso de Jornalismo, a pesquisadora nomeia 10 produções como reportagens sociais
, atreladas à narrativa e a assuntos como migração, doença mental, seca, infância, habitação, meio ambiente, indígenas e conflitos agrários.
Todas as dez matérias, apesar das temáticas diferenciadas, abordam mazelas da pobreza. Num país com 40 milhões de miseráveis, a reportagem tem também uma função social: mostrar o Brasil pobre para o Brasil rico, apresentar para a elite as faces do principal drama brasileiro, a desigualdade.¹⁸
Ainda nos é uma incógnita se a reportagem desempenhará ou não essa função sem reforçar padrões responsáveis por aumentar a violência a que o marginalizado social está sujeito. A expectativa ao fim desta obra é possuir consideração mais precisa a esse respeito. Outra ponderação
refere-se às palavras grifadas na citação. Caso as reportagens abordem apenas as privações proporcionadas pela pobreza, a tendência é que elas fomentem uma interpretação engessante e cruel por parte dos leitores: a de que 40 milhões de miseráveis só conhecem o sofrimento. Não se trata de negar que haja mazelas, o acesso precário a serviços e direitos básicos, as condições de trabalho extenuantes em troca do mínimo essencial à subsistência, a fome, a proliferação de doenças diante da falta de saneamento básico. Todas essas são mazelas da pobreza, e é incontestável que precisam ser conhecidas. Só é preciso questionar até que ponto a reportagem de cunho social consegue ir além delas.
Isso será feito a partir de imersões vencedoras do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Concedida pela primeira vez em 1979, a premiação visa ao reconhecimento, em âmbito nacional, de trabalhos voltados à [...] defesa e promoção da Democracia, da Cidadania e dos Direitos Humanos e Sociais
¹⁹. Em sua primeira edição, foram 17 reportagens premiadas, quatro publicadas em revistas e as demais em jornais. Em edições mais recentes, a premiação elegeu vencedores e dedicou menções honrosas para outros conteúdos, como arte, fotografia e produção jornalística em áudio. O mote aqui é o escopo de reportagens das categorias jornal, revista e internet, produções pensadas para divulgação no meio impresso e no on-line. Esse é um tipo de material familiar, observado por nós em estudo anterior²⁰.
A procura por grandes reportagens se deu no diretório on-line da premiação, que reúne os trabalhos agraciados desde 2012. Daquele ano até 2018, quando teve início a pesquisa que originou este livro, o diretório reunia 111 conteúdos, rastreados por categoria, tema, edição do prêmio, ou a partir de palavras-chave. São 36 as reportagens nesse período somando as categorias Jornal, Revista e Internet, celeiro ainda amplo de discursos. Levando em conta a convergência das reportagens com as reflexões de cada capítulo, chegou-se a cinco materiais.
O livro é dividido em três capítulos. O primeiro apresenta a pessoa comum a partir de diferentes conceituações do cotidiano, além de contemplar discussões sobre a visibilidade, tão cara ao marginalizado social e tantas vezes ausente ou estereotipada. A busca inicial entre as reportagens foi por aquela que abarcasse o personagem tornado invisível
. Ele está presente em Filho da Rua
, trabalho premiado na categoria Jornal do Prêmio Vladimir Herzog em 2012. Letícia Duarte acompanhou, por três anos, para o Zero Hora, um adolescente vivendo em situação de rua em Porto Alegre. Vidas como a de Felipe incomodam o olhar; um incômodo que, muitas vezes, não está ligado à empatia. Apressa-se o passo diante delas, não se procura o contato visual, mantém-se distância, tenta-se apagá-las da cena. Embora seja uma dura constatação, recorrer a tal personagem acaba sendo dialógico com a invisibilidade
imposta. Assim como pode ser considerado dialógico com a proposta do homem ordinário
conceituado por Michel de Certeau.
Ainda no mesmo capítulo, é realizada reflexão sobre a perda da humanidade, quando o anônimo é apartado de seus direitos civis. Qual vida é passível de ser extinguida mediante a decisão de outra pessoa? A pergunta que surge após a leitura de Giorgio Agamben parece encontrar ecos de resposta em temática semelhante, por trás de duas reportagens selecionadas: Dias de Intolerância
(G1, premiada na categoria Internet em 2014) e O bandido está morto e agora?
(Galileu, premiada na categoria Revista em 2016). Ambas tratam da vida linchada, sentenciada por seu semelhante. No primeiro semestre de 2014, o linchamento vitimou mais de 50 pessoas, o que motivou a pauta do G1. Já Galileu trouxe em 2016 o dado de que uma pessoa é linchada por dia no país. Os números ajudam a fornecer a dimensão do problema e a razão de ele despertar o interesse jornalístico.
No segundo capítulo, o objetivo é investigar as possibilidades para o marginalizado social na mídia. São contestados critérios de noticiabilidade²¹ que podem excluí-lo da pauta ou apresentá-lo de maneira exótica. Diante da disputa entre a reiteração do senso comum e a potencialidade do jornalismo em analisar criticamente o cotidiano, passa-se da seleção noticiosa ao que é publicado. Entram em cena as batalhas por sentido e a atuação do profissional na construção do conteúdo. Por fim, um mesmo assunto pode gerar produtos jornalísticos distintos, o que faz a procura no diretório do Prêmio Vladimir Herzog ser por um tema único que tenha gerado pautas com variados ângulos de abordagem. É o caso da Olimpíada do Rio de Janeiro. Para além de evento esportivo, os Jogos de 2016 foram um evento midiático: as notícias sobre