Meu filho me adora: Filhos reféns e pais perfeitos
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Meu filho me adora - Laura Pigozzi
INTRODUÇÃO: A FAMÍLIA COMO PACTO CULTURAL
A família é o lugar da transmissão, é onde se comunica um estilo, onde as narrações são escutadas, onde os valores são compartilhados. Nos contos familiares existem palavras que marcaram a nossa origem, que nos acolheram quando nascemos e que nos seguiram – às vezes perseguiram – até a idade adulta:
Desde a origem, a criança nutre-se tanto de palavras quanto de pão, e palavras podem fazer mal. Como diz o Evangelho, o mal não é só o que entra na boca do homem, mas também o que sai dela 1
A família é o lugar onde a palavra engendra seres humanos, no bem e no mal. Os pais têm uma tarefa de grande envergadura que é transferir, passar de geração a geração, oferecer: o que nos faz pais e mães não é o sangue, mas a palavra. O fundamento do conceito de família não é a geração biológica: a família é uma interrupção do natural. Para Claude Lévi-Strauss, ela é centrada na aliança muito mais que na descendência 2 e a etimologia de família não contempla de nenhum modo a ideia de procriação, porque família
– do latim familia, que deriva de famulus, servidor, doméstico – indica simplesmente o conjunto de indivíduos, mesmo não consanguíneos, que compartilham um nome e algumas regras.
A pater/maternidade é, sobretudo, metáfora de uma responsabilidade não amoldada estruturalmente na geração: são famílias também aquelas reconstituídas, com madrastas e padrastos, assim como aquelas com pais do mesmo sexo, em que existem adultos que ocupam uma função simbólica e de cuidado específica, sem que existam necessariamente laços biológicos com a prole. Toda transmissão, por quem quer que seja realizada, leva à civilização: a família, como quer que seja composta, encerra a tarefa de reconhecer um filho enquanto Sujeito do mundo.
No Homem, a Natureza já é Cultura: o filhote do homem está construindo significado desde o momento em que vocaliza; ainda no útero, não é mais filho da Natureza, mas da Cultura, de pensamentos que marcaram a espera de seu nascimento. Seu primeiro grunhido já é social 3 . O grito do recém-nascido é direcionado ao cuidador que acolhe seu apelo: sua boca emite um som para que alguém o atenda 4 . O humano nunca é puramente natural e até os dejetos são linguagem: o cocô da criança pequena ou o vômito da bulímica são um discurso específico, direcionado a quem o emissário deseja que o escute. A família, se quiser ser considerada humana, não pode se identificar com a ideologia do natural.
A família é fruto de um pacto. De fato, cada cultura exprime um modelo próprio de família, os antropólogos contam dezenas delas. Em muitos grupos humanos, pais e mães são múltiplos e equivalentes, sem que os pais biológicos tenham uma prevalência sobre os sociais. Ideia estranha para nós, tanto que a nossa cultura impôs a subtração dos filhos à cultura nativa australiana que praticava o pluralismo parental, subtração com finalidades políticas, claro, mas com a motivação culturalmente legitimada de que os aborígenes não dispunham de um adequado contexto familiar para educar a prole.
Nem o relacionamento mais biológico de todos, o laço mãe-filho, pode ser considerado o núcleo fundante da família: a maternidade, de fato, não é jamais, em nenhuma época e em nenhum grupo humano, a condição essencial da família 5 . Em qualquer civilização o laço biológico é submetido ao cultural: se os pais são considerados indignos em relação às regras de uma sociedade, os filhos são retirados deles e isso acontece até nos nossos ordenamentos. A família natural não existe, nem jamais existiu: a ideia mesma de família natural parece uma construção do pensamento, logo, é cultural. Para desmontar qualquer idealização da vocação natural da família bastaria refletir sobre a metáfora de Kafka em A metamorfose e lembrar as reações dos familiares à transformação do filho em barata, em um ser da Natureza. Depois da perplexidade inicial, da dor e de uma desajeitada tentativa de cuidado, a família retoma os próprios hábitos, enquanto a barata é rudemente enclausurada em seu quarto, a porta definitivamente lacrada. O animal é expulso com violência da família para que ela sobreviva.
A transmissão é sempre psíquica: é o estilo com que o genitor deixa, sem saber, um traço bom, um hálito de sublimação, o esboço de um talento. Não é o fato que venha do meu ventre que me permite transmitir alguma coisa ao meu filho, mas o fato de que, não obstante ele venha do meu ventre, pude acolhê-lo psiquicamente, estabeleci uma filiação cultural. Não é inútil sublinhar que, no plano social, é especificamente a hipervalorização do laço de sangue que se opõe ao reconhecimento das crianças filhas de estrangeiros.6
Exaltar a parentalidade biológica atrapalha o reconhecimento de um sentido cultural da família. As famílias não biológicas são ainda pouco reconhecidas, como aquelas recompostas, onde acontece uma filiação unicamente psíquica da parte de um dos dois pais, a madrasta ou o padrasto, que com frequência se empenham incansavelmente no cuidado e no desenvolvimento de filhos não biologicamente deles. A tese da família natural, além disso, é cavalo de batalha de posições que não reconhecem as uniões homossexuais. A homossexualidade também, no mais, é uma construção cultural e não natural 7 . A ideia do biologismo como princípio-guia da paternidade/maternidade é, portanto, um obstáculo a qualquer filiação psíquica: os cuidados de uma madrasta ou de um padrasto, desse ponto de vista, não são diferentes dos de um homossexual com o filho do companheiro.
Frase infeliz pronunciada por Camus em Estocolmo quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957.↩
Quem ama sua mãe e seu pai mais que a mim não é digno de mim
(Mateus, 10,37).↩
Depois de três dias o encontraram no templo, sentado no meio dos mestres, enquanto os escutava e os interrogava. E todos os que o ouviam eram plenos de estupor pela sua inteligência e pelas suas respostas. Ao vê-lo, ficaram impressionados e sua mãe lhe disse: ‘Filho, por que fizeste isto conosco? Teu pai e eu, angustiados, te procurávamos’. E ele lhes respondeu: ’Por que me procurastes? Não sabíeis que eu devo me ocupar das coisas de meu Pai?’ Mas eles não compreenderam o que lhes tinha sido dito
(Lucas 2, 43-50).↩
Ambas as entrevistas foram transmitidas pela Rádio 3: a de Fritz Lang foi ao ar no dia 10 de outubro de 2014; a de Dario Argento, no dia 22 de outubro de 2014.↩
Ver Giuseppe De Rita, Corriere dela Sera, 23/07/2013↩
Na Itália, o ius soli, direito que provém do solo em que se nasce, é reconhecimento simbólico, não de sangue: a esses filhos de estrangeiros que crescem nas nossas escolas, pensam segundo as formas da nossa cultura, estudam Dante e têm um imaginário similar ao dos nossos filhos, quando completam dezoito anos é dito que não são automaticamente italianos porque não o são por sangue, embora o sejam plenamente por cultura. Se querem tornar-se italianos para todos os efeitos devem requisitá-lo através de um complexo procedimento.↩
Nomos Basileus. A lei soberana, organizado pelo Centro de Estudos A Permanência do Clássico
, Departamento de Filologia Clássica Medieval da Universidade de Bolonha, Bolonha 2005, p. 121.↩
A MÃE VERDADEIRA E O MITO DA MATERNIDADE NATURAL
A mãe verdadeira
, na maior parte dos casos, é identificada com a mãe biológica. Lendo o episódio bíblico do Rei Salomão e da criança disputada entre duas mães, percebemos que não é bem assim. A situação é conhecida: Salomão deveria decidir quem era a verdadeira mãe entre duas mulheres que disputavam uma criança. Poderíamos ser levados a pensar, irrefletidamente, que Salomão tenha individuado a verdadeira mãe naquela biológica. A Bíblia, porém, é um livro cheio de paradoxos que nossos ouvidos conformistas não percebem: a sentença de Salomão suspende a verdade biológica; ao rei dos judeus interessa saber quem é a mãe que cuidará melhor do filho, aquela que – diríamos – não está interessada no próprio nascisismo materno. A lei de Salomão mostra que a mãe verdadeira
é aquela que, recusando-se a traspassar com uma espada o filho, cortando-o pela metade, não o dilacera com a própria necessidade de desejá-lo a todo custo para si mesma. Por outro lado, o conto bíblico é absolutamente inequívoco ao dizer quem é a mãe má: O filho desta mulher morreu durante a noite porque ela adormeceu sobre ele
(Primeiro Livro dos Reis 3, 16-28). A mãe que adormece em cima do filho, mesmo que apenas metaforicamente, mata-o. A mãe má é, no episódio bíblico, aquela que sufoca o filho, dormindo com ele. O co-sleeping, termo inglês que define a prática, hoje muito difundida, de dormir junto com as crianças, é considerado bom e natural porque os animais e muitos povos da terra 1 o fazem, mas suas péssimas consequências são relevantes 2 . As mães que defendem essa prática creem que dormir com o próprio filho seja a coisa mais natural do mundo, porque realiza o que criança e mãe naturalmente desejam. Mas não é dito de fato que o real da pulsão – nesse caso a tendência a (re)fusionar-se – seja o melhor que um ser humano possa manifestar para o próprio bem. O prazer fusional possui uma cota de pulsão de morte manifestada na presença de uma forma hipnótica que requer constante repetição 3 . O desejo mais profundo da criança é de possuir a mãe, mas nem por isso esse desejo deve ser satisfeito. O bem da criança não é o que ela pensa desejar, como bem sabem as mães em outras circunstâncias, por exemplo, quando a impedem de exagerar na Nutella: a estrutura psíquica mortífera em que se organiza um excesso de desejo pelo corpo da mãe e pelo abuso de Nutella é a mesma!
As mulheres que dormem com os filhos indicam onde desapareceu o desejo da mãe: este não é mais endereçado a um parceiro adulto e, com isso, não honra mais a diferença. Antes, vai em direção ao idêntico, em direção à criança imaginada como parte de si, em direção ao inferno do Igual
4 . O Outro 5 torna-se o estranho, o inimigo.
O co-sleeping é difícil de ser identificado como comportamento abusivo porque possui a auréola ideal da Natureza. Devemos estar atentos, ao utilizar a natureza como última justificativa; a Natureza, com N maiúsculo, é sempre totalitária e, de fato, ela é exaltada em toda infâmia sobre raça: a ideia de Natureza é, por exemplo, o postulado fundante das teorias que forneceram a base cultural para a difusão da ideologia nazista6. Sade descreveu muito bem a perdição do homem ao querer imitar a Natureza: o eros furioso de Sade não representa a anarquia sexual do homem, a sua liberdade exaltada, a sua autonomia na escolha do mal. Ao contrário, a sua erótica é natural
no sentido em que é obrigada a seguir a Natureza, a qual não é boa, mas predispõe a crimes sem fim7. Longe dos aspectos idílicos que caracterizam a ideia de natureza de muitos filósofos do século das Luzes, seus contemporâneos, a Natureza em Sade é, antes, violência e crueldade. O idílio do estado selvagem permanece uma ilusão e os humanóides – seres mais naturais
que nós – tinham como regra o assassinato dos inimigos e o estupro das mulheres: esta é a Natureza antes do advento da Cultura. Cada vez que a Natureza se afasta da Cultura, inclusive nas nossas sociedades atuais, o homem de Neanderthal não nos parece mais um ancestral tão longínquo na linha do tempo.
À diferença da reflexão de Sade, profunda e potente, a nossa época não desenvolveu um discurso crítico sobre a Natureza: ou acredita nela sem pensar e a santifica sem argumentos fidedignos, ou a trata como um parque de diversões de manipulações comerciais, genéticas e ambientais. O sucesso das técnicas de fecundação assistida se apoia sobre o falso postulado, tornado forte preconceito, de que os pais biológicos sejam de série A. A performance da paternidade natural
– um verdadeiro oxímoro – é reconhecida por um discurso social em que as competências afetivas e os recursos culturais aparecem desfocados e pouco valorizados. As experimentações genéticas talvez levem, no futuro, a escolher, talvez apenas fantasmaticamente – o que não significa sem repercussões culturais e psíquicas – um filho pré-fabricado com características e cores preferidas. Uma direção que mostra o quanto não se quer saber da imprevisibilidade do outro. O real do corpo, nosso e do outro, está ali, ao contrário, erigindo limites para as nossas fantasias manipulatórias. O real é, na reflexão de Jacques Lacan, o que desafia a teoria, o que está fora da presa