"Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização": pedagogia social, educação popular em saúde e perspectiva decolonial
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"Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização" - Janine Moreira
EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
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Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização - pedagogia social, educação popular em saúde e perspectiva decolonial© 2020, Janine Moreira
Capa
Thiago Borges
Projeto gráfico
Bianca Brauer
Preparação e revisão de texto
Marcelo Dias Saes Peres
Livia Damaceno
Editoração eletrônica
Vitor Massola Gonzales Lopes
Editoração eletrônica (eBook)
Alyson Tonioli Massoli
Coordenadoria de administração, finanças e contratos
Fernanda do Nascimento
Apoio
Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
Moreira, Janine.
M838a Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização
: pedagogia social, educação popular em saúde e perspectiva decolonial / Janine Moreira. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.
ePub: 631 KB.
ISBN: 978-65-86768-53-4
1. Educação popular. 2. Educação em saúde. 3. Pedagogia social. 4. Perspectiva decolonial. I. Título.
CDD – 370.193 (20a)
CDU – 37
Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.
Volte para o seu lar
(Arnaldo Antunes)
Aqui nessa casa
Ninguém quer a sua boa educação
Nos dias que tem comida
Comemos comida com a mão
E quando a polícia, a doença, a distância,
ou alguma discussão
Nos separam de um irmão
Sentimos que nunca acaba
De caber mais dor no coração
Mas não choramos à toa
Não choramos à toa
Aqui nessa tribo
Ninguém quer a sua catequização
Falamos a sua língua,
Mas não entendemos o seu sermão
Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão
Mas não sorrimos à toa
Não sorrimos à toa
Aqui nesse barco
Ninguém quer a sua orientação
Não temos perspectivas
Mas o vento nos dá a direção
A vida que vai à deriva
É a nossa condução
Mas não seguimos à toa
Não seguimos à toa
Volte para o seu lar
Volte para lá
Volte para o seu lar
Volte para lá
Dedico este livro…
Aos que me originaram:
minha mãe Janet, que, no suposto não lugar
em que se encontra, nunca está longe;
meu pai Arildo, que, na materialidade junto a mim, sempre está perto.
Aos que encontrei e originei:
meu companheiro Renato, aquele com quem divido meus sonhos;
meu enteado Lucas, que trouxe a magia do primogênito;
nossos filhos Bruno e Caio, a quem sempre estarei unida, onde quer que estejamos.
Aos que ampliam minha família:
minha irmã Josane, uma referência no gosto pela leitura e parceira na vida;
meu cunhado Antonio, um irmão querido;
meu sobrinho afilhado Henrique, um sorriso lindo no mundo;
minha sobrinha Helena, uma luz que aprende a brilhar.
Àquela com quem me iniciei na extensão universitária:
minha amiga Heliete Rocha dos Santos, que, já situada num não tempo
, nos deixa para sempre o legado de um profundo respeito pelo outro.
SUMÁRIO
PRÓLOGO
PREFÁCIO
REFLEXÕES INICIAIS
situando a perspectiva do olhar
PEDAGOGIA SOCIAL E EDUCAÇÃO SOCIAL NA ESPANHA
APONTAMENTOS CRÍTICOS PARA A EDUCAÇÃO EM SAÚDE
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE NO BRASIL
PERSPECTIVA DECOLONIAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
aproximações e distanciamentos entre a pedagogia social e a educação popular a partir da perspectiva decolonial
REFERÊNCIAS
Prólogo
O que faz de nós, profissionais dos campos da saúde e da educação, nos sentirmos tão necessários à vida das pessoas a ponto de ignorar quando elas não querem a nossa ajuda
? Como saber se o que as pessoas demandam de nós coincide com o que elas realmente necessitam? Como resolver o conflito entre aquilo que elas sentem como necessário e aquilo que nós, profissionais, vemos que elas necessitam? É de ajuda o que as pessoas precisam dos profissionais? É simplificar a linguagem para que elas entendam
o que o profissional precisa para se fazer entender? Simplificar o que é complexo para que os menos instruídos
, por fim, entendam? Mas seria simples
viver em uma condição social não possibilitadora de saúde?
E, afinal, quando nem a sensibilidade de ouvir, nem a comunicação estão presentes e as pessoas nos mandam de volta para os nossos lares
, como interpretamos este recado? Psicologizamos esta atitude, atribuindo-a ao fato de estas pessoas serem resistentes
a nós, e, então, nossa ação implicaria em vencer sua resistência? Ou então seria porque elas estão tão necessitadas de nós que esta verdade se esconderia delas mesmas, e nossa ação seria a de iluminar uma verdade escondida e, assim, salvá-las da obscuridade? Ou, quem sabe, são pessoas tão ignorantes que não conseguem entender o quanto necessitam de nós, e nossa ação seria a de elevar seu nível de entendimento?
Não seria o caso de aceitarmos o convite – ou a expulsão –, voltarmos para o nosso lar e, de lá, refletir por que não fomos aceitos, por que não fomos vistos como necessários, o que faltou de nossa parte e também verificar o que não está ao nosso alcance, o que não podemos fazer? Em uma época em que cada vez mais a ciência ganha poderes no triunfo sobre a morte – a eterna busca do elixir da vida
–, talvez estas sejam questões por demais subversivas
.
Esta aceitação em voltar ao lar
pode ser uma oportunidade, a partir do filósofo argentino Enrique Dussel e do semiólogo argentino Walter Mignolo, inspirados no sociólogo peruano Aníbal Quijano, de decolonizar nosso conhecimento
centrado no messianismo e na visão etnocêntrica que enxerga o outro a partir de si mesmo, ou seja, que não enxerga o outro, mas sim o encobre
. Até que este outro nos expulse de sua tribo, ainda que não legitimemos esta expulsão e não nos movamos de lá.
A música do compositor brasileiro Arnaldo Antunes, gravada pela compositora e cantora brasileira Marisa Monte, pode aproximar-se, assim, da decolonialidade
e do anúncio do encobrimento
de Quijano, Dussel e Mignolo, assim como da dialogicidade
da educação libertadora
do educador brasileiro Paulo Freire, na reflexão que neste texto faço sobre educação em saúde. Com este vetor político e conceitual é que desenvolvo esta reflexão a partir da pedagogia social – referencial teórico que fornece as bases da educação social na Espanha, de onde advêm práticas de educação em saúde naquele país – e da educação popular – um dos referenciais críticos da educação em saúde no Brasil.
Prefácio
Juan Sáez Carreras
Catedrático de Pedagogia Social
Faculdade de Educação
Universidade de Murcia – Espanha
(traduzido por Marianela Marana Vieyto)
Não deixa de surpreender, positivamente no caso em questão, que exista um livro que seja capaz de pôr em relação três ou quatro campos de saberes em tempos em que as lógicas disciplinares continuam predominando, com suas obsessões parcelizadoras e fronteiriças, nas universidades na hora de programar a formação dos presentes estudantes e futuros titulados. Uma surpresa carregada de admiração e respeito por levar adiante uma tarefa de articulação de territórios do conhecimento aparentemente separados e, entretanto, como boa parte do que tem a ver com a ação humana, tão relacionais, como gostam de dizer os teóricos da sociologia das profissões francesa. Articulação relacional, dois termos associados e vinculados em uma concepção do verdadeiro conhecimento, o conhecimento de síntese, que questiona a fragmentação disciplinar entronizada no espírito das tribos e territórios acadêmicos
(apreciação de T. Becher), apelando descaradamente ao que é o resultado da especialização
e fruto da pesquisa
nas ciências sociais e humanas e desviando, ou ocultando, por outra parte, as metas orientadas à busca de poder e status quo no jogo de competições internas e externas que determinados grupos universitários mostram em suas indissimuladas condutas pesquisadoras e docentes. Assim, cabe dizê-lo, o conhecimento residual e atomizador continua sendo o predominante nas propostas formativas de muitas universidades, europeias e latino-americanas. O que não deixa de ser estranho, pode-se apontar, em épocas em que acreditávamos que não se poderia limitar o campo do conhecimento, com conceitos e noções supostamente distanciadas, atravessando-se e polinizando-se como estão os significados de significantes aparentemente afastados, de teorias e enfoques apresentados como rivais e, em realidade, contendo-se uns em outros por transferência, translação consciente e interinfluência mútua.
Janine Moreira mostra sua honestidade intelectual ao evidenciar, com seu livro, que tais fragmentações e divisões costumam ser frequentemente muito arbitrárias e respondem a uma cultura da representação que, por mais que já conheçamos seus erros e faltas, a debilidade de seus fundamentos e a fragilidade de seus pilares, continua sendo imperante na cultura ocidental. Talvez também porque no fundo saiba que, em última instância, os problemas que se apresentam nas lógicas disciplinares são, às vezes, problemas mais de linguagem do que de conteúdos e de suas rígidas relações com os nomes que se colocam em tais matérias, como se tais conexões fossem absolutas, naturais, e não produto histórico, político e social do trabalho e labor humano, lembrando Hanna Arendt. Mas a autora deste livro mostra também valentia ao trabalhar contraposições estreitas e limitantes, e se arriscar, tal qual exige a verdadeira aventura intelectual, ao propor âmbitos disciplinares cujos rótulos, ao serem postos em relação, podem tanto chiar como somente soar. Há em sua proposta um tom nômade que lhe conduz à relação que formula em seu livro, merecedor de uma leitura mais ampla, se esta introdução não exigisse controlar as palavras.
Por que relacionar a pedagogia social com a educação popular para a saúde? E estes dois rótulos, com as traduções que cada um deles comporta, por sua vez, com um tema carregado de significados tão poderosos como o da decolonialidade? Por que geografias de saberes, de contextos culturais tão díspares e distantes aparentemente, são postos em interação? Gostaria, ainda que muito brevemente, interpelado pelas leituras fecundas e ricas que apresenta o livro de Janine Moreira, dar minha visão particular, equivocado ou não – isto é o que menos me interessa – da relação que apresenta a autora.
A pedagogia social, emergente na Alemanha do início do século XX, é uma disciplina que nasceu de mentes neokantianas, invocando a necessidade de uma educação capaz de se ocupar daqueles jovens que, após a Guerra Mundial, andavam desarraigados, sem presente e com futuro incerto, pelas cidades destroçadas, e havia uma maior preocupação por parte dos cidadãos em possibilitar o acesso dos jovens aos restos que viabilizariam sua sobrevivência do que a preocupação dos poderes competentes em educar as crianças desvinculadas de toda atadura social e cultural. A preocupação maior era do cidadão comum para com a sobrevivência destes jovens, do que o Estado para com sua educação. Este espírito pedagógico centrado em setores marginais, correndo fora da escola, é retomado pela pedagogia social na Espanha, quando um bom número de professores universitários, alguns de formação alemã, veem a relevância de criar uma área disciplinar a que intitulam com o mesmo rótulo. Porém, a linguagem é dinâmica, e, mesmo que se assumam alguns dos significantes que procedem da origem cultural da expressão, no nosso âmbito espanhol se manifestam também significações diferentes na hora de explicar no discurso e nas aulas isto que decidimos chamar pedagogia social.
Esta será mais bem compreendida se for explicada sua emergência em nosso território nacional: a criação deste campo de saberes surge quando os citados professores percebem que fora da escola está sendo realizada toda uma série de práticas educativas – o que chamamos realidade preexistente
– materializadas por uma longa lista de figuras ocupacionais muito diversas (animadores socioculturais, educadores de adultos, gestores de tempo livre, educadores de rua…), percebendo também que tais práticas são cada vez mais frequentes e se recriam nos espaços comunitários mais variados (casas de cultura, residências, centros de atenção a crianças maltratadas, associação de idosos, bibliotecas…), atravessando todo o território nacional e as diversas comunidades espanholas.
Impulsionados pela curiosidade e pelo desejo de explorar, entre outros interesses corporativos do mundo da academia (este mundo de docência e pesquisa), o que acontecia além dos muros escolares – esse cenário formal entronizado pelo sistema educativo como o único lugar em que cabe falar de educação –, a comunidade de professores de pedagogia social, ao identificar os fracassos da escola, sobrecarregada de funções e competências que ela não pode assumir, veem a oportunidade de lançar esta disciplina atribuindo-lhe vocação profissionalizante e, com excessivo entusiasmo, também capacidade para remendar
as disfunções e desajustes do sistema educativo escolar. Se tivesse que escolher, entre as múltiplas definições, uma que sintetizasse na atualidade o que é a pedagogia social, diria que é o campo de saberes que dá razão de ser de uma prática educativa que chamamos educação social
, associada à atividade de um profissional denominado educador social
. Esta conquista de espaços pedagógicos e profissionais propiciou a criação, legalizada pelo Ministério da Educação em 1991, de uma titulação orientada à formação desse profissional. Poderia estender-me, mas apenas queria contextualizar brevemente o argumento a seguir para confirmar as abordagens de Janine Moreira. E, talvez, o xis da questão se centre no termo social
.
É importante lembrar Pierre Bourdieu e sua paixão pelas distinções, porque facilita a precisão de significantes e significados. Se a sociedade
pode ser considerada esse pulmão vital no qual as pessoas vão tentando sobreviver e tornar um lugar relacional, laboral, afetivo e pessoal, no entorno em que vivem, o social
, termo que se resumiria no anterior, é esse espaço problemático da sociedade. A mancha no óleo
, expressão frequente nos textos de sociólogos, críticos com os efeitos perversos do neoliberalismo, é essa mancha produzida pelos excessos do capitalismo financeiro, secessionista, especulativo e mercantil, o grande produtor de novas bolsas de pobreza que assim se tornam por razões econômicas, políticas, sociais, culturais e educativas muito diversas e que, somadas aos clássicos modos de empobrecer as pessoas, têm chegado a criar uma multidão de excluídos, marginalizados e vulneráveis, vivendo sem presente, com escasso futuro e incerto horizonte. A sociedade do risco tem se instalado na Europa: na Espanha, a exclusão tem se expandido como um terremoto, e a característica destes riscos é que são de natureza social. A pedagogia social e a educação social, com mais ou menos acertos, vão tentando construir sua identidade pela ênfase no social
. De tal modo que boa parte da atividade dos educadores sociais, tal e como os próprios profissionais costumam afirmar, se dedica a desenhar e planificar projetos educativos que nos espaços extraescolares – incluídas as prisões – possam ajudar os excluídos, e outros sujeitos vivendo no social
, a sair de sua situação.
Independentemente dos resultados de tais ações, seria necessário um trabalho a fundo para estimar adequadamente os efeitos destes profissionais em seus nichos laborais; o certo é que as respectivas comunidades de profissionais, universitários e educadores sociais foram autorizadas, e logo legitimadas pelo Estado, para falar e ensinar, para transmitir e gerar contextos de aprendizagem em sujeitos individuais e grupais com finalidades inclusivas e integradoras. Alguns destes afirmam formar parte das profissões pedagógicas à medida que as bases sobre as que se situam suas respectivas atividades se planificam com caráter educativo, e é altamente necessário e urgente explorar o que de pedagógico há nelas, na pedagogia social e na educação social, já que professores com talento mais questionador evidenciam o que chamam de esvaziamento metodológico
, caracterizado por fazer pouca pedagogia e muita sociologia e psicologia.
Em todo caso, uma das vias que se pode utilizar para contrastar o que há de comum e o que há de diferente nas relações entre pedagogia social e educação popular deve se centrar tanto nos substantivos pedagogia e/ou educação como nos adjetivos social
e popular
. Janine Moreira lançou as bases em seu texto para uma indagação que pode ser relevante se realizada com intenções supra-acadêmicas, quer dizer, culturais, políticas, sociais e pedagógicas, isto é, intelectuais, porque assim, e somente assim, faz sentido vincular as duas disciplinas ou saberes ao tema da decolonialidade.
Se começamos pelos adjetivos, o popular e o social, ainda sabendo que, com tudo o que eles supõem, os contextos de surgimento são diferentes em cada disciplina (Alemanha e Espanha com a interpretação que nosso país fez da pedagogia social; Brasil, e sua posterior extensão em algumas geografias latino-americanas, tem feito da educação popular um referencial e um símbolo de seu país), teríamos que começar nos perguntando o que há de popular na educação social e o que há de social na educação popular? Mais concretamente: Qual é o resultado de relacionar, hoje, dois significantes como o de popular e social, levando em consideração os esclarecimentos que fizemos linhas acima? O popular