E se eu não puder decidir? Saber escolher no final da vida
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Sobre este e-book
Lucília Nunes
Lucília Nunes é doutorada em Filosofia, com agregação em Filosofia, especialidade Ética, e em Enfermagem. É vice‑presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida no 5.º mandato (2015‑2020). É professora coordenadora, responsável pelo Departamento de Enfermagem na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal. Membro da Comissão de Ética para a Saúde do Centro Hospitalar de Setúbal e do Conselho de Ética da Universidade do Minho.
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E se eu não puder decidir? Saber escolher no final da vida - Lucília Nunes
Introdução
As conversas são como as cerejas, vêm umas atrás das outras.
Cuidar da vida, que a morte é certa e sabida.
Há remédio para tudo menos para a morte.
O propósito de E se eu não puder decidir? é oferecer um outro título para um tópico habitualmente tratado sob a ideia de questões éticas no final de vida
, mas começando mais atrás, não propriamente no final da vida mas durante a vida, a qual, de uma ou de outra forma, caminha inevitavelmente para o seu fim.
Viver é quanto basta, «é perigo suficiente», dizia o filósofo André Comte-Sponville, e cumpre aceitá-lo, pois que, como bem pontuava este autor, não se morre por acidente, doença, velhice. Morre-se por se ser mortal, morre-se por viver, por ter vivido.
A morte é a certeza de quem está vivo, evento que enuncia de forma definitiva a precariedade e a transitoriedade do nosso existir.
Ao longo dos tempos, fomos lidando com a morte, umas vezes de formas mais próximas, atualmente de forma mais distanciada, às vezes como se não existisse. Para isso também tem contribuído o morrer no hospital
, criando distância em relação ao quotidiano, afastando doentes e moribundos do contacto com os seus, medicalizando a morte. Prestamos pouca atenção ao facto de não podermos vencer a morte mas podermos lidar com o medo que temos dela.
Podemos viver melhor e morrer mais dignamente. Pois viver também significa fazer face a doenças, a desaires, a frustrações.
Numa relação feliz consigo e com a verdade, de nos reconhecermos finitos, limitados, vulneráveis, mortais. Apropriar-se da sua existência, assumir a sua singularidade, inclui todas as possibilidades, incluindo a da morte.
Seguimos, no texto, uma trajetória reflexiva, que parte das escolhas que fazemos no dia a dia, das nossas capacidades, das nossas incapacidades e dos nossos limites, para os processos de doença, passando necessariamente pela informação e pelo consentimento; desembocamos nas diretivas antecipadas de vontade, não sem antes nos debruçarmos sobre os conceitos mais habitualmente associados ao final de vida, no eixo de apressar a morte, como sejam a eutanásia e o suicídio assistido, ou retardá-la, nas faces diversas da distanásia e da futilidade, ou procurar que seja natural e digna, nos cuidados paliativos.
Assim, o assunto central deste ensaio é a nossa vida humana, nas suas luminosidade e finitude, nas encruzilhadas de escolha e de decisões, conforme os próprios eventos se apresentam, considerando com particular atenção o fim de vida, tendo presente a inevitabilidade da morte e a imperiosa necessidade de pensar(mos) sobre a nossa vida até ao seu fim.
Por isso foram escolhidos verbos de voz ativa para cada capítulo, numa progressão de tomar decisões, ter consciência de limites, interessar-se pelo bem do Outro, saber para poder escolher, consentir ou nem por isso, distinguir entre conceitos do final de vida e pensar decisões antecipadas.
É um texto que não aspira a mais do que discutir reflexivamente as questões do final de vida, centrado nas preocupações éticas. Que não foi especialmente dirigido a profissionais de saúde, mas também o é. Que não usa argumentos predominantemente técnicos ou científicos, mas também os usa.
Envolve o pensar sobre uma altura em que não poderemos decidir sobre nós, a partir das possibilidades de hoje. E, naturalmente, um discurso sobre o fim de vida não tem de ser de desespero ou de angústia. Pode assemelhar-se, esperamos, a uma conversa sobre o assunto, que as conversas são como as cerejas
, diz o nosso povo, feita em tom coloquial, de quem aprecia divagações, usando o pensamento e as experiências vividas.
Tomar decisões
Cada um puxa a brasa à sua sardinha.
Cada um sabe as linhas com que se cose.
Cada um é como cada qual.
Muitas decisões do quotidiano, coisas simples como escolher entre uma torrada ou um mil-folhas, chá ou café, camisa verde ou azul, brotam sem ruído, sem murmúrios nem inquietações. Há decisões que se parecem com um natural respirar, ajustadas ao ritmo de cada um. Também percebemos que quanto mais conhecido, mais familiar, é o território em que nos movemos, mais simples e fluidas parecem ser as decisões que temos de tomar. Mesmo reconhecendo que existe um conjunto alargado de fatores e de variáveis que se cruzam em nós e que afetam as decisões que tomamos de forma espontânea — como o estado de espírito, as emoções, as necessidades, as coisas que não queremos e, claro, um amplo espaço que deixamos em aberto para os acasos, as coincidências, os eventos aleatórios.
Pode acontecer não sabermos bem o que queremos e não ser problemático adiar ou suspender essa decisão. Assim como podemos estar num estado de alegria ou de tristeza tal que se torna arriscado tomar decisões importantes — isto, já para não ir além do caso, muitas vezes narrado, de quem estava aborrecido ou infeliz e comprou uma peça de roupa, para se animar
ou se mimar, mas, na verdade, a usou uma vez ou duas e não mais. Porquê? Porque os estados de espírito afetam as decisões. Como bem vemos em quem anda entusiasmado, apaixonado ou triste e aborrecido.
Ainda assim, notemos que estar afetado por um estado de espírito
ao tomar uma decisão não é a mesma coisa que não poder tomar uma decisão ou que decidir delegar noutra pessoa da sua confiança. Imagine que vai com amigos ao cinema — pode decidir lá, com eles, que filme vão ver; podem combinar o filme, e o que mora mais perto vai reservar ou comprar os bilhetes; podem telefonar a combinar quem compra os bilhetes de que filme — o que é diferente se alguém comprar um bilhete a contar consigo para um filme que planeiam ir ver, mas sem ter consultado a sua opinião.
Na generalidade, não estamos obrigados apenas a uma de duas alternativas — aliás, dir-se-ia que um dos aspetos da criatividade humana e típico da recusa de um pensamento binário (aquele tipo de pensamento que fica polarizado apenas entre duas hipóteses) é encontrar uma terceira via
.
Parece claro que um raciocínio tipicamente linear-binário tem as suas vantagens, pelo menos a de ser simplista na abordagem — são as típicas alternativas ditas lógicas das respostas sim ou não
, tudo ou nada, preto ou branco, amigo ou inimigo, em que tudo se reduz a polos antagónicos, entre os quais é obrigatório escolher um.
Frequentemente, podemos decidir algo em concreto, decidir não decidir ou adiar a decisão; e no que se refere a decidir, concretamente, ainda podemos escolher entre as várias opções que se nos apresentam ou que inventamos. Em qualquer dos casos, temos em nós, quer o valorizemos quer nem por isso, o poder de decidir.
Sim, o poder. Podíamos pensar em capacidade ou habilidade, mas, na realidade, temos o poder de decidir. Porque a vontade pessoal tem que ver com potência. Uma das capacidades de uma pessoa adulta e na posse das suas faculdades mentais é a de decidir sobre si mesma — e aos outros, quaisquer outros, mesmo que os tenhamos ouvido e incluído no processo, cabe respeitar a decisão que tomamos.
Até aqui, nada de extraordinário — tomar decisões é da vida e faz parte do dia a dia. Fazemo-lo a toda a hora. E também é claro que para decidir, para realizar uma escolha, mais ou menos livre, mais ou menos esclarecida, é necessária