As velhas
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As velhas - Adília Belotti
Adília Belotti
AS VELHAS
Para Áurea, Augusto, Célia, Lourdes, Paulo, Soreh, Sylvia e Valeria, os primeiros a ouvirem essas vozes.
Para Celina, Maria, João, Pedro e os amores que eles vêm trazendo.
Sumário
jô
cida
maria
eugênia
lygia
inês
luzia
margarida
ruth
laura
marilena
tereza
limiares
jô
fica com Deus
A conversa parou. Ela viu a farmácia pintada de vermelho e enfeitada com a bandeira do Brasil ir chegando mais e mais perto da janela. Aquele era seu ponto. Ajeitou o casaco azul-turquesa de capuz, pegou a bolsa, a sacola, levantou-se. Pediu licença à moça que estava no banco do lado do corredor. Um sorriso no rosto redondo.
Ana não conseguia se concentrar no livro. O barulho da porta batendo, Mauro saindo. Como voltar para casa hoje? Levantou os olhos, a velha risonha, baixinha e gorducha, pedia licença. Apesar do cansaço, da tristeza, teve vontade de rir. O que era aquele casaco azul-turquesa? Escandaloso de chique. Essa velhinha com esse casaco turquesa não devia estar num ônibus, merecia uma estação de esqui na Suíça. Sorriu de volta, puxou as pernas para o lado e deu passagem, a velha sorriu de novo: Obrigada, fica com Deus e com Nossa Senhora! Seja bem feliz!
Esticou-se para apertar o botão. A porta ia abrir. Esperou. Na calçada, ficou contente, a chuva tinha passado. Antes de sair da casa da patroa, pediu a eles que fizessem a chuva parar e eles sempre atendiam. Esperou uma pausa da conversa. Não percebeu quando o moço chegou perto.
Chico estava esperando o ônibus quando viu descer a velha de óculos na ponta do nariz, um pouco tortos, vestindo um casaco azul-turquesa de capuz. Ela balançou, como se fosse perder o equilíbrio. Depois firmou-se. Teve pena. Chico era jovem, mas não fazia nada correndo. Até suas aulas eram sem pressa. Antes de começarmos, respirem lentamente, todos vocês. Três vezes. Agora, sim, hoje vamos falar sobre a prova ontológica da existência de Deus proposta pelo filósofo francês René Descartes. Gostava dos seus alunos. Não de todos, mas de muitos. Olhou para ver se era seu ônibus que vinha vindo. Não era. Então aproximou--se da velha com o casaco turquesa: Posso ajudar? Ela sorriu. Segurou no seu braço de leve.
Vou pegar o ônibus para Diadema, mas estava conversando aqui e distraí. É aquele, Chico apontou. São Bernardo, Terminal Metropolitano, via Diadema. Ela sorriu. Não é toda letra que eu sei ler, não. Mas os números, esses eu leio, eu pego o 280, para Diadema. Ah, sim, é aquele mesmo, falou Chico, segundos depois de ter se refeito da surpresa. Não se lembrava de um dia ter encontrado alguém analfabeto, ou quase. Obrigada, a velhinha falou olhando para cima, os olhos cravados nos de Chico, vai com Deus e com Nossa Senhora. Seja bem feliz!
Subiu no ônibus, o 280. Ficou de pé agradecendo com um sorriso, mas recusando todas as tentativas que outros passageiros faziam de lhe ceder um assento. Queria um lugar na janela. E afinal conseguiu. A viagem era longa. Ela gostava de ficar vendo a movimentação das coisas, às vezes depressa, às vezes devagar. Tudo corria lá pra trás. Mas ela não olhava pra trás. Quando eles ficavam quietos, ela sentia o corpo dormir. Uma dormição boa. Não dói nada, doutor. É só esse meu povo todo na cabeça.
Dr. Raul era um médico muito bom. A patroa tinha escrito uma carta. Ele lia. A senhora trabalha para dona Aparecida? Sim, uma santa, a dona Cida. Dona Aparecida está preocupada porque a senhora anda dizendo que ela faz milagres, falando com ela na TV... Dona Cida é uma santa, sim, e aparece na TV, tão linda, toda de azul ali na tela. Tudo que eu tenho agradeço a ela. Terça que vem eu vou lá. Ela não tem quem ajude. Só eu. Muito importante. Dona Cida me dá sempre todo pão que sobra e eu faço pudim para a criançada do bairro. Meu pudim é muito gostoso. Dona Cida não come porque vive de regime. Vou fazer um pudim e trazer para o senhor, doutor. Obrigado.
A senhora é aposentada por invalidez. Já pensou em parar de trabalhar? Ela riu. Não, não, doutor, não vou parar de trabalhar nunca, não. Nem de tocar sanfona. Nem de fazer bolo pra criançada. Vou ficar muito bem, pode sossegar, eles todos estão me falando isso mesmo, agorinha.
Além de um bom médico, dr. Raul era um bom homem. Teve pena. Doméstica, 70 anos, funcionalmente analfabeta, e agora esse diagnóstico. Olhou para ela. Aqueles olhos confiavam, não parecia desamparada.
Desamparado talvez fosse ele. O pensamento veio contra todas as suas expectativas. Que diabo, sou um médico! Sacudiu a cabeça. Era o cansaço. Vinha vindo assim há algum tempo já. Talvez hoje devesse ir para casa mais cedo... OK, vou lhe dar remédios, e não vou mandar a senhora ficar em casa. Mas precisa tomar direitinho, promete? Prometo, sim, senhor. Volte daqui a um mês. Tchau, dr. Raul, fica com Deus e com Nossa Senhora! Seja bem feliz!
Netinho estava jogando bola no terreno baldio do lado do bar do Jeco, na Passagem Bartolomeu Dias. Toda tarde eles armavam um jogo, a tia deixava, não que se importasse, Netinho ia. Era dos mais novos, mas ficava de goleiro. Diziam que pegava bem por causa das mãos, grandes como as orelhas. Não ligava. A professora Júlia elogiava, dizia que ele era bom aluno, que tinha o foco de um cirurgião, explicou que cirurgião era um médico que