Caleidoscorpos: criações em dança entre espaços, presenças e virtualidades
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Caleidoscorpos - Leônidas Portela
1. JUSTIFICATIVA E PROBLEMATIZAÇÃO
Os primeiros passos desse trabalho surgiram paralelamente à experiência artística e pedagógica da dança pelo artista-pesquisador autor deste trabalho, o qual, como performer e diretor de espetáculos no Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro, e envolvido pelo desafio de compreender os fundamentos de um processo criativo, vem buscando formular um pensamento. Este estudo apresenta a elaboração desse processo, as concepções envolvidas, as relações entre o corpo, o espaço e suas subjetividades.
Para investigar essa relação entre corpo e espaço, é preciso citar os processos criativos que a antecedem. Em 2010, o artista-pesquisador encontrou no Centro Histórico da cidade de São Luís a paisagem e o ambiente perfeitos para a execução de suas ações poéticas. Nesse período, a degradação do acervo de casarões (quadro ainda aparentemente irreversível) estava em evidência, e esse fato inquietou o artista e o levou a uma reflexão sobre seus processos de criação, sobretudo com a dança.
Em seguida, uma série de obras¹ (espetáculos, performances e intervenções) foram criadas e apresentadas por vários artistas (estudantes e profissionais) nesse espaço da cidade, utilizando as ruas, escadarias, fachadas e o interior dos casarões coloniais. Foram elas: Labirinto dos Poros
; Safira no Casarão das Ilusões
; Imaterial
; Sinal
; Outros Ares
; Pôr-do-sol
; O tempo sobre mim
; Caderno de Assinaturas
; Cicatrizes
; Poesia Urbana em Movimento
; Artistas do Corpo
; Serpenteando na Ilha
; A Carruagem de Donana
. A seguir, uma breve apresentação de releases das respectivas obras citadas pelo autor, com links de vídeos hospedados no YouTube para uma melhor apreciação:
Labirinto dos Poros
² – Proposta de apresentações de solos em Dança-Teatro na sala da Tapete Criações Cênicas, situada no Centro Histórico. Os solos foram criados a partir de improvisações realizadas pelos participantes nos centros culturais: Centro de Cultura Popular Domingos Viera Filho e Museu de Artes Visuais, tendo como inspiração as janelas, os azulejos, portas, paredes, cores, texturas e geometrias destes espaços.
Safira no Casarão das Ilusões
³ – Uma peça de Dança-Teatro, cujo enredo trata de uma teia de anseios e impressões ligadas à degradação dos casarões históricos de São Luís, revisitados por corpos em contato com toda sua estrutura: mirantes, janelas, escadarias, chão, paredes... Corpos que escrevem a história de Safira
, uma meretriz que viveu na década de 60. O casarão colonial é o palco-cabaré de Safira onde ilusões se confundem com realidade a partir do percurso feito pelos espectadores junto ao elenco. Um corpo exausto vai facilmente ao chão, assim como a paredes de um casarão colonial são carcomidas pelo tempo e desabam. Ela é a meretriz que teve seu corpo usado, abusado e abandonado, assim como as janelas de um casarão colonial são carcomidas pelo descaso e despencam. Mas o labirinto dos poros desse corpo-casarão ainda reside uma força latente que grita, canta, dança e quer trazer a melhor maquiagem e o melhor perfume para reerguer pilares resistentes ao tempo e superar toda sorte de abandono.
Imaterial
⁴ – Espetáculo apresentando no dia 16 de agosto de 2011 no Teatro Arthur Azevedo pela Mostra Sesc Guajajara de Artes, para homenagear os 400 anos da cidade de São Luís. A obra em processo apresentada buscou sintetizar a vivência de anos dos intérpretes sobre o espetáculo Safira
, uma desconstrução de experiências sobre a desmontagem do espetáculo em cena, com textos improvisados, figurinos de diferentes montagens do mesmo espetáculo, com projeção de imagens do processo criativo onde os intérpretes aparecem pendurados em janelas de casarões. A performatividade da obra completa-se com a participação do público e pelas referências que os corpos trazem sobre a falta de preservação do patrimônio.
Sinal
⁵ – performance apresentada pela primeira vez em 10 de dezembro de 2010 no semáforo do Terminal Praia Grande em São Luís. Sinal é sinônimo de indício, vestígio, rastro, traço. Faixa de pedestres - espaço cotidiano por onde transitam tensões, corpos e sensações num curto intervalo de tempo. O sinal vermelho marca o momento em que diferentes corpos atravessam para o outro lado da rua, por onde continuam a percorrer seus diferentes caminhos, ultrapassando os limites do tempo, é onde a dança interfere no cotidiano para tornar-se uma poesia urbana.
Outros Ares
⁶ – Performance realizada na praça Gonçalves Dias, onde o artista-pesquisador experimenta com sua companhia ações tendo a praça enquanto espaço, cenário e tema. Outros Ares é um lugar de encontro os corpos e a praça: espaço largo e, ordinariamente rodeado de edifícios, postes, pombos, árvores. Partindo de um roteiro de instruções previamente definido pelo coreógrafo, os dançarinos se espalham na praça onde a atmosfera do encontro se configura a partir de uma conexão entre corpos. Surge então a dança do acaso, na inserção artística dos corpos na paisagem urbana.
Pôr-do-sol
⁷ – Performance realizada no I Encontro de Pesquisadores em Teatro no Maranhão, onde o artista-pesquisador ministrou uma oficina de performance envolvendo alunos do Grupo Cara de Arte – Formação de Jovens Artistas. A performance segue por ruas do centro histórico onde os participantes trabalham com o chão, as paredes, praças, janelas e escadarias, num trajeto que se inicia na praça João Lisboa e se encerra no Cais da Praia Grande. Os participantes experimentam sonoridades e movimentos em dança coral, se posicionam e formam silhuetas no momento em que o sol se põe, momento em que finaliza a performance são realizados registros fotográficos marcando a fusão entre corpo, natureza e paisagem urbana.
O Tempo Sobre Mim
⁸ – Instalação montada no Casarão do Laboratório de Expressões Artísticas – LABORARTE, integrando o evento MOVER-SE. Nesta proposta os interpretes-criadores são colocados numa situação de imobilidade, onde os corpos se posicionam no casarão como esculturas num museu. A proposta baseia-se no sentir das reações do público e das transformações dos corpos durante 1 hora paralisados, as ações e reações do tempo e do público sobre o corpo definem o resultado final da obra.
Escombros
⁹ – Videodança realizado no interior de um casarão abandonado no Centro Histórico em agosto de 2014, período em que o artista-pesquisador buscava experimentar no corpo diferentes tipos de degradações e relacionar as possibilidades das ruínas de Alcântara com as de São Luís. Desta vez dançando não apenas na faixadas, mas também no interior de casarões arruinados. Escombros também fala de um conflito do artista pela ausência de espaço, considerando que ele permaneceu buscando novos lugares para realizar a sua dança por não conseguir espaço para sediar sua companhia.
Poesia Urbana em Movimento
¹⁰ e Artistas do Corpo
¹¹ – foram propostas realizados pelo artista-pesquisador enquanto professor em duas instituições de ensino: no Centro de Artes Cênicas do Maranhão – CACEM onde ministrou as disciplinas de Expressão Corporal e Dança para Ator, e na Universidade Federal do Maranhão onde assumiu o cargo de professor substituto, assumindo as disciplinas de Expressão Corporal e de Danças Dramáticas Brasileiras, nos anos de 2011 e 2012.
Serpenteando na Ilha
¹² e A Carruagem de Donana
¹³ – foram cortejos realizados pelo Grupo Cara de Arte (projeto de formação de jovens artistas idealizado pelo artista-pesquisador) percorrendo ruas do Centro Histórico de São Luís. Os cortejos foram inspirados em lendas de São Luís: da Serpente Encantada e de Ana Jansen participaram de importantes eventos culturais como 8° e 9° Aldeia Sesc Guajajara de Artes, VIII Semana do Teatro no Maranhão e 7° Feira do Livro de São Luís nos anos de 2012 e 2013.
Ao tratar do trabalho antropológico¹⁴ no espaço urbano, referindo-se aos sujeitos que desenvolvem expressões artísticas nas cidades, Velho (2011) destaca que os artistas nesse contexto propõem a construção de significados para além dos aspectos estéticos da arte, abrangendo uma interpretação mais ampla das relações sociais. Segundo o autor, "independentemente de uma discussão mais de natureza estética, [os artistas] desenvolveram através de suas obras análises, captando, muitas vezes com grande sutileza e argúcia, características das sociedades em que viviam". (VELHO, 2011, p. 167)
No caso da Dança, Rolla (2012) observa que, dentre as artes, essa é uma das linguagens que também possui variadas dimensões, algumas das quais ultrapassam limites entre representação e realidade, por se espelhar no corpo, ser o corpo e ter o corpo como seu maior instrumento e sua lente de visão. O corpo, assim como a cidade, está em constantes transformações, tanto pelos fatores físicos que o compõem, como pelos fatores sociais e culturais que variam através dos tempos, de onde o autor enfatiza que o corpo pode ser mutante e adaptável, assim como a natureza
. Por meio do corpo, o performer, por exemplo, manipula a natureza, seja urbana ou selvagem, para que ela adquira as sensibilidades trabalhadas por ele. E é no corpo do outro que a performance é vista e sentida. Compondo a natureza da performance, todos estão ali presentes, com suas noções de limites sociais distintamente impregnadas em cada corpo (ROLLA, 2012, p. 126).
Ao encerrar o ciclo de apresentações das mencionadas obras em São Luís, o artista-pesquisador decidiu em 2011 experimentar um novo processo criativo, desta vez sozinho, em outro espaço: na cidade de Alcântara, onde acontece a Festa do Divino Espírito Santo, uma tradição religiosa desenvolvida em várias áreas colonizadas por açorianos – como nos Estados Unidos, Nova Inglaterra e outras regiões do Brasil – e que remonta às celebrações realizadas em Portugal a partir do século XIV, com banquetes coletivos e distribuição de esmolas.
Na Festa do Divino Espírito Santo, há uma linguagem contemporânea implícita de reflexão e discussão sobre a performance cultural. Caracterizada como ritual do Catolicismo, possui elementos específicos de diferentes regiões, sendo uma das mais arcaicas e difundidas práticas das manifestações populares brasileiras. A festa se destaca por sua imponência, tradição e impacto sobre a população de Alcântara. Segundo Sérgio Ferretti (2007), esse evento é considerado um dos mistérios da religião. A ideia de mistério é também um dos componentes das religiões afro-brasileiras muito acentuado no Tambor de Mina, no qual