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Irregulável Mundo Novo: a regulação de Big Techs na infosfera
Irregulável Mundo Novo: a regulação de Big Techs na infosfera
Irregulável Mundo Novo: a regulação de Big Techs na infosfera
E-book227 páginas2 horas

Irregulável Mundo Novo: a regulação de Big Techs na infosfera

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Sobre este e-book

Nós utilizamos ferramentas das empresas gigantes de tecnologia todos os dias, mesmo sem perceber. Nossos dados estão circulando por elas o tempo todo e elas nos conhecem muito bem, mas nós só conhecemos as suas superfícies. Como construir uma regulação para garantir a autonomia do ser humano sobre a tecnologia digital? A ciência da legislação atual é suficiente para lidar com um desafio tão grande? O que a filosofia da informação tem a dizer sobre isso? Muito mais do que respostas, este livro fornece inúmeras perguntas essenciais para a vida em um mundo de hiperconexão digital.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de nov. de 2023
ISBN9786527002826
Irregulável Mundo Novo: a regulação de Big Techs na infosfera

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    Irregulável Mundo Novo - Pietra Vaz Diógenes da Silva

    1. INTRODUÇÃO

    No século XX, o desenvolvimento tecnológico reforçou suas promessas de emancipação, expandindo suas proporções e seu ritmo¹. Essa tendência tem ganhado força especialmente com a revolução informacional, desencadeada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs). As TICs são dispositivos que mediam processos informacionais e comunicacionais e que podem automatizar processos – exemplos vão desde chips minúsculos até as geladeiras inteligentes, com sistemas de higienização automatizada e conexão com a internet; passando por coisas que não se pode tocar, como armazenamento de dados em nuvem e redes sociais. Essas tecnologias não se apresentam mais como meras ferramentas para a relação das pessoas com o mundo, mas sim como agentes transformadores da realidade e dos sujeitos².

    Tais fenômenos ocorrem em constante estado onlife. Trata-se de termo cunhado pelo filósofo italiano Luciano Floridi para se referir à convergência dos estados online e offline em um único modo de ser³. Isto é, a experiência hiperconectada das sociedades atuais faz com que a distinção entre estar ou não conectado perca o sentido: vive-se sempre onlife. Essa vivência, a propósito, ocorre na infosfera, que é a realidade sem fronteiras entre físico e virtual. Trata-se de um ambiente semântico que abarca toda a informação existente tanto no espaço físico, sensorial – o único que existia até pouco tempo –, quanto no espaço virtual, digital, fruto do atravessamento das TICs na vida humana⁴.

    Tamanho impacto traz consigo muitas possibilidades, mas também dificuldades. Em meio às transformações tecnológicas, a internet, outrora aberta e inventiva, passou por uma transformação estrutural, sendo hoje especialmente organizada em torno de redes e sistemas delimitados, perfazendo assim a plataformização⁵. Nesse contexto, as grandes plataformas digitais, denominadas Big Techs⁶, têm em comum a introdução de suas infraestruturas no modo de ser das sociedades atuais. A humanidade passou a se organizar conforme os serviços providos por essas plataformas, desde a trivialidade do lazer cidadão até a forma como decisões políticas e econômicas mundialmente relevantes são tomadas.

    Essa grande concentração de poder em poucas empresas privadas logo mostrou seus riscos. As Big Techs vêm turvando as fronteiras entre o público e o privado, testando os limites da liberdade de expressão, e tensionando Estados democráticos. Afinal, ao mesmo tempo em que possibilitam o cumprimento de direitos, agem conforme uma lógica permeada por vieses algorítmicos e dataficação, no assentamento de um paradigma de capitalismo de vigilância⁷.

    Para solucionar esses problemas, a regulação de plataformas digitais tem sido tema de grandes debates públicos em diversos países, com ênfase os maiores monopólios digitais: Amazon, Apple, Google, Meta, Microsoft e TikTok – as tais Big Techs. Trata-se de um grande desafio, pois para alcançar uma regulação adequada é preciso compreender de fato o tema e compilar dados concretos para analisar a situação que demanda intervenção legislativa⁸. Essa é uma premissa importante da Legística, que é o campo de estudos que se dedica à legislação, sua produção e seus impactos⁹, explorando e desenvolvendo de forma metódica as fases de planejamento, concepção, elaboração e avaliação.

    Investigar e compreender um problema é essencial para elaborar uma solução regulatória adequada, sendo necessária a indicação dos objetivos que se pretende atingir e de qual caminho deve ser seguido para atingi-los de fato. Quando a norma passa a integrar o ordenamento e tem aplicação fática, as variáveis da realidade que não foram consideradas em sua concepção são percebidas juntamente com as variáveis visadas, impactando-as e dando aos fatos um contorno diverso do que foi desejado – gerando, assim, novos problemas, ou mesmo agravando o que se pretendia solucionar¹⁰.

    Coloca-se, então, a problemática da regulação de plataformas digitais, notadamente as Big Techs, sob as lentes da Legística. Com isso, investiga-se a necessidade e as possibilidades de construir tal regulação por meio de um procedimento metódico adequado, partindo das questões basilares elencadas por Jean-Daniel Delley¹¹: Qual é o problema a resolver? Quais são os objetivos a atingir? Como alcançar esses objetivos? São perguntas curtas, mas que exigem respostas sólidas. Por isso, este livro se desenvolve à luz da vertente metodológica jurídico-social, que analisa o Direito como variável dependente da sociedade e trabalha com as noções de eficiência, eficácia e efetividade das relações entre direito e sociedade¹².

    O conteúdo do livro, cuja origem é a dissertação de mestrado da autora, é organizado da seguinte maneira: primeiramente, há a introdução, que conta também com uma breve explicação sobre a metodologia aplicada na construção da pesquisa. Em seguida, o segundo capítulo, chamado Plataformização da vida, traz importantes definições de elementos como plataformas, plataformas digitais, Big Techs e capitalismo de vigilância, indicando a relação entre eles. Além disso, também são explicados os fenômenos da plataformização e da digitalização dos sujeitos humanos pela perspectiva da filosofia da informação. O terceiro capítulo, Ajustando as lentes da Teoria da Legislação, apresenta as origens da preocupação com a racionalidade no processo de elaboração normativa, passando pela crise da legitimidade do direito no século XX, pela Legisprudência e pela Legística. Ainda, aborda o conceito de qualidade da lei, explica a problematização do impulso legiferante, e reflete sobre as características da regulação. O quarto capítulo, chamado O direito refém das plataformas, relaciona os itens até então apresentados e identifica de onde vêm as dificuldades para a regulação das plataformas considerando o método da Legística, e analisa criticamente o caminho que está sendo construído para a regulação das Big Techs na União Europeia.

    Ao final, conclui-se pela possibilidade de elaboração regulatória de qualidade voltada para as Big Techs, mas constata-se que o movimento regulatório atual, apesar de seus avanços, preza pelas Big Techs como mantenedoras do ecossistema de plataformas. Nesse sentido, entende-se que, para uma plena recuperação de soberania, liberdade, tempo próprio e autodeterminação, é preciso pensar alternativas às Big Techs para a própria gestão das TICs, e pensar na construção de um novo sistema que, dentro da infosfera, não permita o crescimento excessivo de agentes econômicos.

    1.1 APONTAMENTOS METODOLÓGICOS

    A principal estratégia metodológica realizada na elaboração da pesquisa foi a revisão de literatura. Portanto, na construção do texto foram utilizados principalmente dados secundários, como artigos científicos, livros e trabalhos acadêmicos. A identificação das fontes utilizadas foi feita por meio de amostragem por referência em cadeia¹³, ou seja, novas fontes foram sendo levantadas conforme identificadas nos trabalhos consultados inicialmente, em um movimento contínuo. Também foram utilizados dados primários a partir de análise e seleção de legislação feitas pela própria autora.

    Ambos os tipos de dados, independentemente de suas naturezas, foram relacionados e interpretados de maneira original, construindo uma pesquisa qualitativa. Dessa forma, foi analisada a regulação das Big Techs considerando tanto o objeto regulação quanto o objeto Big Techs em suas complexidades, imersos em uma realidade socialmente constituída e relacionada diretamente com a pesquisadora, sem a pretensão de alcançar dados quantificáveis¹⁴. Partiu-se da dúvida sobre a possibilidade de efetivamente regular as Big Techs, tendo como premissa a necessidade da regulação – premissa que é justificada ao longo do desenvolvimento do livro.

    Como marco teórico, foi eleito o raciocínio por trás da problematização de impulso legiferante apresentada por Jean-Daniel Delley¹⁵. Assim, o ponto de partida da pesquisa foi a necessidade de compreensão fática de determinado problema para que seja feita a elaboração regulatória, sendo que apenas uma definição precisa do problema a ser resolvido pode dar início a uma intervenção dotada de efetividade, que de fato alcance os resultados pretendidos. O olhar da pesquisadora também foi conduzido pela filosofia da informação de Luciano Floridi, que entende que a revolução informacional não tem efeitos apenas sociais e econômicos, mas sobretudo ontológicos, alterando radicalmente a representação e as possibilidades de experimentação que as pessoas têm da realidade e de si próprias¹⁶.

    Apesar de a investigação partir da Ciência do Direito, buscou-se a transversalidade na construção da pesquisa, por meio da consulta de material afeto às tecnologias da informação e à filosofia, mesmo porque o fenômeno de elaboração normativa não é hermético e necessariamente dialoga com outras áreas do conhecimento.

    Trata-se, enfim, de pesquisa teórica, valendo de raciocínios tanto hipotético-dedutivos quanto indutivos a depender das análises, na construção de um estudo qualitativo cujo desenvolvimento contribui para o aprofundamento do problema, e cujas conclusões aproximam-se mais de probabilidades do que verdades, para pensar novos caminhos para a pesquisa científica sobre o tema¹⁷.


    1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

    2 FLORIDI, Luciano. The fourth revolution: How the infosphere is reshaping human reality. New York: Oxford University Press, 2014.

    3 FLORIDI, Luciano (Ed.). The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. London: Springer Open, 2015.

    4 FLORIDI, Luciano. The Philosophy of Information. Oxford: Oxford University Press, 2011.

    5 POELL, Thomas; NIEBORG, David; VAN DIJCK, José. Platformisation. Internet Policy Review, v. 8, n. 4, p. 1-13, nov. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.14763/2019.4.1425. Acesso em: 05 ago. 2023.

    6 MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Tradução de Cláudio Marcondes. São Paulo: Ubu Editora, 2018. (Coleção Exit).

    7 ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

    8 DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei: introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf. Acesso em: 05 ago. 2023.

    9 MADER, Luzius. Evaluating the effects: a contribution to the quality of legislation. Statute Law Review, v. 22, n. 2, p. 119-131, 2001.

    10 SOARES, Fabiana de Menezes; KAITEL, Cristiane Silva; PRETE, Esther Külkamp Eyng. Introdução. In: SOARES, Fabiana de Menezes, KAITEL, Cristiane Silva; PRETE, Esther Külkamp Eyng (Orgs.). Estudos em Legística. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2019. p. 9-14. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/10/Miolo_Estudos-em-Legi%CC%81stica-Final2.pdf. Acesso em: 05 ago. 2023.

    11 DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei: introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004. p. 103. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf. Acesso em: 05 ago. 2023.

    12 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca; NICÁCIO, Camila Silva. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Almedina, 2020. p. 66.

    13 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca; NICÁCIO, Camila Silva. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Almedina, 2020. p. 190.

    14 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca; NICÁCIO, Camila Silva. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Almedina, 2020. p. 87.

    15 DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei: introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf. Acesso em: 05 ago. 2023.

    16 FLORIDI, Luciano. The fourth revolution: How the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.

    17 MICHEL, Maria Helena. Metodologia e pesquisa científica em Ciências Sociais: Um guia prático para acompanhamento da disciplina e elaboração de trabalhos monográficos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

    2. PLATAFORMIZAÇÃO DA VIDA

    Entender o que são e como funcionam as plataformas digitais é essencial para analisar criticamente seu papel na infosfera. Sucintamente, plataformas podem ser definidas como um núcleo com componentes estáveis e uma periferia com componentes variáveis¹⁸. Esse conceito, que remonta ao aspecto arquitetônico das plataformas, indica que, no sistema fechado de cada plataforma, o núcleo determina sua base e fornece a interface que estabelece as interações entre os demais componentes.

    Nesse sentido, tem-se como uma subdivisão as plataformas multifacetadas. Elas utilizam sua estrutura recombinante e distribuída para mediar relações entre grupos de usuários, e há uma interdependência entre seus grupos e suas respectivas interações¹⁹. Ainda, as plataformas podem ser consideradas abertas ou fechadas de acordo com seus níveis de restrição e permissão nas possibilidades de interação entre os componentes variáveis²⁰.

    O conceito de plataformas digitais incorpora o que se entende por plataforma ao plano digital. A definição apresentada por Thomas Poell, David Nieborg e José van Dijck foi amplamente acolhida:

    Assim, definimos plataformas como infraestruturas digitais (re)programáveis que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio da coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados. Nossa definição oferece um aceno aos estudos de software, apontando para a natureza programável e orientada por dados das infraestruturas de plataforma, ao mesmo tempo em que reconhece os insights da perspectiva dos estudos de negócios, incluindo os principais interessados ou lados nos mercados de plataforma: usuários finais e complementadores.²¹

    No caso, complementadores são empresas que fornecem produtos ou serviços que complementam os produtos ou serviços oferecidos por outra empresa. Exemplos são Microsoft e Intel, que são complementadores entre si – os softwares de uma criam mercado para os chips da outra, enquanto os mesmos softwares também dependem de tais chips para sua execução ser viável²². Já usuários finais são todos aqueles que utilizam as plataformas para desfrutar dos serviços oferecidos, como os donos de computadores com sistema da Microsoft que utilizam processadores da Intel.

    Aplicando tal lógica às relações construídas por meio de plataformas digitais, como fazem os autores, nota-se que elas podem se efetivar de diversas maneiras. Um usuário de IPhone, produzido pela Apple, pode utilizar o aplicativo nativo App Store para baixar outros aplicativos, ofertados por outros desenvolvedores. Ele pode, por exemplo, baixar o Candy Crush Saga²³, jogo de quebra-cabeça mundialmente popular desenvolvido pela empresa King. Nessa circunstância, uma plataforma disponibilizada pela Apple possibilita que o usuário alcance uma outra plataforma, desenvolvida pela King. Logo, ambas podem ser entendidas como complementadoras.

    Pela App Store, o usuário também pode baixar o aplicativo Amazon; assim, Apple e Amazon são plataformas complementadoras. Quando o usuário inicia o aplicativo Amazon e efetua a compra de um produto em seu marketplace, ou assina o serviço de streaming Amazon Prime Video, o que se verifica é que a empresa integrou diferentes aspectos de si mesma por meio de naturezas diferentes: ao mesmo tempo em que é uma empresa tradicional, altamente hierárquica e com diversos níveis de subordinação de suas estruturas à direção empresarial, também se apresenta como a própria plataforma, pautada por relações contratuais mais flexíveis.

    No exemplo da Amazon, isso ocorre principalmente por meio de aplicativo que oferece um espaço para conectar compradores e vendedores, ainda que a parte vendedora possa ser ela própria; de serviços de entretenimento como o streaming de filmes e séries; e do Amazon Web Services (AWS), que é

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