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Entre Ciência e Ideologia
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E-book459 páginas6 horas

Entre Ciência e Ideologia

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Sobre este e-book

Em época de profundas transformações comportamentais, com uma crescente diversidade nos modos de viver e conviver, as disciplinas sociais enfrentam, mais do que nunca, o desafio de elaborar teorias cuja capacidade de explicar fatos possa ser aferida em termos de sua cientificidade. Diante de situações especialmente complexas, como a do estranhamento entre modos de perceber e viver que fomentam polarizações, é cada vez maior a necessidade de contar com teorias sociais comprovadamente científicas. Este livro trata da problemática da cientificidade e da atenção especial que recebeu de um de nossos maiores sociólogos: Florestan Fernandes. As críticas feitas neste livro a seu modelo de ciência se fazem acompanhar do reconhecimento do quanto sua obra foi importante para combater a tendência, enraizada na tradição do pensamento social brasileiro, a teorizar sem mostrar preocupação com os crivos capazes de atestarem a credibilidade dos resultados alcançados. As tantas teorias sociais precisam ter suas divergências explicativas cientificamente arbitradas para que deixem de gerar a impressão crescente de que renunciam ao entendimento dos fatos em prol da assunção de posicionamento político-ideológico.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jul. de 2023
ISBN9786554271301
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    Entre Ciência e Ideologia - Alberto Oliva

    CAPÍTULO 1

    EM BUSCA DA CIENTIFICIDADE DAS TEORIAS SOCIAIS: MUITAS AS CRIADAS, POUCAS AS ESCOLHIDAS

    O estado caótico e frequentemente incoerente da sociologia moderna, refletido em sua anarquia teórica e na coexistência em seu seio de posições radicalmente heterogêneas e comumente incompatíveis, é agora amplamente reconhecido e assiduamente deplorado. (HINDESS, 1973, p. 9)

    Em ensaio sobre a obra etnológica de Fernandes, Peirano (1992, p. 11) observa que no Brasil dos anos 30 e 50 ‘sociologia’ era equivalente ao que hoje chamamos genericamente de ‘ciências sociais’. Fundador e principal figura da Escola Paulista de Sociologia, Fernandes (1920-1995)¹ realizou importantes esforços no sentido de identificar a forma adequada de conduzir a pesquisa sociológica de modo a fazê-la granjear estatuto científico livrando-a das práticas até então hegemônicas de análise ensaística baseadas em ópticas impressionistas de interpretação de nossa realidade social. Ao longo de sua prestigiosa carreira intelectual, Fernandes devotou especial atenção à problemática dos procedimentos metodológicos aptos a conferir cientificidade às teorias sociológicas. Seus escritos propugnam por um modelo de cientificidade que exige que a sociologia se torne empírica, observacional e indutiva.

    Em artigo no Caderno Especial do Jornal do Brasil (28/03/82), Simon Schwartzman apresenta Fernandes como ex-catedrático da USP, fundador da Escola Paulista de sociologia, sem deixar de acrescentar que, vitimado pelo AI-5, foi afastado de sua cátedra e abandonou suas antigas ideias sobre a possibilidade de uma sociologia cientificamente neutra. Nesse mesmo Caderno Especial, Fernando Henrique Cardoso recorda-o como um professor severo, sempre de avental branco, porque era então um ‘funcionalista’ e acreditava na sociologia como uma ciência. Para Fernandes, essa sociologia cientificamente neutra, a que alude Schwartzman, só pode ser alcançada caso sejam adotados os cânones estatuídos pela chamada concepção indutivista de ciência umbilicalmente ligada ao empirismo.

    Em entrevista ao Caderno Mais da Folha de São Paulo (20/8/95), Fernandes assinala que na faculdade de filosofia, o que se ensinava era realmente o conhecimento científico da realidade. Não entrava em conexão com nenhuma prática [...] o professor era alguém que ensinava sociologia. E só. Era preciso manter-se dentro de um terreno científico tido como estritamente acadêmico [...] naquela época, as duas coisas (a ciência e o engajamento político) corriam paralelas. Elas só se interpenetraram na década de 60. Isso, em parte, explica por que Fernandes sempre manteve, mesmo quando foi completo seu envolvimento com o funcionalismo/empirismo, uma militância política trotskista, com destacada atuação durante o Estado Novo, no Partido Socialista Revolucionário. Reportando-se a Fernandes, Sacchetta (1996, p. 51) declara que se a ditadura Vargas era seu alvo imediato, a revolução proletária começava a se desenhar como um objetivo essencial e permanente. Em seu livro-entrevista, há uma passagem bastante elucidativa:

    Apesar de estar envolvido no plano político com o movimento marxista, eu não impugnava nem os outros métodos nem as outras teorias. Eu compreendia Marx e Engels em termos da contribuição que eles davam às ciências sociais e não tentando confundir o socialismo com a minha atividade docente. (FERNANDES, 1978, pp. 18-9)

    Fernandes sempre se sentiu dividido entre o pesquisador, que se obriga a seguir determinados protocolos na formulação e avaliação de hipóteses, e o militante que adota uma posição política fixa e rígida derivada do envolvimento com um Ideal de Sociedade. Isso fica patente quando Fernandes (2011, p. 62) declara: me sinto muito insatisfeito pelo fato de que não consegui superpor os dois papéis que gostaria de preencher. Eu gostaria de ser um cientista social ao mesmo tempo vinculado com a universidade e com o socialismo. Todas as tentativas que fiz para combinar as duas coisas falharam. E falharam porque não existe movimento socialista bastante forte na sociedade brasileira que sirva de substrato e de apoio para os intelectuais que tenham uma posição socialista. Muitas vezes, quem vê de fora a minha carreira, fica com a impressão de que eu privilegiei a ciência contra o socialismo. É claro que isto não aconteceu.

    Até meados da década de 60, Fernandes vive uma mais nítida cisão entre seu posicionamento político e seu trabalho acadêmico, entre teoria e prática, de tal modo que sua militância esquerdista corre paralela à defesa ardorosa de posições metodológicas manifestamente empiristas. Não se pode, contudo, deixar de reconhecer que em um ambiente intelectual como o nosso, dominado pelo ensaísmo e especulativismo, a defesa da imperiosidade da observação, do império dos fatos, possuía grande relevância. O empirismo oriundo de Bacon é crucial à formulação da proposta de Fernandes de cientificizar a sociologia. É importante ter presente que Fernandes jamais levou em consideração que o empirismo foi acusado pelo pensamento de matriz marxista de dar azo a projetos políticos regidos pelo interesse de conservar a ordem de regularidades vigente entre os objetos estudados em detrimento da atenção às potencialidades históricas privilegiadas pelos projetos de transformação revolucionária da sociedade. Talvez por isso Fernandes nunca tenha se deixado perturbar pela dissonância cognitiva entre o pesquisador e o militante.

    A elaboração de um estudo devotado à análise da fundamentação da produção metodológica de Fernandes se nos afigurou relevante em razão do valor acadêmico de sua obra e da forte influência que exerceu sobre toda uma geração de pesquisadores a ponto de muitos colegas o considerarem o pai das ciências sociais no Brasil. Quando da morte de Fernandes (11/8/95), Roberto da Matta deu a seguinte declaração ao jornal O Globo: O Brasil perdeu um de seus grandes cientistas sociais. Ianni (1986, p. 8) afirmou que a sua influência se estende por todo meio intelectual brasileiro, espalhando-se pela América Latina e Caribe, e ressoa na Europa e nos Estados Unidos. Formou escola. As controvérsias sobre seu pensamento também refletem sua influência. Weffort (1996, p. 49) assim se pronunciou: acho que Florestan é certamente a figura mais importante no processo de fundação da sociologia moderna no Brasil, talvez o maior deste século. Hobsbawm chegou a colocar Fernandes, no início da década de 80, entre os dez intelectuais vivos mais importantes do mundo.

    Ainda que justo o valor acadêmico que Ianni e outros pesquisadores atribuem à obra de Fernandes, este livro tenciona fazer uma avaliação crítica de suas contribuições metodológicas. Com esse propósito procurará determinar em que medida suas contribuições à sociologia representam efetivamente um momento privilegiado de incorporação do método científico pelo pensamento social brasileiro. Ademais, esta obra ambiciona também escrutinar se a metodologia de Fernandes tem como se legitimar como expressão normativa da racionalidade (universal) da ciência. Nosso objetivo final consiste em demonstrar que suas posições correspondem a uma vigorosa defesa de um modo de caracterizar a ciência comprometido, no essencial, com o ideal empirista clássico de ciência, e não com a ciência enquanto tal. Tendo em vista a perseguição dessas metas, a parte final ambiciona tornar patente que a pretensão de Fernandes de qualificar indistintamente como indutivos os modelos explicativos adotados por Durkheim, Weber e Marx, carece de fundamentação epistemológica. No fundo, Fernandes faz uma discutível releitura, com lentes empiristas, das especificidades metodológicas da sociologia compreensiva de Weber e da dialética de Marx.

    Cabe ressaltar que devassar criticamente a obra de Fernandes em busca dos fundamentos filosóficos das posições metodológicas que assume não significa diminuir a relevância de seus trabalhos empíricos, no que tem de original, como contribuição ao entendimento do funcionamento de nossa sociedade, da velha e da atual. Aliás, em artigo da década de 70, quando procurava integrar programaticamente, ainda que não epistemologicamente, sociologia e socialismo, o próprio Fernandes estimula a avaliação do estatuto filosófico e epistemológico de seus escritos metodológicos:

    Poderão objetar-me que essa orientação crítica militante não aparece de maneira tão clara nos escritos que vão de 1942 a 1960. Pediria a esses leitores que procurassem ler melhor o que escrevi e ver se, por trás do aparente empiro-criticismo ou de um sociologismo experimentalista não havia uma firme intenção que cresce aos poucos, na medida em que abria espaço para defrontar-me com as inibições de uma sociedade tão opressiva e repressiva quanto a brasileira. (FERNANDES, 1977, p. 140-1)

    Há passagens da obra de Fernandes que podem levar ao estudo da relação entre o aparato metodológico escolhido e as condições sociais reinantes em determinada etapa da história da formação intelectual brasileira:

    Deve-se observar que uma técnica de explicação racional do comportamento humano e da origem e do funcionamento das instituições, como a sociológica, encontrava natural resistência em uma sociedade na qual as atitudes aprovadas diante desses objetos eram pautadas pelas tradições, por interesses conservadores e por valores religiosos. (FERNANDES, 1977, p. 30)

    Em vez de realizar um estudo devotado à relação entre as posições metodológicas de Fernandes e determinados condicionamentos próprios à formação social brasileira, preferimos mostrar de que modo suas escolhas metodológicas, mesmo as assumidas depois dos anos 60, têm parcial ou total comprometimento teórico com a filosofia da ciência empirista. Isso se nos afigurou fundamental para explicitar o tipo de justificação metodológica que Fernandes oferece para suas teorias sobre a sociedade brasileira.

    Nosso objetivo maior é o de tornar patentes as fragilidades de fundamentação dos posicionamentos metodológicos defendidos por Fernandes a fim de levar a cabo seu projeto de cientificizar a sociologia. Atendendo à provocação teórica do próprio Fernandes, tentaremos esclarecer até que ponto o empirismo, que ele mesmo reconhece estar presente em sua obra, é puramente adventício ou estruturalmente formador de suas principais posições. Do ponto de vista do debate intelectual, este livro é original e relevante em virtude de Fernandes sempre ter movido críticas às formas precedentes (e até contemporâneas) de fazer sociologia a partir de seu modelo de ciência calcado na imperiosidade da verificação das teorias, no irrestrito poder da observação de formar e justificar teorias e no primado da indução como procedimento inferencial capaz de conduzir com confiabilidade dos fatos às generalizações:

    É possível distinguir três espécies de noções extracientíficas de estudo sociológico correntes nos círculos letrados brasileiros. A mais generalizada e simples faz dele um equivalente de qualquer sorte de reflexão sistemática sobre temas ou problemas sociais do país. Por isso, políticos, jornalistas, ensaístas, romancistas, historiadores, folcloristas, qualificam como sociológicas, com a maior boa-fé, produções intelectuais que não têm nenhuma relação com os propósitos da investigação sociológica propriamente dita. Uma segunda representação, menos divulgada, mas relativamente enraizada, converte a sociologia em polarização intelectual de atitudes e convicções ideológicas. Ensaios inspirados pelo liberalismo, pelo integralismo, pelo socialismo, etc., são encarados como contribuições sociológicas. Por fim, na terceira modalidade de definição societária, a sociologia é aceita como disciplina autônoma, com intuitos cientificizantes, a ser utilizada, com a cooperação de especialistas, como recurso racional de compreensão do presente, de propaganda e de acomodação intergrupal [...] Essas três noções colidem, naturalmente, com a definição positiva de estudo sociológico. Os sociólogos pretendem investigar e interpretar, segundo modelos científicos, as regularidades que se explicam pela existência de uma ordem imanente às condições de manifestação dos fenômenos sociais. (FERNANDES, 1977, p. 56-7)

    Para que as restrições a essas três formas de investigação sociológica, vinculadas ao chamado conhecimento de senso comum, se mostrem eficazes, é fundamental que a concepção de ciência defendida por Fernandes encerre a universalidade metodológica que lhe é conferida. Ficando comprovado que seu projeto de cientificização da sociologia está assentado em pilares empiristas, que não têm como ser confundidos com a natureza operacional da racionalidade científica, diminuem a força e o alcance das críticas que dirige às concepções alternativas de sociologia e aos procedimentos metodológicos adotados. Somos de opinião que a concepção de ciência perfilhada por Fernandes é incapaz de conferir cientificidade à sociologia e de rigorosamente diferenciá-la do conhecimento de senso comum. O fato de as formas especulativas de fazer sociologia, atacadas por Florestan, se mostrarem manifestamente incompatíveis com um método genericamente classificável de científico não implica que a priorização da observação e da indução tenha, per se, o poder de cientificizar as teorias. Tendo presente que, para Fernandes, a única autêntica metodologia é a estribada na observação e na indução, este trabalho pretende submetê-la à aferição crítica apresentando vias alternativas com o fito de contribuir para o debate relativo aos procedimentos adequados para abordar os fatos sociais.

    1.1. Como chegar ao conhecimento: caminhos e descaminhos do pensamento social brasileiro

    Este estudo não se debruça diretamente sobre as contribuições empíricas dadas por Fernandes à história da sociologia/etnologia/ /antropologia brasileira. Por esse motivo, não analisará as teses substantivas contidas, por exemplo, em A Integração do negro na sociedade de classes ou A revolução burguesa no Brasil. Cumpre, no entanto, ter presente que a metodologia proposta e aplicada é de crucial importância para a validação dos resultados alcançados pela pesquisa. As vulnerabilidades de uma metodologia impactam o valor explicativo das teorias resultantes de sua aplicação. Nossa meta é investigar criteriosamente os pressupostos e fundamentos filosóficos das teses metodológicas de Fernandes. Conhecer o embasamento filosófico tácito de sua metodologia é fundamental para a avaliação crítica de seu projeto de cientificizar a sociologia. Ademais, a identificação dos pilares filosóficos de suas posições metodológicas permite avaliar em profundidade o tipo de legitimidade explicativa que Fernandes tentou conferir às teses defendidas em suas pesquisas empíricas.

    À diferença do que prega Fernandes, é questionável que a sociologia só logra se tornar de facto e de jure científica caso faça uso combinado, à maneira proposta por Francis Bacon, de procedimentos observacionais com técnicas inferenciais indutivas. Este trabalho se debruça, no essencial, sobre questões epistemológicas em virtude de não se ter ainda reconhecido o quanto são relevantes para avaliar as teses defendidas por Fernandes em seus trabalhos substantivos sobre a realidade social brasileira. O valor explicativo dos resultados empíricos obtidos por Fernandes depende crucialmente da solidez das técnicas metodológicas empregadas. Em entrevista ao caderno Mais da Folha de São Paulo (20/8/95) Fernandes assim se pronunciou: "A integração [do Negro em uma Sociedade de Classes] é o trabalho mais importante que fiz tanto em termos empíricos quanto teóricos. O título já é dialético, pois fala da integração que não houve". Não se tem como avaliar sua solidez explicativa sem colocar em discussão a metodologia empregada.

    Este livro privilegia a fase em que o funcionalismo de Fernandes esteve umbilicalmente ligado a uma concepção de sociologia cuja cientificidade é pensada segundo a óptica empirista. Isso não acarreta qualquer delimitação empobrecedora tendo em vista que, nessa fase, Fernandes formulou a esmagadora maioria de suas principais posições metodológicas. Cabe, além disso, ter presente que Fernandes simplesmente reiterou as teses antigas quando já trabalhava sob outro paradigma sociológico substantivo – o da sociologia crítica. Desse modo, procuraremos tornar patente que se por um lado o comprometimento com uma concepção empirista de ciência aparece explicitamente veiculado em obras como Fundamentos empíricos da explicação sociológica, Ensaios de sociologia geral e aplicada, A sociologia numa era de revolução social, A sociologia no Brasil, em especial nos textos anteriores à década de 70 veiculados neste livro, Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Elementos de sociologia teórica etc., por outro, as posições metodológicas fundamentais perfilhadas nesses escritos serão simplesmente reafirmadas na fase em que o sociólogo paulista intenta libertar-se do que seria o fardo ideológico da fase funcionalista:

    Os leitores que estejam interessados em minha própria orientação metodológica e no modo pelo qual tenho tentado aproveitar as contribuições dos autores clássicos mais importantes, poderão esclarecer-se lendo outros trabalhos de minha autoria (no plano teórico e metodológico cf. especialmente Ensaios de sociologia geral e aplicada, cap. 1 e 3; Fundamentos empíricos da explicação sociológica, parte II, passim; Elementos de sociologia teórica, caps. 3-5) (FERNANDES, 1981, pp. 115-6)

    Em outra obra, de uma fase intelectual posterior, reitera:

    O leitor que se interessar pela orientação [metodológica] do autor deverá recorrer às seguintes obras: Fundamentos empíricos da explicação sociológica [...], Ensaios de sociologia geral e aplicada [...] A sociologia numa era de revolução social. (FERNANDES, 1975a, pp. 19-20)

    O trabalho que ensaia uma revisão crítica de suas antigas concepções metassociológicas é A Natureza Sociológica da Sociologia, que só veio a público no início da década de 80. Mesmo aí, Fernandes não realiza um exame crítico dos postulados metodológicos esposados anteriormente. Independentemente de se manter preso ao quadro de referência funcionalista, Fernandes sempre acreditou que a teoria sociológica que pudesse receber três predicados essenciais – empírica, observacional e indutiva – teria credibilidade explicativa para postular cientificidade. Ao ignorar a impregnação filosófica contida nesses atributos, as controvérsias epistemológicas que geram, Fernandes acreditava que seu emprego genérico na qualificação da natureza do ser científico seria suficiente para tornar a sociologia ciência.

    1.2. As ciências sociais no Brasil: entre o interpretativismo e o fatualismo

    Visto que do século XVII até o início do XX prevaleceu a concepção verificacionista, observacionalista e indutivista de ciência, Fernandes viu equivocadamente nesse tripé a codificação metodológica das práticas de pesquisa consagradas. Apesar de apresentado por Fernandes como espelhando a estrutura conceitual e o funcionamento argumentativo da ciência sociológica, esse tripé, como nosso trabalho tornará patente, está umbilicalmente ligado à tradição empirista de pensamento. Mesmo sendo os três pilares sobre os quais se erigiu historicamente o edifício da filosofia da ciência empirista, Fernandes em momento algum reconhece isso. Seu projeto de cientificização da sociologia apresenta esse tripé como se representasse a racionalidade operacional da ciência. Curiosamente, o empirismo, que cumpriu papel secundário na evolução das ideias filosóficas no Brasil, encontra em um cientista social do porte de Fernandes a entusiástica defesa por ser confundido com a racionalidade científica. Fernandes tenta esconder seu empirismo apresentando sua metodologia como reflexo normatizado da racionalidade operacional da ciência. Nossa contribuição se pretende original em razão de identificar, no projeto de cientificizar a sociologia de Fernandes, a existência de uma filiação filosófica nunca explicitada porque a metodologia é apresentada como reflexo do que a racionalidade científica exibe como sua funcionalidade operacional.

    Os mais importantes pensadores da Filosofia Moderna mostraram especial preocupação em compreender e fundamentar a racionalidade funcional da ciência da natureza então emergente. Com a proposta baconiana de um novum organum, a filosofia passa a ter também a missão de apontar e embasar os procedimentos metodológicos² que devem ser empregados na pesquisa para que o conhecimento seguro seja conquistado. Na Filosofia Moderna, caracterizável como era da epistemologia, se destaca a preocupação em elaborar cânones de pesquisa capazes de viabilizarem a mais fácil obtenção e a mais adequada validação da modalidade de saber que começava a ganhar destaque com Galileu. O que distingue a Filosofia Moderna dos períodos anteriores é a pretensão, entre outras, de enunciar um corpo definido de regras em condições de gerar uma forma de conhecimento digna de irrestrita credibilidade explicativa. Além de ser apresentada como capaz de forjar explicações bem fundamentadas, essa nova forma de saber é distinguida com o apanágio da vocação instrumentalista. Por esse motivo, a metodologia moderna almeja estatuir regras que ensejem a fabricação de um tipo de conhecimento com inquestionável fundamento empírico e com poder para alterar, sempre que possível e desejável, as causas responsáveis pela (forma de) ocorrência dos fenômenos investigados.

    Quando a ciência da natureza estava em sua fase embrionária, eminentes pensadores se empenharam na confecção de regras do método que almejavam apressar seu desenvolvimento. Com a afirmação do poder explicativo, eventualmente preditivo, da ciência moderna se multiplicaram os sistemas metodológicos. As regras do método científico começaram a ser propostas como máximas de comportamento intelectual cuja legitimidade deriva de sua suposta capacidade de representar a racionalidade científica. As grandes vertentes epistemológicas da modernidade se apresentaram como proponentes dos únicos procedimentos eficazes de elaboração e validação das teorias capazes de aspirar à condição de científicas. De Bacon aos nossos dias, a maioria das metodologias é normativista no sentido de que acalenta a pretensão de estatuir regras para a produção do conhecimento entendidas como imperativos categóricos da racionalidade. Em poucos casos, se manifesta a preocupação em buscar respaldo em como a ciência de facto é praticada. O caráter normativo das metodologias com pretensões a se aplicar à ciência deriva de estarem atreladas a tradições epistemológicas, predominantemente racionalistas ou empiristas, que sempre se encarregaram de definir o que deve ser feito para se chegar ao conhecimento. Enquanto as regras do método enunciadas por Descartes em nada influenciaram a obra de Fernandes, os cânones estipulados por Bacon no Novum Organum têm presença marcante em sua principal obra metodológica: Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica.

    Quando está em questão a sociologia, a questão metodológica se torna ainda mais desafiadora, já que é pouco defensável apresentar um sistema de regras do método como reflexo de uma unidade nas práticas de pesquisa. Apesar dos estáveis consensos reinantes entre seus praticantes, do amplo acolhimento de seus resultados, resultantes de modos bastante homogêneos de conduzir a pesquisa, até mesmo as ciências naturais têm suscitado reconstruções metacientíficas³ bastante díspares. A maioria das teorias sobre a ciência concede amplo destaque à física sem lograr chegar a formas compartilhadas de conceber seu método e suas práticas. Por essa razão, desponta forçada e artificial a proposta de Fernandes de se extrair uma metodologia unitária – de extração empirista – de ciências como as sociais cindidas em Escolas com linhas de pesquisa apoiadas em pressuposições absolutas – a exemplo da psicanálise e do behaviorismo – divergentes e até excludentes.

    As diversas Escolas de metaciência que se formaram ao longo do século passado foram submetidas a fundadas críticas que tornaram problemática a pretensão de se legitimarem como propositoras dos imperativos categóricos da racionalidade ou como espelhos da razão operacional posta em ação pela ciência. Chegou-se ao extremo de considerar mera idealização filosófica a postulação de uma Lógica da Ciência. As metodologias que procuraram se basear nas práticas de pesquisa das ciências sociais enfrentaram dificuldades adicionais para ser universalmente aceitas em virtude de cada uma estar atrelada a uma Escola de pensamento cuja identidade é definida pela concepção de conhecimento adotada e pela missão atribuída ao saber produzido. As diversificadas e desniveladas práticas de pesquisa dos sociólogos, psicólogos, economistas etc. não se prestam a dar sustentação à reiterada pretensão dos filosófos de forjarem uma metodologia unitária portadora de validade universal.

    A sucessão de polêmicas em torno do que pode transformar em ciência uma disciplina como a sociologia tem refletido a oscilação entre os que reconhecem a dificuldade de conferir-lhe uma identidade baseada em sua própria história, marcada por cisões substantivas e metodológicas, e os que tentam forçá-la a imitar os métodos, de suposta aplicação universal, usados pelas ciências naturais, em particular pela física. A diversidade teórica encontrável tanto na história da filosofia quanto na das ciências sociais sugere a falta de crivos com poder para selecionar a melhor dentre as concorrentes. Como advogam Nisbet (1967, p. 7), Tiryakian (1969, p. 23) e Brown (1977, p. 45), a sociologia, se mostra, em aspectos importantes, mais próxima da filosofia, e até mesmo da arte, que de ciências duras como a física. De acordo com visões unificacionistas como a de Neurath (1960, p. 282-317), a única maneira de tornar a sociologia explicativamente respeitável é fazê-la usar as vestimentas naturalistas costuradas segundo o figurino fisicalista. Essa seria a única forma de conferir cientificidade aos corpos teóricos das disciplinas sociais.

    O intento de produzir uma metodologia capaz de se legitimar como expressão normatizada da razão operacional da ciência esbarra em vários obstáculos. Na sociologia, em particular, são diversificadas as práticas teóricas e variados os modelos de explicação propostos. A pretensão de uma metodologia, como a proposta por Fernandes, de espelhar a racionalidade operacional da ciência se revela parcial na medida em que representa, de forma velada, o endosso a certa concepção de sociologia vinculada a determinada Escola. Uma metodologia sociológica que se pretenda derivada de uma suposta racionalidade unitária da ciência natural tem de ignorar qualquer possível singularidade do fato social como, por exemplo, a de que se oferece à observação prenhe de significatividade. A história da sociologia contraria a visão de que toda ciência está submetida às mesmas regras de produção, de tal modo que metodologicamente só há uma ciência. Por esse motivo, têm-se revelado inócuos os esforços no sentido de lidar com os problemas sociais lançando mão dos métodos presumidamente empregados pelas ciências naturais.

    Propalada desde o Leviatã de Hobbes, a tese da unidade do método científico vem sendo defendida por pensadores bem diferentes como Comte (1908, p. xiv), Popper (1976, p. 130) e Hempel & Oppenheim (1960, p. 19-29). É bem sintetizada por Homans (1967, p. 3-5): essas ciências [as sociais] são de fato uma única ciência; compartilham o mesmo objeto – o comportamento dos homens; empregam, sem que sempre o admitam, o mesmo corpo de princípios explicativos [...] as diferenças [entre as ciências sociais e as naturais] não são de espécie, mas de grau; o empreendimento científico enfrenta em todos os campos os mesmos problemas característicos. A metodologia que intenta se afirmar como normatização de toda e qualquer pesquisa ignora que as disciplinas sociais abrigam diferentes Escolas com teorias substantivas conflitantes ou mesmo excludentes.

    A existência de diferentes modos de desenvolver as práticas de pesquisa é consequência, entre outros fatores, da opção por recomendações metodológicas cujos pilares estão fincados nos solos de diferentes teorias do conhecimento. Cada metodologia sociológica se envolve, na escolha dos componentes constitutivos de sua identidade, com diferentes conceitos e categorias filosóficas. Os objetos das disciplinas sociais e as várias possíveis formas de abordá-los têm suscitado questões com nítida e forte impregnação filosófica. Mais que alhures, os estudos sociais fomentam distintas metodologias, que se diferenciam pela variedade dos substratos filosóficos que cada uma adota. Inexistindo metodologia capaz de se legitimar como expressão normativa da ciência em si, desponta fundamental identificar seus pilares filosóficos ocultos:

    Essa concepção segundo a qual a metodologia é uma ciência empírica – estudo do comportamento efetivo dos cientistas ou dos procedimentos reais da Ciência – pode ser rotulada de naturalista [...] Contudo, o que denomino metodologia não deve ser considerado uma ciência empírica. Não acredito que seja possível decidir, usando métodos de uma ciência empírica, questões controvertidas como a de saber se a ciência realmente usa ou não o princípio da indução. (POPPER, 1959, p. 52)

    Filiadas a distintas tradições epistemológicas, as metodologias são levadas a abraçar diferentes pressuposições filosóficas em busca da fundamentação das técnicas que defendem. Isso as leva a tentar encontrar uma justificação última para os procedimentos de pesquisa que propõem. Desse modo, quando está em questão, por exemplo, identificação dos fundamentos da inferência indutiva, pode-se, como faz J. S. Mill, recorrer ao princípio do curso uniforme da natureza. Quando se concede prioridade à observação no processo de produção de conhecimento, como faz Fernandes, costuma-se adotar uma concepção passivista sobre o funcionamento da mente, e encarar o registro perceptual como capaz de refletir especularmente as formas de ser e de ocorrer encontráveis no domínio dos objetos estudados.

    O modelo de cientificidade perfilhado por Fernandes sustenta que a sociologia precisa adotar uma metodologia que a livre das esterilidades especulativas da filosofia. A autêntica metodologia, a capaz de gerar ciência empírica, tem de refletir as práticas da ciência real. É questionável que em sociologia seja possível e recomendável construir teorias substantivas expurgadas de todo e qualquer ingrediente filosófico, isto é, livres de pressuposições de natureza epistemológica, ontológica e axiológica. As longevas polêmicas relativas, por exemplo, a se cabe conceder prioridade explicativa ao Todo, ao Sistema, a estruturas autossubsistentes ou à soma institucionalmente integrada das ações dos indivíduos, demonstram que o ponto de partida ontológico – individualista ou holista – é fundamental para definir o que será escolhido como fato e fator determinante e, por via de consequência, para a opção por um método às expensas de alternativas.

    Nosso principal objetivo é identificar a base epistemológica subjacente à proposta de Fernandes de cientificizar a sociologia. No Capítulo I, destacaremos as dificuldades enfrentadas pela tese que encara a metodologia como uma espécie de normatização da razão operacional detectável nas práticas das ciências naturais. É preciso ter presente que sem localizar a filosofia da ciência, oculta sob as prescrições de uma metodologia que pretende falar em nome da ciência, não se tem como mover críticas embasadas ao modelo adotado por Fernandes para cientificizar a sociologia. A avaliação crítica do projeto de Fernandes de cientificizar a sociologia só pode ser viabilizada atentando-se para os fundamentos da filosofia da ciência que latentemente lhe confere identidade. Por essa razão, nossa aferição do programa advogado por Fernandes para conferir cientificidade à sociologia se debruçará sobre seus fundamentos epistemológicos, uma vez que fazer críticas adstritas à indigitação de falhas meramente funcionais ou operacionais envolve aceitar o empirismo abraçado, mas não assumido, por Fernandes.

    Estando a proposta de cientificização da sociologia de Fernandes apoiada em última instância em uma filosofia da ciência cujo embasamento epistemológico é o provido pelo empirismo clássico, a metodologia é insuscetível de ser ser legitimada como o único conjunto de imperativos categóricos da racionalidade capaz de viabilizar a produção do conhecimento científico. Pressuposições filosóficas se fazem presentes nos modos com que Fernandes define, por exemplo, como deve ser dar o relacionamento entre teoria e observação. Por mais que práticas científicas modelares sejam sistematicamente acompanhadas, são reconstruídas pelos que as invocam para recomendar a adoção de determinadas normas epistemológicas. A crítica à proposta de Fernandes de cientificizar a sociologia precisa se escorar na identificação das vulnerabilidades de fundamentação da filosofia da ciência tacitamente operante. Em razão de naturalizar a metodologia, Fernandes deixa de identificar seu substrato filosófico e de dar atenção às vias alternativas. Estando os pilares do programa de Fernandes de cientificização da sociologia fincados no território de uma filosofia da ciência, as críticas mais efetivas possuem natureza epistemológica:

    A recente edição de Fundamentos empíricos da explicação Sociológica oferece-nos uma oportunidade especial para considerações acerca de alguns aspectos de uma fase determinada da incorporação do método científico pelo pensamento social brasileiro. Não somente pela posição especial que os seus trabalhos ocupam na história das ciências sociais no Brasil, como também pelos tipos de preocupações que orientam suas reflexões, a obra de Florestan Fernandes exerce uma influência decisiva no desenvolvimento da sociologia brasileira. (IANNI, 1971, p. 116)

    A rejeição da tese de que a metodologia nada mais é do que a expressão normativa da racionalidade operacional da ciência, abre caminho para tratá-la como um espaço de reflexão no qual o acompanhamento de práticas científicas tidas por modelares se mistura com conceitos vinculados a determinadas vertentes epistemológicas. A presença na metodologia de conceitos portadores de impregnação filosófica torna complicada a avaliação de suas prescrições a ponto de deixar de ser justificável imputar as diferenças fundamentais entre as diversas metodologias a uma maior ou menor fidedignidade ao que as ciências efetivamente fazem. Sendo as práticas científicas reconstruídas a partir de distintas ópticas filosóficas, os sistemas normativos propostos por diferentes metodologias refletem isso.

    O ponto de vista defendido neste trabalho é o de que qualquer projeto de cientificização de uma disciplina, mormente de uma disciplina como a sociologia, cindida em Escolas, está necessariamente enraizado no solo de alguma vertente epistemológica. Sendo assim, é crucial investigar o substrato filosófico do programa de Fernandes de cientificizar a sociologia a fim de criticá-lo no terreno em que estão assentados seus alicerces. As deficiências detectadas na filosofia da ciência latentemente operante afetam diretamente a metodologia propugnada por Fernandes e indiretamente a solidez explicativa dos resultados alcançados por suas pesquisas empíricas. As críticas à metodologia defendida por Fernandes repercutem sobre toda obra por mais relevante que tenha sido sua contribuição à construção do pensamento social brasileiro.

    Este estudo recorrerá a diferentes escolas metacientíficas com o fito de identificar as peculiaridades do sistema metodológico adotado por Fernandes e de indigitar, através de análise comparativa, suas dificuldades de fundamentação. Desse modo, queremos demonstrar que é insustentável a pretensão à absolutização que determinadas filosofias da ciência acalentam quando tentam fazer passar por universais seus normativismos, quando se apresentam como porta-vozes das técnicas metodológicas da ciência ou quando se autoproclamam ciências da ciência:

    Não basta ocupar-se com metodologia: ela deve também afirmar-se como teoria do conhecimento [...] O positivismo nasce e declina com o princípio cientificista segundo o qual o sentido do conhecimento é definido pelo que as ciências produzem, e pode, pois, ser suficientemente explicado através da análise metodológica dos procedimentos científicos.

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