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O psicanalista vai ao cinema: Volume 1
O psicanalista vai ao cinema: Volume 1
O psicanalista vai ao cinema: Volume 1
E-book202 páginas2 horas

O psicanalista vai ao cinema: Volume 1

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Sobre este e-book

Nos três volumes de O psicanalista vai ao cinema, Sérgio Telles se utiliza da acessibilidade e da popularidade do cinema para divulgar conhecimentos psicanalíticos. Nos filmes aqui selecionados aparecem personagens cujos conflitos internos se evidenciam em suas angústias, seus relacionamentos pessoais, suas condutas, suas escolhas. Ao analisá-los, o autor torna compreensível o que antes parecia não ter sentido ou significado, ou seja, revela a lógica própria do inconsciente, tão distante da racionalidade consciente.
Mostra ainda que a interpretação analítica que decifra os conteúdos inconscientes não é uma construção voluntariosa do psicanalista, e sim fruto de uma atenta observação, apoiada em prática fundamentada num firme corpo teórico.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2022
ISBN9786555060904
O psicanalista vai ao cinema: Volume 1

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    O psicanalista vai ao cinema - Sérgio Telles

    1. Montenegro ou porcos e pérolas (1981), de Dušan Makavejev: o eclodir da psicose

    Duas coisas chamam de imediato a atenção no filme Montenegro, de Dušan Makavejev: o extraordinário elenco comandado por Susan Anspach e o andamento dado pelo diretor ao roteiro de sua autoria. O filme trata como comédia algo que de fato é uma tragédia: o progressivo enlouquecimento da protagonista Marylin Jordan. Makavejev estabelece um registro ambíguo entre o cômico e o nonsense que progride até a insólita explosão final, de grande impacto. O que parecia ser uma leve e inconsequente brincadeira revela-se então com toda sua violência e destrutividade.

    Marylin é uma norte-americana residente na Suécia, casada com um ocupado homem de negócios daquele país. Seu marido está sempre viajando a trabalho, o que a deixa triste e solitária em sua condição de estrangeira, desenraizada de sua cultura e distante dos familiares mais próximos. Marylin se sente desiludida, insatisfeita, renunciando antigos sonhos. Esse perfil nos é dado pela melancólica canção cantada por Marianne Faithful, que fala de uma mulher que aos trinta e sete anos constata que não andará jamais num carro esporte pelas ruas de Paris, com a brisa quente lhe acariciando os cabelos; ociosa, pois os filhos e afazeres domésticos já não ocupam tanto seu tempo, pensa em mil amantes até o quarto girar; saudosa de casa, relembra velhas canções que aprendeu com o pai quando criança.

    A ação decorre na época das grandes festas familiares de final do ano. Logo tomamos conhecimento de alguns atos insólitos praticados por Marylin, que prenunciam sua desagregação psicótica. Num desfile de moda, no qual são exibidos casacos de pele de marta e de raposa azul, de forma inadequada, ela declara ter um casaco de pele de lince, avaliado pelo apresentador do desfile em 100 mil dólares, muito mais caro do que os que estavam sendo apresentados.

    Em seguida, ela vai com toda a família a um zoológico com o intuito de comprar um filhote de cão e encontra pela primeira vez Montenegro, um jovem que ali trabalha. Chegando em casa, às escondidas, tenta envenenar o filhote que acabara de adquirir. Em outro momento, ao ensinar à filha alguns pratos culinários, surpreende-a quando inopinadamente come tudo o que estavam preparando. Naquela mesma noite, deparando-se com o desinteresse sexual do marido que rejeita sua aproximação, ateia fogo no lençol de sua cama. Preocupado, ele chama um psiquiatra.

    O marido partirá para a remota cidade brasileira de Recife, em mais uma de suas inúmeras viagens de negócios, deixando-a em casa com o sogro arteriosclerosado, que, aos 84 anos de idade, procura ostensivamente uma mulher, colocando anúncios em jornais, o que suscita vergonha e reprovação em Marylin.

    De última hora, numa decisão impulsiva, pois o marido a convidara antes e ela não aceitara, Marylin resolve acompanhá-lo na viagem. Há um incidente na alfândega do aeroporto, onde ela é detida temporariamente, o que provoca um desencontro com o marido. Marylin pensa então que ele não a esperara e partira, quando, na verdade, ele voltara para casa à sua procura.

    Ressentida, Marylin não retorna para sua residência. Junta-se a um grupo de imigrantes iugoslavos residentes em sua cidade sueca, pessoas que acabara de conhecer no já mencionado incidente na alfândega. Tais imigrantes constituem uma comunidade discriminada e exótica para os padrões escandinavos e se congrega em torno do curioso "Zanzi-Bar", estabelecimento que funciona anexo a uma destilaria clandestina. Ali, Marylin reencontra Montenegro. Fica por três dias nesse local, sem procurar comunicar-se com os familiares, que tampouco parecem se angustiar com seu desaparecimento. Marylin volta para casa com amnésia do que ocorrera durante sua ausência e, no jantar com a família, que tem como convidado seu psiquiatra, serve a todos uma comida envenenada.

    Como entender a eclosão da psicose de Marylin?

    Uma primeira ideia é que o quadro se instala pela irrupção de incontroláveis impulsos sexuais incestuosos que reatualizaram conflitos edipianos mal resolvidos.

    Como vimos, estava bem caracterizada a situação de frustração sexual da protagonista, que, frente à frieza do marido, sonha com mil amantes até o quarto girar. Picada pelo mosquito do desejo, não consegue dormir ou ler. Furiosa com sua indiferença, Marylin comenta que o Polo Sul seria o lugar mais apropriado para a próxima viagem do marido e, como os dois não ardiam na cama, termina por atear fogo nos lençóis.

    Chama atenção em Montenegro a presença constante de animais, quer sejam os abatidos, cujas peles são expostas no desfile de modas, ou os vivos, como as feras do zoológico ou os animais domésticos, que circulam em grande promiscuidade com o homem na comunidade iugoslava. Como tantas vezes comprovado em sonhos, associações livres, contos e mitos, os animais podem representar a sexualidade, a vida pulsional da protagonista. Sua sexualidade, até então domesticada (o pequeno cão que vai comprar) ou domada e enjaulada (os animais selvagens do zoológico), ameaça sair de controle.

    Há uma curiosa epígrafe no começo do filme. No jardim zoológico, uma criança pergunta a um macaco: Por que você está aqui? Não estaria melhor no lugar de onde veio?. Essa questão expressaria a perplexidade diante da sexualidade e da agressividade, vistas como a persistência do animalesco em todos nós, muito embora já submetido às leis simbólicas impostas pelo complexo edipiano. Por que temos esses aspectos primitivos? Não deveriam eles se restringirem ao mundo animal e deixar-nos, a nós homens, livres de suas embaraçosas exigências?

    Montenegro – o empregado do zoológico que Marylin reencontra mais tarde na comunidade de imigrantes iugoslavos e com quem tem uma breve e intensa experiência sexual – seria o representante de uma estuante sexualidade, alguém que está intimamente em contato com os animais (pulsões), aquele que sabe como tratá-los e satisfazê-los. Seu próprio nome é sugestivo, pois além da óbvia referência à sua região de origem na Iugoslávia, não deixa de estar ligado também ao monte negro do púbis, o monte de Vênus, o mons veneris do prazer. Ao contrário de Montenegro, Marylin não sabe lidar com os animais, mesmo seu inofensivo cãozinho, o qual tenta envenenar.

    Por que Marylin vive sua sexualidade como algo proibido e perigoso, que pode levá-la a uma desagregação psicótica?

    Penso que a chave dessa questão está no comportamento do sogro – um substituto da figura paterna – que abertamente expressa uma urgência sexual. O desejo do sogro (que se faz chamar de Buffalo Bill: búfalo, um outro potente animal) contrapõe-se à indiferença sexual do filho, marido de Marylin, fazendo-a reviver uma sexualidade incestuosa e proibida, atualizando o amor pelo pai (fica lembrando canções aprendidas com o pai). Dessa maneira, ela regride a uma posição infantil – já não é mais uma mãe ensinando a filha a cozinhar, e sim uma outra criança egoísta e voraz, despreocupada com os demais.

    Um elemento que comprova tal hipótese é a atitude do psiquiatra procurado pelo marido, que é ridicularizado em hilariante sequência na qual se evidencia seu apetite argentário. Ao ser informado do caso pelo marido de sua futura paciente, o psiquiatra toma conhecimento de que seu pai, sogro dela, deseja se casar. Isso o faz decidir que começaria por ele o tratamento dela, estabelecendo desta maneira a ligação entre as duas situações.

    O equilíbrio instável que a protagonista conseguia manter até então se desfaz com a viagem do marido. É insuportável ficar sozinha em casa com o sogro-pai, estando ambos – ele e ela –em franca exacerbação sexual. Marylin tenta acompanhar o marido querendo evitar o que pressente ser sua derrocada – a invasão dos antigos impulsos proibidos, agora muito intensificados. Barrada na alfândega, ela é como que impedida do exercício da sexualidade adulta e regride, cedendo então aos desejos sexuais infantis.

    Como não pode voltar para casa, onde o estar sozinha com o sogro que demonstra tanto apetite sexual a exporia ao incesto, procura uma solução de compromisso. Junta-se aos imigrantes iugoslavos e lá sim, de maneira deslocada, dá livre expansão à sua sexualidade perversa infantil – presencia e participa da cena primária (observa os pais em união sexual), satisfaz impulsos voyeurísticos homo e heterossexuais, satisfaz fantasias de se prostituir e tem, finalmente, sua ansiada aventura com Montenegro.

    O que tanto temia, a eclosão de uma sexualidade incestuosa e perversa com o sogro erotizado – motivo de seu não regresso à casa após o desencontro no aeroporto, termina por acontecer numa escala ainda muito mais intensa ao acompanhar os imigrantes iugoslavos. A experiência sexual ali praticada continua tendo para ela o selo da ilegalidade, do proibido (representados pelo bar e a destilaria ilegais). Tudo ali tem uma conotação criminosa, já que é vivido regressivamente, edipicamente, culposamente.

    Além da dimensão incestuosa edipiana mais evidente na narrativa, também é chamativo o aspecto regressivo oral, que se revela tanto na cena da cozinha com a filha, como no envenenamento final, que apontariam para o desamparo e abandono mais primitivo, com o ódio dai decorrente.

    Assim, sua atitude violenta e destrutiva com Montenegro e, ao voltar, com a própria família, parecem já ser a expressão de extrema culpa e necessidade de punição, causadas pela convicção de que nada poderia acabar bem após cometer tantos crimes.

    O filme ilustraria bem a importância da avaliação da dinâmica familiar para a compreensão mais clara das desordens mentais.

    2. Pink Floyd: The wall (1982), de Alan Parker

    O filme Pink Floyd: The Wall , de Alan Parker (diretor de Bugsy Malone, O expresso da meia-noite, Fama, A chama que não se apaga), foi unanimemente elogiado por seu aspecto visual e pela originalidade com a qual desenvolve uma narrativa não linear, sem diálogos, apoiada apenas nas músicas de Roger Waters, compositor e baixista da banda Pink Floyd, que é também autor do roteiro do filme.

    A leitura psicanalítica de The Wall poderá trazer uma melhor compreensão sobre o comportamento do personagem principal, articulando-o com as sugestivas imagens visuais e as letras das músicas ali apresentadas. Ela torna possível o entendimento de que há um método naquela loucura, como diria Polônio a respeito de Hamlet.

    Num desarrumado quarto de hotel, assistindo a velhos filmes de guerra na TV, o suicida Pink rememora sua vida. Inabordável, distante, mantém travada a porta, impedindo a entrada da faxineira que faria a limpeza do caótico aposento. Com isso parece indicar sua posição diante da possibilidade de ajuda externa, representada pela moça da faxina – a recusa completa.

    A morte do pai durante a Segunda Guerra Mundial teve consequências marcantes em sua vida, ocupando um lugar decisivo em suas memórias. Pink não consegue recuperar-se dessa perda. Procura pateticamente o pai. Durante a infância, nos parques de diversão e entre os soldados que voltavam da guerra, nos objetos pessoais do pai. Posteriormente, na fixação pelos filmes de guerra na TV, nos pesadelos nos quais anda pelos campos de batalha em meio a corpos putrefatos.

    Pink não supera a perda, não elabora o luto e vive em meio a mórbidas lembranças, incapaz de usufruir de seu sucesso, presa de acessos depressivos e psicóticos – em posição fetal, distante de todos, boiando em piscinas-úteros. Por quê?

    Sabemos que, após a morte do pai, a mãe dele não se casou novamente. Não aparecem novos interesses amorosos em sua vida, o que a fez voltar-se inteiramente para ele, Pink. Mãe e filho estabelecem uma ligação intensa, incestuosa e, como tal, culpabilizante, castradora, impeditiva de qualquer autonomia de ambas as partes.

    Pink sente-se muito ambivalente quanto a essa ligação e tal sentimento se refletirá na forma como se relaciona internamente com a figura do pai. Por um lado, o vínculo com a mãe satisfaz desejos primitivos de exclusividade, ao possibilitar uma reatualização da relação narcísica especular, na qual os dois estão fundidos, sem separação. Onipotentemente Pink acredita preencher os desejos da mãe, que – por sua vez – se sente satisfeita com o filho. Nessa relação, a presença do pai não é desejada na medida em que, colocando-se (o pai) como objeto de desejo da mãe, tiraria o filho desse papel. Sob esse aspecto, Pink sente-se culpado pela morte do pai, já que a desejava para preservar um lugar exclusivo frente à mãe.

    Por outro lado, sua ligação com a mãe impossibilita todas as outras. Isso o enche de ódio em relação à mãe e a todas as mulheres, suas substitutas. Todas elas são terríveis, poderosas, castradoras, e a própria atividade sexual é vivida como algo aterrorizante. A vagina é uma flor maligna que se transforma em ave de rapina, predatória, em boca armada de dentes, pronta para destroçar o pênis. Pink sente-se impotente sexualmente (com a mulher, que o trai; com a groupie deslumbrada), confuso e sem identidade (faz depilações mutilantes, substitutas da castração). Sob esse aspecto, Pink sente a morte do pai como um

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