As Cartas do Caminho: O Caminho de Santiago Cruzou Minha Vida e eu Mudei a Direção - Baseado em Fatos Reais
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As Cartas do Caminho - Denise Dotti Góes
ABRINDO O JOGO
Quando decidi fazer a viagem, você foi uma das primeiras pessoas a ficar sabendo e uma das poucas que teve a coragem de me perguntar se eu estava segura de que deveria fazê-la acompanhada e principalmente se eu não estava me precipitando.
A viagem aconteceu e apesar do nosso pouco contato, por minha escolha, não só durante a viagem, como nesses meses que já se passaram depois do meu retorno, senti tua falta. Trocamos poucas mensagens. E você sabia que eu não estava bem, mas como sempre você respeitou o meu momento e me aguardou pacientemente. Quero que saiba que me afastei de todos. As poucas mensagens que troquei foram frias. Eu não conseguia fingir que estava tudo bem e não conseguia naquele momento entender, muito menos explicar o que estava acontecendo. Pensei muitas vezes em desistir, mas eu não podia. Tudo o que aconteceu, toda essa experiência mudou tudo em mim. Não posso dizer que estou recuperada, mas hoje me sinto capaz de começar a contar essa história. Uma história de dor, de amor, de sonho, fantasia, coisas sobrenaturais, inexplicáveis e transformadoras. Tem coisas que sei o quanto serão difíceis. Será como materializar a dor. E esse foi o motivo de eu ter precisado desse tempo. Eu não queria olhar para muitas coisas. E o que eu mais temia é o que estou enfrentando aqui nestas linhas que começo a escrever. Responder à pergunta que sei que você certamente também está aguardando para me fazer. Como foi a viagem a Santiago de Compostela?
O começo da resposta é fácil. O Caminho foi incrível. Realmente místico. Talvez você já tenha ouvido alguma história sobre ele.
Os pioneiros seguiram a formação das estrelas no século IX. Hoje a cidade é conhecida como capital espiritual do mundo. E quem faz o percurso até lá recebe uma indulgência por seus pecados. Tenho tantas coisas para te contar.
Poderíamos tomar um café qualquer dia para conversarmos.
Posso te mostrar as fotos. Uma mais incrível que a outra. E isso que eu nem estava com uma câmera profissional, capturei tudo com o celular.
Escolhi os melhores ângulos da paisagem. Você certamente vendo-as dirá que foi linda a viagem. Quero te contar as experiências que tive, uma mais interessante do que a outra, algumas até difíceis de acreditar.
Mas vou precisar de tempo para me abrir com você e falar como me senti com todos esses acontecimentos, falar como tudo me tocou ao longo desse caminho. Hoje sei que ele começou muito antes desta viagem.
Você poderá até achar que foi triste depois que ficar sabendo, mas vai concordar comigo, foi um grande aprendizado.
Não sei se nesse tempo de um café será suficiente. Também não tenho ideia de quando poderemos nos encontrar e, pensando bem, o melhor é que eu continue te escrevendo. Te contarei tudo e te enviarei assim, em cartas, pois cartas pedem esse tempo que ainda preciso para me ler nessa história.
Antes que comece a próxima, preciso esclarecer que mesmo que leia todas as cartas que eu te enviar, ainda assim não saberá da história inteira.
Assim como o Caminho, a vida é feita de muitas partes, boas, ruins, bonitas e feias. E cada um a enxerga de uma forma e interpreta segundo o seu interior. Ao findar a leitura saberá aquilo que puder entender. Terá então a tua versão, da minha história.
A esta, seguirá apenas a minha versão dos fatos para você.
Com carinho,
Denise Góes
Vamos marcar o café. E então você me conta o que achou da história, ok?
2
DERROTA
O desejo de caminhar até Compostela nasceu de alguma leitura ou reportagem na qual fiquei sabendo de sua existência, há bem mais de 15 anos. Mas o que me motivou mesmo foi a enorme vontade que eu sentia de sumir. Eu queria desaparecer daquele mundo em que eu vivia, deixar de conviver com certas situações que me machucavam. E o desejo era abrir a porta de casa e sair caminhando, porém movida ou desmotivada pela depressão, eu pensava muitas vezes em sair sem rumo. Então, se fosse para eu escolher um ponto de partida para te contar como fui parar em Santiago de Compostela, sem dúvida, eu diria que o ponto de partida foi a depressão.
Foi há exatamente 15 anos, meus filhos eram pequenos, eu estava no meu segundo casamento, morava em um condomínio de luxo, no bairro mais rico da minha cidade, aparentemente não me faltava nada. E pequenas mudanças nem sempre são rapidamente percebidas. Às vezes, só o acúmulo de várias pequenas mudanças para chamar a nossa atenção. E de repente, me dei conta de que eu estava diferente. Sem ânimo, sem vontade, saía da cama para realizar o que ninguém nunca iria realizar no meu lugar, que era ser mãe. Era o que eu fazia. Eu me levantava muito cedo para servir o café, levava-os para o colégio e voltava para casa, e a cama era o único lugar em que eu queria estar. Nessa época, eles passavam o dia todo no colégio. Eu só voltava a levantar no horário de buscá-los e depois preparava o jantar. Levei um tempo para perceber que aquilo não era normal, não era cansaço. Eu tinha tudo o que eu precisava, tinha alguém ao meu lado que me cuidava, me protegia.
Eu me sentia amada. Tinha os meus filhos, que eram tudo para mim, mas não me sentia feliz. Foi quando procurei uma psicóloga pela primeira vez. Ela me encaminhou para um psiquiatra. Fiz um tratamento durante seis meses e as coisas gradativamente foram voltando ao normal.
Nunca deixei de fazer terapia, mas infelizmente três anos depois voltei a sentir tudo aquilo e muito, muito mais. E o que vou te contar agora é a parte da história que mais lamento, que mais me custa externalizar.
Eu vivia uma vida de princesa, tínhamos recém mudado para nossa casa, construída de acordo com o desenho que eu mesma fiz. Tinha tudo aquilo que eu queria que ela tivesse. Era simplesmente perfeita, num lugar perfeito, com a vista perfeita. Eu tinha dinheiro para comprar quase tudo o que eu quisesse, ainda que eu não quisesse muito.
Viagens, restaurantes, roupas, carros e nada, nada daquilo me interessava. Eu olhava em volta e me sentia pequena. Eu não conseguia me sentir feliz. Eu não tinha amigos, eu não tinha uma vida social. Poucas pessoas me visitavam. Ouvi, algumas vezes, que as pessoas não se sentiam bem na minha casa por ser muito chique. Isso me machucava, eu era a mesma pessoa. Sentia-me vazia, as coisas materiais não me preenchiam. Comecei a me sentir sem importância e cheguei a acreditar que não faria diferença estar ou não ali. E depois cheguei à conclusão de que não faria diferença estar ou não, onde quer que fosse. Eu não queria mais viver. Aconteceu a primeira tentativa de suicídio.
Naquela época, ninguém ficou sabendo, eu sobrevivi sozinha e mudei minha vida da noite para o dia, sem dar muitas explicações, pois me envergonharia de contar pelo que havia passado. Deixei a vida que me levava e passei a levar a vida de forma muito mais simples. Voltei a trabalhar, pagar aluguel, cheguei a acreditar que aquela antiga realidade era o que me adoecia. Voltei a dar aula em tempo integral e assumi muitas responsabilidades. Aparentemente tudo normal, até começar a ter crises de pânico, inclusive dentro de sala de aula. Entendi que eu não estava bem. O tempo passando e eu oscilando entre lutas e fugas. E assim, outras três tentativas de acabar com tudo, sem contar a quarta que minha psicóloga disse acreditar que foi apenas na intenção de dormir e que não iria comunicar minha família. Mas me alertou que de tanto tentar, uma hora eu iria conseguir. Aquelas palavras significaram muito.
Mas não me impediram de ter outra recaída.
E foi na iminência da quinta tentativa que felizmente matei a minha velha versão. Versão essa da qual jamais quero ter qualquer aproximação.
A nova pessoa que nasceu ali engatinhou por alguns meses e deu seus primeiros passos no caminho rumo a Santiago.
Deus não pode impedir o mal, pois este vem do livre-arbítrio. Mas Deus é tão poderoso, que pode transformar qualquer coisa em algo bom.
3
ASES DA VIDA
A fé sem dúvida foi o remédio mais poderoso que eu usei, mas antes de experimentar o que seria a minha salvação, testei muitos medicamentos. Cada droga que entrava em meu corpo reagia de uma forma, tinha um tempo para adaptação e nem sempre o resultado era o esperado. Eu fui associando remédios e cada vez aumentando mais a dosagem e, por consequência, seus efeitos colaterais também aumentavam. Felizmente sempre tive a consciência de que doença é sintoma, e não o problema. Eu precisava encontrar a causa de tudo aquilo. Juntamente com o tratamento, medicamentos e terapias, estudei muito sobre o assunto e mergulhei fundo no autoconhecimento. Eu fui atrás da minha história, da minha infância, das dores, principalmente as do meu inconsciente. Aprendi a importância do exercício físico para a saúde mental e que a alimentação está intimamente ligada aos nossos sentimentos. O autocuidado e a autopreservação que ninguém vai ter por nós. Somos responsáveis por tudo que nos acontece. Porém, a vida não é linear, muito menos para uma pessoa com transtorno de personalidade bipolar. Todo esse protocolo é para minimizar os danos.
Nessa busca acabei me esquecendo que, ainda que eu fosse responsável por mim e pela minha busca por esta estabilidade emocional, eu estava muito longe de ser autossuficiente. E essa foi a armadilha em que eu entrei. Achar que não precisava de apoio, que o mundo era cada um por si. (Risos.) Ninguém é forte o tempo todo. E num momento de fraqueza, me vi sozinha, desesperada, sem ninguém. Eu era só eu. E descobri que eu não era ninguém, eu estava lutando sozinha contra o mundo. E fui ferida.
Sentia que estava morrendo, a dor era insuportável. Eu sabia de onde vinham minhas dores, eu me cuidava, eu estava medicada, havia estudado sobre tudo que envolvia a depressão e nada daquilo me aliviava.
E a forma como eu tentava sair desses ciclos era fugindo, mudando de status, fosse no profissional ou no sentimental. Nunca aprendi a suportar, ultrapassar barreiras. Eu quebrava ciclos, sem perceber que outros se iniciavam.
Foi numa sexta-feira. Eu trabalhava no modelo home office. O dia custou a passar, chorei em cima do computador o dia todo. Às 17h encerrei meu expediente, deliguei o computador, o celular, fechei as cortinas e o blackout e passei aquela noite… (o dia que viria depois costumava