A fantasia da história feminista
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A fantasia da história feminista - Joan Wallach Scott
Copyright © 2011 Duke University Press
Copyright desta edição © 2024 Autêntica Editora
Título original: The Fantasy of Feminist History
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
coordenadora da coleção história e historiografia
Eliana de Freitas Dutra
editoras responsáveis
Rejane Dias
Cecília Martins
revisão técnica
Mariana Silveira
revisão
Mariana Faria
projeto gráfico
Diogo Droschi
capa
Alberto Bittencourt (sobre Maddalena Svenuta, pintura de Guido Cagnacci, 1663, Galleria Nazionale d'Arte Antica, óleo sobre tela, 72x86 cm)
diagramação
Waldênia Alvarenga
conversão para e-book
Aline Nunes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
linhaFICHA_CATScott, Joan Wallach
A fantasia da história feminista [livro eletrônico] / Joan Wallach Scott ; [tradução Elisa Nazarian]. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2024. (Coleção História & Historiografia, v. 26)
ePub
Título original: The Fantasy of Feminist History
ISBN 978-65-5928-391-0
1. Feminismo - História 2. Psicanálise e feminismo 3. Teoria feminista I. Título.
linhaFICHA_CATÍndices para catálogo sistemático:
1. Feminismo : Teoria : Sociologia 305.42
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
linhaFICHA_CATBelo Horizonte
Rua Carlos Turner, 420
Silveira . 31140-520
Belo Horizonte . MG
Tel.: (55 31) 3465 4500
São Paulo
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01311-940 . São Paulo . SP
Tel.: (55 11) 3034 4468
www.grupoautentica.com.br
SAC: [email protected]
Apresentação
Fantasia, desejo e prática da história feminista como crítica
Maria da Glória de Oliveira
Introdução
Voos para o desconhecido
: gênero, história e psicanálise
Capítulo 1
A história do feminismo
Capítulo 2
Eco da fantasia: história e a construção da identidade
Capítulo 3
Reverberações feministas
Capítulo 4
Sexularismo: sobre secularismo e igualdade de gênero
Capítulo 5
A teoria da sedução francesa
Epílogo
Um arquivo da teoria feminista
Referências
Agradecimentos
apresentação
Fantasia, desejo e prática da
história feminista como crítica
Maria da Glória de Oliveira¹
[...] o movimento feminista deve sonhar com algo maior do que a eliminação da opressão das mulheres. Ele deve sonhar em eliminar sexualidades compulsórias e os papéis sexuais. O sonho que me parece mais cativante é o de uma sociedade andrógina e sem gênero (mas não sem sexo), na qual a anatomia sexual de uma pessoa seja irrelevante para quem ela é, para o que ela faz [...].
Gayle Rubin, "O tráfico de mulheres", 1975
Alguns anos após a célebre formulação do conceito de gênero como elemento constitutivo das relações sociais, Joan Wallach Scott fez uma advertência acerca da incômoda ambiguidade inerente à história das mulheres.² Mais do que um simples acréscimo de sujeitos excluídos, essa história despontaria sob a dupla e contraditória condição de suplemento à historiografia geral e, ao mesmo tempo, teria o potencial de provocar o deslocamento crítico das suas premissas epistêmicas fundacionais.³ No entanto, submetida aos parâmetros científico-disciplinares, uma historiografia com ambições de documentar o protagonismo de um grupo social como o das mulheres tampouco estaria livre de ser mantida em uma posição marginal e particularizada em relação aos temas (masculinos) já estabelecidos como dominantes e universais
.⁴
A despeito de suas contribuições teóricas específicas para a historiografia das mulheres, a obra seminal de Scott reverbera a experiência geracional compartilhada por intelectuais e historiadoras que, entre os anos 1960 e 1980, confrontaram a enganosa oposição, ainda hoje presumida, entre profissionalismo acadêmico e militância política, apostando no desafio de produzir conhecimento alinhado aos ativismos feministas de base ampla, voltados a uma mudança social radical. Sendo ou não reconhecido pelo mainstream acadêmico, o pensamento feminista provocou tensionamentos importantes, como a crítica cogito cartesiano universal e às condições gerais de produção do conhecimento científico moderno, denunciando os vieses sexistas, raciais e eurocêntricos dos paradigmas teórico-conceituais vigentes em diferentes campos disciplinares.⁵
Passadas mais de três décadas das advertências de Scott, ainda caberia indagar se o processo de institucionalização da historiografia das mulheres e estudos de gênero, a despeito de suas variações nos diferentes tempos e contextos acadêmicos, não teria coincidido com a neutralização da força política disruptiva dos feminismos e, sobretudo, com o esvaziamento de seu impacto efetivo como crítica epistemológica em uma área de conhecimento como a da história. Uma dimensão mais ampla do problema se encontra nos termos com que Wendy Brown formulou a indagação em torno dos futuros possíveis dos estudos sobre mulheres sem um horizonte revolucionário
, ou seja, a partir das demandas contemporâneas de construção de novas formas de ação política e de reinvenção de imaginários utópicos.⁶
Se não faltam evidências de que a história das mulheres despontou em forte correlação com os ativismos feministas e movimentos sociais por direitos civis e democráticos, a sua consolidação como área de pesquisa específica tampouco pode ser compreendida fora das dinâmicas sociopolíticas dos campos disciplinares de produção do conhecimento. No caso da historiografia ocidental, em que o protagonista presumido dos fenômenos históricos sempre foi o homem branco cisgênero heterossexual, uma história das mulheres – assim como a de outros grupos excluídos e/ou marcados como coadjuvantes por raça, etnia, classe e sexualidade –, se confronta inevitavelmente com o dilema das identidades e diferenças.
Além de problema epistemológico e historiográfico, esse dilema foi – e permanece sendo – uma das condições constitutivas das lutas feministas. Tal é o sentido da expressão usada por Joan Wallach Scott quando observou que a história dos feminismos possui somente paradoxos a oferecer
, pois se organiza por meio da afirmação e da recusa concomitantes da diferença sexual.⁷ Dito de outro modo, a reivindicação contida nos feminismos é paradoxal porque corresponde a demandas por igualdade formuladas em nome das mulheres, postulando que a categoria mulheres
é produzida através da diferença sexual, mas igualmente pressupõe a denúncia e a contestação de seus efeitos excludentes. Ademais, a diferença binária entre os sexos, como a própria Scott já nos ensinou, é construída historicamente, indissociável das relações de poder e, portanto, não pode ser tomada como consequência natural das singularidades anatômicas dos corpos. A resolução do dilema não estaria na aceitação da diferença tal como ela é normativamente constituída e tampouco estaria na mera substituição do esquematismo binário homem/ mulher
por um pluralismo de diferenças.⁸ O ponto que permanece crucial é o da construção normativa dos corpos generificados por meio de um conjunto de práticas, discursos e tecnologias:
[...] gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam no tempo, de acordo com as culturas e os grupos sociais, porque não há nada no corpo, incluídos aí os órgãos reprodutivos femininos, que determine univocamente como a divisão social será definida.⁹
Além do gênero, categorias basilares da história disciplinada são objeto de uma vigorosa problematização nas obras de Scott, o que contribui para desestabilizar sua pressuposta transparência, naturalização ou autoevidência na descrição dos fenômenos sociais. Exemplo disso está em uma noção recorrente nas ciências humanas como a de experiência
, cujo uso criterioso não poderia dispensar sua historicização, sobretudo a historicização das identidades que ela produz. Desde que a experiência é sempre (de)codificada discursivamente, tornando-se inteligível somente por meio de sua elaboração, como argumenta Scott, o que conta como experiência não é autoevidente nem direto, é sempre contestado, sempre político
.¹⁰
Por meio de uma postura vigilante em relação a seus fundamentos e pressupostos epistêmicos, a escrita da história poderia ultrapassar o propósito usual de oferecer descrições sobre o que aconteceu
a homens e mulheres para se afirmar como prática de investigação crítica que não se esquiva do trabalho teórico e autorreflexivo sobre as próprias ferramentas conceituais mobilizadas para a compreensão do passado, buscando desestabilizar o presente, mais do que estabilizá-lo através de continuidades
.¹¹ Trata-se, acima de tudo, de uma história que privilegia suas potencialidades contestadoras, o que hoje talvez seja imprescindível no enfrentamento da ascensão das políticas neoconservadoras, de servir como uma alavanca, desenterrando as premissas fundacionais sobre as quais repousam nossas verdades sociais e políticas
.¹²
Publicada originalmente em 2011, A fantasia da história feminista evidencia a magnitude e o vigor da reflexão analítica com que Scott sempre chamou a atenção para a zona de conforto da ortodoxia disciplinar dos historiadores, ortodoxia que comumente se manifestou, senão em uma rejeição explícita, em usos instrumentais da teoria a serviço da sua domesticação.¹³ Exemplo notório disso estaria nos modos como o conceito de gênero rapidamente se tornou não apenas sinônimo de mulheres
, mas sobretudo um rótulo útil cuja aplicação nos tranquilizava em vez de nos incomodar, transformando perguntas, antes mesmo de serem formuladas, em respostas
.¹⁴
Do mesmo modo com que o pensamento feminista forneceu aportes críticos incontornáveis para os historiadores, como o de que não há identidade individual ou coletiva, sem um Outro (ou outros), o aparato léxico da teoria psicanalítica interessa a Scott como uma lente de leitura e análise renovada da história como crítica. Longe do pressuposto da correlação direta entre corpos físicos e identificações psíquicas, na perspectiva da psicanálise, a diferença sexual mantém-se como problema insolúvel que sinaliza, mais do que determina, todas as variações nos modos como as diferenças são vividas e percebidas. Inconsciente, fantasia e desejo, categorias fundacionais do pensamento de Freud e Lacan, despontam como chaves para uma abertura conceitual da análise histórica em direção ao questionamento de realidades supostamente tomadas como estáveis, coerentes e autoevidentes. Seriam, assim, categorias úteis para a compreensão crítica dos paradoxos que atravessam a história dos feminismos, a começar pelo dilema das identidades e diferenças.
Mais do que salvar do esquecimento
, dar voz e protagonismo às mulheres, a escrita da história feminista, para Scott, é orientada pelo exame crítico dos meios e efeitos da própria construção de identidades previamente fixadas das mulheres como sujeitos históricos. Sem desconsiderar sua função política estratégica nas lutas sociais, Scott argumenta que ficar satisfeito com qualquer identidade – mesmo com aquela que ajudamos a produzir – é desistir do trabalho de crítica e isso vale para a nossa identidade, tanto como historiadoras quanto como feministas
. Isso porque a própria ideia de identidade como um substrato contínuo se revela uma fantasia – no sentido freudiano de busca de realização de um desejo inconsciente –, porque encobre as divisões, contradições e descontinuidades, as ausências e diferenças dos sujeitos nos tempos e espaços diversos. Como recurso constitutivo das identidades individuais e coletivas, a fantasia não é tomada como contraponto à realidade, mas como dispositivo essencial de sutura das identificações coletivas, por meio do apagamento das diferenças e invenção de continuidades e semelhanças aparentes. Todos os processos de identificação (que produzem as identidades coletivas) operam, então, como um eco fantasioso [fantasy echo] repetindo no tempo, e ao longo de gerações, o processo que forma indivíduos como atores sociais e políticos. A fantasia não deixa de operar, assim, como uma narrativa que condensa e organiza diacronicamente antagonismos, disparidades e contradições.
Submetido ao léxico psicanalítico, o próprio conceito de gênero adquire maior complexidade e amplitude para designar a relação entre o normativo, o psíquico e o social. Em síntese, na definição revigorada por Scott, gênero consiste nas articulações historicamente específicas e, em última instância, incontroláveis que visam resolver os paradoxos da diferença sexual, dirigindo a fantasia a algum fim político ou social: mobilização de grupo, construção da nação, apoio a uma estrutura familiar específica, consolidação étnica, ou prática religiosa
.
Para contestar sua posição coadjuvante, suplementar e estéril, a história feminista de Scott não pretende ser a face reversa da historiografia hegemônica como narrativa dos feitos heroicos e exemplares de mulheres do passado, mas, de modo ousado e corajoso, reconhece tais pretensões como fantasia. Cabe-nos seguir os desafios da abertura crítica e reflexiva proposta pela historiadora, tomando como menos certa e mais problemática a própria relação entre passado e presente para, talvez, deixarmo-nos mover mais pelo desejo de uma história justa.
Referências
Ávila, Arthur Lima de. Joan Scott: história e crítica. In: Bentifoglio, Júlio; Avelar, Alexandre de S. (orgs.). O futuro da história: da crise à reconstrução de teorias e abordagens. Vitória, ES: Milfontes, 2019. p. 9-34.
Brown, Wendy. Women’s Studies Unbound: Revolution, Mourning, Politics. Parallax, v. 9, n. 2, p. 3-16, 2003.
Butler, Judith. Speaking up, talking back: Joan Scott’s critical feminism. In: Butler, Judith; Weed, Elizabeth (eds.). The Question of Gender. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 2011. p. 11-30.
Oliveira, Maria da Glória de; Hansen, Patrícia. Corpos, tempos, lugares das historiografias. História da historiografia, v. 16, n. 41, p. 1-13, 2023.
Rubin, Gayle. O tráfico de mulheres [1975]. In: Políticas do sexo. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 8-61.
Scott, Joan Wallach. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5, p. 1053-1075, 1986.
Scott, Joan Wallach. The evidence of experience. Critical Inquiry, v. 17, n. 4, p. 773-797, 1991.
Scott, Joan Wallach. História das mulheres. In: Burke, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992. p. 75-79.
Scott, Joan Wallach. Only Paradoxes to Offer: French Feminists and the Rights of Man. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1996.
Scott, Joan Wallach. Género e historia. Tradução de Consol Vilà. México: FCE; Universidad Autónoma de la Ciudad de Mexico, 2008 [1999].
Scott, Joan Wallach. A escrita da história como crítica. Tradução de Eduardo W. Cardoso, Naiara Damas e Nathália Sanglard. Revista de Teoria da História, v. 26, n. 2, p. 121-140, 2023.
Notas
¹Professora associada de Teoria da História no Departamento de História do Instituto de Ciência e Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ICHS-UFRRJ).
²Scott, Joan Wallach. História das mulheres. In: Burke, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992. p. 75-79.
³Scott, Joan Wallach. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5, p. 1053-1075, 1986; Scott, Joan Wallach. História das mulheres. In: Burke, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992. p. 75-79.
⁴Scott, Joan Wallach. Género e historia. Tradução de Consol Vilà. México: FCE; Universidad Autónoma de la Ciudad de Mexico, 2008 [1999]. p. 21.
⁵Oliveira, Maria da Glória de; Hansen, Patrícia. Corpos, tempos, lugares das historiografias. História da historiografia, v. 16, n. 41, p. 1-13, 2023.
⁶Brown, Wendy. Women’s Studies Unbound: Revolution, Mourning, Politics. Parallax, v. 9, n. 2, p. 3-16, 2003.
⁷Scott, Joan Wallach. Only Paradoxes to Offer: French Feminists and the Rights of Man. Cambridge: Harvard University Press, 1996. p. 3-4.
⁸Butler, Judith. Speaking up, talking back: Joan Scott’s critical feminism. In: Butler Judith; Weed, Elizabeth (ed.). The Question of Gender. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 2011. p. 19.
⁹Scott. Género e historia,p. 20.
¹⁰Scott, Joan Wallach. The evidence of experience. Critical Inquiry, v. 17, n. 4, p. 773-797, 1991.
¹¹Ávila, Arthur Lima de. Joan Scott: história e crítica. In: Bentivoglio, Júlio; Avelar, Alexandre de S. (orgs.). O futuro da história: da crise à reconstrução de teorias e abordagens. Vitória, ES: Milfontes, 2019. p. 32.
¹²Scott, Joan Wallach. A escrita da história como crítica. Tradução de Eduardo W. Cardoso, Naiara Damas e Nathália Sanglard. Revista de Teoria da História, v. 26, n. 2, p. 121-140, 2023. p. 129.
¹³Scott. A escrita da história como crítica
, p. 125.
¹⁴Scott. A escrita da história como crítica
, p. 124.
Introdução
Voos para o desconhecido
Gênero, história e psicanálise
Essa tendência dos historiadores de se afundarem em seu próprio conservadorismo me soa realmente lamentável.
[…] Se quisermos que haja um progresso, sem dúvida precisamos ter novas ideias, novos pontos de vista, e novas técnicas. Precisamos estar prontos, de tempos em tempos, para pegar voos para o desconhecido, ainda que alguns deles possam se revelar bem equivocados.
William L. Langer, The Next Assignment
É por isso que se deve ser justo com Freud.
Michel Foucault, História da Loucura
Nunca esqueci a resenha de meu primeiro livro, The Glassworkers of Carmaux [Os vidreiros de Carmaux] (1974), feita pelo professor Harold Parker, historiador na Duke University. O que guardei não foi o vasto elogio feito por ele (o título da resenha era Uma joia metodológica
) – embora com certeza tenha gostado disso – foi sua única observação crítica (Esta joia não tem defeito?
). Isso tinha a ver com o fato de o livro, apesar dos reveladores incidentes pessoais sobre personalidades de trabalhadores obscuros, é excessivamente frio em sua análise
. Ele continuava:
A própria Scott é uma pessoa muito calorosa, mas existe muito pouca paixão, muito pouca loucura no trabalho dela. O homem é precariamente são, no sentido de que as imagens que tem de si mesmo, de outras pessoas, e do universo, raramente são corretas. Às vezes, quando a paixão entra, as imagens dele estão completamente equivocadas. A iniciativa científica, tanto em história, quanto em outras matérias, é dedicada ao esforço de fazer as imagens corresponderem à realidade analítica e visual. Mas parte da realidade é que os homens, com frequência, são loucos, e o historiador precisa mostrar isso. Tenho certeza de que, em seu próximo livro, Scott mostrará.¹⁵
Levei um bom tempo, mais de trinta anos, para valorizar a sabedoria oferecida por esse historiador da era napoleônica.¹⁶ Depois daquela resenha, escrevi vários outros livros, nenhum dos quais aceitou plenamente a sua sugestão sobre a necessidade de observar a paixão e a loucura ao escrever história. Meu interesse em psicanálise – em teorizar a realidade daquela loucura – veio tarde e após muita resistência. Entre outras objeções, achava redutivos e inúteis os usos que alguns psico-historiadores faziam dos conceitos freudianos, uma aplicação de classificações diagnósticas a comportamentos que, mesmo quando rotulados, permaneciam intrigantes. Michel de Certeau disse que essas abordagens circunscrevem o inexplicado; não o explicam
.¹⁷ Eu também achava que a história, com sua insistência em especificidade, variabilidade e mudança, era incompatível com a psicanálise, que lidava com patologias individuais e, em se tratando de gênero, universalizava as categorias e os relacionamentos de homens e mulheres, fixando os sexos em um antagonismo permanente.¹⁸ Havia um lado normativo nisso a que eu também resistia, uma vez que considerava as descrições das operações psíquicas de diferença sexual como prescrições para a sua regulação. Além disso, no entanto, agora acho que considerei o estudo do sexo e da sexualidade – que estão, afinal, no centro da teorização psicanalítica – de certo modo trivial em comparação com as vastas forças sociais e econômicas que moldam a ação humana. Eu funcionava dentro de uma estrutura conceitual mais ou menos binária, em que o sexo estava no lado do privado (mesmo que eu pudesse repetir minha lição feminista de que o pessoal era político), ao passo que forças e estruturas eram o lado público, o qual fornecia aos historiadores suas explicações.
Meus primeiros trabalhos sobre história das mulheres tiveram esse enfoque, e mesmo quando comecei a escrever sobre gênero, era uma categoria social que pouco tinha a ver com processos inconscientes, aquilo que o professor Parker considerava paixão
e loucura
. A fascinação com o funcionamento da linguagem (por meio de Derrida, Foucault e da crítica literária feminista) levou-me lentamente a Freud, Lacan e teóricas psicanalíticas feministas.¹⁹ , ²⁰ Demorei a ver a ligação entre a psicanálise e os questionamentos pós-estruturalistas de conceitos e categorias fundamentais, que crescentemente chamavam minha atenção; a entender que a análise freudiana procurava o rompimento e a contradição; a compreender que a análise freudiana se ocupava de buscar ruptura e contradição; a compreender que não se tratava de fechar um caso aplicando-lhe um rótulo, e sim de explicitar coisas, explorando os significados ambíguos vinculados a problemas insolúveis e questões irrespondíveis. Ler Certeau, um estudioso de história, religião e psicanálise lacaniana, ajudou-me nessa articulação. Achei sua crítica das pressuposições disciplinares da história convincente:
Com certeza, a historiografia conhece
a questão do outro. A relação do presente com o passado é sua especialidade. Mas ela tem, como disciplina, que criar lugares adequados
para cada um, relegando o passado a um lugar diferente do presente, ou então supondo a continuidade de uma filiação genealógica (sob a forma da pátria, da nação, do meio etc…). Tecnicamente, ela postula incessantemente unidades homogêneas (o século, o país, a classe, a extração econômica ou social etc.), e não pode ceder à vertigem que um exame crítico dessas fronteiras frágeis provocaria: ela não o quer saber. Em todo o seu trabalho, fundado nessas classificações, ela parte pressupõe que o lugar em que ela própria é produzida tem a capacidade de dar sentido, uma vez que as demarcações institucionais da disciplina na atualidade sustentam, em última instância, as repartições do tempo e do espaço. Sob esse aspecto, o discurso histórico, político em sua essência, supõe a razão do lugar. Ele legitima um lugar, aquele de sua produção, incluindo
os outros em uma relação de filiação ou de exterioridade.²¹
Certeau achava que esse tipo de pensamento poderia ser abalado por um encontro com a psicanálise, pela atenção aos investimentos psíquicos que os próprios historiadores tinham nas histórias que produziam, bem como àqueles assuntos sobre os quais escreviam. A vertigem
benéfica produzida por um exame crítico
exporia os conflitos e contradições contidos por categorias supostamente homogêneas, questionariam as explicações inteiramente racionais, normalmente dadas à ação humana, e tornariam os historiadores mais atentos a seus próprios investimentos, ao escrever sobre o passado.
A visão de Certeau sobre a interdisciplinaridade – nesse caso, a reunião da história com a psicanálise – rejeitava a importação de conceitos transformados em figuras de estilo
.²² Ele clamava, ao contrário, por confrontação e