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Para além do Leviatã: Crítica do Estado
Para além do Leviatã: Crítica do Estado
Para além do Leviatã: Crítica do Estado
E-book791 páginas10 horas

Para além do Leviatã: Crítica do Estado

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Sobre este e-book

Ao falecer, em 2017, o filósofo húngaro István Mészáros deixou inacabada a "obra de sua vida": uma crítica radical do Estado. O ambicioso projeto, pensado inicialmente para uma publicação em três volumes, teve apenas o primeiro parcialmente concluído e sua primeira edição mundial sairá em português, pela Boitempo, conforme desejo expresso pelo autor em vida. Assim, neste Para além do Leviatã, organizado pelo sociólogo estadunidense John Bellamy Foster, Mészáros apresenta a sua teoria do Estado de inspiração marxiana, insistindo na necessidade do "fenecimento do Estado" como condição de sobrevivência da humanidade.

Para ele, os cataclismos ambientais e militares provocados pelos Estados-Leviatã atuais estão fadados a destruir o planeta, caso não seja desenvolvido um modo alternativo de reprodução sociometabólica. Por essa razão, a humanidade não tem escolha, a não ser buscar a crítica ao capital e ao seu Estado, de modo a avançar na prática revolucionária de ir além do Leviatã.

Conforme Mészáros já apontava em sua grande obra Para além do capital, é impossível ir "além do capital" sem ir igualmente "além do Estado", já que essa forma de tomada de decisão global é parte estruturante do capitalismo. Portanto, Para além do Leviatã se constitui nesse desafio de desenvolver uma crítica completa do Estado, explorando toda a história de suas teorias, delineando sua origem, seu desenvolvimento e seu posterior falecimento final enquanto forma da necessidade social de uma estrutura global de comando.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de nov. de 2021
ISBN9786557170991
Para além do Leviatã: Crítica do Estado

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    Para além do Leviatã - István Mészáros

    Ilustração do busto do Leviatã em preto e branco na horizontal com labaredas amarelas ao redor. O nome do autor, István Mészáros, está no topo da capa, o título e o subtítulo Para além do Leviatã: crítica do Estado estão ao centro, e o logo da Boitempo está na parte inferior no canto direito.

    Sobre Para além do Leviatã

    Ricardo Antunes

    Com Para além do Leviatã, István Mészáros enfeixa uma trilogia que encontra seus primeiros contornos em A teoria da alienação em Marx, ganha enorme densidade e desenvolvimento em Para além do capital e se completa agora, neste novo livro.

    Ao longo de sua riquíssima produção intelectual, coube a Mészáros desenvolver, entre tantos pontos originais, um conceito que ganhou cada vez mais relevância – o de sistema de reprodução sociometabólico do capital –, cuja inspiração remonta ao Marx de O capital e que, na formulação meszariana, é decisivo.

    Por meio de suas conceitualizações, o autor pôde avançar nesta complexa formulação: o sistema de reprodução sociometabólico do capital se estrutura e se mantém com base em um tripé – trabalho, capital e Estado – que o converteu em um sistema poderoso, totalizante e mesmo totalitário.

    A conclusão de sua densa análise é cáustica: a eliminação dessa intrincada engrenagem somente poderá se concretizar por meio da extinção dos três elementos que estruturam o sistema do capital. Isso ocorre porque, por ser ainda mais poderoso que o próprio capitalismo, não basta eliminar um ou dois polos, pois o complexo sociometabólico do capital se recompõe. O caso da União Soviética, discutido pelo autor, é emblemático, e o atual exemplo chinês, um excelente laboratório para testar suas pistas analíticas.

    No premiado A teoria da alienação em Marx, o trabalho assalariado é compreendido em seus elementos basilares, sem qualquer determinação ontológica natural, mas como criação histórico-social do sistema do capital, cuja divisão social hierarquizada consolida a heteronomia do trabalho em relação ao capital.

    Em Para além do capital, sua obra de quase uma vida, Mészáros atou as pontas de sua reflexão ao apresentar as conexões e inter-relações no sistema de reprodução sociometabólico do capital, que o convertem em um mecanismo impositivamente expansionista, irremediavelmente destrutivo e, no limite, tragicamente incontrolável, tendências que vêm se acentuando desde a eclosão da crise estrutural do capital, em fins dos anos 1960.

    A tragédia completa do mundo atual é a prova cabal da força da obra meszariana. A devastação da natureza, do trabalho e da humanidade é o maior exemplo da aberração que estamos vivendo. A produção social, nascida com a gênese da humanidade com o intuito de atender a suas necessidades vitais, encontra-se engolfada pelos imperativos e pelas exigências da autorreprodução do capital, garantidos pelo tripé indicado. Para melhor compreender o terceiro polo – o Estado –, e assim completar a monumental trilogia, Mészáros escreveu Para além do Leviatã.

    Testemunhei, em incontáveis conversas que mantive com Mészáros ao longo de quase 35 anos, as suas primeiras elaborações, seus rascunhos à mão, as tantas revisões e ampliações deste que seria o seu último livro, como ele repetia. Projeto interrompido quando se aproximava do fim da primeira parte em razão de sua morte, em 1º de outubro de 2017. Este projeto não foi somente o seu último desejo, mas também aquele de Donatella, sua companheira de toda a vida, primeira leitora crítica de seus livros e defensora da importância de se realizar, nos dias atuais, um denso estudo sobre o Estado.

    Para que se tenha uma dimensão do projeto original, ele contemplava três partes: O desafio histórico; A dura realidade e A alternativa necessária. Este volume é basicamente a primeira parte da proposta original e inclui também o plano da obra e importantes apêndices com as linhagens e os caminhos que o projeto pretendia trilhar.

    Para além do Leviatã deve ser lido, portanto, como um livro póstumo, que descortina uma obra pioneira, jamais realizada no marxismo, depois de Marx e de Engels, pela envergadura projetada.

    Tomando como ponto de partida a primeira crítica materialista a Hegel realizada por Marx, que demonstrou que o Estado não seria jamais uma forma política capaz de superar as contradições da sociedade civil, mas, ao contrário, seu ente político perpetuador, Mészáros pôs-se a laborar intensamente neste último trabalho.

    Sobre a importância do tema, afirmou: Uma crítica radical do Estado, no espírito marxiano, com suas implicações de longo alcance para o fenecimento do próprio Estado, é uma exigência literalmente vital de nosso tempo. O Estado não pode fazer outra coisa senão proteger a ordem sociometabólica estabelecida, defendê-la a todo custo, independente dos perigos para o futuro da sobrevivência da humanidade. Essa determinação representa um obstáculo do tamanho de uma montanha que não pode ser ignorado ao tentar a transformação positiva tão necessária de nossas condições de existência.

    Ao escrever esta obra, Mészáros nos deixou um legado intelectual e também um exemplo de vida inteiramente dedicada à busca da igualdade substantiva, da emancipação da humanidade e da urgente alternativa socialista.

    Uma última nota necessária: este livro é parte de um amplo esforço que permitiu a incorporação do Acervo István Mészáros, com cerca de 10 mil títulos – generosamente doado pelo autor em junho de 2002, quando, após proferir uma conferência no auditório do IFCH, publicamente anunciou a cessão (post mortem) de sua biblioteca –, à Unicamp. Essa incorporação foi possível graças ao decisivo apoio da Fapesp, do então reitor Marcelo Knobel, dos funcionários e do pesquisador Murillo van der Laan, que participou do projeto em todas as suas etapas.

    Foto em preto e branco de István Mészáros de perfil. Ele é um homem branco, idoso, tem cabelo curto grisalho e veste um terno. Ele está está sentado, com a mão direita sobre o queixo. A sua frente estão um microfone e uma garrafa pequena de água.

    István Mészáros

    PARA ALÉM DO LEVIATÃ

    Crítica do Estado

    organização, prefácio e notas
    John Bellamy Foster
    tradução
    Nélio Schneider
    Logo da Boitempo

    © Boitempo, 2021

    © The Estate of István Mészáros, 2021

    Traduzido do original em inglês Beyond Leviathan: Critique of the State

    Direção-geral

    Ivana Jinkings

    Edição e preparação

    Tiago Ferro

    Coordenação de produção

    Livia Campos

    Assistência editorial

    Carolina Mercês e Pedro Davoglio

    Tradução

    Nélio Schneider e Maria Izabel Lagoa (Apêndice IV)

    Revisão

    Carmen T. S. Costa

    Capa

    Ronaldo Alves

    Diagramação

    Mika Matsuzake

    Fotos

    Acervo Boitempo (p. 351-5), Ivana Jinkings (p. 356-61) e Murillo van der Laan (p. 363-82)

    Equipe de apoio

    Artur Renzo, Camila Nakazone, Débora Rodrigues, Elaine Ramos, Frederico Indiani, Higor Alves, Ivam Oliveira, Jéssica Soares, Kim Doria, Luciana Capelli, Marcos Duarte, Marina Valeriano, Marissol Robles, Marlene Baptista, Maurício Barbosa, Pedro Davoglio, Raí Alves, Thais Rimkus, Tulio Candiotto

    Versão eletrônica

    Produção

    Livia Campos

    Diagramação

    Schäffer Editorial

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M55p

    Mészáros, István, 1930-2017

    Para além do leviatã [recurso eletrônico] : crítica do Estado / István Mészáros ; organização, prefácio e notas John Bellamy Foster ; tradução Nélio Schneider. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2021.

    recurso digital

    Tradução de: Beyond leviathan : critique of the State

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital edition

    Modo de acesso: world wide web

    Apêndice

    ISBN 978-65-5717-103-5 (recurso eletrônico)

    1. Ciência política. 2. Estado. 3. Livros eletrônicos. I. Foster, John Bellamy. II. Schneider, Nélio. III. Título.

    Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

    A publicação desse livro recebeu o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo no 2019/04880-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

    É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.

    1ª edição: outubro de 2021

    BOITEMPO

    Jinkings Editores Associados Ltda.

    Rua Pereira Leite, 373

    05442-000 São Paulo SP

    Tel.: (11) 3875-7250 / 3875-7285

    [email protected]

    www.boitempoeditorial.com.br

    www.blogdaboitempo.com.br

    facebook.com/boitempo

    twitter.com/editoraboitempo

    youtube.com/tvboitempo

    instagram.com/boitempo

    Para Donatella

    Sumário

    Apresentação, por Ivana Jinkings

    Prefácio, por John Bellamy Foster

    Introdução

    PARTE I – DOS LIMITES RELATIVOS AOS LIMITES ABSOLUTOS: O ANACRONISMO HISTÓRICO DO ESTADO

    Capítulo 1 – O anacronismo histórico e a necessária superação do Estado

    Capítulo 2 – A liberdade é parasita da igualdade

    Capítulo 3 – Da igualdade primitiva à igualdade substantiva – via escravidão

    Capítulo 4 – A crise estrutural cada vez mais profunda do capital e o Estado

    Capítulo 5 – O ciclo histórico do capital está se fechando

    PARTE II – A MONTANHA QUE DEVEMOS CONQUISTAR: REFLEXÕES SOBRE O ESTADO

    Capítulo 6 – O Estado montanhoso

    Capítulo 7 – O fim da política liberal democrática

    Capítulo 8 – O fenecimento do Estado?

    Capítulo 9 – A ilusória limitação do poder do Estado

    Capítulo 10 – A afirmação da lei do mais forte

    Capítulo 11 – Eternizando pressupostos da teoria do Estado liberal

    Capítulo 12 – O canto do cisne não intencional de Hegel e o Estado-nação

    Capítulo 13 – A ordem sociometabólica do capital e o Estado em falência

    Capítulo 14 – Um obstáculo do tamanho do Himalaia: conclusão da parte II

    PARTE III – UTOPIAS ANTIGAS E MODERNAS

    Capítulo 15 – Da caverna de Platão até a luz mortiça de As leis

    Capítulo 16 – Igualdade no espelho quebrado da justiça: o significado da Politeia aristotélica

    Capítulo 17 – Acumulação primitiva de capital e o mundo da Utopia de Thomas More

    Capítulo 18 – Maquiavel e Campanella rumo a Giambattista Vico

    Capítulo 19 – De Bacon e Harrington a Thomas Paine e Robert Owen

    Capítulo 20 – Tomásio e o princípio esperança de Bloch

    APÊNDICES

    I. Plano original dos três volumes de Para além do Leviatã

    II. Limites históricos da superestrutura jurídica e política

    III. Igualdade substantiva e democracia substantiva

    IV. Como poderia o Estado fenecer?

    Sobre o autor

    Obras de István Mészáros

    Apresentação

    Este é o décimo sexto livro de István Mészáros que a Boitempo publica. Um livro póstumo, editado a partir de seus originais e de anotações que fez ao longo das pesquisas sobre o Estado. As obras desse marxista húngaro radicado na Inglaterra, um dos maiores filósofos que a tradição materialista histórica produziu, marcam profundamente a trajetória da editora. Não tenho como escrever uma apresentação a frio.

    Conheci Mészáros em junho de 2002, quando veio ao Brasil para o lançamento de Para além do capital [1], originalmente publicado em inglês em 1995. Antes, havíamos trocado algumas cartas, a partir de contato feito por Ricardo Antunes, coordenador da coleção Mundo do Trabalho, amigo e principal incentivador daquela publicação. Não era a primeira visita de Mészáros ao país – ele estivera aqui em 1983 – nem o primeiro livro publicado em português. A teoria da alienação em Marx teve edição pela Zahar em 1981. A obra de Sartre: busca da liberdade; Filosofia, ideologia e ciência social e O poder da ideologia foram publicados pela editora Ensaio em 1991, 1993 e 1996, respectivamente. A Ensaio – então dirigida por José Chasin – cumpriu importante papel na divulgação das ideias de Mészáros nos anos 1990.

    A tradução de sua obra magna (1.104 páginas, em capa dura, esgotada seis meses após a publicação) foi um marco na história da Boitempo. E também o início de uma bela e profunda amizade. Desse ano em diante, István passou a se hospedar em minha casa todas as vezes que veio ao Brasil – até 2007, sempre acompanhado de Donatella[2]. Uma relação que se estendeu às nossas famílias: o casal Mészáros esteve com minha mãe e irmãos em Belém, sua filha e neta hospedaram-se em minha casa em diferentes ocasiões.

    Foi numa vinda ao Brasil, em junho de 2011, que Mészáros mencionou pela primeira vez a ideia de publicar um livro sobre o Estado. Disse que o escrevia há tempos – convencido por Donatella de que o Estado moderno seria o grande entrave à igualdade substantiva –, e pretendia dedicar os últimos anos de vida a esse tema vitalmente importante para o nosso futuro.

    Desde Para além do capital havia uma lacuna teórica a ser preenchida em relação a essa matéria, entendida por ele como força determinante dos conflitos de classe. Partindo de Thomas Hobbes e seu Leviatã[3], postulando a atual necessidade de uma teoria marxista do Estado, dialogando crítica e afetivamente com Norberto Bobbio, contrapondo-se às ideias de Max Weber – cujo propósito não declarado seria a legitimação e a justificação apologética do Estado capitalista e de sua ilegalidade enquanto violência –, debatendo prioritariamente com Hegel, mas também com pensadores como Ernest Barker, John Austin e Jeremy Bentham, Mészáros traça um panorama das grandes teorias sobre a matéria para compreender a verdadeira natureza do Estado.

    Os primeiros arquivos chegaram em 2013. Uma versão ampliada de textos preparados para serem apresentados em conferências no Brasil – que, no ano seguinte, como gostava de fazer, ele decidiu antecipar como publicação avulsa[4]. O plano geral da obra, em três volumes [p. 385][5], estava pronto em 2015 e previa publicações em 2017, 2018 e 2019. Em carta dessa época, ele destacou:

    Como você verá no índice, este livro é constituído de três partes, correspondendo a três volumes, com aproximadamente 250-300 páginas cada. O primeiro dá uma ideia da natureza da obra como um todo, apresentando uma abordagem radicalmente diferente dos graves problemas do Estado. Para que, caso eu morra antes de completar o todo, vocês possam usá-lo, se quiserem, e continuar com essa tarefa absolutamente necessária. Acredito que você poderá publicar o primeiro volume na primavera de 2017. Posso enviar-lhe o texto completo do primeiro volume no final de agosto. O segundo poderia ser publicado em 2018 e o terceiro em 2019. Se eu ainda estiver vivo, irei ao lançamento do terceiro volume. Antes, não viajo para lugar nenhum.[6]

    Mészáros retomava assim, em tempo integral, o plano interrompido após a publicação de sua obra fundante. O Estado seria para ele muito mais que uma construção histórica para sustentar (e manter) as bases da dominação política; o problema fundamental para o futuro e para a sobrevivência da humanidade consistiria em suplantar o Estado em sua totalidade. Não é a tarefa política imediata que move nosso filósofo, embora em nenhum momento ele a subestime. Extinguir o Estado equivale a transformá-lo, a modificar seu caráter de classe até atingir o que Marx chamou de fenecimento do Estado[7]. Mas fenecer, para Mészáros, é vencer um processo de conquista de um espaço e de um metabolismo que deve ser transformado em outro.

    Em agosto de 2015, ele revelou, entusiasmado, qual seria o título da trilogia (até então tratada apenas como A crítica do Estado): Para além do Leviatã. Durante meses, foi mantido como um segredo nosso, desconhecido até mesmo da equipe da editora. O primeiro volume seria anunciado em novembro daquele ano, com lançamento mundial em português, pela Boitempo. Chegamos a aprovar juntos a arte da capa que agora envolve esta edição, que ele, infelizmente, não viveu para ver publicada.

    Em março de 2016, István escreveu-me dizendo que precisava ter uma conversa e não poderia ser por telefone nem carta. Pediu-me para ir até a cidade onde estava morando, na costa inglesa. Algumas semanas depois, tomei um avião para Londres e, de lá, um trem para Ramsgate. Mészáros me aguardava na estação. Foram dez dias inesquecíveis, uma verdadeira imersão no universo meszariano. Rodamos a cidade e seu entorno, comemos ostras, tomamos vinho, conversamos muito. Em casa, era ele quem servia todas as refeições e insistia para que eu nem sequer lavasse a louça (no que foi solenemente desobedecido).

    Pude acompanhar sua rotina, o processo de trabalho, a forma como organizava suas anotações – primeiro, rabiscando em pequenos papéis nos quais inseria algumas frases apenas, referências bibliográficas, excertos, lembretes de temas a pesquisar. Esses bilhetes eram substituídos por rascunhos um pouco maiores, que ele classificava em pastas [p. 359]. Depois dessa etapa, eram escritos os esboços mais completos, ainda à mão, que iriam tomar a forma final de texto no computador.

    Uma tarde fomos a Rochester, cidade onde os Mészáros viveram, para a visita periódica ao posto de saúde em que ele tratava dos resquícios de um câncer, supostamente sob controle. Estivemos ainda na casa onde ele e Donatella moraram, que àquela altura estava à venda. O cenário era familiar: os mesmos móveis de quando eu os havia visitado, anos antes. Mas sem as flores, as vozes altas, a boa comida e a alegria daqueles tempos.

    Os dias passaram voando. Horas antes de meu retorno, Mészáros desenhou, à mão, um mapa indicando como ir às livrarias próximas ao hotel onde me hospedaria por um dia em Londres [p. 361], enquanto eu tentava convencê-lo a me deixar presenteá-lo com um relógio inteligente (desses que vêm com botão de emergência ligado a uma pessoa próxima ou a uma central 24 horas). Não precisa, garantiu ele. Fiz então com que prometesse convocar a faxineira, que limpava a casa mensalmente, a ir pelo menos uma vez por semana. Tudo arranjado, fomos de carro à estação. Tomei o trem para Londres sem imaginar que aquele seria o último encontro com meu querido amigo.

    Cerca de um mês antes de sua morte, em 1º de outubro de 2017, Mészáros escreveu:

    Estou trabalhando muito bem. Terminei uma seção importante e estou começando a escrever a penúltima. Se tudo correr bem, espero terminar a última no início de novembro. Certamente você poderá contar com o texto completo em meados de novembro. Assim, o volume inicial poderá ser publicado nos primeiros meses de 2018.[8]

    Essas partes, no entanto, não foram localizadas. Durante meses, Giorgio, seu filho caçula, fez buscas nos computadores, pen drives, rascunhos. Em vão. Fomos aos poucos montando o arquivo ao juntar partes enviadas à Boitempo com capítulos remetidos à Monthly Review, editora que o publica nos Estados Unidos. Coube a John Bellamy Foster, seu amigo de longa data e importante interlocutor, a composição final deste volume, tal como Engels fez com os Livros II e III de O capital, de Marx. Devemos a Foster a publicação desta obra da forma mais fiel possível ao plano original.

    Agradeço igualmente os esforços de Giorgio Mészáros e o empenho decisivo de Ricardo Antunes para que a tradução brasileira fosse publicada no mesmo ano da chegada do acervo de Mészáros doado à Unicamp. Todas as providências para a vinda desse acervo, que contou com apoio da Fapesp, tiveram a inestimável colaboração de Murillo van der Laan, autor da maioria das fotos do caderno iconográfico. E como este é um empreendimento intelectual e editorial coletivo, manifesto gratidão também ao tradutor Nélio Schneider, à editora Isabella Marcatti, que se ocupou dos originais até o início da preparação dos textos, à equipe da Boitempo (em especial, Carolina Mercês e Livia Campos) e, por último – mas não menos importante –, um reconhecimento aos editores Tiago Ferro e Mika Matsuzake pela paciência e dedicação para que este livro, que eles receberam como o mais importante lançamento de 2021, saísse a contento.

    Antes de encerrar esta apresentação, preciso esclarecer o motivo pelo qual viajei a Ramsgate, em 2016. Mészáros decidiu incumbir-me de criar e dirigir um prêmio internacional com o nome de Donatella. Honrada (e em parte assustada), aceitei a convocação, e, nos meses que se seguiram, discutimos bastante os termos e a abrangência dessa iniciativa. Agora, que finalmente podemos entregar aos leitores este volume, assumo com a Boitempo o compromisso de tornar realidade o desejo de meu velho amigo, anunciando publicamente, assim que possível, as bases do Prêmio Internacional Donatella e István Mészáros. Espero que faça jus a seu pensamento e incomparável compromisso com a humanidade.

    Ivana Jinkings


    [1] István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa, São Paulo, Boitempo, 2011).

    [2] Donatella (Morisi) Mészáros, sua companheira. Nascida na Itália, em 1936, viveu com István de 1955 a 2007, data em que faleceu na Inglaterra, vítima de câncer.

    [3] Thomas Hobbes, Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil (trad. João Paulo Monteiro, São Paulo, Martins Fontes, 2014).

    [4] István Mészáros, A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado (trad. Maria Izabel Lagoa, São Paulo, Boitempo, 2015).

    [5] Todas as referências a páginas entre colchetes nesta apresentação se referem ao presente volume.

    [6] Mensagem de István Mészáros a Ivana Jinkings, em 9 out. 2015.

    [7] Ver Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2012).

    [8] Mensagem de István Mészáros a Ivana Jinkings, em 15 ago. 2017.

    Prefácio

    No dia 19 de setembro de 2012, István Mészáros me escreveu:

    Há outro livro que eu gostaria muito de escrever e estou trabalhando nele o quanto permitem minhas forças. Como você sabe, trata-se do meu projeto de longa data sobre o Estado, e alguns resultados parciais dele já foram incorporados aos meus livros, incluindo Para além do capital e Estrutura social e formas de consciência. Provavelmente ainda será preciso dedicar de seis a nove meses ao estágio estritamente preparatório, mas espero ter algo para lhe mostrar em julho do próximo ano, quando você vier à Inglaterra.[1]

    Três anos depois, em 10 de outubro de 2015, ele indicou: Após dez anos de redação preparatória, elaborei a estrutura completa de todo o extenso livro sobre o Estado. (Alguma coisa dele você viu no grande volume dos meus arquivos.). Naquela altura, o livro consistia em quase duzentos pequenos ‘artigos’, com extensão de várias centenas até poucos milhares de palavras[2]. Esse manuscrito, do tamanho de um livro, ou o que ele chamou de a segunda versão de sua obra sobre o Estado, oferece uma análise teórica extraordinariamente detalhada sobre o problema do Estado, que percorre toda a história da teoria política desde Platão e Aristóteles até o tempo presente. A essa segunda versão se seguiria, em seu plano, uma terceira versão, que seria a redação final de seu livro Para além do Leviatã: crítica do Estado[3].

    A obra Para além do Leviatã foi originalmente projetada para ter entre seiscentas e setecentas páginas[4]. O primeiro esboço do livro inteiro, feito no formato de um sumário preliminar em dezembro de 2015, determinou que o livro seria subdividido em três partes: O desafio histórico, A dura realidade e A alternativa necessária, contendo ao todo doze capítulos[5]. Mas, no ano seguinte, a escala de Para além do Leviatã se expandiria, com cada uma das três partes passando a ser visualizada como um volume separado, os capítulos, a ter o tamanho de partes, e as subseções dos capítulos, o tamanho de capítulos. O primeiro volume, Para além do Leviatã: crítica do Estado, parte 1: O desafio histórico, estava quase completo quando Mészáros faleceu em decorrência de um acidente vascular cerebral, no dia 1º de outubro de 2017. É esse volume que agora é publicado com o título da obra toda. O manuscrito anterior contendo a segunda versão, composto principalmente de materiais que originalmente formariam a base do segundo e terceiro volumes de Para além do Leviatã, será publicado, subsequentemente, em um volume só e terá o título de Crítica ao Leviatã: reflexões sobre o Estado. Essas obras juntas, somadas às seções relevantes de seus livros anteriores, constituem toda a crítica sistemática do Estado feita por Mészáros, uma das grandes contribuições à história da teoria política.

    A origem do plano de Mészáros de escrever uma obra relevante sobre o Estado data de várias décadas antes dos últimos cinco anos de sua vida, nos quais ele se ocupou principalmente com esse projeto. Em 1970, ao completar A teoria da alienação em Marx, livro que recebeu o prêmio Deutscher Memorial, ele passou a se concentrar naquilo que chamou de a crise estrutural do capital – articulada em sua preleção em memória de Deutscher intitulada A necessidade do controle social, proferida em janeiro de 1971 e no prefácio à terceira edição de A teoria da alienação em Marx, no mesmo ano[6]. Seu plano nesse período – depois de lançar seu livro sobre O conceito de dialética em Lukács (1972), e sobre A obra de Sartre (1979), bem como O poder da ideologia (1989) – era completar sua grande obra teórica, Estrutura social e formas de consciência, que acabou sendo publicada em dois volumes: A determinação social do método e A dialética da estrutura e da história, em 2010 e 2011, respectivamente[7]. Contudo, ele foi forçado a postergar por muitos anos seu trabalho decisivo em Estrutura social e formas de consciência para se ocupar da questão da crise estrutural do capital e das condições de transição para o socialismo em Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (1995), sua imensa obra de cerca de mil páginas, pela qual ele é hoje especialmente conhecido[8].

    Para além do capital é, como indicam seu título e subtítulo, uma teoria da necessidade de transcender a relação do capital, uma crítica direcionada a sociedades contemporâneas tanto capitalistas quanto pós-revolucionárias do tipo soviético. Contudo, na perspectiva de Mészáros, transcender o capital necessariamente implica transcender as três modalidades: capital, trabalho e Estado. Portanto, já naquele estágio, seu projeto global se estendia necessariamente à crítica do Estado e à questão que integrava a perspectiva de Marx sobre como poderia o Estado fenecer. Para além do capital explorou também as seguintes questões: A atualidade histórica da ofensiva socialista e O sistema comunal, ambas concernentes ao Estado[9]. Foram precisamente essas discussões que constituiriam as principais influências sobre Hugo Chávez, quando ele traçou o curso estratégico da Revolução Bolivariana na Venezuela, levando-o a chamar Mészáros de "señalador de caminos [indicador de caminhos ou pioneiro]" do socialismo do século XXI[10]. Em um capítulo de A dialética da estrutura e da história, intitulado Conceitos-chave na dialética de base e superestrutura, Mészáros dedicou a terceira seção, Costumes, tradição e lei expressa: limites históricos da superestrutura jurídica e política, à descrição da evolução da lei e do Estado[11].

    Depois de completar Para além do capital, Mészáros pôde retomar a tarefa de terminar Estrutura social e formas de consciência, o que fez enquanto escrevia alguns trabalhos menores, decorrentes de seus envolvimentos econômicos e políticos, entre os quais O século XXI: socialismo ou barbárie em 2001, O desafio e o fardo do tempo histórico em 2008 (com sua análise sobre A alternativa ao parlamentarismo), e A crise estrutural do capital em 2010[12]. O segundo volume de Estrutura social e formas de consciência, com o subtítulo A dialética da estrutura e da história, foi concluído em 2011. Mas também nessa ocasião houve outro impedimento para que ele retomasse o trabalho havia muito planejado sobre o Estado: a produção de uma edição expandida de A obra de Sartre[13]. Em razão disso, só em 2012 ele começou para valer sua grande obra de crítica do Estado.

    Rumo a uma teoria histórica do Estado

    Na introdução a Para além do Leviatã, Mészáros ressalta que todas as principais teorias do Estado foram produzidas em períodos históricos de grande turbulência, desde Platão, Aristóteles e Agostinho, passando por Maquiavel e Hobbes, até Jean-Jacques Rousseau e G. W. F. Hegel, bem como, é claro, até Marx, V. I. Lênin e seus camaradas, como Rosa Luxemburgo e Antonio Gramsci [p. 52][14]. No entanto, todas as teorias importantes sobre o Estado anteriores ao materialismo histórico, cujas formas modernas foram escritas nas fases de ascensão do desenvolvimento burguês, sempre vislumbraram algum tipo de ajuste corretivo – não importando o quanto tenha parecido radical em seu respectivo contexto histórico – das existentes estruturas de comando [impostas] ao processo de tomada de decisão societal, o que também se aplica às grandes teorias utópicas do Estado. Em contraste, a abordagem do Estado de inspiração marxiana representou uma nítida ruptura com tudo o que veio antes, por sua insistência na necessidade de ‘fenecimento do Estado’ – ou erradicação total do Estado – de dentro da modalidade da reprodução sociometabólica [p. 52]. Isso porque era impossível ir além do capital (e além de sua base no trabalho e na classe alienados) sem ir igualmente além do Estado, como forma de expropriação constante dos processos globais de tomada de decisão da humanidade [p. 52]. Só que suplantar o Estado capitalista jamais seria suficiente, porque ele poderia ser restaurado; era necessária a sua erradicação [p. 142]. A estrutura de Para além do Leviatã é constituída por esse desafio de desenvolver uma completa crítica do Estado, explorando toda a história da teoria do Estado, prevendo delinear sua origem, seu desenvolvimento e o falecimento final do Estado como forma da necessidade social inescapável de uma estrutura global de comando.

    É crucial entender a radicalidade da crítica do Estado de Mészáros, que difere das teorias liberais do Estado, bem como das abordagens críticas social-democratas que se esforçam por operar dentro dos parâmetros estabelecidos pela teoria liberal-democrática hegemônica. Nesse tocante, é significativo que a segunda versão do manuscrito esboçado por Mészáros tenha início com uma resposta ao artigo escrito por seu grande amigo, o filósofo italiano e socialista liberal Norberto Bobbio, com o título Existe uma teoria marxista do Estado?[15]. A resposta de Bobbio foi que não haveria uma teoria do Estado completamente elaborada em Karl Marx nem na teoria marxista subsequente, por mais perspicaz que tenha sido em alguns aspectos. Por causa disso, ele fala da não existência ou inadequação de uma ciência política marxista do ponto de vista do tratamento do Estado socialista. Marx pode até ter pretendido escrever uma crítica da política junto com a crítica à economia, mas nunca a escreveu, tampouco o fizeram os teóricos marxistas subsequentes. Na visão de Bobbio, Marx e os teóricos marxistas, como Lênin, Luxemburgo e Gramsci, desenvolveram críticas do Estado capitalista a partir do ponto de vista do sujeito humano, mas suas análises mostraram de fato uma falta de consideração pelas instituições concretas e pela natureza do Estado sob o socialismo. Além disso, na opinião de Bobbio, o argumento marxiano do fenecimento do Estado careceria de qualquer significação contemporânea[16]. Bobbio pontuou esse argumento da escassez de reflexões marxianas sobre o Estado com uma citação do marxista italiano Lucio Colletti, denunciando a falta de uma teoria do Estado socialista ou da democracia socialista como alternativa à teoria ou às teorias do Estado burguês e da democracia burguesa. Isso foi acompanhado da crítica a um artigo de Louis Althusser que, de acordo com Bobbio, apontou para o fato de que a obra de Marx se converteu em um escudo entre a realidade e os pesquisadores, não sendo, portanto, um auxílio, mas um obstáculo[17].

    Mészáros tinha muito respeito por Bobbio e o considerava um grande amigo e um pensador crítico [p. 187][18]. Não obstante, na medida em que argumentava que uma teoria marxiana do Estado em princípio nem sequer seria possível, diminuindo a importância da lei e das instituições e sendo, portanto, inerentemente autoritário, Bobbio, de acordo com Mészáros, traiu sua visão profundamente arraigada de que o Estado enquanto entidade moderna era um fenômeno exclusivamente liberal-democrático [p. 188-89][19]. Ainda assim, esse ponto de vista político, em especial na fase descendente do capitalismo, ficou desprovido de bases firmes, na medida em que evitou todo e qualquer relato histórico/genético do Estado e de sua evolução. As abordagens liberal-democráticas do Estado que o associam ao império da lei (e do direito) deixaram de reconhecer a ilegalidade do próprio Estado, isto é, as frequentes transgressões das leis que lhe são próprias em uma situação em que não há autoridade superior a ele. A abordagem liberal deu ênfase a uma "teoria da lei representada como a teoria (ou filosofia) do Estado. Essa teoria se manifestou de forma idealizada na assim chamada democracia representativa, apoiada por direitos legais – se bem que esses direitos sejam constantemente violados sempre que infringem as modalidades do capital [p. 190]. Tal visão liberal hegemônica normalmente evitou toda a questão da might-as-right [lei do mais forte] como praticada pela sociedade capitalista, incluindo seu sistema de comando político no Estado – ou então procurou, de modo contraditório, legitimar o Estado existente e a frequente transgressão emergencial" das próprias regras, como na alegação de Max Weber de que o Estado é a entidade que detém um monopólio do uso legítimo da força física dentro de dado território[20]. Durante a fase descendente do capital, as teorias liberais do Estado sempre procuraram dissimular ou diminuir a importância da realidade classista, deixando, assim, permanentemente fora de alcance qualquer abordagem realista do Estado.

    Mészáros argumentou que, de fato, por trás das intermináveis investigações dos variados direitos, leis e instituições da forma estatal hegemônica estava a pobreza da concepção liberal-democrática contemporânea do próprio Estado, que só foi capaz de responder à pergunta o que é o Estado? de modo sumamente circular, a-histórico, contraditório e autolegitimador [p. 194-96][21]. Nesse tocante, as principais teorias do Estado burguês, desenvolvidas durante a fase ascendente do capitalismo, entre as quais se revestem de suma importância o Leviatã, de Hobbes, e A filosofia do direito, de Hegel, situavam-se muito acima das demais teorias liberais do Estado quanto à força e à profundidade [p. 179].

    Essa crítica das abordagens liberais contemporâneas do Estado também ficou evidente na resposta de Mészáros à obra do renomado teórico político inglês Ernest Barker, que, a partir de 1928, ocupou a cadeira de ciência política (financiada pela Fundação Rockefeller) na Universidade de Cambridge[22]. Aqui, Mészáros se concentrou na introdução escrita por Barker à própria tradução do livro de Otto Gierke, Natural Law and the Theory of Society [Direito natural e a teoria da sociedade], na qual Barker, remontando à tradição do direito natural, oferece uma apresentação particularmente clara da típica concepção liberal moderna do Estado contemporâneo como consumação da lei.

    Para Barker, o Estado é essencialmente lei e a lei é a essência do Estado, definidos por sua relação mútua. O Estado é simplesmente um grupo, ou uma associação, como outra qualquer, gerada pela sociedade por meio de reunião voluntária, só que com o propósito específico e mais elevado de promover a lei, com base na autoridade superior ou soberania conferidas a ele[23]. Logo, nas palavras de Barker, o Estado é "constituído por e sob essa constituição [o ato legal ou os atos legais que estabelecem sua autoridade soberana] e, por essa razão, […] o Estado existe para cumprir o propósito legal ou jurídico para o qual foi constituído[24]. Mészáros objetou que definições circulares como essa excluem todas as questões de poder, classe e as atuais distinções concretas entre Estado e sociedade, bem como todas as questões relativas à produção [p. 197]. Nega-se a materialidade do Estado" em favor de uma concepção idealizada que deixa de considerar todas as análises historicamente embasadas, incluindo as das grandes teorias burguesas do Estado que emergiram do século XVI ao XIX[25].

    Não obstante, um socialista liberal como Bobbio, que tentou formular uma teoria política social-democrática fundada nos princípios do liberalismo, continuamente levantou questões cruciais a respeito do que era necessário para controlar o capital. Ele tentou montar um sistema de direitos universais a serem introduzidos de modo irreversível para reprimir o império do capital por meio do Estado, da lei e do direito. Chegou ao ponto de procurar estabelecer os direitos de gerações futuras contra a tendência de destruição ambiental própria do capital[26]. Contudo, mesmo estando correto em insistir na necessidade de igualdade substantiva, estava equivocado, insistiu Mészáros, em pensar que o capital pode ser controlado. "O capital – por sua natureza e suas determinações internas – é incontrolável. Portanto, investir as energias de um movimento social na tentativa de reformar um sistema substantivamente incontrolável é um empreendimento muito mais infrutífero que o trabalho de Sísifo."[27]

    Embora ressaltasse desse modo a debilidade das teorias liberais contemporâneas do Estado, Mészáros não foi buscar respostas nem na velha nem na nova esquerda, o que o levou a seguir por um caminho solitário[28]. No caso da velha esquerda, sua crítica ao papel continuado do capital nas sociedades pós-revolucionárias exercido no e por meio do Estado frequentemente a colocou em conflito com o marxismo oficial, como foi o caso do Partido Comunista Italiano. Ao mesmo tempo, Mészáros rejeitou as oscilações irracionais entre idealismo voluntarista e estruturalismo pessimista (mais tarde seguidas pelo pós-estruturalismo e pelo pós-modernismo) da nova esquerda britânica. Embora estivesse mais próximo da assim chamada visão instrumentalista do Estado, associada a Ralph Miliband, Mészáros entendeu que tal análise é irreversivelmente inadequada, já que nem começa a abordar a questão da ordem capitalista de reprodução sociometabólica, dentro da qual toda a questão do Estado teria de ser vista. Consequentemente não se encontra na obra de Mészáros nenhum tratamento dos debates marxistas sobre a Estado capitalista nas décadas de 1960-1980, girando em torno da questão da autonomia relativa do Estado associada à obra de figuras como Nicos Poulantzas e Ralph Miliband, ou então concernente à relevância da teoria gramsciana da hegemonia. Nesse tocante, Mészáros preferiu simplesmente apontar para as duras lições representadas por líderes políticos como François Mitterrand e Tony Blair, para não mencionar Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

    O real desafio de uma teoria do Leviatã teria de ser entendido em termos da existência do capital como um sistema orgânico, no qual as várias partes reforçam o todo e, por isso, só pode ser transcendido pela longa e árdua batalha para criar um sistema alternativo de reprodução sociometabólica. Como escreveu Mészáros, em uma proposta mais antiga para o livro Para além do capital, a um editor britânico: Talvez mais do que qualquer outra coisa, a falta de uma análise – social, econômica, política e ideológica – abrangente dos desenvolvimentos pós-guerra prejudicou a ‘nova esquerda’ em suas tentativas de oferecer uma alternativa viável às formas tradicionais de ação política. As discussões teóricas tenderam a ser fragmentárias, parciais e afetadas por modismos efêmeros[29]. Ao refutar a tendência posterior para o desarmamento teórico da esquerda em favor de um indeterminismo popular, Mészáros rejeitou todas as tentativas de pôr de lado a metáfora marxiana de base e superestrutura. Em vez disso, adotou posição semelhante à de Raymond Williams, a de que essa relação deve ser percebida de uma maneira histórica e não determinista, que ainda assim reconhece a materialidade do Estado[30].

    Por estar preocupado principalmente com o problema da erradicação da própria forma estatal como elemento crucial para a luta socialista, Mészáros não se inspirou na bibliografia do período posterior à Segunda Guerra Mundial, na qual a análise se ocupou de forma preponderante com o modo de travar lutas dentro dos parâmetros do Estado capitalista, mas nas teorias que visavam ao fenecimento final do Estado, associadas à Crítica do Programa de Gotha, de Marx, e a Estado e revolução, de Lênin[31]. Diferentemente da maioria da esquerda ocidental, Mészáros se ocupou da concepção da atualidade histórica da ofensiva socialista que buscava ir além do capital, além do Leviatã e além do trabalho alienado.

    O que nas discussões socialistas era chamado de fenecimento do Estado não se tratava, para Mészáros, de uma ‘fidelidade romântica ao sonho irrealizável de Marx’, como algumas pessoas procuram desabonar e descartá-la. Em vez disso:

    Na verdade, o fenecimento do Estado não se refere a algo misterioso ou remoto, mas a um processo perfeitamente tangível que deve se iniciar já em nosso próprio tempo histórico. Isso significa, em uma linguagem franca, a reaquisição progressiva dos poderes alienados de decisão pelos indivíduos em seu empreendimento de mover-se em direção a uma sociedade socialista genuína. Sem a reaquisição desses poderes – à qual não apenas o Estado capitalista, mas também a inércia paralisadora das práticas de reprodução material bem resguardadas se opõem fundamentalmente –, não é possível conceber nem o novo modo de controle político da sociedade como um todo por seus indivíduos nem a operação cotidiana não conflitual/adversa e, portanto, coesiva/planejável das unidades produtivas e distributivas particulares pelos produtores livremente associados e autoadministrados.[32]

    Considerando as coisas a partir desse ponto de vista, que nega a permanência do Estado – concebido como uma forma de tomada de decisão hierárquica ou como estrutura de comando imposta por meio de variadas alienações à população subjacente –, fazia-se necessária uma teoria totalmente nova do Estado em termos marxistas: uma que abrangesse a origem, o desenvolvimento e a erradicação final do Estado. Disso resulta que Mészáros aceitou em considerável medida as alegações de Bobbio e outros de que ainda não havia emergido uma teoria marxista plenamente desenvolvida do Estado. Uma teoria desse tipo só poderia ser formada de maneira significativa, em termos históricos, depois de tratar das principais teorias do Estado e das relações materiais subjacentes a elas desde os tempos antigos até o presente. Por essa razão, a estrutura teórica de Para além do Leviatã se ocupou da evolução histórica e da crítica do Estado e da lei, com foco em pensadores-chave como Platão, Aristóteles, Cícero, Agostinho, Maquiavel, Thomas More, Francis Bacon, Tomás Campanella, Giambattista Vico, James Harrington, Hobbes, Cristiano Tomásio, Adam Smith, Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau, François-Noël Babeuf, Thomas Paine, Robert Owen, Johann Gottlieb Fichte, Hegel, Henry Maine, Ernst Troeltsch, Otto Gierke, Weber, Barker, Bobbio e Robert Nozick; bem como Marx, Engels, Lênin, Luxemburgo, Gramsci, Max Horkheimer, Ernst Bloch, Sartre, Ernesto Cardenal, Chávez e outros[33]. Só assim seria possível dar conta da maneira como surgiram o Estado, a sociedade civil, a lei, a soberania, a dominação de classe e o poder, bem como as forças de resistência que apontaram para (ou anteciparam) a transcendência revolucionária do Estado. Nenhuma abordagem que simplesmente teve início pelo Estado contemporâneo ou mesmo o Estado pré-moderno é suficiente, já que o Estado-Leviatã continha características que transcendiam formações sociais particulares e foram herdadas em parte de formações históricas prévias. Portanto, a via para a crítica do Estado passava pelas leis de Hidra e pelos guardiões noturnos de Platão, pelo tratamento que Aristóteles deu à igualdade, pelo Príncipe de Maquiavel, pela Utopia de More, pelo Leviatã de Hobbes, pela propriedade comunal de Tomásio, pela vontade geral de Rousseau, pela paz perpétua de Kant e pela filosofia do direito de Hegel.

    Ora, tudo isso constituiu uma tentativa de aclarar o problema histórico do Estado. Em contraste com todas as teorias abrangentes anteriores do Estado, a de Mészáros visava a seu fenecimento como centro de comando do capital, bem como à erradicação do capital vista como necessidade absoluta, já que, em última análise, tratava-se, como dissera Marx, de uma questão de ruína ou revolução[34]. Os cataclismos ambientais e militares provocados pelos Estados-Leviatã atuais estão fadados a destruir a humanidade no fim das contas, caso não seja desenvolvido um modo alternativo de reprodução sociometabólica [p. 60]. Por essa razão, a humanidade não tem escolha, a não ser buscar a crítica do Estado, visando à prática revolucionária de ir além do Leviatã.

    Biografia de Mészáros

    Mészáros nasceu no dia 19 de dezembro de 1930, na Hungria, durante a ditadura de Miklós Horthy[35]. Foi criado por sua mãe com a ajuda da avó materna. Sua mãe trabalhava em uma fábrica de aviões, montando motores. Após falsificar sua data de nascimento, Mészáros começou a trabalhar aos doze anos na mesma fábrica, fazendo roscas em parafusos para aviões de madeira. Supostamente aos dezesseis anos, foi classificado como trabalhador masculino adulto e, em consequência, passou a ganhar um salário bem maior que o de sua mãe, que trabalhara durante muito tempo como mão de obra especializada na fábrica; essa injustiça o fez se dedicar por toda a vida à causa da igualdade de gênero. As condições da fábrica eram brutais. Em certa ocasião, não lhe pagaram o salário, mas o compensaram com um pedaço de queijo de porco (embutido cozido de suíno) cheio de pelos, que ele acabou vomitando na neve. Naquele momento, decidiu dedicar sua vida a combater a desigualdade e a injustiça.

    A fase inicial da vida de Mészáros incluiu uma audição na Ópera Nacional da Hungria, com ninguém menos que Otto Klemperer aconselhando-o a persistir como cantor, e um período jogando futebol com o célebre Ferenc Puskás, muitas vezes considerado um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos.

    Desde jovem, Mészáros se sentiu atraído pelo socialismo, aprendido em livros que encontrou em sebos. Sentiu-se especialmente atraído pela obra de György Lukács. Em 1949, quando emergiu o Estado do tipo soviético na Hungria, ele obteve uma bolsa de estudos na prestigiada Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste, onde Lukács lecionava estética. Poucos meses depois, quase foi expulso por defendê-lo publicamente, pois Lukács tinha oficialmente caído em desgraça na atmosfera stalinista extremista daquela época e fora atacado de forma contundente por Mátyás Rákosi, secretário do Partido Comunista Húngaro. Porém, a moção de expulsão feita pelo diretor foi rejeitada pelo conselho da universidade. Em 1950, Mészáros escreveu uma crítica ao banimento pelo governo da clássica peça húngara de 1930, Csongor és Tünde [Csongor e Tünde], de Mihály Vörösmarty, que estava sendo encenada no Teatro Nacional e fora denunciada como aberração pessimista[36]. A defesa meticulosa da peça por Mészáros foi publicada em duas edições consecutivas da revista literária Csillag. O ensaio recebeu o prestigiado prêmio Attila József de 1951, levando à reincorporação da obra de Vörösmarty ao repertório do Teatro Nacional e Lukács a nomear Mészáros seu assistente no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste.

    De 1950 a 1956, participou ativamente dos debates culturais e literários do país como membro da Associação dos Escritores Húngaros. Seu ensaio O caráter nacional de arte e literatura, de 1956, foi escolhido como o tópico central da plenária presidida pelo compositor Zoltán Kodály, do Círculo de Petöfi, um grupo ao qual se credita o lançamento das bases intelectuais e políticas da revolta húngara de outubro a novembro daquele ano. Também editou a revista Eszmélet [Consciência], cofundada por Kodály, Lukács e outras figuras da liderança cultural.

    Em 1955, Mészáros se encontrou com a italiana Donatella Morisi em Paris. Eles se casaram em 14 de fevereiro de 1956, com Lukács presente na cerimônia. (István e Donatella tiveram três filhos: Laura, Susie e Giorgio, nascidos respectivamente em 1956, 1960 e 1962.) Mészáros obteve o grau de doutor em filosofia em 1955. Sua tese, orientada por Lukács, traz o título Sátira e realidade. Lukács designou Mészáros como sucessor no Instituto de Estética e lhe solicitou que fizesse as preleções inaugurais sobre estética como professor adjunto de filosofia. Porém, no fim de 1956, Mészáros foi forçado a deixar a Hungria com a família em decorrência da invasão soviética. Eles saíram às pressas, levando, entre poucos pertences, apenas dois livros: o seu próprio sobre estética e o Fausto, de Goethe. Mészáros e Lukács permaneceram próximos e tiveram contato frequente até a morte do segundo em 1971[37].

    Depois de deixar a Hungria, a família residiu na Itália, onde Mészáros foi docente na Universidade de Turim (1956-1959); nesse período, publicou (em italiano) a obra A revolta dos intelectuais na Hungria (1958). A isso se seguiu uma série de cargos docentes no Reino Unido: no Bedford College, em Londres (1959-1961), na Universidade de St. Andrews, na Escócia (1961-1966) e na Universidade de Sussex (1966-1972; 1976-1995), onde ocupou a cadeira de filosofia[38]. Em 1971, recebeu o prêmio Deutscher Memorial por A teoria da alienação em Marx. No ano seguinte, assumiu o cargo de professor sênior de filosofia na Universidade de York em Toronto, onde permaneceu por três anos antes de retornar a Sussex. No Canadá, se tornou uma cause célèbre de as autoridades se recusarem a lhe conceder um visto, alegando que representava risco para a segurança. Muitas figuras influentes, de todo o espectro político, tanto no Canadá quanto no Reino Unido, protestaram a seu favor. Por fim, o visto foi concedido e o ministro do Exterior canadense renunciou[39].

    Em 1995, quatro anos depois de se aposentar da Universidade de Sussex, Mészáros publicou sua grande obra, Para além do capital, que, nas palavras de Daniel Singer, traz esta poderosa mensagem: O que deve ser abolido não é a sociedade capitalista clássica, mas o império do capital como tal, o que exige transformações societais mais radicais e fundamentais[40]. A publicação foi seguida de uma série de livros em que continuou desenvolvendo sua análise, incluindo O desafio e o fardo do tempo histórico, que ganhou o cobiçado prêmio Libertador ao Pensamento Crítico (também conhecido como prêmio Bolívar) – decidido por um júri internacional e apresentado a ele em 14 de setembro de 2009 por Hugo Chávez, que se referiu a Mészáros na ocasião como um dos mais brilhantes pensadores deste planeta[41].

    Em 2007, Donatella Mészáros (Morisi), com quem István Mészáros compartilhou uma íntima união por 52 anos e a quem dedicou a maior parte dos seus livros, morreu de câncer. No ano seguinte, ele também foi diagnosticado com um câncer de bexiga grau 3 agressivo[42]. Suas batalhas contra o câncer continuaram com maior e menor intensidade pelo resto de sua vida, mas não o impediram de produzir uma efusão extraordinária de trabalho crítico criativo, culminando em seu inacabado Para além do Leviatã, interrompido por sua morte. Ele atribuiu grande importância ao poema Não vás tão docilmente [nessa noite linda], de Dylan Thomas, com seu verso insistente: Clama, clama contra o apagar da luz que finda[43]. Para Mészáros, esse poema assumiu uma importância social.

    Em carta escrita no dia 25 de julho de 2017, apenas dois meses antes de sua morte, ele deu a boa notícia da publicação de uma tradução italiana de Para além do capital, escrevendo: "Temos um provérbio na Hungria que diz: ‘Uma andorinha só não faz verão’. Espero que muitas andorinhas sigam o meu Para além do capital em italiano"[44].

    Mészáros e Chávez

    Mészáros estava firmemente comprometido com as lutas anti-imperialistas. Assim, se aliou a quem lutava pela transformação socialista nas Filipinas, na Nicarágua, na Venezuela, no Brasil e em outros lugares. Argumentou que, na fase descendente do capitalismo, havia uma igualação decrescente da taxa de utilização, referindo-se à corrida até o fundo do poço em termos de salários e condições de trabalho, reforçada por um sistema global de competição monopolista[45]. Em 1978, editou e escreveu a introdução a um livro que consiste em treze ensaios do grande historiador e teórico político filipino Renato Constantino, intitulado Neo-Colonial Identity and Counter-Consciousness: Essays in Cultural Decolonisation [Identidade neocolonial e contraconsciência: ensaios sobre decolonização cultural], no qual Constantino desenvolveu o conceito de contraconsciência como poderosa filosofia de libertação cultural[46]. Ele também mostrou grande interesse pelos desenvolvimentos e pelas lutas em torno do Estado no Brasil, apoiando vários movimentos socialistas daquele país. Porém, sua contribuição mais singular a lutas no Sul global foi o papel que desempenharia com seu forte apoio estratégico à Revolução Bolivariana na Venezuela.

    Ao completar a versão final de Para além do capital, Mészáros comentou extensamente, no capítulo intitulado A atualidade histórica da ofensiva socialista, o panfleto escrito por Chávez em 1993, intitulado Pueblo, sufragio y democracia [Povo, sufrágio e democracia][47]. Naquela ocasião, Chávez se encontrava preso, após liderar um golpe malsucedido em resposta aos eventos do Caracazo de 1989 na Venezuela, durante os quais o governo assassinou milhares de manifestantes que protestavam. Em uma notável análise política, Chávez escreveu: "O povo soberano deve se transformar no objeto e no sujeito do poder. […] Para os revolucionários, essa opção não pode ser negociável. Argumentou que o poder eleitoral poderia ser usado de modo revolucionário, protegido por movimentos sociais poderosos, para assegurar a forte presença daquela soberania popular, cujo exercício permanecerá daqui para a frente realmente nas mãos do povo. Isso, no entanto, exigiria uma distribuição policêntrica do poder, deslocando-o do centro para a periferia. A ênfase precisa ser posta em transferir a tomada de decisões, de modo a estabelecer a autonomia das comunidades e municipalidades particulares, trazendo à vida todos os principais meios da democracia direta, de tal modo que a democracia baseada na soberania popular se constitui como a protagonista do poder. É precisamente nessas fronteiras que temos de traçar os limites de avanço da democracia bolivariana. Então deveremos estar muito perto do território da utopia. Mészáros de imediato identificou a natureza rousseauniana revolucionária da crítica de Chávez ao Estado, que, nas palavras de Mészáros, apontava para o tipo de transformação radical que pressagia, desde o início, a perspectiva de ‘fenecimento do Estado’, e, em consequência, aponta para a soberania do trabalho"[48].

    As páginas referentes a Chávez escritas por Mészáros em Para além do capital foram traduzidas para ele enquanto se encontrava na prisão. Chávez ficou surpreso com o fato de alguém na Inglaterra ser capaz de escrever de modo tão perceptivo sobre suas visões políticas. O relacionamento que se desenvolveu a partir daí é mais bem expresso pelas palavras do próprio Mészáros, em carta endereçada a mim, de 16 de fevereiro de 2015:

    Até 2001, não tive contato pessoal com ele [Chávez] além de uma mensagem em um cartão de Natal bolivariano que ele me enviou em 1995, época em que estava livre. Por uma estranha coincidência, esse cartão foi

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