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Caminhos da revolução brasileira
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E-book666 páginas9 horas

Caminhos da revolução brasileira

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Sobre este e-book

Em Caminhos da revolução brasileira, o historiador Luiz Bernardo Pericás reúne 19 artigos clássicos em que militantes e intelectuais teorizam sobre o tema da revolução brasileira. Elaboradas entre a República Oligárquica dos anos 1920 e a transição da ditadura militar para a redemocratização nos anos 1980, essas contribuições trazem diferentes perspectivas sobre como, a partir da formação social brasileira, podemos pensar em caminhos para uma transformação estrutural. Carlos Marighella, Astrojildo Pereira, Caio Prado Júnior, Luiz Carlos Prestes, Ana Montenegro e Florestan Fernandes são alguns dos nomes que compõem este retrato do campo político progressista do século passado. Em suas análises, sobressaem debates sobre as bases econômicas do Brasil e sua modernização, as transformações sociais que acompanham esse processo, bem como as desigualdades persistentes, e a organização e as estratégias políticas necessárias às mudanças. Em artigo de 1947, por exemplo, Caio Prado Júnior diz ser necessário ao Brasil 'refazer-se sob novas bases, deixar de ser um simples fornecedor do comércio e dos mercadores internacionais e tornar-se efetivamente o que deve ser uma economia nacional: um sistema organizado de produção e distribuição dos recursos do país para a satisfação das necessidades de sua população'. Ana Montenegro, por sua vez, escreve em 1960 sobre a desigualdade da condição das mulheres em relação aos homens: 'Ao sair para a fábrica, para o escritório, para a escola, para a jornada diária de trabalho fora do lar, a mulher não se livra da jornada diária do pesado trabalho doméstico. […] As trabalhadoras […] só recebem 65% dos salários pagos aos homens'. No atual momento de avanço do neoliberalismo e do conservadorismo, os escritos servem de base para reflexão e de estímulo para debater as mudanças estruturais necessárias ao país na academia, nos movimentos sociais e nos partidos políticos. Com textos de quarta-capa de Marly Vianna e Marcelo Ridenti, a obra conta também com texto de orelha da cientista social Angélica Lovatto.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de jul. de 2020
ISBN9788575597224
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    Caminhos da revolução brasileira - Luiz Bernardo Pericás

    Sobre Caminhos da revolução brasileira

    Angélica Lovatto

    Caminhos da revolução brasileira é um livro da maior importância para os tempos atuais. Luiz Bernardo Pericás tocou no nervo de discussões há muito tempo negligenciadas em nosso meio intelectual e político – situação que está mudando graças a esta e a outras iniciativas que recolocam na ordem do dia o debate sobre uma teoria da revolução brasileira. Com seu tino de intelectual público, nas melhores tradições do pensamento brasileiro, o organizador do volume reuniu não só escritos de autores clássicos mas também textos pouco conhecidos, o que certamente enriquece ainda mais a coletânea.

    Discutir, defender e propagar a revolução brasileira já foi mais habitual do que se imagina. As novas gerações, no entanto, foram de certo modo privadas desse contato com o tema por um mecanismo sutil. Em termos sintéticos, podemos dizer que, a partir do golpe militar de 1964, as esquerdas brasileiras passaram por um processo de esterilização da proposta revolucionária, de início provocada pelo exílio, pela prisão, pela tortura e pelo assassinato de suas principais lideranças políticas e intelectuais. Porém, parte das esquerdas, especialmente a que não sofreu o exílio de mais de uma década, acabou por adaptar o discurso e a proposta, que apareceu sob a roupagem de luta contra o atraso e o autoritarismo, umbilicalmente ligada à defesa de uma dependência associada.

    Sem avançar aqui nas razões de fundo dessa mudança, urge lembrar que qualquer semelhança com o atual avanço da direita no país não terá sido mera coincidência. O abandono da defesa de mudanças estruturais contra a lógica do capital – ou seja, a revolução – cobra seu preço. O papel das esquerdas, em nome dos setores populares, é apenas o de defender a eterna renegociação dos graus de dependência econômica do país? Esse é, na verdade, o papel de outra classe.

    Este livro de Pericás nos chama de volta, em alto estilo. Sem desenvolver uma teoria da revolução brasileira não haverá revolução brasileira. Que venham, então, mais livros sobre o tema.

    Sobre Caminhos da revolução brasileiro

    Marly Vianna

    O lançamento desta coletânea organizada por Luiz Bernardo Pericás é bastante oportuno para este momento político. Parece estar na moda condenar os setores democráticos e progressistas – a esquerda – sem que se tenha a mínima noção de suas propostas políticas, econômicas e sociais. Pericás nos oferece aqui um excelente panorama dessas ideias, que, diga-se, nada têm de monolíticas. O volume reúne perspectivas quase que exclusivamente militantes, como as de Octávio Brandão; passa pelos ideais tenentistas e aliancistas, bem representados por Roberto Sisson; chega a propostas teoricamente mais elaboradas – e nem sempre coincidentes –, como as de Nelson Werneck Sodré, Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior, com destaque para a de Florestan Fernandes. São dezenove textos de vinte autores neste livro imprescindível não só para estudiosos de nossa história política como – e principalmente – para quem quer entender a sério as ideias da esquerda brasileira.

    Marcelo Ridenti

    Nas décadas entre 1920 e 1980, militantes e intelectuais teorizaram intensamente a desejada revolução brasileira. Dos pioneiros Octávio Brandão, Astrojildo Pereira e Mário Pedrosa até Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, Carlos Marighella e Érico Sachs, passando por Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré e vários outros, o conjunto diversificado de autores aqui reunidos buscou desvendar os (des)caminhos da formação social brasileira para propor sua transformação estrutural. Trata-se de um apanhado fundamental de textos que se tornaram clássicos – alguns por vezes esquecidos na poeira do tempo, mas todos com formulações ainda essenciais para desvendar este enigma chamado Brasil.

    Sobre o organizador

    Luiz Bernardo Pericás é professor de história contemporânea na Universidade de São Paulo (USP). Pela Boitempo, publicou Cansaço, a longa estação (2012), Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica (2010, menção honrosa do Prêmio Casa de las Américas), Caio Prado Júnior: uma biografia política (2016, Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano e Prêmio Jabuti de Biografia) e Che Guevara e o debate econômico em Cuba (2. ed., 2018, Prêmio Ezequiel Martínez Estrada).

    Agradecimentos

    Graziela Forte, Patrícia Pericás, Angélica Lovatto, Emir Sader, Carlos Eduardo Martins, Felipe Marini, Nildo Ouriques, Fernando Correa Prado, Marina Machado Gouvêa, Marisa Brandão, Augusto Buonicore, João Quartim de Moraes, José Carlos Ruy, Anita Leocádia Prestes, Bárbara Ferreira, Miréia Sisson, Hersch Basbaum, João Prado, Maiá Prado, Caíque Prado, Susana Prado, Danda Prado, Minuca Prado, Roberta Prado, Cláudia Prado, Carla Prado, Vera Pedrosa, Isabel Pedrosa, Quito Pedrosa, Rogério Chaves, Dainis Karepovs, Heloísa Fernandes, Florestan Fernandes Júnior, Ricardo Gebrim, Edson Teixeira, Mário Magalhães, Carlos Augusto Marighella, Marly Vianna, Marcos Del Roio, José Luiz Del Roio, Instituto Astrojildo Pereira, Alberto Passos Guimarães Filho, Zulma Taveiros Guimarães, Milton Pinheiro, Olga Sodré, Alberto Mendes, Theotonio dos Santos, Ivana Jinkings, André Albert, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Marcelo Ridenti, Bernardo Ricupero, Alexandre de Freitas Barbosa, Paulo Barsotti, Osvaldo Coggiola, Lincoln Secco, Antonio Carlos Mazzeo, João José Reis, Fernando Miguel Chaves, Paulo Sérgio Pinheiro, Lygia Fassina Franklin de Oliveira, Gilberto Rodrigues Franklin de Oliveira e Márcio Rodrigues Franklin de Oliveira.

    Sumário

    Introdução – Caminhos da revolução brasileira

    Luiz Bernardo Pericás

    Agrarismo e industrialismo

    Octávio Brandão

    Manifesto de maio

    Luiz Carlos Prestes

    Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil

    Mário Pedrosa e Lívio Xavier

    A Aliança Nacional Libertadora expõe ao povo os pontos básicos de seu programa

    Roberto Sisson

    Os fundamentos econômicos da revolução brasileira

    Caio Prado Júnior

    Saída para a situação brasileira

    Astrojildo Pereira

    O caráter socialista da revolução no Brasil

    Luiz Alberto Moniz Bandeira

    Os caminhos brasileiros do socialismo

    Leôncio Basbaum

    A questão das etapas da revolução brasileira

    Alberto Passos Guimarães

    As mulheres e a revolução brasileira

    Ana Montenegro

    Conceito de povo no Brasil

    Nelson Werneck Sodré

    A revolução brasileira

    Franklin de Oliveira

    Revolução democrática

    Elias Chaves Neto

    Aspectos políticos da revolução brasileira

    Luciano Martins

    A revolução brasileira e os intelectuais

    Florestan Fernandes

    A crise brasileira

    Carlos Marighella

    O caráter da revolução brasileira

    Ruy Mauro Marini

    Caminho e caráter da revolução brasileira

    Érico Sachs

    O caminho brasileiro para o socialismo

    Theotonio dos Santos

    Siglas

    Índice onomástico

    Sobre os autores

    Introdução

    Caminhos da revolução brasileira

    Luiz Bernardo Pericás

    A revolução brasileira, dependendo da abordagem e da interpretação de cada autor, pode ser vista, em linhas gerais, como: um processo histórico de longa duração (e, dentro dele, a construção gradual de um arcabouço político e ideológico), caracterizado pelas mudanças ocorridas na lenta transição de um país essencialmente rural para o urbano; um projeto de modernização das estruturas econômicas internas liderado por setores da burguesia, principalmente através da industrialização; a superação do passado colonial e a edificação e consolidação da nação; ou uma possível ruptura radical e estrutural com o imperialismo, com as relações de classe assimétricas e com a submissão, subordinação e dependência do país no campo internacional. Ou seja, por um lado, há a constatação da marcha paulatina (com impulsos ocasionais) do capitalismo no plano interno (e o vislumbre de saltos qualitativos dentro desse sistema), a partir do desenvolvimento das forças produtivas e diversificação econômica (dando maior autonomia decisória e margem de manobra ao Estado nacional na esfera externa); por outro, um empreendimento radical que romperia com o sistema implantado e consolidado em nosso território, desembocando, em última instância, no socialismo, ao alterar profundamente as prioridades sociais por meio da incorporação dos setores populares como protagonistas da nova etapa e da elevação, nesse ínterim, do nível material e cultural das massas.

    Nesse sentido, algumas interpretações indicam como início do decurso da revolução brasileira o interregno entre o ano de 1808 (com a chegada da família real portuguesa e da corte ao Rio de Janeiro) e a independência formal em 1822; outros, por sua vez, sugerem como marco temporal 1850 (neste caso, a partir do fim do tráfico de escravos); há aqueles que veem na década de 1920 seu começo, com as revoltas tenentistas como elemento­-chave que esboçaria as grandes mudanças que ocorreram em seguida; e ainda os que apontam como data simbólica desse fenômeno 1930, com o ascenso de Getúlio Vargas ao poder. Diversos analistas, utilizando­-se desses diferentes cortes cronológicos, tentaram entender as especificidades de nossa história para discutir prioritariamente, portanto, o desfecho da revolução brasileira, muitas vezes identificada como um processo encabeçado pela burguesia.

    Para Marcos Del Roio, por exemplo, a revolução burguesa no Brasil cobriria um período de meio século, transcorrendo do final dos anos 1920 até o último lustro da década de 1970; Florestan Fernandes discorreu sobre o assunto a partir de um recorte mais extenso, do derradeiro quartel do século XIX até os dias em que escrevia sobre o tema; Nelson Werneck Sodré afirmou que a revolução brasileira poderia ser situada como um segundo tipo de revolução burguesa; e José Antonio Segatto a associou a um sinônimo de revolução burguesa democrática[1]. Tratar­-se­-ia, assim, de uma revolução inconclusa, gradual e pelo alto, um processo de modernização dentro de um quadro de capitalismo retardatário objetivado através da via prussiana (ou, segundo nossas particularidades, pela via colonial), no qual a grande propriedade rural teve papel decisivo, com um Estado com características bonapartistas no plano político e a permanente subordinação do país aos centros avançados da economia mundial, resultando na derrota (mesmo que provisória) ou cooptação dos setores populares aos desígnios dos grupos hegemônicos internos.

    Jacob Gorender, por sua vez, chegou a comentar que a revolução burguesa é uma categoria inaplicável à história do Brasil, ainda que, mais tarde, revisando sua posição, tenha dito que a revolução abolicionista fez as vezes da revolução burguesa no Brasil. De maneira taxativa, cabe afirmar que a revolução abolicionista foi a revolução burguesa no Brasil[2]. Um pesquisador contemporâneo, também de extração comunista (ainda que de partido diferente), Augusto Buonicore interpretou de forma distinta, ao indicar aquele processo como a passagem do predomínio de relações de produção escravistas ou feudais para a ascendência das propriamente capitalistas, momento em que houve modificação no nível e na forma de desenvolvimento das forças produtivas, consolidação e nova configuração de classes no poder e constituição dos instrumentos de dominação ideológica, com a manutenção, depois de 1930, da estrutura agrária arcaica representada pelo latifúndio[3]. Por outro lado, para um conhecido estudioso do tema, Plínio de Arruda Sampaio Júnior, a teoria da revolução brasileira deveria ser um programa de transformação das estruturas da sociedade com o objetivo de resolver os problemas fundamentais do conjunto da população. No Brasil, esses problemas são facilmente identificáveis: a extrema desigualdade social e regional que caracteriza a sociedade brasileira e a subordinação da vida nacional à lógica da acumulação do capital internacional. O grande desafio da teoria da revolução brasileira é desvendar as tendências efetivas da luta de classes, a fim de impulsioná­-la no sentido da superação dos nós internos e externos responsáveis pelas mazelas do povo[4].

    Uma ala mais radical da intelectualidade, a seu turno (identificada com a nova esquerda na década de 1960), utilizava­-se de análises conjunturais de política e economia (tanto no âmbito interno quanto no mundial) e de uma avaliação distinta de nosso processo para apresentar a revolução brasileira como um vir a ser. Isso quer dizer que os episódios anteriores da história do país poderiam receber quaisquer outras designações, menos aquela que até então lhes era imputada. Muitos se recusariam, portanto, a considerar os eventos de 1930 por aquele título. A verdadeira revolução brasileira, segundo esses intérpretes, ainda estaria por acontecer e deveria ter, unicamente, o caráter socialista, proletário ou popular.

    De qualquer forma, as avaliações sobre o quadro nacional e suas consequências foram elaboradas, ao longo dos decênios, por uma grande quantidade de importantes intelectuais, com conclusões distintas entre si. No caso do marxismo, o tema poderia ser apresentado tanto como um curso que obrigatoriamente passaria por etapas definidas quanto como um fenômeno permanente, ininterrupto, seguindo diretamente para o socialismo (neste caso, as tarefas democrático­-burguesas seriam cumpridas pela direção das massas trabalhadoras). Se alguns viam a necessidade de se eliminar os restos feudais no campo e promover o capitalismo no país, houve também aqueles que negavam o caráter feudal das relações no agro e reconheciam a dinâmica capitalista no território brasileiro (dentro da lógica do mercado mundial e da acumulação primitiva) desde o período colonial[5]. Na esquerda moderada, não marxista, por sua vez, muitos não vislumbravam sequer um outcome socialista, mas um desfecho que consolidasse um quadro de liberdades democráticas, melhor distribuição de renda, industrialização e maior autonomia econômica nacional. Esse é um painel, é claro, apresentado em traços gerais, pois alguns atores mudaram suas posições em face das circunstâncias ou mesmo incorporaram propostas mais ou menos radicais em seus programas, dependendo do momento político interno ou do contexto internacional.

    Os caminhos para concluir a marcha da revolução brasileira também poderiam variar segundo o ângulo ou o posicionamento no painel ideológico: desde a luta armada (incluindo­-se aí a guerrilha urbana ou rural) até a participação em pleitos eleitorais, legalização e fortalecimento de partidos políticos e constituição de sindicatos. No primeiro caso, por sinal, ainda se poderia diferenciar entre um projeto foquista e uma insurreição massiva que levasse a uma guerra popular prolongada.

    A questão das alianças seria, igualmente, fundamental. Nesse sentido, enquanto determinados grupos defendiam uma frente policlassista e multipartidária, outros apenas admitiam o proletariado como vanguarda. A existência ou não de uma burguesia nacional progressista, anti­-imperialista, e sua possível aproximação com a classe trabalhadora para lutas em comum contra os latifundiários e a grande burguesia associada ao capital estrangeiro também estiveram em pauta por vários lustros.

    Todo esse debate ocorreu em espaços distintos e transitou entre organizações políticas tão heterogêneas quanto o PCB, a Polop, a ALN, a VPR, assim como no próprio ambiente acadêmico ou em instituições de governo. Além disso, diferentes publicações foram um meio privilegiado para o embate e a promoção de ideias. Ambientes de intensa disputa entre distintas opiniões, periódicos como Revista Brasiliense, Civilização Brasileira, Novos Tempos, Hoje, Estudos Sociais, Classe Operária, Movimento Socialista, Política Operária, Novos Rumos e tantos outros foram determinantes como fóruns de discussão e ferramentas de reflexão sobre os sendeiros a serem escolhidos na pugna política contemporânea.

    O fato é que a palavra revolução sempre foi usada de forma indiscriminada no Brasil para as mais diversas situações político­-institucionais ou rebeliões populares, incluindo aquelas que assumiam apenas um caráter regional[6]. Eventos como os ocorridos em 1924, 1930 e 1932, portanto, foram caracterizados corriqueiramente como revoluções[7] (Elias Chaves Neto, por exemplo, intitulou seu pequeno livro A revolta de 1924, e Juarez Távora nomeou uma obra sobre o mesmo episódio como À guisa de depoimento sobre a Revolução Brasileira de 1924[8]). Não era incomum, portanto, que os setores mais à direita também se apropriassem do termo revolução (o golpe de 1964, por exemplo, foi assim caracterizado pelos militares). Seu referencial teórico e interpretativo, como é de esperar, sem dúvida diferia do empregado pelas forças progressistas.

    Não custa recordar que os dois acontecimentos internacionais do século XX mais importantes para o desenvolvimento das esquerdas no Brasil e na América Latina (e que, por consequência, também exerceram enorme influência nos debates sobre a revolução brasileira) foram o triunfo dos bolcheviques na Rússia e a vitória dos barbudos liderados por Fidel Castro em Cuba. Esses fatos, agregados a todos os eventos transcendentes ocorridos no pós­-guerra, como a Revolução Chinesa, a descolonização da África, o conflito no Vietnã, as campanhas pelos direitos civis nos Estados Unidos e a luta armada em nosso continente, certamente marcaram gerações de jovens militantes do período.

    No painel ideológico daquele momento, ativistas de diferentes vertentes políticas debateram intensamente os caminhos da revolução no território nacional. Nesse sentido, é possível perceber claramente, nas discussões sobre o assunto ao longo das décadas, um amplo leque de influências sobre as distintas tendências e partidos, como o leninismo clássico, o stalinismo, o trotskismo, as políticas khruschovianas, o maoismo e as ideias de Fidel Castro e Che Guevara, assim como aquelas oriundas do arcabouço teórico cepalino, do nacionalismo de esquerda e da TMD.

    De sua parte, a teoria marxista da revolução brasileira, como bem lembra Caio Prado Júnior, começou a ser formulada na década de 1920[9] e teve em Octávio Brandão seu primeiro e mais importante teórico. Vale lembrar que aquele decênio foi muito importante para o país: nele ocorreram a Semana de Arte Moderna em São Paulo, a fundação do PCB, os levantes tenentistas, a longa e épica marcha da Coluna Prestes e o ápice das atividades de Lampião e seus cangaceiros no sertão nordestino. O proletariado também passou a ser considerado um importante ator nas elaborações teóricas de reconhecidos intelectuais que escreviam naquele momento.

    Nos estertores da República oligárquica, o país apresentava enormes índices de desigualdade social, analfabetismo e labor infantil; majoritariamente rural, tinha o café como principal produto de exportação, ainda que se verificasse a ampliação e modernização de seu parque industrial (por exemplo, nos setores têxtil e alimentício). Ademais, havia forte tendência à repressão de mobilizações e revoltas populares (a decretação do estado de sítio era prática comum no governo Artur Bernardes), desequilíbrio nas contas públicas federais, dependência externa, censura da imprensa, restrições ao direito de reunião, mobilidade social limitada, controle político pelas elites regionais (coronelismo, voto de cabresto) e participação efetiva de reduzido percentual da população nas eleições (em geral, repletas de casos de fraude). Ao mesmo tempo, criavam­-se organizações de trabalhadores, e o movimento operário nos centros urbanos crescia.

    A insatisfação, tanto dos setores médios nas cidades quanto do proletariado, era enorme. E o desejo por mudanças também. Entre as reivindicações de então, estavam o voto secreto, a liberdade de imprensa, a independência do Judiciário, a ampliação do poder do Estado, a dissolução da predominância das oligarquias de Minas Gerais e São Paulo, a formação de um governo provisório e o estabelecimento de uma Assembleia Constituinte.

    A primeira obra a discutir a revolução brasileira no âmbito do marxismo foi o livro do dirigente comunista Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo: ensaio marxista­-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classe no Brasil[10], escrito em 1924, mas que veio à luz dois anos mais tarde, no Rio de Janeiro (para enganar as autoridades policiais, teve como autor o suposto oficial alemão Fritz Mayer e como local de publicação, Buenos Aires). Tentando produzir uma interpretação original e inovadora, Brandão escreveu um texto emblemático na época, ainda que posteriormente tenha sido bastante criticado por suas limitações e seus equívocos teóricos[11]. O escritor alagoano, formado pela Escola de Farmácia do Recife e oriundo do anarquismo, já publicara alguns opúsculos, como Canais e lagoas, Despertar! Verbo de combate e energia, Veda do mundo novo, Mundos fragmentários e Rússia proletária. Naquela década, fundou o jornal A Classe Operária, foi redator­-chefe de A Nação, traduziu o Manifesto Comunista e ainda foi eleito intendente municipal (vereador), tornando­-se, junto com o operário negro Minervino de Oliveira, um dos primeiros parlamentares comunistas do país[12]. Nos anos 1920, Brandão foi, sem dúvida, o mais influente teórico do partido. Em Agrarismo e industrialismo, seu trabalho de maior relevo, o jovem militante, numa linguagem direta e provocadora, em frases curtas e de efeito, tentou apresentar a dinâmica dos acontecimentos políticos de então e propor uma linha de atuação, tanto tática quanto estratégica, para as forças progressistas, especialmente sua própria agremiação. No texto, acusava o imperialismo britânico e seu counterpart norte­-americano ascendente, elementos exógenos que intervinham no Brasil em conluio com seus aliados locais: de um lado, os chamados agraristas (latifundiários) e, de outro, os industrialistas. Nesse quadro, era mister destruir o que identificava como restos feudais ou semifeudais nas relações no campo, com base na aliança circunstancial do proletariado urbano com a pequena e a grande burguesia industrial. Impressionado com o papel desempenhado pelo tenentismo (e pelas camadas médias urbanas) e reconhecendo o pouco peso dos camponeses na luta política imediata, partiu de um esquema etapista em que a fase inicial da revolução brasileira teria caráter democrático­-pequeno­-burguês. O PCB, contudo, teria participação ativa nos eventos, liderando as massas trabalhadoras e impulsionando, no fim do processo, um desenlace socialista. Afinal, os modelos de Brandão eram V. I. Lênin e a Revolução de Outubro. Em 1928, foi publicado O proletariado perante a revolução democrático­-pequeno­-burguesa, no número 6 da revista Autocrítica, considerado por um estudioso do tema o primeiro esforço sintético de teorização da revolução brasileira do ponto de vista do marxismo no Brasil[13].

    Não podemos deixar de levar em conta, entretanto, o VI Congresso da Comintern em Moscou, em 1928, aquele que supostamente teria descoberto a América Latina. Com a presença de delegados de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México e Uruguai, teve a participação de várias personalidades importantes nas discussões, como Ricardo Paredes, Serguei Gussev e Jules Humbert­-Droz. A delegação brasileira foi composta por Paulo de Lacerda (escolhido para chefiar o grupo), Leôncio Basbaum (também participante do Congresso da Internacional Juvenil Comunista) e José Lago Morales (que representou o PCB na reunião da Profintern). Heitor Ferreira Lima, que, tendo sido enviado pelo Partido para estudar na Escola Leninista em Moscou, já se encontrava na cidade, também esteve presente em algumas sessões.

    No item 8 do programa apresentado eram descritas as etapas da revolução mundial, resultado de processos e naturezas diversas que se realizariam em períodos distintos (em outras palavras, as revoluções proletárias, as coloniais, as de tipo democrático­-burguês e as guerras de libertação nacional). Em nações de capitalismo superior (categoria em que estavam incluídos países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha), descritas como aquelas em que as forças produtivas se encontravam em estágio mais avançado e possuíam um regime político democrático­-burguês consolidado, a passagem à ditadura do proletariado seria direta. Nestes casos, a expropriação da grande indústria, a coletivização das terras e a formatação do Estado em moldes soviéticos poderiam ser imediatas.

    Em seguida, mencionavam­-se os países de nível médio de desenvolvimento (eram citados Espanha, Portugal, Polônia e Hungria), nos quais permaneciam resquícios de relações semifeudais no campo, existiam menos elementos materiais para a transição ao socialismo, e não se havia completado o processo de câmbios democráticos. Segundo o documento da IC, alguns deles poderiam transitar da democracia burguesa para o socialismo com relativa rapidez, enquanto outros presenciariam um processo revolucionário proletário (porém com muitos objetivos democrático­-burgueses).

    E, por fim, o último tipo, dos países coloniais, semicoloniais e dependentes, nos quais predominavam relações de modo de produção asiático (ou feudo­-medievais) tanto na economia quanto na superestrutura política, com os meios de produção concentrados nas mãos de grupos imperialistas. Neste gênero se encontrava o Brasil, de acordo com os elaboradores do projeto. Os objetivos principais, nesse caso, seriam a luta contra as formas pré­-capitalistas de produção, uma postura anti­-imperialista e a consolidação da independência e da autonomia nacional. Ou seja, um processo que teria de cumprir etapas preparatórias (uma necessária fase democrático­-burguesa) para só mais tarde transitar para o socialismo[14].

    A delegação do PCB, na ocasião, estudou as teses do congresso para descobrir qual deveria ser o caráter da revolução brasileira, qual seria a melhor atitude do movimento operário em relação à revolução democrático­-burguesa, e se a implantação de sovietes e da ditadura do proletariado seria solução factível para o país. Paulo de Lacerda chegou a fazer um discurso em nome dos delegados da América do Sul. Além disso, os pecebistas aprovaram todos os pontos apresentados na reunião, entre os quais uma condenação a Trótski e outro que apontava os sociais­-democratas como o maior inimigo dos comunistas. Para completar, Astrojildo Pereira foi escolhido para integrar a Comissão Executiva (CE) da Comintern[15].

    Com diretrizes delineadas de maneira rígida, portanto, configurou­-se o período obreirista, em que grassou a linha de classe contra classe (na esteira das expulsões de trotskistas e bukharinistas do Movimento Comunista Internacional). Nesse momento, a IC atacou duramente alguns dirigentes brasileiros, como o próprio Octávio Brandão, que foi expulso do Comitê Central após ter suas teses acusadas de mencheviques e antileninistas, em boa medida por ele haver, aparentemente, negado a hegemonia do proletariado (e mesmo do campesinato) no processo insurrecional e, por outro lado, dado excessiva ênfase à atuação dos tenentes e dos pequeno­-burgueses das cidades[16]. Antes de ser repreendido, por apresentar um relativo grau de independência teórica, contribuiu continuamente para o debate político de então. Em setembro de 1929, por exemplo, Brandão disse:

    Que caracteriza uma revolução? Uma nova classe no poder, um novo partido no poder e a instauração de uma nova política. Revolução é o rompimento completo, total, com o passado, a instalação de uma nova classe e de um novo partido no poder. É a destruição das velhas relações econômicas, políticas, sociais, jurídicas, fisiológicas, psicológicas etc. É a instauração de novas formas de vida, de modo a renovar tudo.

    Uma verdadeira revolução no Brasil terá de confiscar as terras e não pagar um real sequer da dívida interna ou externa.

    O fato de insurgir­-se nada prova. O que é fundamental é saber: (1) qual a classe que se insurgiu; (2) qual o partido que dirige a insurreição; (3) qual a política desse partido e dessa classe.

    Uma insurreição chefiada pelos srs. Washington Luís e Júlio Prestes não pode ser uma revolução. Tem de ser uma contrarrevolução, uma insurreição reacionária. Uma insurreição chefiada pelos srs. Washington Luís e Júlio Prestes, na realidade, instalaria o fascismo no Brasil, com a proteção dos banqueiros de Londres. E uma insurreição chefiada pelos srs. Getúlio Vargas e Antônio Carlos seria uma insurreição também reacionária, contrarrevolucionária, e instalaria também o fascismo no Brasil sob a proteção dos banqueiros de Nova York.[17]

    Os acontecimentos se aceleravam. Em fevereiro de 1930, o Secretariado Político da Comintern, em Moscou, emitiu uma resolução sobre a situação brasileira, na qual afirmou que se desenvolviam no país as premissas de uma revolução de tipo democrático­-burguês, mas que o êxito dela dependeria da classe que a conquistasse. Se a pequena burguesia tomasse a dianteira, a revolução estaria condenada a uma derrota similar àquela ocorrida no México. Mas,

    se o proletariado tomar a hegemonia no curso da revolução, sob a direção do PC, e realizar resolutamente e sem hesitação a linha leninista da IC, esta revolução terá, então, grandes possibilidades de triunfo, principalmente se provocar movimentos revolucionários nas outras repúblicas da América Latina.[18]

    Segundo o documento, a revolução brasileira, dirigida pela classe trabalhadora, resolveria questões prementes, como a situação agrária (ou seja, a libertação do campesinato e do operariado agrícola das formas feudais e coloniais de exploração, por meio do confisco, da nacionalização e da entrega de terras às massas rurais), o rompimento do Brasil com o imperialismo, a anulação da dívida externa e a instauração de uma república soviética de operários e camponeses[19].

    No fim do mês seguinte, Luiz Carlos Prestes, já bastante influenciado pelos comunistas, consagrou sua ruptura com o tenentismo no famoso Manifesto de maio, publicado pela imprensa paulista. Nele, reforçou sua nova posição política, denunciando a perseguição aos trabalhadores e propondo a constituição de um governo baseado nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros, ou seja, o estabelecimento de sovietes[20]. Prestes caracterizou a revolução necessária para o Brasil de então como agrária e anti­-imperialista, sustentada pelas grandes massas populares[21].

    A revolução brasileira não pode ser feita com o programa anódino da Aliança Liberal. Uma simples mudança de homens, um voto secreto, promessas de li­berdade eleitoral, de honestidade administrativa, de respeito à Constituição e moeda estável e outras panaceias nada resolvem nem podem de maneira alguma interessar à grande maioria da nossa população, sem o apoio da qual qualquer revolução que se faça terá o caráter de uma simples luta entre as oligarquias dominantes […] Contra as duas vigas­-mestras que sustentam economicamente os atuais oligarcas, precisam, pois, ser dirigidos os nossos golpes – a grande propriedade territorial e o imperialismo anglo­-americano. Essas [são] as duas causas fundamentais da opressão política em que vivemos e das crises econômicas sucessivas em que nos debatemos.[22]

    O Cavaleiro da Esperança ingressou no PCB alguns anos depois e, ao longo da vida, teve constantemente papel de destaque como dirigente e participante dos principais debates sobre os rumos políticos do país.

    Mais tarde, Octávio Brandão comentou que, em outubro de 1930, não teria ocorrido uma revolução, mas golpes armados, apenas com um deslocamento de grupos dentro das mesmas classes exploradoras e opressoras (latifundiários e grandes burgueses). O sistema imperante, na prática, não teria cambiado. Já seus dirigentes foram descritos por ele como reacionários mascarados de revolucionários[23] (aliás, avaliação similar fez Astrojildo Pereira, que chamou o governo resultante do golpe reacionário [de 1930] contra as massas operárias e camponesas de ditadura outubrista, uma contrarrevolução preventiva que utilizava o terror fascista contra o proletariado revolucionário e sua vanguarda comunista[24]). No balanço geral, porém, o autor de Canais e lagoas concordava que, como resultado, houve modificações parciais de alguma importância: de um lado, a população conseguiu livrar­-se de um péssimo governo e, de outro, acumulou experiência[25]. Além disso, teria havido também algum desenvolvimento de aspectos capitalistas na economia…

    Note­-se que, no dia seguinte ao golpe que depôs Washington Luís e à tomada de poder por uma junta militar (que pouco depois o cedeu a Getúlio), o jornal The New York Times informou: A notícia da vitória de ontem do partido revolucionário do Brasil foi acolhida com aprovação por Wall Street […][26]. Uma avaliação sintomática, que só parecia confirmar as opiniões de Octávio Brandão expressas no ano anterior[27]…

    Décadas mais tarde, Leôncio Basbaum também diria que a Revolução de 1930 no Brasil nem mesmo chegou a ser reforma, pois o país continuou praticamente o mesmo em sua estrutura e não teve grandes consequências de caráter econômico, apesar do nome de Revolução que recebeu[28]. Isso para não falar em Maurício Tragtenberg, para o qual aquele evento teria sido, como todas as revoluções brasileiras, um reajuste operado no setor da classe dominante, no seu interior, entre os segmentos industrial, bancário e latifundiário. A emergência dos tenentes, oriundos da pequena burguesia, colocou em xeque o antigo bloco histórico – aristocracia rural, burguesia industrial e setor financeiro –, ao mesmo tempo que o movimento operário, através de sua rede sindical e partidos políticos a eles vinculados (PCB, Federações Sindicais), colocava em xeque a legitimação burguesa do poder[29]. Seria, portanto, nessa crise de hegemonia que segmentos da pequena e alta burguesia procuram novas formas de legitimidade de poder[30]…

    Foi em outubro de 1930 que os trotskistas Mário Pedrosa e Lívio Xavier produziram a mais sofisticada interpretação marxista da realidade brasileira até então, Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil, artigo publicado no início de 1931. Esse texto pioneiro (assinado com os pseudônimos M. Camboa e L. Lyon), escrito em português (a primeira versão desapareceu, pois a edição da revista que a publicou foi apreendida pela polícia varguista), traduzido para o francês e depois revertido para sua língua original por Fúlvio Abramo[31], apontava que o Brasil nunca foi, desde a sua primeira colonização, mais que uma vasta exploração agrícola[32]. Segundo os dois intelectuais, seu caráter de exploração rural colonial precedeu historicamente sua organização como Estado[33]. Sendo assim, concluíam que nunca houve em território nacional terras livres, tampouco colono livre, dono de seus meios de produção. O desenvolvimento de uma classe de pequenos proprietários não se pôde efetivar na formação econômica brasileira. Em um espaço que se caracterizou por uma forma peculiar de feudalismo, o Estado se erigiu dentro de um rígido esquematismo de classe e de passividade burocrática, com as elites locais (donas de grandes propriedades rurais) sustentando­-se a partir da exploração da mão de obra escravizada e da ausência de uma agricultura organizada, com uma produção voltada para o mercado externo. A burguesia brasileira, assim, teria nascido no campo, e não nos centros urbanos. A paulista (cafeeira) impôs o sistema republicano; como resultado do advento da República, aquele estado, por sua vez, estabeleceu sua hegemonia sobre a federação. A consolidação da cultura do café (que representaria tipicamente um desenvolvimento capitalista) teria ocorrido por todas as condições favoráveis para ela naquele momento.

    [Esse] tipo de exploração determinou, portanto, prosperidade favorável ao desenvolvimento do capitalismo sob todas as suas formas. Desse modo, o sistema de crédito, o crescimento da dívida hipotecária, o comércio nos portos de exportação, tudo ajudava a preparar uma base capitalista nacional. Os braços que faltavam foram importados. A imigração adquiriu, a partir daí, caráter de empresa industrial.[34]

    Mas a penetração do imperialismo no país acelerou e agravou as contradições econômicas e de classe, alterando a estrutura dos países coloniais (ou das regiões submetidas à influência dele) e impedindo um desenvolvimento capitalista normal. A burguesia nacional, subordinada a esse status quo, demonstrou desde o início sua incapacidade política, seu reacionarismo e sua covardia. A centralização, por sua vez, aumentou com o desenvolvimento industrial e a intervenção do capital norte­-americano, e fez com que a burguesia se identificasse cada vez mais com a máquina governamental, que acabou servindo aos interesses dos partidos dominantes (fossem de São Paulo, fossem, em seguida, de Minas Gerais ou Rio Grande do Sul), agremiações que, por sinal, eram expressão das oligarquias políticas que disputavam seu espaço de poder por meio do controle do Estado. Naquela luta das frações da burguesia, a unidade do Brasil seria garantida na razão direta da exploração crescente das classes oprimidas e do achatamento sistemático das condições de vida do proletariado[35]. Pedrosa e Xavier concluíam que

    no Brasil, nas condições atuais, a obra mais urgente do proletariado é a criação de um verdadeiro partido comunista de massas, capaz de conduzi­-lo para sua tarefa histórica: a instauração da ditadura proletária e a salvaguarda da unidade nacional mediante a organização do Estado soviético.[36]

    Os dois autores trotskistas propuseram também, naquela época, que o mote dos comunistas deveria ser a promoção de uma Assembleia Constituinte soberana no país[37].

    Em 1933, o historiador paulista Caio Prado Júnior publicou Evolução política do Brasil[38], livro pioneiro que dialogava com as discussões sobre a revolução brasileira (mesmo que indiretamente), ao dar centralidade às massas populares (setores subalternos e escravizados) no processo de construção nacional, desde o período colonial ao fim do Império, apresentando­-as como agentes ativos nas lutas sociais ao longo da história. O povo, nas páginas daquele volume, é mostrado como elemento constantemente excluído nesse percurso (hegemonizado pelas elites locais), mas com protagonismo em diferentes instâncias, como na Cabanada (Cabanagem), na Balaiada e na Revolução Praieira. Esses intentos fracassados, contudo, indicavam claramente a necessidade de organização, de construção de projetos orgânicos e de preparo político e intelectual daqueles atores, assim como a unidade na ação direta e a capacidade de forjar alianças, elementos fundamentais para o triunfo das forças populares. Eram explícitas as limitações dos rebeldes (integrantes de movimentos que poderiam ser caracterizados como desconexos e mal orientados) no sentido de empreender as mudanças estruturais necessárias.

    A questão agrária também foi um elemento importante dessa obra de Caio Prado Júnior, não só como tema analítico, mas como aspecto essencial na formação histórica nacional, que conformou a estrutura econômica do país e que deveria ser discutido na perspectiva da luta política mais ampla. Um texto que certamente marcou época[39].

    Naquele mesmo ano, outro marxista, Leôncio Basbaum, fundador e primeiro secretário­-geral da Juventude Comunista (criada oficialmente em 1º de agosto de 1927), escreveu A caminho da revolução operária e camponesa. Em seu primeiro livro, publicado pela Editorial Calvino sob o pseudônimo Augusto Machado (seu codinome no partido) já no final de 1933 (mas com data de 1934), ele contava o que sabia da Revolução de 1932 em São Paulo, fazia algumas críticas ao Partido e levantava o problema da reforma agrária[40]. Basbaum caracterizou o Brasil como uma semicolônia do imperialismo estrangeiro, dominada por uma burguesia agrária e proprietários feudais. Sendo assim, o país encontrava­-se controlado por um "bloco feudal­-burguês, que deveria ser combatido por uma insurreição popular (uma aliança entre os operários urbanos e o campesinato") que destruísse o sistema latifundiário, expulsasse os imperialistas do território brasileiro, anulasse as dívidas externas, nacionalizasse as empresas forâneas e implementasse a socialização dos meios de produção e transporte…

    Pouco depois, foi a vez de o historiador Sérgio Buarque de Holanda discutir a revolução brasileira. No capítulo 7 de Raízes do Brasil (1936), ele apontava o processo como

    uma revolução lenta, mas segura e concertada, a única que, rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional […]. A grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos […] três quartos de século.[41]

    Como disse uma estudiosa do tema, para o autor de Monções o lento e gradual ritmo das transformações confunde­-se com o passar do tempo. Não há rupturas, é um ‘desaparecimento progressivo das formas tradicionais’, ou do predomínio agrário, que ‘deixa aos poucos’ de existir[42]. Nesse sentido, como lembrou outro comentarista em momento distinto, a grande revolução brasileira foi a passagem das castas rurais para a cidade e o resultante predomínio da cidade sobre a região agrária[43]. Sendo assim, as supostas raízes da revolução brasileira poderiam ser encontradas no período após 1850, com o fim do tráfico negreiro, o aumento das aglomerações urbanas e das atividades financeiras, que, ao longo do tempo, passaram a exercer pressão sobre a realidade rural tradicional do país[44].

    Em termos políticos, Sérgio Buarque, nas palavras do amigo Antonio Candido, se situava numa posição democrática radical, criticando o liberalismo convencional das oligarquias, assim como o fascismo e o comunismo[45]; já Roland Corbisier, na década de 1960, seria mais duro e diria que Sérgio poderia ser incluído entre os autores conservadores, sem compromissos com qualquer espécie de mudança ou reforma das estruturas econômicas e sociais do País. Indiferentes à transformação do real, podiam desinteressar­-se da objetividade, entregando­-se, sem riscos, aos devaneios da imaginação[46]. Ao longo da vida, foi convidado a ser candidato a intendente (vereador) no Rio de Janeiro pelo Bloco Operário e Camponês (BOC), mas recusou a proposta; fez oposição ao Estado Novo; ajudou a constituir a Associação Brasileira de Escritores (ABDE); foi um dos criadores da Esquerda Democrática em 1945 (que se tornou o Partido Socialista Brasileiro dois anos depois); e, a partir de 1964, repreendeu abertamente a ditadura militar, atuando como vice­-presidente do Centro Brasil Democrático (idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer) e, mais tarde, como um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores[47]. O comunismo no quadro nacional, contudo, era visto de forma crítica pelo acadêmico, já que, segundo ele, a doutrina atrairia

    […] precisamente aqueles que parecem menos aptos a realizar os princípios da Terceira Internacional. Tudo quanto o marxismo lhes oferece de atraente, essa tensão incoercível para um futuro ideal e necessário, a rebelião contra a moral burguesa, a exploração capitalista e o imperialismo, combina­-se antes com a mentalidade anarquista de nosso comunismo do que com a disciplina rígida que Moscou reclama dos seus partidários.[48]

    Mais importante para o desenvolvimento e a tentativa de implementação (ou desfecho) da revolução brasileira naqueles anos foi o surgimento da Aliança Nacional Libertadora e seu rápido crescimento. Após lançar seu manifesto­-programa em fevereiro de 1935, os membros da nova organização de massas (vários dos quais de origem militar) elegeram seu Diretório Nacional Provisório em 12 de março, e no dia 30 do mesmo mês fundaram a ANL em um grande comício no Teatro João Caetano (Rio de Janeiro), um evento que contou com a presença de aproximadamente 3 mil pessoas. O oficial da Marinha Hercolino Cascardo se tornou presidente da Aliança; o coronel do Exército Carlos Amoretty Osório, vice; Luiz Carlos Prestes, líder da Coluna Invicta, presidente de honra; e Roberto Henrique Faller Sisson (outro egresso da Armada), secretário­-geral (este último, mais tarde, declarou ser apenas um político militante da revolução nacional)[49].

    Em seu programa, a ANL defendia o cancelamento da dívida externa, o direito à livre manifestação, a entrega dos latifúndios aos trabalhadores rurais, a libertação das camadas camponesas da exploração dos tributos feudais pagos pelo aforamento pelo arrendamento da terra, a anulação das dívidas agrícolas, o apoio às pequenas e médias propriedades contra a agiotagem e a execução hipotecária, a nacionalização das empresas imperialistas, um posicionamento contra o controle da economia brasileira pelas companhias ultramarinas, a diminuição de impostos, o aumento salarial e a defesa de um nacionalismo que combatesse os capitalistas estrangeiros. O repúdio ao fascismo e ao integralismo também teve destaque.

    Os aliancistas anunciaram, no início, seu caráter não partidário e evitavam discutir a questão do poder. Após a carta de adesão de Prestes, endereçada a Cascardo, o PCB, que no começo se limitara a dar apoio, enfim passou a atuar ativamente naquela organização; seus dirigentes acreditavam que a Aliança se tornaria um verdadeiro instrumento de tomada do poder na necessária etapa anti­-imperialista pela qual o país deveria passar[50]. A luta por um governo popular nacional revolucionário resultante da ação do povo em armas deu o tom da agremiação frentista (o Cavaleiro da Esperança, divergindo de Cascardo, acreditava que essa seria a primeira fase da revolução socialista no país)[51].

    Em poucos meses, em torno de 1,5 mil núcleos foram organizados em todo o território nacional, e sedes do grupo, inauguradas na capital federal, na Bahia, no Maranhão, no Ceará e no Rio Grande do Sul, entre outros estados. Segundo relatos da época, o quadro social da ANL crescia numa média de 3 mil membros (inscritos e pagantes) por dia (ou 90 mil por mês)[52]. Além disso, nesse curto período, a Aliança produziu uma quantidade significativa de documentos, entre os quais circulares, manifestos, convites para comícios, panfletos, folhetos, atas de reuniões e discursos, alguns deles assinados por personalidades de relevo, como Roberto Sisson, Caio Prado Júnior, Otávio Falcão, Olívio de Souza, Hugo Silveira e Henrique Cunha. Muito material de propaganda também podia ser encontrado nos periódicos da Aliança, como A Marcha, A Terceira República, O Libertador e Liberdade, assim como em outros, como A Manhã e A Platéa.

    O discurso de Prestes, divulgado no dia 5 de julho, contudo, ainda que de­fendesse os mesmos pontos aliancistas, tinha um tom mais radical e provocador. Acusava a malabarista e nojenta dominação getuliana e seus cinco anos de manobras e traições, de contradanças de homens do poder, quando novas concessões haviam sido feitas ao capital financeiro imperialista (para o qual não bastava a cessão dos serviços públicos, dos portos, das estradas de ferro e das minas, exigindo também a concessão de extensões enormes do território pátrio a empresas estrangeiras). Em suas palavras, a produção nacional, fruto do trabalho hercúleo das grandes massas trabalhadoras, é entregue ao fascismo hitlerista em troca de papéis sujos, isto é, de graça, para ajudar o massacre do proletariado alemão e para organizar nova guerra imperialista. Enquanto ocorria o influxo desmedido de produtos forâneos, a pequena indústria efetivamente nacional se via ameaçada de liquidação pelos tratados comerciais com países como Inglaterra, Estados Unidos e Japão. Prestes atacava a manipulação dos regionalismos pelas potências estrangeiras e pelo integralismo, acusando as classes dominantes de se prepararem para instituir abertamente uma ditadura fascista no país. E conclamava a população:

    Aos aliancistas de todo o Brasil! 5 de julho de 1922 e 5 de julho de 1924. Troam os canhões de Copacabana. Tombam os heróis companheiros de Siqueira Campos! Levantam­-se, com Joaquim Távora, os soldados de São Paulo e, durante vinte dias é a cidade operária barbaramente bombardeada pelos generais a serviço de Bernardes! Depois… a retirada. A luta heroica nos sertões do Paraná! Os levantes do Rio Grande do Sul! A marcha da coluna pelo interior de todo o país, despertando a população dos mais ínvios sertões, para a luta contra os tiranos, que vão vendendo o Brasil ao capital estrangeiro. […]

    Mas as lutas continuam, porque a vitória ainda não foi alcançada, e o lutador heroico é incapaz de ficar a meio do caminho, porque o objetivo a atingir é a libertação nacional do Brasil, a sua unificação nacional e o seu progresso e o bem­-estar e a liberdade de seu povo, e o lutador persistente e heroico é esse mesmo povo, que do Amazonas ao Rio Grande do Sul, que do litoral às fronteiras da Bolívia está unificado mais pelo sofrimento, pela miséria e pela humilhação em que vegeta do que por uma unidade nacional impossível nas condições semicoloniais e semifeudal de hoje! […]

    Marchamos, assim, rapidamente, à implantação de um governo popular revolucionário, em todo Brasil, um governo do povo contra o imperialismo e o feudalismo e que demonstrará na prática, às grandes massas trabalhadoras do país, o que são a democracia e a liberdade. O governo popular, executando o programa da Aliança, unificará o Brasil e salvará a vida dos milhões de trabalhadores, ameaçados pela fome, perseguidos pelas doenças e brutalmente explorados pelo imperialismo e pelos grandes proprietários. A distribuição das terras dos grandes latifúndios aumentará a atividade do comércio interno e abrirá o caminho a uma mais rápida industrialização do país, independentemente de qualquer controle imperialista. O governo popular vai abrir para a juventude brasileira as perspectivas de uma nova vida garantindo­-lhe trabalho, saúde e instrução. A força das massas, em que se apoiará um tal governo, será a melhor garantia para a defesa do país contra o imperialismo e a contrarrevolução. O exército do povo, o exército nacional revolucionário, será capaz de defender a integridade nacional contra a invasão imperialista, liquidando, ao mesmo tempo, todas as forças da contrarrevolução. […]

    Mas o poder só chegará nas mãos do povo através dos mais duros combates. O principal adversário da Aliança não é somente o governo podre de Vargas, são, fundamentalmente, os imperialistas aos quais ele serve e que tratarão de impedir por todos os meios a implantação de um governo popular revolucionário no Brasil. Os mais evidentes sinais da resistência que se prepara no campo da reação já nos são dados pelos latidos da imprensa venal vendida ao imperialismo. A situação é de guerra e cada um precisa ocupar o seu posto. Cabe à iniciativa das próprias massas organizar a defesa de suas reuniões, garantir a vida de seus chefes e preparar­-se, ativamente, para o assalto.

    A ideia do assalto amadurece na consciência das grandes massas. Cabe aos seus chefes organizá­-las e dirigi­-las. […]

    Brasileiros! Todos vós que estais unidos pela ideia, pelo sofrimento e pela humilhação de todo Brasil! Organizai o vosso ódio contra os dominadores transformando­-o na força irresistível e invencível da revolução brasileira! Vós que nada tendes para perder, e a riqueza imensa de todo o Brasil a ganhar! Arrancai o Brasil da guerra do imperialismo e dos seus lacaios! Todos à luta para a libertação nacional do Brasil! Abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas! Por um governo popular nacional revolucionário.

    Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora.[53]

    Era disso que o governo Vargas precisava para colocar a organização na ilegalidade. De duração efêmera, a ANL foi proscrita; seus escritórios em todo o Brasil, fechados provisoriamente em julho daquele ano[54] (e em definitivo a partir de dezembro). Manifestações e greves de grandes proporções ocorreram em várias partes do país nos meses seguintes. Em novembro, enfim, foi deflagrado o Levante Comunista, rapidamente sufocado. Muitos de seus participantes, assim como dirigentes aliancistas, acabaram na prisão[55]…

    * * *

    Nos anos 1940 (especialmente após o fim do Estado Novo) e 1950, as discussões sobre os caminhos da revolução brasileira prosseguiram. Na realidade, durante a Segunda Guerra, o lema união nacional (como sinal de apoio ao esforço de luta contra o nazifascismo) foi apoiado pelos comunistas e ganhou força nos setores progressistas, ainda que diferentes grupos defendessem posições bastante distintas em relação a ele. Mesmo que alguns, influenciados pelo browderismo, propusessem a dissolução do PCB e outros, integrantes dos comitês de ação (como

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