Mães fora do armário
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Sobre este e-book
Sinopse
O susto, o medo, a culpa – sentimentos comuns a todas as mães – se intensificam quando descobrimos que nosso filho ou filha é LGBTQIA+. A sensação de proteção se esvai, e o luto pela criança que imaginávamos ter dá lugar a uma luta coletiva pelo direito de ser.
Este livro reúne relatos poderosos de mães que saíram do armário junto com seus filhos, filhas e filhes. Com orgulho, elas compartilham suas experiências e desafios, mostrando que aceitar e apoiar um filho LGBTQIA+ é um caminho que, embora difícil, nos torna melhores. Essas histórias são testemunhos de amor incondicional, resiliência e transformação.
Sobre as Organizadoras
Adriana Valadares Sampaio, Dirce Meire, Eveny Teixeira e Angela Moysés são mães que viveram a transição para fora do armário ao lado de seus filhes. Elas organizam esta coletânea com a intenção de criar uma rede de apoio e visibilidade para outras mães que passam por experiências semelhantes.
Nas palavras de Adriana Valadares Sampaio: "O amor pode ser uma ferramenta ética, um fio de afetos que tece uma rede de apoio firme e resistente. Na base amorosa está o ser desejante, a pessoa que sonha com um futuro possível. Este livro é uma produção de outros mundos, um espaço de acolhimento e amor ao invés de ódio. Cada experiência pessoal aqui relatada é uma visão crítica social, independente da formação, do nível cultural ou econômico."
Segundo a prefaciadora do livro, Daniela Andrade, "É extremamente importante que as famílias das pessoas LGBTQIA+ exponham o que significa conviver com alguém dessa comunidade. Quando um jovem LGBTQIA+ tem o apoio de seus familiares, é mais fácil que cresça e se transforme em um adulto seguro e consciente do seu valor. Um mundo onde pessoas são discriminadas por orientação sexual ou identidade de gênero nunca poderá ser justo. Ou todos têm seus direitos garantidos, ou o mundo não serve a ninguém que verdadeiramente se preocupa com o bem-estar do próximo."
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Pré-visualização do livro
Mães fora do armário - Adriana Valadares Sampaio
Mães fora do armário
Eveny Teixeira e Angela Moysés Adriana Valadares Sampaio, Dirce Meire (orgs.)
Editor: Gilmaro Nogueira
Diagramação: Daniel Rebouças
Capa: Adriana Valadares e Nei Costa
Revisão: Jeferson Azevedo
Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB
Prof. Dr. Djalma Thürler
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Profa. Dra. Fran Demétrio
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB
Prof. Dr. Helder Thiago Maia
USP - Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Hilan Bensusan
Universidade de Brasília - UNB
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
Prof. Dr. Leandro Colling
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira – UNILAB
Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Prof. Dr. Marcio Caetano
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Dr. Pablo Pérez Navarro
Universidade de Coimbra - CES/Portugal
e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil
Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
ISBN 978-85-93646-79-9
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que
citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA
www.editoradevires.com.br
Prefácio
Uma das primeiras violências — senão a violência inaugural — que uma pessoa da comunidade sexo-gênero-diversa vai sofrer parte da própria família, dentro de casa. Frequentemente muitas de nós sofremos violências físicas, psicológicas e verbais dos nossos pais e demais familiares, em não raras vezes culminando na expulsão do nosso próprio lar.
E isso não se dá por acaso ou no vácuo, isso é produto de uma sociedade que diariamente está nos tratando como saco de pancada, o bode expiatório de todos os problemas sociais. E há muito tempo essa comunidade tem servido de alvo para variados ataques sendo colocada como responsável por tudo de ruim que existe na sociedade.
Se por um lado lutamos pela visibilidade, ou seja, sermos visíveis quando o assunto for termos os mesmos direitos alcançados pelas pessoas cisgêneras e heterossexuais, por outro lado essa mesma visibilidade traz consigo a contra-reação daquelas pessoas agarradas a um conservadorismo de ocasião que nos dias atuais usa das mais variadas desculpas para continuarem discriminando pessoas da comunidade LGBTQIA+ sem no entando se afirmarem preconceituosas — dado que, por exemplo no Brasil a LGBTIfobia se tornou crime desde decisão do Supremo Tribunal Federal em 2019.
O cavalo de batalha atualmente do fundamentalismo caquético em todo o mundo são as crianças e adolescentes LGBTQIA+.
Com a desculpa de uma pretensa proteção às crianças e mulheres estão apresentando — e aprovando — projetos de lei que minam direitos LGBTQIA+, especialmente de jovens trans.
Sabemos bem que nunca se tratou de proteção às crianças e mulheres, os números da violência contra a mulher e o retrato de quem geralmente são os agressores não nos deixam mentir que a comunidade trans está longe de representar o máximo perigo às mulheres cisgêneras.
A quantidade de estupros de crianças e mulheres — e o perfil de quem geralmente é o estuprador nos permite dizer que não se trata aqui de promoção do bem estar de crianças e mulheres o ataque aos direitos LGBTQIA+, mas sim mera cortina de fumaça: proíbe-se que crianças e adolescentes tenham acesso ao conhecimento sobre a existência e o respeito cabido e devido às pessoas que não são hétero e/ou cisgêneras, proíbe-se o ensino sobre gênero, e logo, de violência em função de gênero; proíbe-se as aulas de educação sexual e, por conseguinte, o que significa consentimento e planejamento familiar e, como resultado temos números que batem recordes de gravidez na adolescência, violência contra a mulher e violência contra a comunidade LGBTQIA+. E especificamente nesse último ponto, o Brasil é repetidamente conhecido e reconhecido como campeão em violência.
Nesse sentido é extremamente importante que as famílias das pessoas LGBTQIA+ exponham o que significa conviver com alguém dessa comunidade. E mais, o que significam os ataques diários e o ódio camuflado geralmente de liberdade religiosa ou preocupação com crianças e mulheres, e que respondam como o afeto e o amor os une independentemente de orientação sexual ou identidade de gênero.
É importante que saibamos que, apesar do recrudescimento do fundamentalismo e do conservadorismo os mais tacanhos, há também vozes dissonantes que querem espalhar o amor ao invés do ódio, a compreensão e o respeito ao invés da discriminação. Nesse sentido as vozes dos pais e mães que apoiam seus filhos LGBTQIA+ e que os veem como seres humanos dignos de respeito, ainda que não sejam héteros e/ou cisgêneros, demonstram que tudo o que queremos é que esses jovens sobrevivam, e não impor ou incentivar que outras crianças e adolescentes sejam da comunidade LGBTQIA+, inclusive por que as reais orientação sexual e identidade de gênero não podem ser modificadas seja sob qualquer imposição.
As estatísticas nos demonstram que os jovens LGBTQIA+ tem algumas vezes mais chances de cometer um suicídio ou tentá-lo.
Segundo estudo nos EUA, os jovens LGBTQIA+ têm quatro vezes mais chances de tentar o suicídio do que seus pares (Johns et al., 2019; Johns et al., 2020).
O Trevor Project, ONG que fornece auxílio à juventude LGBTQIA+, estima que mais de 1,8 milhão de jovens LGBTQIA+ (13-24 anos) consideram seriamente o suicídio a cada ano nos EUA — e pelo menos um tenta o suicídio a cada 45 segundos.
No Brasil, país recordista em assassinato de LGBTQIA+, a população trans tem expectativa de vida de 35 anos e encontra-se majoritariamente desempregada ou restando-lhe a prostituição compulsória.
Esse é o resultado das políticas de ódio e discriminação implantadas ou que querem ver implantadas os detratores da comunidade LGBTQIA+, por exemplo aprovando leis para proibir acesso a acompanhamento médico para transição segura de jovens trans, algo já aprovado em alguns estados nos EUA e há projetos de lei nesse sentido no Brasil.
Por outro lado sabemos que quando um jovem LGBTQIA+ tem o apoio de seus familiares é mais fácil que cresça e se transforme num adulto seguro e consciente do seu valor, alguém mais forte para enfrentar as batalhas da vida, sabendo que pode contar com o apoio dos seus.
Algumas vezes em minha vida como mulher transexual recebi questionamentos de mães sobre seus filhos, os quais elas tinham dúvida se seriam trans também e como lidar.
Sempre lhes disse que somos todos diferentes uns dos outros enquanto seres humanos, e que a forma como cada pessoa vai desenvolver sua própria identidade também é diferente.
Muito mais importante que termos a certeza da identidade de gênero e/ou orientação sexual de nossos filhos é respeitá-los. E respeitar uma criança ou adolescente, possivelmente LGBTQIA+, é dar-lhes a segurança que podem brincar com o brinquedo que queiram brincar, final, brinquedos não mudam orientações sexuais e identidades de gênero. Usar a roupa ou fantasia que gostem, pois tampouco pedaços de tecido mudam isso. Tratar essa criança e esse adolescente com o mesmo afeto e respeito que gostaríamos que nós mesmas fossemos tratadas se fossemos nós essa criança ou adolescente, e lembremos nós, adultos, que todos já fomos crianças e adolescentes um dia, inclusive nós da comunidade LGBTQIA+, não nascemos com 18 anos.
Mais importante que conhecer todos os possíveis termos sobre as orientações sexuais e identidades de gênero — e haja termos para isso, é ser uma pessoa sincera face à própria ignorância para a criança ou adolescente que você tem sob seus cuidados, explicitar que você pode não entender muito ou nada sobre o que significa ser da comunidade LGBTQIA+, porém possui disposição para enfrentar todas as barreiras juntos, buscar apoio e conhecimento juntos.
Muito mais importante que uma mãe ou pai que sabem tudo, algo impossível, é uma mãe ou pai que são verdadeiros amigos, companheiros de vida dos próprios filhos.
Ter a certeza que podem contar com esse suporte pode ser vital na qualidade de vida de um jovem LGBTQIA+, pode ser fundamental para crescerem como adultos saudáveis e fortes.
Não conseguimos mudar a orientação sexual ou identidade de gênero de ninguém, ainda que terapias de conversão postas em curso por charlatões religiosos prometam tal resultado, mas conseguimos mudar a nossa forma de ser, pensar e agir frente à comunidade LGBTQIA+.
E nossa comunidade necessita da disposição dos nossos aliados para que consigamos enfrentar um mundo de adversidades objetivando um futuro que seja mais igualitário para todos nós.
E um mundo em que pessoas são discriminadas em função de orientação sexual e/ou identidade de gênero nunca poderá ser considerado um mundo mais feliz e justo. Ou todos tem seus direitos garantidos ou esse mundo não serve a ninguém que verdadeiramente se preocupa com o bem estar do seu próximo.
Daniela Andrade
Apresentação
Era o dia 11 de maio de 2021 quando Gilmaro (Giba, para todos os que o amam, e muita gente o ama por motivos óbvios) me orientava sobre como eu poderia encaminhar um livro infantil meu para uma editora e, nessa conversa, ele me convida para ser a organizadora de um outro livro onde seriam reunidos relatos de mães¹. Mães ou mulheres em suas vivências de maternagem de pessoas queer. Vale aqui dizer que Giba e eu nos conhecemos na militância pró-lgbtqia+, quando fazíamos parte do coletivo Mães pela Diversidade
, em Salvador, Bahia. Ambos, cada um dentro de suas esferas de atuação (eu como mãe e ele como psicólogo), lidávamos principalmente com gente jovem e, em vasta maioria, sem apoio familiar ou com famílias com bastante dificuldade em acolhê-los em suas formas de existir no mundo sendo eles não cishéteros.
Naquele contato, pelo WhatsApp, estávamos todos num Brasil sob o governo de Bolsonaro, um homem que se fez na política tanto pela inação quanto pelo discurso de ódio a todas as minorias sociais. Uma pessoa que se orgulhava em proferir discursos racistas, misóginos, violentos e bastante lgbtfóbicos. Uma daquelas pessoas truculentas e de baixa capacidade intelectual que servem de marionete para setores conservadores e privilegiados chegarem ao poder por se sentirem ameaçados com as pautas e avanços de populações historicamente subalternizadas. Esses setores alimentam o medo com mentiras e pânico moral, causando confusão, distorcendo a realidade, e de forma ainda mais gritante, fomentando ódio.
O ódio é um afeto terrível, que, se fosse materializado, seria como o capacete do senhor deus do submundo na antiguidade grega, Hades. Esse capacete foi forjado pelo deus da metalurgia, pelo deus dos vulcões, Hefesto. O artefato tornava Hades invisível, assim como o ódio parece fazer desaparecer a pessoa que odeia, restando apenas um resíduo, um tipo de fantasmagoria, um resíduo do que já foi habitado por alguma humanidade. Mas também porque a pessoa que odeia e vive da disseminação do ódio, se sente como que blindada por ele, invisível e inatingível, pelo medo que causa.
Combater o ódio é uma tarefa árdua, sem trégua e que pode parecer desesperançosa uma vez que jamais se chega a um ponto de real estabilidade e pacificação. Também é uma batalha devastadora porque exige um ponto delicado entre ser forte, firme e ser amoroso. Não falo aqui do amor romântico ou do amor clichê, piegas que se manifesta de forma melosa (ainda que este último tenha lá o seu lugar). Mas não. Falo de um amor que reside na nossa percepção de sermos seres coletivos, da nossa co-dependência do outro, do sujeito que está além de nós, então é um sentimento que nos conecta, nos une e nesse sentido, oposto ao ódio, que nos aparta.
O amor pode ser uma ferramenta ética, como um fio de afetos que tece uma rede de apoio, de material firme, resistente, porque na base amorosa está o ser desejante, a pessoa que sonha e que entende as utopias não como delírios, mas como o primeiro momento daquilo que pode vir a ser um futuro possível. O sonho é o que antecede a realidade e pode ele mesmo, ser um tipo de realidade.
O convite de Gilmaro também veio durante a pandemia de Covid. Um pedaço de minha história pessoal que eu sempre achei impossível de ocorrer além da ficção. A combinação da pandemia com o governo Bolsonaro resultou possivelmente num dos momentos mais cruéis e surreais da história de nosso país. Tínhamos um presidente que negava a gravidade da situação enquanto milhões de pessoas morriam em todo mundo, que se recusava a assumir a responsabilidade da compra de vacinas e de colocar o Estado voltado para cumprir as orientações de cientistas, sanitaristas e pesquisadores do vírus para promover distanciamento social. Tendo essa figura terrível como presidente e assim sendo, como autoridade
, parte da população por ignorância, por não suportar a realidade dos fatos ou por interesses escusos, não usava máscara, lutava para impedir a obrigatoriedade da vacinação e divulgava Fake News pelas redes sociais.
Ou seja, a conversa com Giba, pelo WhatsApp me surpreendeu, mas também me causou uma grande mobilização emocional. Era preciso fazer alguma coisa além de se deprimir, chorar e lamentar. Havia um avanço enorme nas pautas ultraconservadoras, de extrema-direita, que chegavam através de discursos carregados de misoginia, capacitismo, racismo e de lgbtfobia. Os números associados à violência contra a população queer no Brasil não paravam de crescer, denúncias de familiares expulsando, violentando seus parentes lgbts batiam record.
Como combater esse estado de coisas? Com palavras?
E por que não?
Me lembrei de bell hooks, uma pessoa importantíssima em minha formação, e sua relação com a pedagogia do amor
. Pensei em como esses relatos, de mães que maternaram pessoas queer seriam falas de resistência, cada fala podendo ser uma produção de outros mundos, como se cada palavra pudesse ser um tijolo para a confecção de uma outra utopia, de espaços de acolhimento e de amor ao invés do ódio. Pensei em como cada experiência pessoal é também uma visão crítica social independente da formação, do nível cultural ou econômico.
O pessoal é político
².
Passei então as primeiras 24 horas completamente envolvida na ideia de convidar mulheres de diferentes estados, diferentes contextos de escolaridade, cores, classes sociais, principalmente porque queria muito conhecer realidades de diferentes margens, usando esses relatos como fissuras em ideias pré-concebidas e estruturadas até mesmo em mim, habituada à minha própria vivência.
Cada história é importante, única, e por isso mesmo, relevante. E com isso em mente, convidei amigas, mulheres que, também em suas realidades, se envolviam brava e amorosamente com a luta. Foi com imensa felicidade que vi Eveny, psicóloga em Belém do Pará, Dirce, do interior da Bahia e Angela, aposentada de Brasília, aceitarem fazer parte da organização deste livro. Criamos um grupo de WhatsApp denominado Mães fora do armário
para facilitar as discussões e trabalhos principalmente porque moramos em lugares distantes umas das outras.
Foi um trabalho complicadíssimo que envolveu uma busca incessante por mulheres de todos os cantos deste nosso imenso país, que não só aceitassem contar suas histórias, como também cumprissem prazos, se sentissem confortáveis em dividir experiências que, em muitos casos, são bastante dolorosas e poderiam causar sensação de exposição e vulnerabilidade. Algumas declinaram durante a jornada, outras se somaram e entre problemas pessoais, pandemia, mudança de governo, dias iam dando lugar a meses e os meses, a anos. No final de 2023, finalmente tínhamos todos os relatos, um outro grupo no WhatsApp com todas as envolvidas e que também se tornou espaço de companheirismo, de apoio e trocas.
Esse livro é ambicioso. Ele deseja ser um abraço, um leque de possíveis caminhos, almeja ser um veículo de amor como prática política e social, como forma de construir.
Escolher o amor é escolher o caminho de ações revolucionárias numa sociedade baseada na competição, na manutenção das desigualdades, no individualismo e no pobre e mesquinho sentimento de se sentir elevado quando se subalterniza ou objetifica o outro.
Ler cada relato me levou às lágrimas, me fez sorrir, me ensinou, me encheu de afetos, me modificou. Por isso, este livro só é uma obra da qual, modéstia às favas, me orgulho muito, porque me orgulho muito de cada mulher que parou sua vida, me mobilizou com a ideia, aceitou dividir sua história pessoal, enfrentou o desafio da escrita ou do relato oral que foi transcrito, foi generosa o suficiente para abrir seu coração, sua experiência. Tudo isso, acreditando que podemos contribuir para a realização de um mundo onde as pessoas possam ser quem são em paz e em segurança. Num mundo onde o gênero, a orientação sexual de alguém não seja nem um privilégio, nem uma sentença de morte. Nós, autoras, queremos mostrar como se aproximar de forma amorosa das pessoas, de forma solidária, pode ser parte de um projeto ainda maior, de justiça social.
O Brasil aparece como campeão mundial no terrível ranking de violência e morte de pessoas queer mas também é líder no consumo de pornografia classificada como gay
. Isso pode ser lido como um indicativo de uma espécie de adoecimento psíquico de parte da população. Então, falar a respeito, esclarecer, debater, trazer temas relacionados à tona, tirar da invisibilidade, pode ajudar a mudar a forma como somos socializados pautados numa falácia perigosa chamada normalidade
. Devemos ter em mente que a falta de letramento, conhecimento implica em não percepção ou percepção errônea das realidades, das pessoas. E este livro, sem pretender ser nenhum manual ou manifesto, descortina como mulheres diferentes podem, cada uma delas dentro de suas realidades, serem agentes de mudança, escolhendo amar, retirando da equação do cuidado, a imposição de ideias sobre como lidar com as diferenças.
Cada uma de nós, fala em primeira pessoa. Mas, se observarmos bem, não falamos de nós mesmas, mas de nossas disponibilidades em sermos veículos de inclusão. E não há favor nenhum nisso. Nenhuma de nós se tornou especial por amar e acolher alguém queer. Nós nos sentimos mais humanas e mais completas porque fomos de alguma forma, contempladas em ter em nossas vidas, uma pessoa para amar, sendo essa pessoa lgbtqia+. A proposta nunca foi falar pelas pessoas queer mas falar do lugar de alguém que se viu maternando alguém queer. Também não se desejou aqui romantizar a maternidade, mas é inegável que em nossa sociedade capitalista/patriarcal o lugar de cuidado é considerado feminino
, infelizmente. Claro que existem pais, homens que maternam seus filhos queer, mas essa não é uma realidade numérica significativa.
Os relatos são atravessados por questões de gênero, patriarcado, capitalismo, neoliberalismo, racismo, capacitismo, em como escolher o acolhimento se evita que mais uma pessoa queer viva apartada de afetos, isolada, num cruel projeto de genocídio simbólico, uma vez que, quando não sofrem violências físicas, têm direitos básicos questionados ou retirados vide pessoas trans serem impedidas de utilizar banheiros públicos ou crianças intersexo não conseguirem ter registro e CPF. Apesar de todas as interseccionalidades, os textos são acessíveis, fruto de escritas fluidas, sem panfletagem barata, sem virtuosismos acadêmicos. Ler esse livro é como se sentar com cada uma dessas mulheres incríveis enquanto se toma um café, come uma fatia de bolo, como uma escuta amorosa, entre amigos.
Aliás, a palavra amigo também tem estreita relação com as palavras afeto e companheiro.
Que este livro, que nossas palavras encham as pessoas de vontade de fazer parte deste projeto amoroso, que cada texto faça companhia a corações desejosos de um mundo melhor.
Que mães olhem para seus filhos não como posse, mas como indivíduos dotados de direito de existir como são.
Que pais assumam seus papeis de cuidadores, tutores e vejam seus filhos como pessoas íntegras e não como apêndices ou continuações de sonhos ou projetos pessoais.
Que cada ser humano se importe mais em fazer desse mundo, um lugar acolhedor, onde cada pessoa tenha possibilidade de viver com dignidade (pode-se ler também essa frase como "cuide de sua vida e deixa a vida dos outros em paz).
Que cada pessoa queer se sinta abraçada, amada, desejada.
Nós nos orgulhamos de vocês.
Adriana Valadares
¹ Gilmaro Nogueira é o editor, dono da Editora Devires.
² Esse termo surgiu na segunda onda do feminismo nos anos 1960 juntamente com o movimento estudantil e se popularizou com os atos de rebelião nas universidades francesas também conhecidos como maio de 68. O slogan ressaltou as conexões entre a experiência pessoal e as estruturas sociais e políticas mais amplas.
Angela Moysés
Sou Angela Moysés, tenho 62 anos, nasci em Santos/SP, mas moro em Brasília há 50 anos. Sou aposentada, trabalhei 44 anos na iniciativa privada e sou casada com Carlos, 73 anos, também aposentado.
Nos casamos em 1985 e em 1987 tivemos nossa primeira filha, Thaís. Em 1990 tivemos nossa segunda filha, Tatiana. Tínhamos, como temos até hoje, uma vida familiar feliz, uma relação baseada no amor, no diálogo e no respeito. Nessa primeira fase da vida das nossas filhas, tivemos meus pais por perto, e isso foi de extrema importância para uma relação ainda maior de afeto.
Nossas filhas cresceram como crianças da classe média, estudando em escolas particulares e fazendo atividades extracurriculares, como ginástica, natação, inglês, hipismo rural.
Thaís sempre foi uma menina muito séria, responsável, dedicava-se a tudo que se propunha fazer. Nunca teve problemas na escola, seja de comportamento ou de baixo rendimento. Porém, em todas as reuniões de pais e mães a que compareci, durante o Ensino Fundamental, professores e professoras me falavam sobre a falta de entrosamento dela, preocupavam-se com a parte de socialização, diziam-me que ela ficava sempre só no recreio, lendo. E, após as reuniões, eu a questionava sobre isso. E ela me dizia não ter os mesmos interesses que as outras meninas e por isso não se entrosava. Realmente ela se diferenciava das outras meninas da escola, gostava de cavalos e fazia hipismo rural, atividade que nenhuma outra colega fazia. E se dava muito bem com as amigas que fez no haras onde fazia hipismo, então eu não me preocupava com essa falta de socialização dela na escola.
Já Tatiana era o oposto. Muito extrovertida, fazia amizade com todos.
No primeiro semestre de 2003, Thaís estava com 15 anos e cursava o primeiro ano do Ensino Médio pela manhã, à noite fazia um cursinho preparatório para o PAS (Programa de Avaliação Seriada) — programa da Universidade de Brasília que faz avaliações anuais de desempenho dos estudantes do Ensino Médio e que, dependendo dos resultados, estes podem ingressar na universidade federal sem prestar vestibular -, e à tarde fazia hipismo rural, paixão que se iniciou aos 9 anos de idade, ao conhecer um haras com o pai.
Próximo às férias do meio deste ano, percebi que ela andava cansada, triste, nervosa. Passei a questioná-la sobre esse comportamento, e ela me disse que estava fazendo muitas coisas e que estava apenas cansada. Pedi então que parasse alguma coisa, que ela poderia ter um problema de saúde por esgotamento. Mas ela não parou nada, continuou com suas ocupações em tempo integral. Esse comportamento perdurou por cerca de 2 meses, quando então peguei-a no cursinho noturno, como