Ferozes melancolias: O amor, a viagem e a escrita
De Ana Rüsche
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Sobre este e-book
Ana Rüsche faz um itinerário por cartas de tarô e gôndolas de supermercado e por viagens do Chile à China, entre outras. Aborda temas da inteligência artificial à crise climática, trazendo notas de leitura. Fala de acontecimentos engraçados, como visitas a livrarias para encontrar um escritor favorito em Nova York ou não saber nada de francês numa viagem ao Congo. Não faltam experiências cheias de dúvidas, sobre o vazio que ronda a redação de um romance.
Participante de inúmeros festivais internacionais de literatura ao redor do planeta, a escritora empresta essas experiências como matérias-primas de seus ensaios.
A edição do livro ainda se completa com fotografias em preto e branco feitas pela autora.
"Às vezes, precisamos reaprender a viajar. Este livro mostra o que é preciso perder, para poder sair de si, deixar-se levar pela carta da literatura, para poder voltar a si como outro."
— Christian Dunker, psicanalista
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Ferozes melancolias - Ana Rüsche
FEROZES
MELAN
COLIAS
Ana Rüsche
O AMOR, A VIAGEM
E A ESCRITA
"O tempo, a prensa
designam um só nome
e todas serão exsicatas.
Uma coleção de melancolias
de tudo aquilo que irá nos faltar."
— Katia Marchese
Prefácio
Vanessa Guedes¹
Uma ensaísta à altura do nosso tempo. Ana Rüsche é a mão que guia o timão do navio, o pônei com moicano cor-de-rosa, a carta de tarô que cai espontaneamente para fora do baralho, a camarada que grita junto com você na manifestação — no texto e na vida. Se um dia disseram às mulheres é preciso escrever
, a traição veio logo depois, quando olharam para as escritoras como narradoras apenas do doméstico, do privado e dos segredos da criação. Apenas. Mas hoje não. Hoje falamos das escritoras como narradoras do mundo, do selvagem, do tecnológico e das guerras. Com o tempo, a palavra escritores
ganha contornos mais amplos, menos binários, mais coloridos e verborrágicos. E se o doméstico estava ali desde sempre, é porque o doméstico também faz parte da ferocidade do mundo. Onde melancolias multiplicam-se como abelhas.
Você não sabe a sorte que tem de poder ler Ana hoje, no exato momento em que vivemos. Nesta coleção de ensaios, a escritora corta à faca dura certezas seculares de um mundo que aprendeu a ser observado e interpretado pelo norte global, um mundo estritamente colonial. Um mundo que agora, a passos de formiga, lhe dá ouvidos. Em uma perspectiva toda vinda do sul do mundo.
Já é tempo.
Eu conheci a Ana há muito mais de uma década. A primeira obra de arte que compomos juntas foi um acidente: quebramos um prato dentro de um elevador. Era uma daquelas travessas grandes, usada para servir salgadinhos na festa junina feita no salão do prédio de uma amiga em comum. Naquele momento, uma banalidade tão grande quanto quebrar um objeto foi atravessada pelo inusitado do lugar. Um elevador, um limiar; local de passagem. Diferentemente de quebrar um prato no conforto do lar, ou na casa de outra pessoa, quebrar um prato no elevador, aquele que apenas sobe e desce, o lugar mais parado no tempo do universo, foi como operar o contrário da máquina do tempo. Em que momento se passam as coisas que acontecem dentro da máquina do tempo? Tudo é relativo. Ana olha para mim rindo e diz: busca a vassoura que eu seguro a porta. A incrível capacidade de ser prática frente ao apocalipse. Enquanto limpamos a bagunça, pessoas chamaram o elevador em outros andares. Eu disse que precisávamos ser rápidas. Ela comentou alguma coisa sobre o mundo nunca estar preparado para lidar com o inesperado e que a maioria dos acidentes termina desse modo, com alguém limpando a bagunça antes que o povo veja.
Logo, conheci a Ana assim, pensadora. Mas acima de tudo poeta, com dois livros de poesia publicados na época — no momento que escrevo este texto já são cinco, sem contar os excelentes contos de ficção, o romance A telepatia são os outros e a parceria com George Amaral no Manual de sobrevivência na escrita— e uma coleção de frases de pessoa muy sábia em conversas normais. Logo depois do dia do elevador, descobri que Ana estava no doutorado, estudando dois livros de ficção científica que eu nunca tinha ouvido falar, um deles era O conto da aia, de Margaret Atwood. Eu quis lê-lo para entender o que tanto a intrigava. Foi um suplício conseguir esse livro na época. Mas eu não tinha como adivinhar que dali a dois anos o mundo inteiro estaria lendo-o por conta da eleição de Donald Trump — inúmeras reimpressões garantiriam uma facilidade absurda em adquirir um exemplar. Em consequência, se eu pude bancar a descolada por já ter lido a história antes de virar moda, salpicando o fato com opiniões fortes e prontas, foi porque a própria doutora Ana me introduziu ao livro. Ana, pitonisa das tendências. Nossa grande visionária.
É claro que não foi a única vez. Se o Brasil assustou-se com a enchente que tomou o sul do país de repente, anos antes a Ana já estava organizando um grupo de estudos interdisciplinar sobre questões climáticas (o famigerado Filamentos, que segue firme e forte). Ana é dessas pessoas que teoriza e imediatamente põe em prática. Se você nunca conheceu alguém assim, aproveite a chance. Em um dos últimos textos deste livro, ela diz que para fazer arte é preciso abrir mão da loucura da certeza
e sabemos que a certeza é não reagir, é escutar e ler sobre a miséria do mundo enquanto se continua vivendo a vida no embalo da omissão. Como se não fosse coisa nossa. Como se não fôssemos nós mesmos o próprio mundo. Por isso ela tem razão. A certeza é uma loucura.
Poderíamos cair facilmente na tentação de dizer que este livro e sua autora estão a anos-luz de nós. Mas eles são emblemas do presente; nós é que teimamos em viver o presente de acordo com as regras do passado. O livro que você tem em mãos é fruto do exercício de pensar sobre quem somos, não como indivíduos completos e contidos em nós mesmos, mas como parte de um sistema. Um coletivo vivo.
Os ensaios aqui navegam pelo amor, pela literatura e pela política em um jeitinho todo único, com a participação de outras pessoas também, porque não se faz comunidade sem ouvir o outro. É o encontro da Ana acadêmica com a Ana poeta. E uma vitória para nós, que podemos acessar a linha de raciocínio impecável dessa grande pensadora de nossos tempos. Com gentileza, revolta e uma curiosidade ímpar sobre tudo que nos cerca.
Ferozes melancolias é um exercício de vai e volta entre o público e o privado, o trabalho de anos de diálogo e observação que encontram na escrita uma janela de alternativas para as contradições do cotidiano. Mas não pense que aqui está um manual definitivo com respostas prontas e fáceis para os dilemas intensos que qualquer pessoa brasileira encontra no século XXI.
Esse livro é apenas um começo. Que ele seja como o Louco, a carta que abre o tarô e inicia a jornada. Espero que você sinta o cheiro da novidade e do amor assim como eu senti ao ler esses textos pela primeira vez.
O tempo, a prensa das saudades
A arte de perder rondou o Brasil nos últimos anos. A História você conhece, pois imagino que também a tenha vivenciado. Depois de uma eleição funesta em 2018 e largos incêndios florestais em 2019, todos os sonhos imensos que ainda tínhamos foram desmanchados pela pandemia em 2020 — um tempo fora do tempo, pareceu durar muitos anos enquanto vivíamos as incertezas do período de isolamento social. Agora parece tão ínfimo quando nos lembramos de suas cenas avulsas, tão próximas. Se hoje, no ano de 2024, sentimos uma certa exaustão de tudo é porque singramos tempos de exceção. Mal conseguimos elaborar esse passado-presente, oscilamos na presbiopia de não enxergar algo tão próximo ou no fingimento de que nada de muito relevante aconteceu. Perdemos pessoas queridas, perdemos possibilidades de sonhar e seguimos e seguimos como se nada nos afetasse muito.
Por isso invoco a força da melancolia. Um sentimento capaz de tingir tudo com suas cores cinzentas e lavadas, com um tom de tristeza calma, capaz de acolher a divagação e o luto. Ancorar o silêncio. Estancar