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Desafios e perspectivas da modernização das polícias civis na sociedade brasileira: Reflexões sobre uma nova governança da polícia de investigação
Desafios e perspectivas da modernização das polícias civis na sociedade brasileira: Reflexões sobre uma nova governança da polícia de investigação
Desafios e perspectivas da modernização das polícias civis na sociedade brasileira: Reflexões sobre uma nova governança da polícia de investigação
E-book210 páginas2 horas

Desafios e perspectivas da modernização das polícias civis na sociedade brasileira: Reflexões sobre uma nova governança da polícia de investigação

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Sobre este e-book

Ultrapassamos três décadas de trajetória democrática desde a promulgação da Constituição de 1988. Esse período trouxe a efervescência de novas narrativas e ações políticas e culturais, além de novas práticas de cidadania, configurações de mercado e readequações institucionais em diversos órgãos e estruturas do poder público. No entanto, apesar do espírito renovador da Constituição de 1988, há indícios de que as polícias civis não passaram por um processo organizado e profundo de autocrítica que lhes permitisse uma evolução estrutural adequada às mudanças históricas desse período.
Nesse sentido, quais seriam as bases para um plano efetivo de modernização da Polícia Civil? Quais inovações poderiam surgir no horizonte de um planejamento capaz de revitalizar essas instituições? Enfrentar essas questões nos conduz à necessidade de construir um projeto aberto a novas formas de trabalho, considerando erros e acertos do passado e do presente.
Utilizamos pesquisas recentes sobre a Polícia Civil e investigação criminal, realizadas por renomados cientistas sociais brasileiros para embasar nossas análises. Esse acervo foi fundamental para o diagnóstico, acrescido do conhecimento prático acumulado por alguns dos autores com longa experiência na Polícia Civil. Reafirmamos a convicção de que o teórico e o prático são dimensões complementares na modernização das polícias civis na sociedade brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de dez. de 2024
ISBN9786588547878
Desafios e perspectivas da modernização das polícias civis na sociedade brasileira: Reflexões sobre uma nova governança da polícia de investigação

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    Pré-visualização do livro

    Desafios e perspectivas da modernização das polícias civis na sociedade brasileira - Luis Flávio Sapori

    Capítulo 1

    A BAIXA EFICÁCIA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA

    O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Não há dúvida quanto a isso. E esse fenômeno é evidenciado pelo número absoluto anual de mortes violentas intencionais, em torno de quarenta e sete mil, de roubos, em torno de novecentos mil, de estupros, em torno de setenta e quatro mil, e de feminicídios, próximo a mil e quinhentos (FBSP, 2024, p. 20).

    A dinâmica da violência na sociedade brasileira está intimamente associada aos jovens de 15 a 24 anos, que são tanto as principais vítimas quanto os principais autores de crimes violentos. O crescimento da violência nesse grupo social se concentrou nas periferias urbanas. Diversas pesquisas realizadas no Brasil, voltadas à elaboração de mapas da violência no espaço urbano, chegaram à mesma conclusão: a incidência de homicídios é maior nos territórios de maior vulnerabilidade social. Portanto, não se pode desconsiderar que a criminalidade violenta está associada às desigualdades sociais, que insistem em macular o país mesmo após os avanços alcançados. Há uma inquestionável seletividade social tanto na vitimização pela violência quanto na ação punitiva por parte do aparato policial, judicial e prisional. Os jovens negros, pobres e residentes nas regiões de maior vulnerabilidade social que constituem o grupo social mais vitimizado pelos crimes violentos e, ao mesmo tempo, os mais susceptíveis à repressão do Estado.

    A despeito disso, não se pode ignorar que a violência na sociedade brasileira está associada, em boa medida, à consolidação do mercado ilícito das drogas, comercializando, num primeiro momento, a maconha, a cocaína e, posteriormente, o crack. O problema não está nos efeitos químicos que essas drogas provocam no organismo dos usuários. A maconha, a cocaína em pó e o crack não criam, necessariamente, pessoas agressivas e dispostas a matar. Elas criam uma necessidade física e psicológica que favorece furtos e roubos, mas não a violência em si, que surge na comercialização dessas drogas, ou seja, o próprio tráfico de drogas é que gera jovens dispostos a matar. Isso acontece porque a compra e a venda de certas drogas são muito rentáveis por serem ilegais, sendo consideradas crimes pelo ordenamento jurídico. (Sapori, Medeiros,2010)

    Os assassinatos estão relacionados à combinação de racionalidade econômica e ilegalidade que estruturam esse mercado. Isso ocorre porque nos mercados ilegais os problemas de valor dos bens comercializados, da competição entre os fornecedores e da cooperação entre os atores econômicos apresentam contornos específicos, comparativamente aos mercados legais. Em outras palavras, a construção da ordem social nos mercados ilegais manifesta singularidades em relação aos mercados legais. A violência física tende a ser recurso de resolução de conflitos e consequente manutenção da ordem muito mais utilizada nos mercados ilegais comparativamente aos legais.

    Outro aspecto decisivo que conforma a criminalidade violenta na sociedade brasileira é a fragilidade do Estado de Direito enquanto instituição provedora da segurança pública. A garantia do monopólio do uso legítimo da força pelo Estado não se consolidou no período democrático. Ao contrário, a violência se espraiou pelas relações sociais cotidianas como em nenhum outro momento da nossa história. Vivenciamos verdadeiro processo descivilizador que afeta profundamente a qualidade da nossa democracia e os valores que a sustentam.

    A indigência das políticas de segurança pública é fator a ser considerado nesse processo. Elas têm sido pautadas pela improvisação e pela mera reação a eventos graves que são repercutidos pelos meios de comunicação de massa. Não se identificam avanços qualitativos consistentes na formulação e na gestão de políticas públicas de controle da criminalidade em qualquer âmbito da federação nas últimas três décadas. A ineficiência das polícias, a morosidade da justiça criminal e a ampla degradação do sistema prisional são problemas crônicos que parecem insolúveis.

    É preciso reconhecer que o arranjo institucional da segurança pública estabelecido pela Constituição Federal não contribuiu para a construção de uma sociedade mais pacífica. A democracia instaurada pela nova Carta Constitucional amparou-se em velhas estruturas do sistema policial e judicial, muitas delas anteriores à própria ditadura militar. A Constituição de 1988 reafirmou assim um sistema de segurança pública que à época da sua promulgação já se mostrava frouxamente articulado, ineficiente no controle do crime e recalcitrante no respeito aos direitos civis da cidadania. Ressalte-se sob tal perspectiva a relevância da impunidade como fomentadora da violência no país.

    Impunidade diz respeito à baixa efetividade do Estado na garantia da segurança pública. A preservação da vida e do patrimônio dos cidadãos é responsabilidade das instituições estatais especificamente criadas para esse fim, quais sejam, a polícia, a Justiça e a prisão. Compõem o que se denomina de sistema de segurança pública, com divisão complementar de atribuições. A polícia previne e investiga os crimes, a Justiça processa e julga os acusados e a prisão aplica a pena dos criminosos condenados. Além da Constituição Federal, outros ordenamentos jurídicos delimitam o funcionamento do sistema de segurança pública, quais sejam, o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal.

    A impunidade no Brasil diz respeito ao mau funcionamento de todo esse arcabouço institucional (Sapori; Soares, 2015). Diz respeito ao baixo grau de certeza da punição, que se refere à ineficiência do sistema de segurança pública na aplicação do ordenamento jurídico, destacando-se:

    a) A baixa capacidade preventiva da polícia: o efetivo policial, quando distribuído nos locais e horários de maior incidência da criminalidade (zonas quentes de criminalidade), é capaz de reduzir a incidência do fenômeno. A presença de policiais fardados, patrulhando diariamente as vias públicas, reduz as oportunidades para o cometimento de crimes. Quando isso é feito de maneira precária, poucos criminosos conseguem vitimar grande número de pessoas, especialmente no que concerne aos crimes contra o patrimônio. Essa é a realidade prevalecente nas grandes e médias cidades brasileiras. O policiamento ostensivo no Brasil ainda é meramente reativo. A polícia atua quando o crime já foi consumado. São raros os planos operacionais pautados pela lógica proativa, distribuindo os recursos humanos e materiais com o intuito de prevenir a incidência de crimes. É fala recorrente entre os comandos das polícias militares no Brasil a de que a polícia não consegue se antecipar ao crime, evitando sua ocorrência, o que leva a uma postura de resignação diante dos elevados indicadores de criminalidade violenta, como se nada pudesse ser feito. Prevalece a prática de distribuir o efetivo policial por turnos de trabalho, sem análises prévias da distribuição do crime no tempo e no espaço;

    b) A baixa capacidade investigativa da polícia: a investigação de crimes envolve a adoção de procedimentos para se comprovar, antes de tudo, que o fato realmente aconteceu, denominado de materialidade do crime, e a coleta de evidências sobre a autoria dele. Esse trabalho é sistematizado no inquérito policial que, quando finalizado, é remetido à Justiça. Considera-se o crime esclarecido quando o inquérito policial conseguiu evidenciar a materialidade e a autoria, sustentando a atividade processual. A taxa de esclarecimento de crimes no Brasil, segundo estudos recentes, é muito baixa;

    c) A morosidade da justiça: a justiça criminal brasileira é muito lenta. A principal evidência nesse sentido é o tempo que o crime de homicídio demora para ser processado e julgado. Há estudos científicos nesse sentido comprovando que o tempo médio transcorrido entre a data de ocorrência do homicídio e a data do julgamento pelo Tribunal do Júri é de sete anos. As variáveis que contribuem para a morosidade no processamento dos crimes de homicídio no Brasil estão principalmente na fase judicial. Dizem respeito à excessiva burocratização dos procedimentos judiciais e aos inúmeros recursos para os tribunais superiores. O excesso de prazo decorrente da requisição de laudos e de perícias que podem ser utilizados pelo juiz para fundamentar sua decisão ou que podem ser solicitados por ele atrasa ainda mais o fluxo processual.

    d) A precariedade do sistema prisional: a superlotação do sistema prisional também deve ser contemplada como dimensão da impunidade. A população prisional do Brasil ultrapassa o contingente de 800 mil presos, ao passo que o número de vagas não chega a 400 mil. Essa realidade afeta a capacidade do poder público de garantir aos presos o tratamento digno previsto na Lei de Execução Penal, diminuindo as possibilidades de reintegração social e, consequentemente, ampliando as chances de reincidência criminal. A ociosidade dos presos é preponderante nas unidades prisionais do país, sendo que apenas 20% dos detentos exercem atividades de laborterapia. Os presos que estão estudando no sistema, por sua vez, não alcançam 10%. Não bastasse isso, boa parte dos presídios brasileiros transformou-se em verdadeiros home offices do crime. Estudos recentes revelam ainda que o país possui na atualidade mais de 60 facções criminosas constituídas e atuantes em todo o território nacional, quase na totalidade dedicadas ao tráfico de drogas. Todas essas facções se estruturam no interior de unidades prisionais.

    Como se depreende, a impunidade na sociedade brasileira não está adstrita a uma organização específica. É o sistema de segurança pública e justiça criminal como um todo que funciona mal. Dada a proposta deste livro, contudo, vamos nos concentrar na análise mais sistemática dos problemas que estão conformando a investigação criminal realizada pelas polícias civis estaduais. A atuação da Polícia Federal não constitui objeto da presente reflexão.

    Investigação criminal e segurança pública

    A investigação criminal constitui atividade fundamental do Estado na efetivação da segurança pública. É através dela que são identificados eventuais autores de crimes, de modo que evidências são sistematizadas e servem de base para a fase processual propriamente dita. Nesse sentido, envolve as seguintes tarefas: a) identificar e interrogar suspeitos; b) produzir provas jurídicas; e c) instruir o processo criminal.

    A despeito do fato de que o Ministério Público pode também investigar crimes, cabe às Polícias Civis estaduais a principal responsabilidade nesse sentido, além da Polícia Federal. Elas são elo imprescindível do fluxo de atividades que compõem a dinâmica do sistema de segurança pública e justiça criminal na sociedade brasileira, conforme a Figura 1.

    Figura 1 - Estrutura e fluxo de atividades do sistema de segurança pública e justiça criminal – Brasil

    Uma imagem contendo Gráfico Descrição gerada automaticamente

    Fonte: Adaptado de Ribeiro (2010).

    O sistema de segurança pública e justiça criminal é composto por organizações diversas, cada uma delas dedicada à execução de atividades próprias que se complementam. Sob o ponto de vista formal, o desenho institucional do sistema prevê uma dinâmica pautada pelo equilíbrio, pela cooperação e pela integração. Não é o que efetivamente ocorre, entretanto. Conflitos de interesses são recorrentes como também o isolamento institucional. A perspectiva corporativista tem orientado o funcionamento dessas organizações. O sistema de segurança pública e justiça criminal na sociedade brasileira constitui, sob tal prisma, típica manifestação de um sistema frouxamente articulado (Sapori, 2006).

    A principal fonte de frouxa articulação é a separação do trabalho policial em duas organizações distintas, a Polícia Militar, que realiza o policiamento ostensivo, e a Polícia Civil, que realiza o trabalho investigativo. Na quase totalidade das democracias contemporâneas, as atividades ostensiva e investigativa são realizadas pela mesma polícia, independentemente de quantas existam. É o que se denomina de polícias de ciclo completo.

    Tal singularidade do subsistema policial brasileiro provoca a emergência de inúmeros focos de disjunção no trabalho do policiamento ostensivo e investigativo. É o caso, por exemplo, da ausência de mecanismos integrados e articulados de planejamento das intervenções públicas na área. A segmentação de trabalho entre as polícias faz com que as tarefas envolvidas no controle da criminalidade estejam concentradas no âmbito ostensivo, resumindo-se a planos de distribuição dos recursos humanos e materiais das polícias militares. A investigação policial e eventual identificação e detenção de criminosos ocorre em momento distinto e obedece somente à lógica de elaboração de documento a ser entregue às instâncias judiciais, que é o inquérito policial. Em outras palavras, a divisão polícia ostensiva/polícia investigativa é aspecto institucional dos mais relevantes para a devida compreensão dos percalços da investigação criminal na sociedade brasileira.

    A atividade investigativa é crucial na dinâmica do sistema de segurança pública e justiça criminal.

    Conforme argumentam Costa e Oliveira Júnior (2016),

    De fato, a investigação criminal tem desempenhado duas funções críticas relacionadas à promessa estatal de segurança. Em primeiro lugar, ela é a principal porta de entrada do Sistema de Justiça Criminal. Embora existam outras situações que prescindam da polícia, a maioria dos processos criminais tem origem no inquérito policial. Ademais, a investigação desempenha papel central na função de

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