O Exercicio Da Psicologia Como Instituicao Marlene Guirado

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Interao em Psicologia, 2009, 13(2), p.

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Psicologia Institucional: O Exerccio da Psicologia Como Instituio


Marlene Guirado
Universidade de So Paulo

RESUMO O presente texto visa a atualizar e recolocar, agora no mbito das mudanas de contexto conceitual e concreto do exerccio da psicologia como instituio, o que j se vinha esboando como uma proposta de Psicologia Institucional que respeitasse a especificidade de ao do psiclogo. O captulo quatro do livro Psicologia Institucional (Guirado, 1987/2004), intitulado Em busca de uma especificidade de atuao do psiclogo, revisitado e revisado luz dessas mudanas. Mais que isso, reescrito numa tal ordem que se pode acompanhar o avano do pensamento e da prtica profissional, desde ento. Partindo da diferenciao entre os modelos psicanaltico e sociolgico de Psicologia Institucional, discute-se tal distino, confluindo para uma terceira proposta, a qual permite tratar a prpria psicologia como instituio, bem como permite tratar o seu exerccio, no interior de outras prticas institucionais, como Anlise Institucional do Discurso. Situaes exemplares so destacadas para dar a conhecer essa estratgia de pensamento. Palavras-chave: psicologia institucional; psicologia como instituio; anlise institucional do discurso.

ABSTRACT Institutional Psychology: Psychological Practices as Institutions This paper aims to update the proposition to an Institutional Psychology, considering the concrete and conceptual changes in our understanding of psychology as an institution. Chapter 4, titled Looking for the specificity of psychologist work, in Institutional Psychology (Guirado, 1987/2004), is reviewed and rewritten in a way that makes it possible for the reader to follow the advancements of thinking and in practice. The starting point of this rearrangement is the discussion of the differences between psychoanalytic and sociological models in this area. The goal is to devise a new proposition: to consider psychology, on its own, as an institution, so that its exercise can be remarked as Institutional Discourse Analysis. Examples are given so as to make it understood what is this strategy of thinking psychology. Keywords: institutional psychology; psychology as institution; institutional discourse analysis.

Desde o final da dcada de 1980, tenho procurado discutir a especificidade do trabalho e da pesquisa em psicologia quando esta se faz junto a outras instituies sociais. Essa discusso estendeu-se clnica, numa inverso aparentemente contraditria, uma vez que nesse contexto, a psicologia teria tudo para reinar absoluta, para definir o o qu e o como as coisas devem ser feitas. Afinal, pela formao, pela regulamentao da profisso bem como pela expectativa do pblico e dos agentes institucionais, esse o territrio-rei do psiclogo. No entanto, ao partir da especificidade de atuao do psiclogo nesse contexto, como que num movimento de boomerang, acabamos por considerar o consultrio como instituio e isto nos

exigiu esclarecer, cada vez mais, o campo conceitual desse modo de pensar e fazer e pensar a psicologia, j ento reconhecida como Psicologia Institucional. O presente artigo visa a revisitar tais discusses, desenvolvidas nesses quase 20 anos de trabalhos contnuos e intensos. Visa a demonstrar a sustentabilidade da estratgia de pensamento que assim se organizou, no tempo e pela experincia concreta e refletida, para hoje tratar a psicologia institucional, no como uma rea de atuao profissional, ao lado daquelas j conhecidas (clnica, social e do trabalho, escolar, experimental), mas como um modo de fazer concretamente a psicologia; um modo de produzi-la na interface com outras modalidades do conhecimento humano, confi-

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gurando a seu objeto e exercendo-se ela prpria como instituio. Parece infindvel essa tarefa: demonstrar a viabilidade de pensar a psicologia como instituio e da derivar a ideia de que onde e como quer que se a exera, estaremos de algum modo reafirmando esse seu carter; estaremos produzindo e/ou reproduzindo uma prtica, um conjunto de relaes, que reconhecemos legtima e naturalmente ser... psicologia.

PSICOLOGIA: INTENO E EXTENSO


H aproximadamente trs dcadas, comeou a se tornar visvel, entre ns, a preocupao de estender a psicologia para alm das reas em que habitualmente se exercia: pesquisas de laboratrio, psicodiagnstico, psicoterapias, treinamento e seleo profissional, predominantemente. Por currculo e por lei, ora mais e ora menos contraditoriamente1, o ensino e a atuao profissional vo produzindo o desenho de uma psicologia que no parece querer ficar margem das reflexes filosficas e sociolgicas, feitas nas salas de aula, ou margem de aes polticas das agremiaes estudantis e dos movimentos sociais e comunitrios em geral. Nesse desenho da profisso, ganhou espao o trabalho junto a instituies (aqui entendidas como organizaes), sobretudo as de sade, educao e promoo social. Em 1982, o governo do estado de So Paulo abriu vagas para psiclogos, nos servios pblicos, contribuindo para a extenso dos limites institucionais da profisso. Vrios egressos das faculdades dirigiram-se para esses atendimentos que tomaram um carter multiprofissional, dada a abertura feita, tambm em outras reas. Os mestres universitrios e profissionais mais experientes (entre eles, estavam psiclogos e psicanalistas que migraram da Argentina para c) dedicavam-se superviso desses trabalhos. No tardou a aparecer uma disciplina na Universidade de So Paulo, ainda optativa: Psicologia Institucional2. Com o passar do tempo, os currculos de outras faculdades foram incorporando o mesmo ttulo. assim que, cada vez mais, psicologia e instituio vai se tornando um binmio conhecido e reconhecido. Tal efeito, no entanto, no resolve as questes oriundas de um trabalho que, apesar de tudo, ainda no tinha um respaldo suficiente na formao e no currculo. E, sendo as prticas concretas o carro-chefe, multiplicaram-se, quase s raias da disperso, os modos de compreenso e interveno. Estamos falando agora do estado das coisas no final da dcada de 1980

e incio da de 1990. Isto de tal forma que parecia haver tantos modelos de trabalho quantos fossem os mestres e supervisores em campo. Uns se diziam sociopsicanalistas, outros psiclogos institucionais, outros ainda, analistas institucionais (e aqui, agrupava-se a maior variedade de posies, desde os adeptos de Lapassade at os de seu parceiro intelectual, Lourau; ou, desde os que assinavam uma autoria pessoal at os que se filiavam orientao de Delleuze e Guattari; e assim por diante). Apesar da liberalidade na nomeao daquilo que faziam, profissionais e autores sobre o tema produziam trabalhos at certo ponto diferentes sob a insgnia institucional. Em parte, deriva dessa diversidade, no limite da indiferenciao, uma vantagem para o exerccio da psicologia: multiplicaram-se (e se multiplicam) iniciativas e tentativas de alargar os horizontes do pensamento e do fazer concreto, extrapolando os j distantes limites legais e provocando os psiclogos a abandonar determinadas certezas cristalizadas em suas modalidades de atuao, para abraar desafios ainda muito tensos e informes. O que est longe de ser algo negativo. Gradativamente, permanecem dois ttulos a significar os trabalhos junto s instituies, como se costuma dizer: Psicologia Institucional e Anlise Institucional. Seriam elas a mesma coisa? A rigor, no. Vejamos.

A PSICOLOGIA INSTITUCIONAL DE BLEGER: UMA INTERVENO PSICANALTICA


Psicologia Institucional um termo cunhado por J. Bleger, psiquiatra argentino de orientao psicanaltica inglesa, que a um certo momento, buscou aliar psicanlise e marxismo para pensar a atuao do profissional em psicologia, para alm das prticas teraputicas e consultorias. Em nome dele e por meio de seus escritos, nos idos de 1970, a Psicologia Institucional cruzou fronteiras e, assim, apesar dos efeitos da represso poltica que forava os mais inquietos a falarem de lado e olharem para o cho3, novos ares pareciam poder soprar nestes brasis. Trabalhar com psicologia institucional, portanto, trabalhar com uma determinada abordagem psicanaltica especfica. E, como Bleger o define, com essa abordagem, toma-se a instituio como um todo, como alvo da interveno. Em seu livro Psicohigiene e Psicologia Institucional (Bleger, 1973/1984), fica claro que o psiclogo opera com os grupos, desde os de contato direto com a clientela at a direo, por
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meio de um enquadre que preserva os princpios bsicos do trabalho clnico psicanaltico, bem como suas justificativas. Ainda: a compreenso que tem das relaes interpessoais guarda uma formulao muito interessante: a da simbiose e ambiguidade nos vnculos e ele mesmo aproxima essa compreenso s ideias de M. Klein a respeito de posies nas relaes de objeto; mais do que ao conceito de narcisismo em Freud (Bleger, 1977/1987). Tudo isto implica que se algum se diz trabalhando com psicologia institucional, estar, ao mesmo tempo, tomando, tanto a instituio e suas relaes quanto a interveno do psiclogo, a partir de uma perspectiva psicanaltica; ou da perspectiva de uma psicanlise. Interpretaes ou assinalamentos, informados por esta compreenso das relaes institucionais, definem sua insero nos grupos, seu fazer. Assim, apenas sumariada, a proposta de Bleger perde muito de sua riqueza e fora... operativa. Para que se lhe faa justia e para que se possam apreciar as alteraes que ele mesmo faz na psicanlise que em princpio credita, recomendosobretudo a leitura dos textos O Grupo como Instituio e o Grupo nas Instituies (Bleger, 1979/1981) e Psicologia Institucional (Bleger, 1973/1984).

A ANLISE INSTITUCIONAL DE LAPASSADE: UMA INTERVENO POLTICA


Anlise Institucional, por sua vez, o nome dado a um movimento que supe um modo especfico de compreender as relaes sociais, um conceito de instituio e um modo de insero do profissional psiclogo que de natureza imediatamente poltica. Desalojado do lugar de intrprete dos movimentos grupais ou interpessoais, ele no se delega a tarefa diferenciada da interpretao ou de assinalamentos; ele , acima de tudo, um instigador da autogesto dos grupos nas organizaes, um favorecedor da revelao dos nveis institucionais, desconhecidos e determinantes do que se passa nesses grupos. um provocador de rachaduras e rupturas na burocracia das relaes institudas. Est do lado do instituinte, ainda que se questione sempre esse lugar e a prpria anlise como facilitadores da liberao da palavra social dos grupos (Lapassade, 1974/1977). O idealizador da Anlise Institucional Georges Lapassade, psiclogo de formao, que passou a trabalhar com psicossociologia e prosseguiu com um intrigante caminho intelectual e poltico, o qual desembocou nesse movimento autodenominado Anlise Institucional.
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Por que movimento? Porque, num tom acalorado e ruidosamente polmico, em princpio pelo estilo de sua escritura, praticamente, convoca adeptos a uma causa4. Prope uma forma de agir e pensar que deveria mobilizar todos os nveis institucionais ao mesmo tempo; e isto seria justificvel por finalidades polticas (supostamente) bvias (e) que todo leitor deveria ter! Funciona quase como uma convocao militncia. E o leitor se sente nessa condio de chamado aos brios: Mexa-se! O que voc est fazendo a sentado? Venha engrossar as fileiras dos que rompem com a burocracia, liberam a palavra social e fazem a revoluo permanente!. Tal chamado, porm, como uma segunda voz nos escritos de seu livro mais conhecido entre ns (Lapassade, 1974/1977), traz j a ambiguidade, assumida por ele, de apresentar e criticar radicalmente a Anlise Institucional que ele mesmo prope. No Prlogo Segunda Edio dessa obra, acaba por dizer, enfaticamente, sobre a ineficcia da Anlise Institucional, na medida em que conta com a ao de tcnicos como coordenadores e preceptores de mudana; a menos que se queira considerar, por um artifcio, que a anlise se d no nvel da palavra e, portanto, no tem relao automtica com uma mudana na ao concreta. Por isso, no menos enfaticamente, afirma que o que se deve fazer a Ao Direta (anlise em ato), por aqueles mesmos que constituem os grupos de uma determinada instituio e/ou organizao, com as lideranas nascidas de seu interior. Segundo ele, essa a verdadeira revoluo permanente que decapita o rei, as instituies sociais dominantes. Tudo, por inspirao dos momentos histricos da revoluo de 1968, na Frana, e ainda visando liberao da palavra social. Ora, poucos anos mais tarde, registra-se em um Prlogo Terceira Edio, que a liberao a ser feita a do corpo e que o que, ento, se sustenta como ao de um profissional da psicossociologia e da psicologia Crise Anlise. So de Lapassade distines conceituais importantes que parecem frequentar o discurso de institucionalistas e de psiclogos afeitos a essa perspectiva de trabalho. Nem sempre citada a fonte, alguns desses termos parecem ter ganhado um sentido muito prximo ao de sua origem nesses outros discursos. A primeira delas a distino instituinte/institudo. O instituinte uma dimenso ou momento do processo de institucionalizao em que os sentidos, as aes ainda esto em movimento e constituio; o carter mais produtivo da instituio. O institudo a cristalizao disso tudo; o que, na verdade, se confunde com a prpria instituio.

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A segunda a distino entre dois outros termos: organizao e instituio. Organizao um nvel da realidade social em que as relaes so regidas por estatutos e acontecem no interior de estabelecimentos, espaos fsicos determinados. A instituio o nvel da lei ou da Constituio que rege todo o tecido de uma formao social; est acima dos estatutos das organizaes. Ainda, segundo Lapassade, a instituio pode ser considerada o brique-braque das determinaes daquilo que atravessa os grupos de relao face a face numa organizao social. A sala de aula exemplar nesse sentido: a relao entre as pessoas regida por normas que, em ltima instncia, esto apoiadas no que prev a lei maior para o ensino; nesse contexto, o professor poder ser considerado um representante do Estado frente a seus alunos. Menos conhecida a concepo de burocracia que anima essa proposta. Em poucas palavras, a novidade que esse autor nos apresenta a de que burocracia , em princpio, uma questo de poder. Uma questo de diviso no poder, entre grupos de deciso e grupos de execuo do fazer institucional, sendo que os primeiros decidem no apenas o que, mas tambm, o como fazer. A normatizao e a comunicao vm de cima para baixo, e no h previso de canais legais ou legtimos para que essa relao se inverta. A regra de ouro a obedincia e a organizao acaba sendo um fim em si mesma. Indivduos e grupos acabam se munindo de um radar que possa sondar as necessidades e interesses que no os prprios. a heteronomia de grupos e sujeitos, que corre em sentido oposto ao da autonomia. Sobretudo com essa concepo de burocracia, Lapassade faz um mapeamento das relaes institucionais, trazendo para elas a organizao da separao, pelo poder de deciso, e a produo de sujeitos sem autonomia, alienados e alienadores da palavra social. As relaes de poder e a ideologia tm, assim, seu contexto constituinte5. Podemos derivar da um alvo para ao do psiclogo. E, com isso, voltamos ao incio e ttulo desse item: trata-se, nessa perspectiva, de um trabalho imediatamente poltico, e apenas mediatamente psicolgico. Tudo o que aqui se apressou em dizer apenas um convite ao leitor para que consulte esse intrigante livro (Lapassade, 1974/1977). Como dissemos anteriormente, a nomeao Anlise Institucional estendeu-se a uma variedade de compreenses e modos de atuao, sobretudo os psicanalticos. De tal forma que, hoje, a referncia comum tem

sido o fato de se tratar de trabalhos institucionais e/ou junto a instituies. Em geral, quando conduzidos na forma de superviso do trabalho de profissionais de ao direta.

O EXERCCIO DA PSICOLOGIA COMO INSTITUIO


At aqui, buscamos caracterizar o contexto do exerccio profissional da psicologia, em que foi se constituindo e firmando uma modalidade de interveno que saa do mbito dos atendimentos clnicos, das pesquisas laboratoriais, das escolas e das empresas, como ocasio de psicodiagnsticos, selees e treinamentos; que saa, ao mesmo tempo, do permetro legal que havia sido conquistado, estendendo-se e produzindo outros sentidos (extenses e intenes); constituindo uma modalidade de interveno que, com isso, passa a se dizer institucional ao ser exercida junto a instituies. O leitor poderia considerar que a frase acima , praticamente, um pleonasmo: institucional porque junto a instituies. Na verdade, ela porta uma diferenciao bastante significativa e que tentarei a partir de agora esclarecer. Voltando ao incio deste texto, essa a tarefa que me parece infindvel: a de demonstrar essa diferena. Bem, toda diferena exige que se anuncie o outro polo, ou simplesmente, o contraponto. Tendo eu iniciado meus estudos tericos sobre o assunto, ao vivo, com institucionalistas, em geral argentinos, fui depois, aos poucos, me dirigindo a leituras vindas dalm mares. Primeiramente, Lapassade teve efeitos em minha prtica profissional, que eu passava, ento, a designar como se dando no nvel organizativo/poltico, do interior do exerccio da prpria psicologia. Depois, mais diretamente, entro em contato com os escritos de Michel Foucault, por influncia de um autor nacional, Jos Augusto Guilhon Albuquerque. Enquanto isso, os estudos da psicanlise de Freud e, com o tempo, da Anlise do Discurso Francesa no que dela dava a conhecer Dominique Maingueneau, foram ganhando espao. Como quem no se poupa de colocar no papel as ideias que lhe comeam a fazer sentido, sobretudo porque elas faziam sentido no exerccio concreto da psicologia, (no ensino e nas atuaes profissionais que marcadamente guardavam uma perspectiva sempre institucional) escrevi dois livros. E, a partir da, no parei mais de enfrentar as implicaes de assim pensar; isto, num dilogo com as produes desses autores bem como numa interlocuo com os
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alunos dos cursos que ministro, com os orientandos e suas pesquisas, com os trabalhos de colegas afeitos tambm ao estudo das instituies e da psicologia como profisso. A clnica psicanaltica como anlise de discurso e a questo do sujeito na pesquisa em psicologia tm sido, ultimamente, ocasio de prosseguir organizando as ideias e, nisso, demonstrar que possvel configurar uma estratgia de pensamento que tome a psicologia como instituio do conhecimento e da prtica profissional, onde e como quer que ela se d, na ao direta de seus atores: o psiclogo e seu cliente, o professor e seus alunos, o escritor e seus leitores. E se o leitor estiver, agora, um pouco reticente quanto s possibilidades dessa estratgia de pensar, no lhe tiro a razo, mas fao disso um desafio para a demonstrao de sua viabilidade. Mais: inicio pelo recorte conceitual que precisou ser feito para que essa psicologia institucional, que ora apresentamos, mostre a que veio. A ponto de o ttulo Psicologia Institucional, tomado para nomear prticas psicolgicas junto s instituies/organizaes conforme se viu nos modelos anteriores, mostrar-se limitado, pois enfatiza, ou melhor, pode recair numa questo de reas de atuao. Nossa proposta visa a dizer, no de uma rea de atuao, mas de um certo dispositivo metodolgico, de um certo modo de produzir psicologia.

O CAMPO CONCEITUAL DESSA NOVA PROPOSTA


A base diferencial de nossa proposta o conceito de instituio com que trabalhamos: conjunto de relaes sociais que se repetem e, nessa repetio, legitima-se (Guilhon Albuquerque, 1987/2004). Essa legitimao se d, em ato, pelos efeitos de reconhecimento de que essas relaes so bvias e que naturalmente sempre foram assim. D-se, ao mesmo tempo e complementarmente, pelos efeitos de desconhecimento de sua relatividade. A escola, por exemplo, uma criao da modernidade, mas muito pouco provvel que seus agentes e sua clientela consigam imaginar a relatividade dessa forma de ensinar. Professores e alunos, na repetio silenciosa dos rituais cotidianos e na sutil disciplinarizao de corpos e pensamentos, reconhecem que se pode at pensar e melhorar uma ou outra coisa, mas, para ensinar tem que ter escola! E que sempre foi assim! No detalhe: comum ouvir de professores queixas com relao aos desmandos de coordenadores e supervisores de seus trabalhos e, enquanto isso, com exigncia no menos veemente, no abrem mo de receber uma programao pronta para suas aulas. Da
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parte dos alunos: quanta relutncia em aprender a pensar, quando isto significa desacomodar-se da posio de ouvinte e do privilgio conquistado de diluir-se no conjunto da sala ou de um grupo de trabalho, para responder por uma leitura ou pelo trabalho pessoal de um texto! O mais importante nessa compreenso de instituio que ela nos coloca, na qualidade de agentes ou de clientela, como atores em cena. a nossa ao que faz a instituio. Que a reproduz e legitima. Inclusive, no que diz respeito aos efeitos de reconhecimento e desconhecimento. Assim, no h porque se referir instituio como um corpo estranho, acima de nossas cabeas, com vida prpria e independente de ns. Ns a fazemos. E, mesmo que revelia de nossa conscincia, reconhecemos como natural e legtimo esse fazer. Alm disso, toda instituio constitui um objeto (imaterial, impalpvel): aquilo (ou a relao bsica) em nome de que ela se faz, e cujo monoplio reivindicado numa delimitao de mbito de ao com outras instituies (Guilhon Albuquerque, 2004). A cura, por exemplo, pode ser considerada o objeto das prticas mdicas; o das prticas escolares pode ser considerado no apenas o ensino formal, como tambm a direo e a disciplina dos atos dos educandos, inclusive para alm dos muros escolares, com a aquiescncia (e a convite) da famlia (vide palestras de mdicos, psiclogos e educadores sobre o uso de drogas, que as escolas tm oferecido aos pais, muitas vezes a pedido destes). Por fim, cabe ainda destacar que toda instituio, basicamente, se constitui na e pela relao de clientela; isto , na relao de agentes institucionais com os clientes dessas instituies. Estes ltimos demandam um determinado servio e os primeiros se destinam a prest-lo. nessa relao que se define a tenso entre posse e alienao do objeto institucional. Uma relao de poder, portanto, um jogo de foras poder/resistncia, que no se d seno no e pelo discurso. Chegamos desse modo ao outro termo definidor do campo conceitual de nossa proposta: discurso. Com Michel Foucault, tomamos o discurso como ato, dispositivo, instituio, que define, para um determinado momento histrico e para uma regio geogrfica, as regras da enunciao. Nele e por ele, como dissemos acima, o jogo de foras poder/resistncia se exerce e a produo de um saber ou verdade se faz concreta (Foucault, 1985, 1997). O leitor pode estranhar que, ao falar discurso, no usamos a palavra palavra. O que queremos dizer

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com isso? Afinal, discurso no tem a ver com fala? De todo modo sim. De certo modo, no. Se sublinharmos nessa concepo que o discurso dispositivo que define as regras da enunciao, entramos no campo da palavra. Mas, da palavra, entendida como o modo de enunciar e, at certo ponto, como cena enunciativa, que posiciona personagens, que distribui lugares e expectativas em torno desses lugares, como diria o linguista e analista do discurso, Dominique Maingueneau (1987/1989). O que importa, porm, considerar, com Foucault, que os discursos so dispositivos-ato, (por)que supem para seu exerccio uma posio, um lugar, que um lugar na enunciao; isto , um lugar prenhe de palavras para ouvir e para falar; com os efeitos que isto pode ter sobre a ao de um e outro em relao, num determinado contexto. Um exemplo pode vir em nosso socorro, para que as palavras no abusem da compreenso com sua aridez. Falemos do dispositivo da clnica psicanaltica como discurso. Um observador atento pode perceber que os consultrios dos analistas tm um design que guarda semelhanas bsicas. Moda? Muito provavelmente no. Do ambiente fsico at o modo de se vestir, andar e se dirigir ao paciente, sobretudo nas primeiras entrevistas, h um regramento implcito da conduta do profissional que o faz sentir-se parte de uma comunidade discursiva6: aquela dos que so analistas ou psicoterapeutas que trabalham com essa orientao. Pertencer a essa comunidade faz supor, por sua vez, que falam a mesma lngua. Isso significa que, ora mais e ora menos diretamente, aprenderam das mesmas fontes tericas, leram e creditaram os mesmos autores; ou seja, comungam as mesmas teorias e se autorizam a dizer em nome dos mesmos mestres. Tambm, isso implica um modo de pensar o que devem fazer como analistas, o que anlise, quem o paciente, porque sente o que sente, at onde se pode ir num determinado processo. Tudo isso se d por um sutil enlaamento dos efeitos das prticas de formao aos da prpria repetio cotidiana dos atendimentos. Sutil, porque o reconhecimento que fazemos da teoria que aprendemos, como verdade sobre uma pessoa concreta que nos procura, legitimao, naturalizao muda do conhecimento constitudo. E, tudo isso se passa revelia de nossas conscincias. Assim, quando recebemos um paciente em nosso consultrio, nossa escuta se plasma nessa histria da formao e da pertena aos grupos que falam a mesma lngua. Costumo dizer que o ouvimos (ao paciente)

com as palavras que temos para ouvi-lo (Guirado, 1986/2006). No momento em que diz por que nos procurou, isto j ser ouvido como queixa ou demanda. E cada uma dessas palavras tem sentido muito particular, na medida em que compem com o discurso de orientao inglesa (queixa) ou francesa (demanda). A partir da, podemos imaginar que o problema ou sofrimento que passa a contar ser tomado na rede de sentidos das teorias que o analista professa: como fantasia inconsciente, transferncia, posio esquizoparanoide ou depressiva, fala ou desejo imaginrio, simblico ou, como o real. s vezes, numa aplicao direta do saber aprendido; s vezes, numa traduo um pouco mais sofisticada. Ora, como se pode notar, entre o dizer do cliente e o ouvir do terapeuta h um desconhecimento constituinte (estrutural, por assim dizer) de sentidos. E, tudo isso discurso. Discurso-ato-dispositivo (Guirado, 1986/2006), que vai desde a pertena ao grupo dos que sabem sobre o inconsciente e preparam o ambiente fsico em que este ser dito, experienciado ou vivido na relao com o profissional, at as interpretaes nossas de cada dia. Claro, sempre com a participao do paciente, o que porta o discurso da procura por atendimento e, nesse gesto, expe-se compreenso que dele tem o analista.

A PROPOSTA
Entre filsofos, linguistas e socilogos, como posicionar uma proposta para pensar a psicologia e faz-lo na qualidade de psiclogos? Parece contra-senso falar em especificidade de atuao profissional e operar conceitualmente na interface com outras reas do conhecimento. No entanto, como disse certa vez Maingueneau (2000), preciso pensar com paradoxos. Ou ainda, s na interface marcam-se os limites do prprio. Vejamos. Com o conceito de instituio com o qual trabalhamos, podemos considerar a psicologia como instituio do conhecimento e da prtica profissional. Com o conceito de discurso como dispositivo-ato-instituio, podemos tomar o exerccio da psicologia como discurso que produz e reproduz verdades, num jogo de foras poder-resistncia. Fazemos, portanto, desses termos, que no se estranham, o quadro referencial, a estratgia de pensamento, para dizer do que se faz quando se diz fazer psicologia. Pensar a psicologia como instituio exige configurar-lhe um objeto, algo (imaterial, impalpvel) em nome de que ela se exerce e sobre que reivindica monoplio de legitimidade.
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Diante da reconhecida e decantada diversidade de psicologias que a histria de nossa disciplina e profisso constituiu, torna-se necessrio fazer um recorte intencional, uma escolha, para dizer de qual psicologia falamos. Em nosso caso, optamos por um recorte que a aproxima da psicanlise e, da, pudemos considerar como sendo seu objeto: as relaes, mas no aquelas imediatamente observveis, e sim, tal como percebidas, imaginadas, por aqueles que concretamente as fazem (Guirado, 1987/2004). Esse objeto institucional d destaque s relaes. Ora, de quais relaes falamos? Daquelas que fazemos vida a fora, com direito a pensar nas relaes significativas, com as figuras parentais, desde o bero do quarto que, segundo Freud, so tambm o bero de toda subjetividade e vida social possvel (Freud, 1921/1981b). De um lado, segundo a psicanlise, supe-se que essas relaes sejam imaginarizadas por aqueles que a vivem, criando o universo do psquico ou do psicolgico. De outro, pode-se considerar que a famlia uma instituio que se faz pela ao concreta de seus atores: pais, filhos e aproximados. Nesse caso, a histria de vnculos de algum se reedita, historicamente, na singularidade de sua organizao e numa variao ou movimento de mudana inevitavelmente exigida, uma vez que as re-edies se fazem sempre na medida em que se ocupam lugares em outras instituies. Movimento, repetio, regularidade e singularidade: termos dspares, que de forma paradoxal, articulam-se para falarmos de um sujeito psquico porque institucional, ou do matriciamento institucional do sujeito psquico, ou ainda, da metfora do sujeito-dobradia (Guirado, 1987/2004, 1986/2006; Guirado & Lerner, 2007). O carter denso e obscuro do pargrafo anterior se tentar explicar a partir de agora. Mas, que se registre: ele traz a chave para o entendimento do modo de pensar que ora se prope. Os exemplos mais uma vez se prestam ao esclarecimento. Imaginemos uma situao de sala de aula em que um aluno discorda do modo como o professor conduz seu curso, e o faz em voz alta, enquanto seus colegas em atento silncio indicam, seno na totalidade pelo menos em parte significativa deles, concordar com sua fala. O aluno que discorda, muito provavelmente, re-edita, naquela situao, o lugar que se viu e se v ocupando nas relaes que estabelece desde sempre em sua vida e, como tal, na mais absoluta singularidade de ser, que construiu historicamente. No entanto, o fez num movimento que se regra pelas particularidades do lugar de aluno, falando a um professor. A cena assim constituda repe
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as tenses de uma relao de poder, repe o jogo de expectativas e dirige a um incerto ponto de desfecho a depender, sempre dos mesmos fatores: movimento, repetio, regularidades e singularidade. Tudo, historicamente construdo, tendendo ao reconhecimento de legitimidade de uma certa forma de se fazer o ensino e a aprendizagem. A insistncia na singularidade historicamente constituda o tributo conceitual psicanlise. A regularidade e a repetio, a ideia de lugares gestores de expectativas em atos que recolocam o jogo de foras e os procedimentos institucionais, justificam o operadores conceituais fronteirios a ela a que nos referimos anteriormente. E, como se procurou demonstrar, no se trata de justaposio de explicaes sobre um fato inconteste, observvel e portador de uma verdade natural e bvia que se queira, no mnimo demonstrar. Trata-se, sim, da produo de um modo de explicar que permita, ele tambm, um trnsito pontual de uma sociologia, uma lingustica e uma filosofia, para que com elas se opere, se produza, um modo de fazer psicologia. No mnimo, respiramos os ares das diferenas, para que no fechemos o circuito de uma instituio sobre si prpria, para que no levemos exausto o exerccio da mera repetio. Com essa postura e nessa perspectiva, um conceito psicanaltico ganha destaque, como o prprio leitor j pode ter percebido medida que falamos de reedies e repeties: o de transferncia. Se, no entanto, prosseguimos pensando nas bordas de um conhecimento, devemos investir novos esforos para a sua reinveno. A transferncia, termo criado por Freud para nomear uma classe de fenmenos psquicos que responde pela atualizao de padres inconscientes de relaes amorosas vividas no passado, e com outras pessoas, agora no presente (Freud, 1912/1981a). Essa ideia foi, no decorrer de toda sua obra, dita de diferentes maneiras, sem jamais comprometer seu sentido principal: re-edies ou fac-similes dos vnculos com as figuras significativas do incio da vida, quando uma situao atual se mostrar conveniente. Tal repetio a condio de anlise nas neuroses, uma vez que os conflitos afetivos podem ser revividos com o mdico, tornando-se ocasio para o conhecimento dos motivos inconscientes da conduta e, em funo disso, orientando a interpretao. Saindo do contexto em que originalmente esse termo fez sentido para ser pensado em outro, tanto da prtica clnica quanto da produo terica, para que no se faa uma extenso abusiva do conceito,

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necessrio que se proceda a ajustes que o potencialize nesse novo contexto e sua rede discursiva. Em certa ocasio escrevi sobre a exigncia desses ajustes, sob pena de se incorrer no risco de a teoria funcionar como ponto-cego na escuta do analista (Guirado, 1986/2006).Em outra ocasio, ainda, sugeri a necessidade de uma reinveno do conceito, mesmo na clnica da psicanlise, para que se ampliasse tal escuta. Isto, para inserir entre seus determinantes a ideia de que o discurso do analista faz parte do discurso em anlise e de que esse discurso pode transferir, para o contexto concreto de uma sesso, as teorias creditadas como verdade sobre o paciente, que assim se antepem sua fala (Guirado, 2000). Com mais razo esse trabalho se mostra importante, quando samos do setting consultorial para operar com os termos e procedimentos da psicanlise em outro contexto que no seja o seu de origem. O que implica essa reinveno? Em primeiro lugar, preservar o sentido de re-edio de lugares em relaes que de alguma forma marcam para a pessoa o reconhecimento de si e de sua posio; mesmo que disso no se d conta. Depois, considerar que a re-edio s se faz em relaes, por sua vez institudas, em meio a procedimentos e jogos de fora e de produo de verdades, que tambm deixam sua marca. A ttulo de exemplo: o atendimento psicolgico a internos da FEBEM (hoje, Fundao Casa) tem uma especificidade, mesmo considerando as diferenas que existem entre ele se dar no interior das Unidades da prpria FEBEM, ou no mbito fsico dos Servios que a Universidade presta Comunidade. A clientela que atendemos desenvolve expectativas muito particulares em relao ao terapeuta e seu trabalho, desde a feitura de relatrios de liberao ao juiz, at mais uma ocasio de liberdade, de sada. Por sua vez, o terapeuta (em geral estagirio desses servios) tambm desenvolve outras tantas expectativas (e medos, por que no?) em relao a este jovem que chega algemado ou se encontra em condies de privao de liberdade numa Unidade com uma centena de outros jovens como ele, num ptio. Talvez, prises ou amarras de c e de l marquem essa dupla, colocando um no lugar de quem atende e o outro do que ser ou atendido. Demandas parte (como se isso fosse possvel), no h como operar com a ideia de transferncia estrito senso, quando o que se coloca no lugar de psiclogo-terapeuta tem pequeno grau de liberdade em relao aos seus prprios estranhamentos, e quando seu parceiro em cena faz um percurso to diferente

daquele do cliente que procura um psiclogo em seu consultrio... Ento no d para trabalhar com essa clientela aos moldes da psicanlise? Claro que d! Mas a psicanlise dever fazer uma toro sobre seus pressupostos tericos e seus procedimentos habituais, e isto, em princpio, na cabea e na postura de seu agente (o terapeuta), ou o que se produzir sob esse ttulo correr o risco de ser uma mimesis incua e equivocada do que se prope fazer (anlise). Sob qualquer justificativa, segundo a estratgia de pensamento que estamos propondo, ser razovel o terapeuta entrar em cena levando o contexto imaginrio, por teoria ou por convico de experincias cotidianas exaustivamente repetidas, de um lugar de analista acima da situao concreta. Isto o levar, muito provavelmente, a construir, tambm no plano imaginrio, uma srie de explicaes que impliquem apenas o seu cliente em todos os reveses desse atendimento (por exemplo, ponderar e at interpretar como intimidao, feita pelo paciente ao analista, s raias da anulao do carter analtico do processo e do prprio analista; ou ento, como resistncia do que supostamente se pe cliente). Impossvel no considerar o quanto que o que pode ouvir do cliente est constitudo pelos medos e amarras da diferena e do desafio no suficientemente esclarecidos que esta situao apresenta. Finalmente, e no mnimo por uma questo de coerncia argumentativa, retomamos agora a questo do sujeito que as prticas psicolgicas produzem, que deixamos em suspenso, h alguns pargrafos. Nossa propositura, seguindo rigorosamente os argumentos, a de que somente quando se consideram os enlaamentos texto/contexto (nas palavras de Maingueneau), ou os efeitos de reconhecimento e desconhecimentos da repetio nas relaes institucionais, os lugares e a sobreposio de lugares quando duas prticas institudas se articulam, o peso dos procedimentos na naturalizao e legitimao de um discurso como ato e como instituio, que se pode trabalhar, na sua singularidade, aquilo que nos fala e o como se apresenta, se mostra e se fala o cliente. Da, a importncia conceitual de uma metfora como a do sujeito-dobradia. Com o movimento que as metforas nos permitem, podemos dizer que o sujeito das prticas psicolgicas esse singularmente constitudo nas relaes que faz, nos diferentes contextos que, por sua vez fazem sua histria desde o bero das (e nas) relaes com as figuras que se lhe
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apresentam como significativas, at estas que, nas diferentes situaes exemplares aqui retratadas, procuramos configurar. Se considerarmos o objeto institucional da psicologia como sendo as relaes tal como reconhecidas, imaginadas pelos que as fazem, onde quer que trabalhemos daremos foco subjetividade que nessas relaes se constitui.

DILOGOS COM A EXPERINCIA E OUTROS DISCURSOS


Quando um psiclogo convidado ou contratado para trabalhar numa instituio que no o consultrio, essas ideias e termos tm um modo muito particular de constituir sua experincia. E o primeiro fator a considerar o lugar que ocupa na ordem formal daquela prtica. Isto porque a partir da que ser visto, reconhecido, pelos demais agentes e pela clientela bem como se reconhecer e reconhecer os outros grupos em seu fazer cotidiano. Poder-se-ia dizer que esse lugar lhe confere um campo de viso e de visibilidade no imaginrio daquela instituio; e, ao mesmo tempo e ato, o mbito discursivo possvel do servio que poder prestar. Nada que no se possa mover, medida que tal trabalho se exerce. Mas, esse movimento exige a rigorosa disciplina de pensar, sempre, as direes de suas aes e as desses outros parceiros de lida diria. E quando se fala em mudana ou alterao, supe-se que ela ocorra fundamentalmente na postura e na perspectiva do psiclogo; e no, como se costuma imaginar, que o psiclogo deva transformar a realidade, como se fosse dele, o lugar predestinado crtica e alterao dos outros. At porque, se ao fazer sua psicologia ele se dispe a constantemente repensar o que e como se move nas relaes institudas, estar mobilizando um campo de foras e forando um caminho na contramo das repeties e automatismos caractersticos das instituies. assim que o desenho da profisso se diferencia. E, como faz parte das prticas institucionais, estas se alteram. Disse uma vez que psicologia institucional e onipotncia no combinam... De certa maneira, concordamos aqui com o que apresenta Lapassade: se algum profissional se atribui a funo de liberar a palavra social de um outro grupo, quebra, na base, as possibilidades de esse grupo se apropriar de sua palavra e assim, a burocracia, como uma questo de diviso no poder, se instaura no prprio trabalho do analista institucional.
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De certa maneira, tambm, com essa concepo, revemos as colocaes de Bleger sobre a funo social do psiclogo, como uma espcie de convocao moral ao transformadora da realidade. A condio de mudana no est voltada para fora ou justaposta ao exerccio da psicologia. No uma exigncia moral. uma tica intrnseca a esse exerccio; responder ao perigo representado pelas repeties inaudveis e discretas de procedimentos, de discursos, consagrados, naturalizados, legitimados. E j que voltamos a Bleger, uma questo delicada sempre retorna, quando da leitura de seu texto: segundo ele, o psiclogo institucional deve trabalhar na condio de assessor, para que seja garantida a autonomia tcnica. Como o contrato na qualidade de assessor raro e destinado a poucos profissionais, mais antigos e com uma experincia especificamente reconhecida, no recairamos numa quase impossibilidade da prpria psicologia institucional? Sim, porque os recm-formados, dificilmente seriam contratados na condio de assessores; entrariam como psiclogos, no organograma, ao lado de outros tcnicos como educadores-orientadores, assistentes sociais fisioterapeutas e assim por diante. Desse modo, a possibilidade de trabalhar com a autonomia do assessor, junto aos seus pares e junto direo, estaria comprometida, pois no seria reconhecido como quem pudesse ser autorizado para tanto. A bem da verdade, um lugar assim delimitado, determina, de certa forma, a apreenso que ele poder ter do conjunto das relaes institudas. Ser na qualidade de tcnico, submetido s exigncias caractersticas de seu cargo, em relao aos outros grupos institucionais que far parte do imaginrio ali constitudo. Que fazer, ento? Recusar todos os ensinamentos da Psicologia Institucional? No propriamente. Se retomssemos a ideia de retir-la da concepo de que seria uma rea da psicologia, ao lado de outras como a escolar, a organizacional, a clnica, a experimental, a comunitria, estaramos em vias da concepo de uma estratgia para pensar o que pode a psicologia produzir em seu exerccio. Tomar, portanto, a Psicologia Institucional (se ainda se quisesse preservar o nome) como mtodo, como estratgia de pensamento, ao invs de tom-la como mais uma rea de atuao com mtodos prprios. Por tal caminho, chegaramos a considerar que o psiclogo, mesmo contratado por 40 horas semanais ou encaixado no lugar de tcnico pelo organograma, poderia proceder a seu trabalho tendo como regra de ouro os cortes que fazem pensar. Isto implica a

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Marlene Guirado Bleger, J. (1984). Psicohigiene e psicologia institucional (E. Diehl & M. Flag, Trad.). Porto Alegre: Artes Mdicas. (Original publicado em 1973) Bleger, J. (1987). Simbiose e ambiguidade. (M. L. X. A. Borges, Trad.) Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Original publicado em 1977) Freud, S. (1981a). A dinmica da transferncia (J. Salomo, Trad.). Em J. Strachey (Org), Edio standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 131-143). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912) Freud, S. (1981b). A psicologia das massas e anlise do ego (J. Salomo. Trad.). Em J. Strachey (Org.), Edio standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 89-179). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1921) Foucault, M. (1985). Histria da sexualidade I: A vontade de saber (M. T. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Trad.). Rio de Janeiro: Graal. Foucault, M. (1996). A ordem do discurso (L. F. A. Sampaio, Trad.). So Paulo: Loyola. (Original publicado em 1971) Foucault, M. (1997). Arqueologia do saber (L. F. B. Neves, Trad.). Rio de Janeiro: Forense. Guilhon Albuquerque, J. A. (2004). A anlise de instituies concretas. Em M. Guirado (Org.), Psicologia institucional (pp. 83-103). So Paulo: EPU. (Original publicado em 1987) Guirado, M. (2000). A clnica psicanaltica na sombra do discurso. So Paulo: Casa do Psiclogo. Guirado, M. (2004). Psicologia institucional (2 ed.). So Paulo: EPU. (Original publicado em 1987) Guirado, M. (2006). Psicanlise e anlise do discurso: Matrizes institucionais do sujeito psquico. So Paulo: EPU. (Original publicado em 1986) Guirado, M., & Lerner, R. (2007). Psicologia, pesquisa e clnica: Por uma anlise do discurso. So Paulo: FAPESP-Annablume. Lapassade, G. (1977). Grupos, organizaes e instituies (H. A. Mesquita, Trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Original publicado em 1974) Maingueneau, D. (1989). Novas tendncias na anlise do discurso (F. Indursky, Trad.). Campinas: Pontes. (Original publicado em 1987) Maingueneau, D. (2000). Sobre o discurso e a anlise do discurso. Em M. Guirado (Org.), A clnica psicanaltica na sombra do discurso (pp. 21-31). So Paulo: Casa do Psiclogo.

ateno constante, como dissemos de incio, ao dos pressupostos tericos de nossa disciplina do conhecimento, antecipando-se a qualquer anlise de contexto. Implica tambm, mesmo que a partir de um lugar institucional restrito e restritivo (at porque, em qualquer instncia e por definio, um lugar institucional sempre o ), ter sempre em mente o conjunto das prticas em que se est inserido (ou, nas palavras de Bleger, a instituio como um todo), bem como as tenses entre os grupos nessas prticas, na apropriao daquele que se configura seu objeto, aquilo em nome de que a instituio se faz. Com essas atenes e disciplinas constitutivas de seu trabalho cotidiano, o psiclogo poder se dedicar a uma ao junto clientela (alunos de uma escola, pacientes de um Hospital-Dia, por exemplo), ou junto aos grupos que produzem e reproduzem a relao bsica daquela instituio (professores e alunos, ou atendentes e enfermeiros e os pacientes). Ela (a ao do profissional em psicologia) ser institucional se esta for a perspectiva do trabalho. E no, como habitualmente se pensa, para carrear o ttulo, dever-se- trabalhar com todos os grupos, principalmente com aqueles do grupo-gestor, detentores do poder de tomar decises que atinjam a todos. Como, concretamente, fazer isso? Acompanhando a distribuio de tempos e espaos/atividades na rotina diria (ou semanal); quem faz o que, como, quando. Acompanhando, ainda, as relaes seus conflitos e tenses, incluindo aquelas de que faz parte o prprio psiclogo. No para desenvolver paranoias, autocentramentos e onipotncias, mas para configurar o jogo de expectativas criadas nas relaes imediatas, como se responde a elas e a orientao que ento se segue. Com atenes assim aparentemente prosaicas, podemos nos dar conta do desenho dos procedimentos e dispositivos discursivos em jogo. E, o mais importante: podemos nos implicar nele como plos geradores de ao sobre a ao de outros, como plos de resistncia mudana, ou ao poder, simplesmente. Afinal, esse o norte para que aponta o ttulo do texto: o exerccio da psicologia como instituio...

REFERNCIAS
Bleger, J. (1981). Temas da psicologia (R. M. M. Moraes & L. L. Rivera, Trad.). So Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1979)
Recebido: 28/05/2007 ltima reviso: 12/10/2009 Aceite final: 20/10/2009

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Notas:
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Por exemplo, a lei que regulamentou a profisso previa que os psiclogos se dedicassem ao psicodiagnstico e modificao de comportamento, onde fossem chamados a intervir: educao, orientao profissional, problemas de aprendizagem e assim por diante. As terapias no foram, em princpio, consideradas campo de atuao em psicologia. No entanto, uma espcie de desobedincia civil foi, como quem nada quer, mais e mais, legitimando as psicoterapias como rea de atuao em psicologia. Talvez pelo acotovelar entre mdicos e psiclogos, nas Sesses Plenrias do Congresso, nossa profisso contentou-se com uma regulamentao que mais restringia do que ampliava seu mbito e exerccio. Mas, o fato que, historicamente, apesar do peso que o psicodiagnstico veio a ter, at em funo da presena extensa das disciplinas de testes durante a formao, em menos de 10 anos de lei, outras prticas psicolgicas foram se impondo e abrindo mercado de trabalho. Tambm, o ocaso dos tempos de ditadura militar encontrou o ensino da psicologia modificado pela ao de professores que passaram a ministrar disciplinas que buscavam refletir sobre as relaes entre psicologia e sociedade. Dentre eles: Dante Moreira Leite, Sylvia Leser de Mello, Maria Helena Patto e Ecla Bosi, s para citar alguns expoentes da USP. No incio da dcada de 1980, pelas ideias de argentinos como Pichn-Rivire e Bleger, um certo modelo de trabalho com grupos dentro e fora das organizaes, bem como uma forma de interveno com o conjunto dos grupos, sobretudo em organizaes de sade e de educao ou em comunidades, sob o ttulo de Psicologia Institucional, ganha corpo e adeptos sedentos de propostas concretas de atuaes sociais com psicologia e psicanlise. Em 1982, como docente da USP, propus a disciplina Psicologia Institucional, como optativa, no programa de graduao. Somente em 2003, com o novo currculo implantado, ela veio a constar como obrigatria. Apesar de ter sempre trabalhado como psicloga numa perspectiva scio-institucional e de tratar das articulaes entre psicologia, sociologia e poltica, no momento da propositura da referida disciplina, no me dei conta do quanto organizava de forma particular, um contexto de atenes mais amplo, no que diz respeito nossa profisso. Uma referncia a Chico Buarque em Apesar de Voc (1971). Leia-se para comprovar essas impresses, o Prlogo segunda edio em Grupos, Organizaes e Instituies (Lapassade, 1974/1977). Com isso Lapassade se distancia de uma concepo de ideologia e de instituio que se firmou pela orientao marxiana de L. Althusser, em A Ideologia e os Aparelhos Ideolgicos do Estado (1974). Conceito introduzido por Maingueneau (1987/1989), de certa forma apoiado no de sociedades discursivas de Foucault (1971/1996): procedimentos de circulao de um discurso, que supe o regramento das condutas como sinal de pertena a um determinado grupo.

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Sobre a autora: Marlene Guirado: Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. Endereo para correspondncia: Rua Canrio, 755 apto 71 Moema 04521-003 So.Paulo/SP. Endereo eletrnico: [email protected].

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