A Moreninha
A Moreninha
A Moreninha
A MORENINHA
Notas
LUCIANA SOLDI
So Paulo 2000
NDICE
Duas Palavras
Eis a vo algumas pginas escritas, s quais me atrevi a dar
o nome de Romance. No foi ele movido por nenhuma dessas
trs poderosas inspiraes que tantas vezes soem aparar as penas
dos autores: glria, amor e interesse. Deste ltimo estou eu bem
a coberto com meus vinte e trs anos de idade, que no na
juventude que pode ele dirigir o homem; da glria, s se andasse
ela cada de suas alturas, rojando asas quebradas, me lembraria
eu, to pela terra que rastejo, de pretender ir apanh-la. A
respeito do amor no falemos, pois se me estivesse o bulioso a
fazer ccegas no corao, bem sabia eu que mais proveitoso me
seria gastar meia dzia de semanas aprendendo numa sala de
dana, do que velar trinta noites garatujando o que por a vai.
Este pequeno romance deve sua existncia somente aos dias de
desenfado e folga que passei no belo Itabora, durante as frias
do ano passado. Longe do bulcio da Corte e quase em cio, a
minha imaginao assentou l consigo que bom ensejo era esse
de fazer travessuras e em resultado delas saiu a Moreninha.
Dir-me-o que o ser a minha imaginao traquinas no um
motivo plausvel para vir eu maar a pacincia dos leitores com
uma composio balda de merecimento e cheia de irregularidade
e defeitos; mas o que querem? Quem escreve olha a sua obra
como seu filho e todo o mundo sabe que o pai acha sempre
graas e bondades na queria prole.
Do que vem dito concluir-se- que a Moreninha minha
filha, e exatamente assim penso eu. Pode ser que me acusem por
no t-la conservado debaixo de minhas vistas mais tempo, para
corrigir suas imperfeies; e mostr-la depois digna do amor dos
leitores: esse era o meu primeiro intento. A Moreninha no a
nica filha que possuo: tem trs irmos que pretendo educar com
esmero; o mesmo faria a ela; porm, esta menina saiu to
travessa, to impertinente, que no pude mais sofre-la no seu
bero de carteira e, para ver-me livre dela, venho deposit-la nas
mos do pblico, de cuja benignidade e pacincia tenho ouvido
grandes elogios.
Eu, pois, conto que, no esquecendo a fama antiga, o
pblico a receba e lhe perdoe seus senes, maus modos e
leviandades. uma criana que ter, quando muito, seis meses
de idade; merece a compaixo que por ela imploro; mas, se lhe
notarem graves defeitos de educao, que provenham da
ignorncia do pai, rogo que no os deixem passar por alto;
acusem-nos, que da tirarei eu muito proveito, criando e
educando melhor os irmozinhos que a Moreninha tem c.
E tu, filha minha, vai com a bno paterna e queira o cu
que ditosa sejas; nem por seres traquinas te estimo menos, e,
como prova, vou, em despedida, dar-te um precioso conselho:
recebe, filha, com gratido, a crtica do homem instrudo; no
chores se com a unha marcarem o lugar em que tiveres mais
notvel seno, e quando te disserem que por este erro ou aquela
falta no s boa menina, jamais te arrepies, antes agradece e
anima-te sempre com as palavras do velho poeta:
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sentado em uma cadeira to desconjuntada que, para no cair
com ela, pe em ao todas as leis de equilbrio, que estudou em
Pouillet11; acol, enfim, o meu romntico Augusto, em
ceroulas12, com as fraldas mostra, estirado em um canap em
to bom uso, que ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se
lembrasse de Bocage13. Oh! V. Sas. tomam caf!... Ali o senhor
descansa a xcara azul em um pires de porcelana... aquele tem
uma chvena14 com belos lavores15 dourados, mas o pires cor-
de-rosa... aquele outro nem porcelana, nem lavores, nem cores
azul ou de rosa, nem xcara... nem pires... aquilo uma tigela em
um prato...
Carraspana!... carraspana!... gritaram os trs.
moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corre-
dor, traze-me caf, ainda que seja no pcaro16 em que o coas;
pois creio que, a no ser a falta de louas, j teu senhor mo teria
oferecido.
Carraspana!... carraspana!...
Sim, continuou ele, eu vejo que vocs...
Carraspana!... carraspana!...
No sei de ns quem mostra...
Carraspana!... carraspana!...
Seguiram-se alguns momentos de silncio; ficaram os quatro
estudantes assim a modo de moas quando jogam o siso17. Filipe
no falava, por conhecer o propsito em que estavam os trs de
11. Pouillet: Claude Servais Mathias Pouillet (1790-1868), fsico francs, autor
de estudos sobre a lei da compressibilidade dos gases e de experimentos
sobre as leis das correntes eltricas.
12. Ceroulas: pea de vesturio que cobre o ventre, as coxas e as pernas, usada
por baixo das calas.
13. Bocage: alude ao to conhecido epigrama de Bocage: Quando a velha
antigidade / Por estas casas entrou, / Disse quele canap: / Sua beno,
meu av. (N. do A.)
14. Chvena: xcara para ch, caf e outras bebidas.
15. Lavor: ornato em relevo, desenhos, entalhes.
16. Pcaro: pequeno vaso com asa, ordinariamente destinado a extrair lquidos
de outros recipientes maiores.
17. Jogar o siso: participar de uma brincadeira em que os integrantes se olham
detidamente, em silncio, perdendo aquele que rir ou falar primeiro.
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lhe no deixar concluir uma s proposio18; e estes, porque
esperavam v-lo abrir a boca para gritar-lhe: carraspana!...
Enfim, foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de
repente:
Paz! paz!...
Ah! j?... disse Leopoldo, que era o mais infludo19.
Filipe como o galego20, disse um outro: perderia tudo
para no guardar silncio durante uma hora.
Est bem o passado, passado; protesto no falar mais
nunca na carapua, nem nas cadeiras, nem no canap, nem na
loua do Leopoldo... Esto no caso... sim...
Hein?... olha a carraspana...
Basta! vamos a negcio mais srio. Onde vo vocs pas-
sar o dia de SantAna?
Por qu?... Temos patuscada21?... acudiu Leopoldo.
Minha av chama-se Ana.
Ergo22!...
Estou habilitado para convid-los a vir passar a vspera e
dia de SantAna conosco, na ilha de...
Eu vou, disse prontamente Leopoldo.
E dois, acudiu logo Fabrcio.
Augusto s guardou silncio.
E tu, Augusto?... perguntou Filipe.
Eu?... eu no conheo tua av.
Ora, sou seu criado23; tambm eu no a conheo, disse
Fabrcio.
Nem eu, acrescentou Leopoldo.
No conhecem a av; mas conhecem o neto, disse-lhes
Filipe.
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E ademais, tornou Fabrcio, palavra de honra que ne-
nhum de ns tomar o trabalho de l ir por causa da velha.
Augusto, minha av a velha mais patusca do Rio de
Janeiro.
Sim?... que idade tem?
Sessenta anos.
Est fresquinha ainda... Ora... se um de ns a enfeitia e
se faz av de Filipe!...
E ela, que possui talvez seus duzentos mil cruzados24, no
assim, Filipe? Olha, se assim, e tua av se lembrasse de
querer casar comigo, disse Fabrcio, juro que mais depressa diria
o meu recebo a vs aos cobres25 da velha, do que a qualquer
das nossas toma-larguras26 da moda.
Por quem so!... deixem minha av e tratemos da
patuscada. Ento tu vais, Augusto?
No.
uma bonita ilha.
No vou.
Reuniremos uma sociedade pouco numerosa, mas bem
escolhida.
Melhor para vocs.
No domingo, noite, teremos um baile.
Estimo que se divirtam.
Minhas primas vo.
No as conheo.
So bonitas.
Que me importa?... Deixem-me. Vocs sabem o meu fra-
co e caem-me logo com ele: moas!... moas!... Confesso que
dou o cavaco27 por elas, mas as moas me tm posto velho.
porque ele no conhece tuas primas, disse Fabrcio.
Ora... o que podero ser seno demoninhas, como so to-
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das as outras moas bonitas?
Ento tuas primas so gentis?... perguntou Leopoldo a
Filipe.
A mais velha, respondeu este, tem dezessete anos,
chama-se Joana, tem cabelos negros, belos olhos da mesma cor,
e plida.
Hein?... exclamou Augusto, pondo-se de pulo duas
braas28 longe do canap onde estava deitado, ento ela
plida?...
A mais moa tem um ano de menos: loira, de olhos azuis,
faces cor-de-rosa... seio de alabastro29... dentes...
Como se chama?
Joaquina.
Ai meus pecados!... disse Augusto.
Vejam como Augusto j est enternecido30...
Mas, Filipe, tu j me disseste que tinhas uma irm.
Sim, uma moreninha de quatorze anos.
Moreninha? diabo!... exclamou outra vez Augusto, dando
novo pulo.
Est sabido... Augusto no relaxa31 a patuscada.
que este ano j tenho pagodeado32 meu quantum
satis33; e, assim como vocs, tambm eu quero andar em dia com
alguns senhores com quem nos muito preciso andar de contas
justas no ms de novembro.
Mas a plida?... a loira?... a moreninha?...
Que interessante terceto! exclamou Augusto em tom tea-
tral; que coleo de belos tipos!... uma jovem de dezessete anos,
plida... romntica e, portanto, sublime; uma outra, loira... de
olhos azuis... faces cor-de-rosa... e... no sei que mais: enfim,
clssica e por isso bela. Por ltimo uma terceira de quatorze
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anos... moreninha, que, ou seja romntica ou clssica, prosaica34
ou potica, ingnua ou misteriosa, h de, por fora, ser
interessante, travessa e engraada; e por conseqncia qualquer
das trs, ou todas ao mesmo tempo, muito capazes de fazer de
minha alma peteca, de meu corao pitorra35!... Est tratado...
no h remdio... Filipe, vou visitar tua av. Sim, melhor
passar os dois dias estudando alegremente nesses trs
interessantes volumes da grande obra da natureza, do que gastar
as horas, por exemplo, sobre um clebre Velpeau36, que s ele
faz por sua conta e risco mais citaes em cada pgina do que
todos os meirinhos37 reunidos fazem e ho de fazer pelo mundo.
Bela conseqncia! raciocnio o teu que faria inveja a
um calouro, disse Fabrcio.
Bem raciocinado... no tem dvida, acudiu Filipe; ento,
conto contigo, Augusto?
Dou-te palavra... e mesmo porque eu devo visitar tua av.
Sim... j sei... isso dirs tu a ela.
Mas vocs no tm reparado que Fabrcio tornou-se
amuado38 e pensativo, desde que se falou nas primas de Filipe?...
Disseram-me que ele anda enrabichado com minha prima
Joaninha.
A plida?... pois eu j me vou dispondo a fazer meu p-
de-alferes39 com a loira.
E tu, Augusto, querers porventura requestar40 minha
irm?...
possvel.
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E de qual gostars mais, da plida, da loira ou da more-
ninha?...
Creio que gostarei, principalmente, de todas.
Ei-lo a com sua mania.
Augusto incorrigvel.
No, romntico.
Nem uma coisa nem outra... um grandssimo velhaco.
No diz o que sente.
No sente o que diz.
Faz mais do que isso, pois diz o que no sente.
O que quiserem... Serei incorrigvel, romntico ou velha-
co, no digo o que sinto, no sinto o que digo, ou mesmo digo o
que no sinto; sou, enfim, mau e perigoso, e vocs inocentes e
anjinhos. Todavia, eu a ningum escondo os sentimentos que
ainda h pouco mostrei, e em toda parte confesso que sou
volvel, inconstante e incapaz de amar trs dias um mesmo
objeto; verdade seja que nada h mais fcil do que me ouvirem
um eu vos amo, mas tambm a nenhuma pedi ainda que me
desse f; pelo contrrio, digo a todas o como sou; e, se, apesar de
tal, sua vaidade tanta que se suponham inesquecveis, a culpa,
certo, que no minha. Eis o que fao. E vs, meus caros
amigos, que blasonais41 de firmeza de rochedo, vs que jurais
amor eterno cem vezes por ano a cem diversas belezas... vs sois
tanto ou ainda mais inconstantes que eu!... Mas entre ns h
sempre uma grande diferena: vs enganais e eu desengano; eu
digo a verdade e vs, meus senhores, mentis...
Est romntico!... est romntico!... exclamaram os trs,
rindo s gargalhadas.
A alma que Deus me deu, continuou Augusto, sensvel
demais para reter por muito tempo uma mesma impresso. Sou
inconstante, mas sou feliz na minha inconstncia, porque,
apaixonando-me tantas vezes, no chego nunca a amar uma
vez...
Oh!... oh!... que horror!... que horror!...
Sim! esse sentimento que voto s vezes a dez jovens num
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s dia, s vezes numa mesma hora, no amor, certamente. Por
minha vida, interessantes senhores, meus pensamentos nunca
tm dama, porque sempre tm damas; eu nunca amei... eu no
amo ainda... eu no amarei jamais...
Ah!... ah!... ah!... e como ele diz aquilo!
Ou, se querem, precisarei melhor o meu programa senti-
mental; l vai: afirmo, meus senhores, que meu pensamento
nunca se ocupou, no se ocupa, nem se h de ocupar de uma
mesma moa durante quinze dias.
E eu afirmo que segunda-feira voltars da ilha de...
loucamente apaixonado de alguma de minhas primas.
Pode bem suceder que de ambas.
E que todo o resto do ano letivo passars pela rua de...
duas e trs vezes por dia, somente com o fim de v-la.
Assevero42 que no.
Assevero que sim.
Quem?... eu?... eu mesmo passar duas e trs vezes por dia
por uma s rua, por causa de uma moa?... e para qu?... para
v-la lanar-me olhos de ternura, ou sorrir-se brandamente
quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao lhe dar as
costas?... Para que ela chame as vizinhas que lhe devem ajudar a
chamar-me tolo, pateta, basbaque43 e namorador?... No, minhas
belas senhoras da moda! Eu vos conheo bastante... amante
apaixonado quando vos vejo, esqueo-me de vs, duas horas
depois de deixar-vos. Fora disto s queimarei o incenso da ironia
no altar de vossa vaidade; fingirei obedecer a vossos caprichos e
somente zombarei deles. Ah!... muitas vezes, alguma de vs,
quando me ouve dizer: sois encantadora, est dizendo consigo:
ele me adora, enquanto eu digo tambm comigo: que
vaidosa!
Que vaidoso!... te digo eu, exclamou Filipe.
Ora, esta no m!... Ento vocs querem governar o
meu corao?...
No; porm, eu torno a afirmar que tu amars uma de
minhas primas todo o tempo que for da vontade dela.
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Que mimos de amor que so as primas deste senhor!...
Eu te mostrarei.
Juro que no.
Aposto que sim.
Aposto que no.
Papel e tinta, escreva-se a aposta.
Mas tu me ds muita vantagem, e eu rejeitaria a menor.
Tens apenas duas primas; um nmero de feiticeiras muito
limitado. No sejam s elas as nicas magas que em teu favor
invoquem para me encantar. Meus sentimentos ofendem, talvez,
a vaidade de todas as belas e todas as belas, pois, tenham o
direito de te fazer ganhar a aposta, meu valente campeo do
amor constante!
Como quiseres, mas escreve.
E quem perder?...
Pagar a todos ns um almoo no Pharoux, disse Fabr-
cio.
Qual almoo! acudiu Leopoldo. Pagar um camarote no
primeiro drama novo que representar o nosso Joo Caetano44.
Nem almoo, nem camarote, concluiu Filipe; se perderes,
escrevers a histria da tua derrota, e se ganhares, escreverei o
triunfo da tua inconstncia.
Bem, escrever-se- um romance, e um de ns dois, o in-
feliz, ser o autor.
Augusto escreveu primeira, segunda e terceira vez o termo
da aposta; mas depois de longa e vigorosa discusso, em que
qualquer dos quatro falou duas vezes sobre a matria, uma para
responder e dez ou doze pela ordem; depois de se oferecerem
quinze emendas e vinte artigos aditivos, caiu tudo por grande
maioria, e entre bravos, apoiados e aplausos, foi aprovado, salva
a redao, o seguinte termo:
No dia 20 de julho de 18... na sala parlamentar da casa n....
da rua de... sendo testemunhas os seguintes estudantes Fabrcio e
Leopoldo, acordaram Filipe e Augusto, tambm estudantes, que,
se at o dia 20 de agosto do corrente ano, o segundo acordante
44. Joo Caetano: Joo Caetano dos Santos (1808-1863), pioneiro na criao
e formao da dramaturgia no Brasil.
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tiver amado a uma s mulher durante quinze dias ou mais, ser
obrigado a escrever um romance em que tal acontecimento
confesse; e, no caso contrrio, igual pena sofrer o primeiro
acordante. Sala parlamentar, 20 de julho de 18... Salva a
redao.
Como testemunhas: Fabrcio e Leopoldo.
Acordantes: Filipe e Augusto.
E eram oito horas da noite quando se levantou a sesso.
12
II
FABRCIO EM APUROS
13
moleque que servia Augusto, porque, dizia ele, tinha um papel
de importncia a mandar.
Eram dez horas da noite e nada do moleque. Augusto via-se
atormentado pela fome, e Rafael, o seu querido moleque, no
aparecia... que era ao mesmo tempo o seu cozinheiro, limpa-
botas, cabeleireiro, moo de recados e... e tudo mais que as
urgncias mandavam que ele fosse.
Com justa razo, portanto, estava cuidadoso Augusto, que
de momento a momento exclamava:
Vejam isto!... j tocou a recolher e Rafael est ainda na
rua!! Se cai nas unhas de algum beleguim50, no decerto, o sr.
Fabrcio quem h de pagar as despesas da Casa de Correo51...
Pobre do Rafael! que cavaco52 no dar quando lhe rasparem os
cabelos!
Mas neste momento ouviu-se tropel na escada... Era Rafael,
que trazia uma carta de Fabrcio, e que foi aprontar o ch,
enquanto Augusto lia a carta. Ei-la aqui:
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vezes em dar batalha a dois e trs castelos a um tempo; porm
tu no ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no
mais: tu s ultra-romntico e eu ultraclssico. O meu sistema
era este:
1. No namorar moa de sobrado. Daqui tirava eu dois
proveitos, a saber: no pagava o moleque para me levar
recados e dava sossegadamente, e merc das trevas, meus
beijos por entre os postigos54 das janelas.
2. No requestar moa endinheirada. Assim eu no ia ao
teatro para v-la, nem aos bailes para com ela danar, e
poupava meus cobres.
3. Fingir cimes e ficar mal com a namorada em tempos
de festas e barracas no campo. E por tal modo livrava-me de
pagar doces, frutas e outras impertinncias.
Estas eram as bases fundamentais do meu sistema.
Ora, tu te lembrars que bradavas contra o meu proceder,
como indigno da minha categoria de estudante; e, apesar de me
ajudares a comer belas empadas, quitutes apimentados e finos
doces, com que as belas pagavam por vezes a minha
assiduidade55 amanttica56, tu exclamavas: Fabrcio! no
convm tais amores ao jovem de letras e de esprito. O estudante
deve considerar o amor como um excitante que desperte e ateie57
as faculdades de sua alma; pode mesmo amar uma moa feia e
estpida, contanto que sua imaginao lha represente bela e
espirituosa. Em amor a imaginao tudo: ardendo em suas
chamas, e elevado nas asas de seus delrios, que o mancebo se
faz poeta por amor.
Eu ento te respondia: Mas quando as chamas se apa-
gam, e as asas dos delrios se desfazem, o poeta por amor no
tem, como eu, nem quitutes nem empadas.
E tu me tornavas: porque ainda no experimentaste o
que nos prepara o que se chama amor platnico, paixo
54. Postigo: janela pequena, sem vidraas, fechada apenas com uma folha de
madeira.
55. Assiduidade: constncia, freqncia.
56. Amanttico: exageradamente afetivo, ridiculamente amoroso.
57. Atear: avivar, acender.
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romntica! Ainda no sentiste como belo derramar-se a alma
toda inteira de um jovem na carta abrasadora que escreve sua
adorada e receber em troco uma alma de moa, derramada toda
inteira em suas letras, que tantas mil vezes se beija.
Ora, esses derramamentos de alma bastante me assusta-
vam; porque eu me lembro que em patologia se trata muito
seriamente dos derramamentos.
Mas tu prosseguias: E depois, como sublime deitar-se
o estudante no solitrio leito e ver-se acompanhado pela
imagem da bela que lhe vela no pensamento, ou despertar no
momento de ver-se em sonhos sorvendo-lhe nos lbios
voluptuosos58 beijos!
Ainda estes argumentos me no convenciam suficiente-
mente, porque eu pensava: 1. que essa imagem da bela que lhe
vela no pensamento no ser a melhor companhia possvel para
um estudante, principalmente quando ela lhe velasse na vspera
de alguma sabatina59; 2. porque eu sempre acho muito mais
aprecivel sorver os beijos voluptuosos por entre os postigos de
uma janela, do que sorv-los em sonhos e acordar com gua na
boca. Beijos por beijos, antes os reais que os sonhados.
Alm disto, no teu sistema nunca se fala em empadas,
doces, petiscos etc.; no meu eles aparecem, e tu, apesar de
romntico, nunca viraste as costas nem fizeste m cara a esses
despojos60 de minhas batalhas.
Mas enfim, maldita curiosidade de rapaz!... eu quis
experimentar o amor platnico, e dirigindo-me certa noite ao
teatro So Pedro de Alcntara, disse entre mim: esta noite hei
de entabular61 um namoro romntico.
Entabulei-o, sr. Augusto de uma figa62!... entabulei-o, e
quer saber como?... Sa fora do meu elemento e espichei-me63
completamente. Estou em apuros.
16
Eis o caso: Nessa noite fui para o superior; eu ia
entabular um namoro romntico, e no podia ser de outro
modo. Para ser tudo romntica, consegui entrar antes de
todos; fui o primeiro a sentar-me; quando ainda o lustre
monstro no estava aceso; vi-o descer e subir depois, brilhante
de luzes; vi se irem enchendo os camarotes; finalmente eu, que
tinha estado no vcuo, achei-me no mundo: o teatro estava
cheio. Consultei com meus botes como devia principiar e
conclu que para portar-me romanticamente deveria namorar
alguma moa que estivesse na quarta ordem. Levantei os olhos,
vi uma que olhava para o meu lado, e ento pensei comigo
mesmo: seja aquela!... No sei se bonita ou feia, mas que
importa? Um romntico no cura64 dessas futilidades. Tirei,
pois, da casaca o meu leno branco, para fingir que enxugava o
suor, abanar-me e enfim para fazer todas essas macaquices que
eu ainda ignorava que estavam condenadas pelo romantismo.
Porm, infortnio!... quando de novo olhei para o camarote, a
moa tinha-se voltado completamente para a tribuna; tossi,
tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a pequena... nem caso;
parecia que o negcio com ela no era. Comeou a
ouverture65... nada; levantou-se o pano, ela voltou os olhos para
a cena, sem olhar para o meu lado. Representou-se o primeiro
ato... Tempo perdido. Veio o pano finalmente abaixo.
Agora sim, comear o nosso telgrafo a trabalhar,
disse eu comigo mesmo, erguendo-me para tornar-me mais
saliente.
Porm, nova desgraa! Mal me tinha levantado, quando a
moa ergueu-se por sua vez e retirou-se para o interior do
camarote, sem dizer por que, nem por que no .
Isto s pelo diabo!... exclamei eu involuntariamente,
batendo o p com toda a fora.
O senhor est doido?! disse-me... gemendo e fazendo
uma careta horrvel, o meu companheiro da esquerda.
17
No tenho que lhe dar satisfaes, respondi-lhe amua-
do.
Tem, sim senhor, retorquiu-me o sujeito, empinando-se.
Pois que lhe fiz eu, ento? acudi, alterando-me.
Acaba de pisar-me, com a maior fora, no melhor calo
do meu p direito.
Oh! senhor... queira perdoar!...
E dando mil desculpas ao meu homem, sa para fora do
teatro, pensando no meu amor.
Confesso que deveria ter notado que a minha paixo
comeava debaixo de maus auspcios66, mas a minha m
fortuna67 ou, melhor, os teus maus conselhos, me empurravam
para diante com fora de gigante.
Sem pensar no que fazia, subi para os camarotes e fui dar
comigo no corredor da quarta ordem; passei junto do camarote
de minhas atenes: era o n. 3 (nmero simblico, cabalstico68
e fatal! repara que em tudo segui o romantismo). A porta estava
cerrada; fui ao fim do corredor e voltei de novo: um pensamento
esquisito e singular acabava de me brilhar na mente, e abracei-
me com ele.
Eu tinha visto porta n. 3 um moleque com todas as
aparncias de ser belssimo cravo-da-ndia69. Ora, lembrava-me
que nesse camarote a minha querida era a nica que se achava
vestida de branco e, pois, eu podia muito bem mandar-lhe um
recado pelo qual me fizesse conhecido. Avancei, portanto, para
o moleque.
Ah! maldito crioulo... estava-lhe o todo dizendo o para que
servia!... Pinta na tua imaginao, Augusto, um crioulinho de
dezesseis anos, todo vestido de branco, com uma cara mais
negra e mais lustrosa do que um botim70 envernizado, tendo,
alm disso, dois olhos belos, grandes, vivssimos e cuja
18
esclertica71 era branca como o papel em que te escrevo, com
lbios grossos e de ncar72, ocultando duas ordens de finos e
claros dentes, que fariam inveja a uma baiana; d-lhe a
ligeireza, a inquietao e rapidez de movimento de um macaco e
ters feito idia desse diabo de azeviche73, que se chama Tobias.
No me foi preciso cham-lo. Bastou um movimento de
olhos para que o Tobias viesse a mim, rindo-se maliciosa e
desavergonhadamente. Levei-o para um canto.
Tu pertences quelas senhoras que esto no camarote,
a cuja porta te encostavas?... perguntei.
Sim, senhor, me respondeu ele, e elas moram na rua
de... n.... ao lado esquerdo de quem vai para cima.
E quem so?...
So duas filhas de uma senhora viva, que tambm a
est, e que se chama a Ilma. sra. d. Lusa. O meu defunto senhor
era negociante e o pai de minha senhora padre.
Como se chama a senhora que est vestida de branco?
A sra. d. Joana... tem dezessete anos e morre por se
casar.
Quem te disse isso?...
Pelos olhos se conhece quem tem lombrigas74, meu se-
nhor!...
Como te chamas?
Tobias, escravo de meu senhor, crioulo de qualidades,
fiel como um co e vivo como um gato.
O maldito do crioulo era um clssico a falar o portugus.
Eu continuei:
Hs de me levar um recado sra. d. Joana.
Pronto, lesto75 e agudo, respondeu-me o moleque.
Pois toma sentido76.
No precisa dizer duas vezes.
19
Ouve. Das duas uma: ou poders falar com ela hoje ou
s amanh...
Hoje... agora mesmo.
Como diabo?
Nestas coisas Tobias no cochila: com licena de meu
senhor, eu c sou doutor nisto; meus parceiros me chamam
orelha de cesto77, p de coelho78 e boca de taramela79. V
dizendo o que quiser, que em menos de dez minutos minha
senhora sabe tudo; o recado de meu senhor uma carambola
que, batendo no meu ouvido, vai logo bater no da senhora d.
Joaninha.
Pois dize-lhe que o moo que se sentar na ltima
cadeira da quarta coluna da superior, que assoar-se com um
leno de seda verde, quando ela para ele olhar, se acha
loucamente apaixonado de sua beleza etc.; etc.; etc.
Sim, senhor, eu j sei o que se diz nessas ocasies: o
discurso fica por minha conta.
E amanh, ao anoitecer, espera-me na porta de tua
casa.
Pronto, lesto e agudo, repetiu de novo o crioulo.
Eu recompensar-te-ei, se fores fiel.
Mais pronto, mais lesto e mais agudo!
Por agora toma estes cobres.
Oh, meu senhor! Prontssimo, lestssimo e agudssimo.
Voltei sala do teatro, no sem admirar a viveza,
experincia e talento do maldito crioulo.
Ignoro de que meios se serviu o Tobias para executar sua
comisso. O que sei que antes de comear o segundo ato j eu
havia feito o meu sinal, e ento comecei a pr em ao toda a
mmica amanttica que me lembrou: o namoro estava
entabulado; embora a moa no correspondesse aos sinais do
meu telgrafo, concedendo-me apenas amiudados e curiosos
olhares, isso era j muito para quem a via pela primeira vez.
20
Finalmente, sr. Augusto dos meus pecados, o negcio
adiantou-se, e hoje, tarde me arrependo e no sei como me livre
de semelhante entaladela80, pois o Tobias no me sai da porta!
J no tenho tempo de exercer o meu classismo; h trs meses
que no como empadas e, apesar de minhas economias, ando
sempre com as algibeiras81 a tocar matinas. Para maior
martrio82 a minha querida a sra. Joana, prima de Filipe.
Para compreenderes bem o quanto sofro, aqui te escrevo
algumas das principais exigncias da minha amada romntica.
Primo. Devo passar por defronte de sua casa duas vezes de
manh e duas tarde. Aqui vs bem, principia a minha
vergonha, pois no h pela vizinhana gordurento caixeirinho83
nenhum que se no ria nas minhas barbas quatro vezes por dia.
Secundo. Devo escrever-lhe, pelo menos, quatro cartas
por semana, em papel bordado, de custo de quarenta centavos a
folha. Ora, isto detestvel, porque eu no sei onde v buscar
mais cruzados para comprar papel, nem mais asneiras para lhe
escrever.
Tertio. Devo trat-la por minha linda prima e ela a mim
por querido primo. Daqui concluo que a sra. d. Joana leu o
Faublas84. Boa recomendao!...
Quarto. Devo ir ao teatro sempre que ela for, o que sucede
quatro vezes no ms, o mesmo a respeito de bailes. Esta despesa
arrasa-me a mesada terrivelmente.
Quinto. Ao teatro e bailes devo levar no pescoo um leno
ou manta da cor da fita que ela por em seu vestido ou no
cabelo, o que, com antecedncia, me participado85. Isto um
despotismo86 detestvel!...
21
Finalmente, ela quer governar os meus cabelos, as minhas
barbas, a cor dos meus lenos, a minha casaca, a minha
bengala, os botins que calo, e, por ltimo, ordenou-me que no
fumasse charutos de Havana nem de Manilha, porque era isto
falta de patriotismo.
Para bem rematar o quadro das desgraas que me
sobrevieram com a tal paixo romntica que me aconselhaste, d.
Joana, dir-te-ei, mostra amar-me com extremo, e no meio de
seus caprichos de menina d-me provas do mais constante e
desvelado87 amor; mas que importa isso, se eu no posso pagar-
lhe com gratido?... Vocs, com seu romantismo, a que me no
posso acomodar, a chamariam plida. Eu, que sou clssico em
corpo e alma e que, portanto, dou s coisas o seu verdadeiro
nome, a chamarei sempre amarela.
Malditos romnticos, que tm crismado88 tudo e trocado
em seu crismar os nomes que melhor exprimem as idias!... O
que outrora se chamava, em bom portugus, moa feia, os
reformadores dizem: menina simptica!... O que numa moa
era, antigamente, desenxabimento89, hoje ao contrrio:
sublime languidez90!... J no h mais meninas importunas e
vaidosas... As que o foram chamam-se agora espirituosas! A
escola dos romnticos reformou tudo isso, em considerao ao
belo sexo.
E eu, apesar dos tratos que dou minha imaginao, no
posso deixar de convencer-me que a minha linda prima , aqui
para ns, amarela e feia como uma convalescente91 de febres
perniciosas92.
O que, porm, se torna sobretudo insofrvel o despotismo
que exerce sobre mim o brejeiro93 do Tobias...
22
Entende que todos os dias lhe devo dar dinheiro e
persegue-me por maneira tal que, para ver-me livre dele,
escorrego-lhe, cum quibus94, a despeito da minha m vontade.
O Tobias est no caso de muitos que, grandes e excelentes
parladores95, so pssimos financeiros na prtica. Como eles
fazem ao pas, faz Tobias comigo, que sempre depois de longo
discurso me apresenta um deficit96 e pede-me um crdito
suplementar.
Eis aqui, meu Augusto, o lamentvel estado em que me
acho. Lembra-te que foram os teus maus conselhos que me
obrigaram a experimentar uma paixo romntica; portanto, no
s por amizade, como por dever, conto que me servirs no que
te vou propor.
Eu preciso de um pretexto mais ou menos razovel para
descartar-me de tal plida.
Ela vai passar conosco dois dias na ilha de... A podemos
levar a efeito, e com facilidade, o meu plano: ele de simples
compreenso e de fcil execuo.
Tu devers requestar, principalmente, minha vista, a tal
minha querida. Ainda que ela no te corresponda, persegue-a.
No te custar isso, pois que o teu costume. Nisto se limita o
teu trabalho, e comear ento o meu, que mais importante.
Ver-me-s enfadado97, talvez que te trate com rispidez e te
dirija alguma graa pesada, no fars caso e continuars com a
requesta para diante.
Eu ento irei s nuvens... Desesperado, ciumento e
delirante, aproveitarei o primeiro instante em que estiver a ss
com d. Joaninha, farei um discurso forte e eloqente contra a
inconstncia e volubilidade das mulheres. E no meio de meus
furores dou-me por despedido de meus amores com ela e,
pulando fora da tal paixo romntica, correrei a apertar-te
23
contra meu peito, como teu amigo e colega do corao
Fabrcio.
E esta!... exclamou Augusto, depondo a carta sobre a
mesa e sorvendo98 uma boa pitada de rap99 de Lisboa. E esta!...
Acabando de sorver a pitada, o nosso estudante desatou a rir
como um doido. Rir-se-ia a noite inteira talvez, se no fosse
interrompido pelo bom Rafael, que o vinha chamar para tomar
ch.
24
III
MANH DE SBADO
25
de rochedos e no interior da ilha por negras grades de ferro, est
adornada de mil flores, sempre brilhantes e viosas, graas
eterna primavera desta nossa boa Terra de Santa Cruz. De tudo
isto se conclui que a av de Filipe tem no lado direito de sua
casa um pomar e no esquerdo um jardim.
E fizemos muito bem em concluir depressa, porque Filipe
acaba de receber Augusto com todas as demonstraes de
sincero prazer e o faz entrar imediatamente para a sala.
Agora outras duas palavras sobre a casa. Imagine-se uma
elegante sala de cinqenta palmos em quadro; aos lados dela
dois gabinetes proporcionalmente espaosos, dos quais um, o do
lado esquerdo, pelos aromas que exala, espelhos que brilham, e
um no-sei-qu de insinuante, est dizendo que o gabinete das
moas. Imagine-se mais, fazendo frente para o mar e em toda a
extenso da sala e dos gabinetes, uma varanda terminada em
arcos; no interior meia dzia de quartos, depois uma alegre e
longa sala de jantar, com janelas e portas para o pomar e jardim,
e ter-se- feito da casa a idia que precisamos dar.
Pois bem. Augusto apresentou-se. A sala estava ornada106
com boa dzia de jovens interessantes: pareceu ao estudante um
jardim cheio de flores ou o cu semeado de estrelas. Verdade
seja que, entre esses orgulhos da idade presente, havia tambm
algumas rugosas representantes do tempo passado; porm, isso
ainda mais lhe sanciona107 a propriedade da comparao, porque
h muitas rosas murchas nos jardins e estrelas quase obscuras no
firmamento.
Filipe apresentou o seu amigo sua digna av e a todas as
outras pessoas que a se achavam. No h remdio seno dizer
alguma coisa sobre elas.
A sra. d. Ana, este o nome da av de Filipe, uma
senhora de esprito e alguma instruo. Em considerao a seus
sessenta anos, ela dispensa tudo quanto se poderia dizer sobre o
seu fsico. Em suma, cheia de bondade e de agrado, ela recebe a
todos com o sorriso nos lbios; seu corao pode-se talvez dizer
o templo da amizade cujo mais nobre altar exclusivamente
26
consagrado querida neta, irm de Filipe; e ainda mais: seu
afeto para com essa menina no se limita doura da amizade,
vai ao ardor da paixo. Perdendo seus pais, quando apenas
contava oito anos, a inocente criana tinha, assim como Filipe,
achado no seio da melhor das avs toda a ternura de sua
extremosa me.
Ao lado da sra. d. Ana estavam duas jovens, cujos nomes se
adivinharo facilmente: uma a plida, a outra a loira. So as
primas de Filipe.
Ambas so bonitinhas, mas, para Augusto, d. Quinquina tem
as feies mais regulares; achou-lhe mesmo muita harmonia nos
cabelos loiros, olhos azuis e faces coradas, confessando, todavia,
que as negras madeixas e o rosto romntico de d. Joaninha
fizeram-lhe uma brecha terrvel no corao.
Alm destas, algumas outras senhoras a estavam, valendo
bem a pena de se olhar para elas meia hora sem pestanejar. Toda
a dificuldade, porm, est em pintar aquela mocinha que acaba
de sentar-se pela sexta vez, depois que Augusto entrou na sala:
a irm de Filipe. Que beija-flor! H cinco minutos que Augusto
entrou e em to curto espao j ela sentou-se em diferentes
cadeiras, desfolhou um lindo pendo de rosas, derramou no
chapu de Leopoldo mais de duas onas108 de gua-de-colnia de
um vidro que estava sobre um dos aparadores, fez chorar uma
criana, deu um belisco em Filipe, e Augusto a surpreendeu
fazendo-lhe caretas; travessa, inconseqente e s vezes engraa-
da; viva, curiosa e em algumas ocasies impertinente. O nosso
estudante no pode dizer com preciso nem o que ela , nem o
que no : acha-a estouvada109, caprichosa e mesmo feia;
pretende trat-la com seriedade e estudo, para nem desgostar a
dona da casa, nem se sujeitar a sofrer as impertinncias e
travessuras que a todo momento a v praticar com os outros.
Enfim, para acabar de uma vez esta j longa conta das senhoras
que se achavam na sala, diremos que a se notavam tambm duas
velhas amigas da dona da casa: uma que s se entreteve, se
108. Ona: antigo peso brasileiro equivalente dcima sexta parte do arrtel, ou
seja, de uma unidade de peso correspondente a 429 gramas.
109. Estouvado: imprudente, inconseqente, insensato.
27
entretm e se h de entreter em admirar a graa e encantos de
duas filhas que consigo trouxera; e outra, que pertence ao gnero
daquelas que nas sociedades agarram num pobre homem,
sentam-no ao p de si, e, maando-o duas e trs horas com
enfadonhas e interminveis dissertaes, finalmente o largam,
supondo que lhe tm feito honra e dado o maior prazer.
Quanto aos homens... No vale a pena!... vamos adiante.
Estas observaes que aqui vamos oferecendo, fez tambm
Augusto consigo mesmo, durante o tempo que gastou em
enderear seus cumprimentos e dizer todas essas coisas muito
banais e j muito cedias110, mas que se dizem sempre de parte a
parte, com obrigado sorrir nos lbios e indiferena no corao.
Concluda essa verdadeira maada111 e reparando que todos
trata-vam de conversar, para melhor passar as horas e esperar as
do jantar, ele voltou o rosto com vistas de achar uma cadeira
desocupada junto de alguma daquelas moas; porm, mofina112
do pobre estudante!... intempestivo113 castigo dos seus maiores
pecados!... a segunda das duas velhas, de quem h pouco se
tratou, estendeu a mo e chamou-o, mostrando com o dedo
carregado de anis um lugar livre junto dela.
No havia remdio: era preciso sofrer, com olhos enxutos e
o prazer na face, o martrio que se lhe oferecia. Augusto sentou-
se ao p da sra. d. Violante.
Ela lanou-lhe um olhar de bondade e proteo e ele
abaixou os olhos, porque os de d. Violante so terrivelmente
feios e os do estudante no se iam demorar por muito tempo
sobre espelho de tal qualidade.
Adivinho, disse ela, com certo ar de ironia, que lhe est
pesando demais o sacrifcio de perder alguns momentos conver-
sando com uma velha.
Oh, minha senhora! respondeu o moo, as palavras de V.
Sa. fazem grande injustia a si prpria e a mim tambm: a mim,
porque me faz bem cheio de rudeza e mau gosto; a si, porque, se
28
um cego as ouvisse, decerto que no faria idia do vigor e da...
Olhem como ele lisonjeiro!... exclamou a velha, baten-
do levemente com o leque no ombro do estudante, e acompa-
nhando esta ao com uma terrvel olhadura, e rindo-se com to
particular estudo, que mostrava dois nicos dentes que lhe
restavam.
Augusto olhou fixamente para ela e conheceu que na verda-
de se havia adiantado muito. D. Violante era horrivelmente hor-
renda, e com sessenta anos de idade apresentava um caro capaz
de desmamar a mais emperrada criana.
A conversao continuou por uma boa hora; o aborrecimen-
to, o tdio do estudante chegou a ponto de faz-lo arrepender-se
de ter vindo ilha de... Trs vezes tentou levantar-se, mas D.
Violante sempre tinha novas coisas a dizer-lhe. Falou-lhe sobre a
sua mocidade... seus pais, seus amores, seu tempo, seu finado
marido, sua esterilidade, seus rendimentos, seu papagaio e at
sobre suas galinhas. Ah!... falou mais que um deputado da
oposio, quando se discute o voto de graas. Finalmente parou
um instante, talvez para respirar, e para comear novo ataque de
maada. Augusto quis aproveitar-se da intermitncia114: estava
desesperado e pela quarta vez ergueu-se.
Com licena de V. Sa..
Nada! disse a velha, detendo-o e apertando-lhe a mo, eu
ainda tenho muito que dizer-lhe.
Muito que dizer-me?... balbuciou o estudante automati-
camente, deixando-se cair sobre a cadeira, como fulminado por
um raio.
O senhor est incomodado?... perguntou d. Violante com
toda a ingenuidade.
Eu... eu estou s ordens de V. Sa..
Ah! v-se que a sua delicadeza iguala sua bondade,
continuou ela com acento meio aucarado e terno.
Oh, castigo de meus pecados!... pensou Augusto consigo;
querem ver que a velha est namorada de mim? e recuou sua
cadeira meio palmo para longe dela.
29
No fuja... prosseguiu d. Violante, arrastando por sua vez
sua cadeira at encost-la do estudante, no fuja... eu quero
dizer-lhe coisas que no preciso que os outros ouam.
E ento? pensou de novo Augusto, fiz ou no uma galan-
te conquista?... E suava suores frios.
O senhor est no quinto ano de Medicina?...
Sim, minha senhora.
J cura?
No, minha senhora.
Pois eu desejava referir-lhe certos incmodos que sofro,
para que o senhor me dissesse que molstia padeo115 e que
tratamento me convm.
Mas... minha senhora... eu ainda no sou mdico e s no
caso de urgente necessidade me atreveria...
Eu tenho inteira confiana no senhor; parece-me que o
nico capaz de acertar com a minha enfermidade.
Mas ali est um estudante do sexto ano...
Eu quero o senhor e mais ningum.
Pois, minha senhora, eu estou pronto para ouvi-la; porm
julgo que o tempo e o lugar so pouco oportunos...
Nada... h de ser agora mesmo.
Ah!... A boa velha falou e tornou a falar. Eram duas horas
da tarde e ela ainda dava conta de todos os seus costumes, de sua
vida inteira; enfim, foi uma relao de comemorativos116 como
nunca mais ouvir o nosso estudante. s vezes Augusto olhava
para seus companheiros e os via alegremente praticando117 com
as belas senhoras que abrilhantavam a sala, enquanto ele se via
obrigado a ouvir a mais insuportvel de todas as histrias. Daqui
e de certos fenmenos que acusava a macista, nasceu-lhe o
desejo de tomar uma vinganazinha. Firme neste propsito,
esperou com pacincia que d. Violante fizesse ponto final, bem
determinado a esmag-la com o peso do seu diagnstico e ainda
mais com o tratamento que tencionava118 prescrever-lhe.
30
s duas horas e meia a oradora terminou o seu discurso,
dizendo:
Agora quero que, com toda a sinceridade, me diga se
conhece a minha enfermidade e o que devo fazer.
Ento V. Sa. d-me licena para falar com toda a sinceri-
dade?
Eu o exijo.
Pois, minha senhora, atendendo a tudo quanto ouvi e
principalmente a esses ltimos incmodos, que to amide sofre,
e de que mais se queixa, como essas tonteiras, dores no ventre,
calafrios, certas dificuldades, esse peso dos lombos etc.,
concluo, e todo o mundo mdico concluir comigo, que V. Sa.
padece de...
Diga... no tenha medo.
Hemorridas119.
D. Violante fez-se vermelha como um pimento, horrvel
como a mais horrvel das frias120, encarou o estudante com
despeito, e, fixando nele seus tristssimos olhos furta-cores,
perguntou:
O que foi que disse o senhor?...
Hemorridas, minha senhora.
Ela soltou uma risada sarcstica121.
V. Sa. quer que lhe prescreva o tratamento convenien-
te?...
Menino, respondeu com mau humor, tome o meu conse-
lho: outro ofcio; o senhor no nasceu para mdico.
Sinto ter desmerecido o agrado de V. Sa. por to
insignificante motivo. Rogo-lhe122 que me desculpe, mas eu
julguei dever dizer o que entendia.
119. Hemorridas: tumores varicosos formados pela dilatao das veias do nus
ou do reto, com fluxo de sangue ou sem ele; almorreimas.
120. Frias: as divindades Alecto, Megera e Tisfone, que no Averno
atormentavam os condenados.
121. Sarcstico: que se caracteriza pelo sarcasmo, isto , pelo escrnio, pela
zombaria.
122. Rogar: suplicar; pedir por favor.
31
Isto dizendo, o estudante ergueu-se; a velha j no fez o
menor movimento para o demorar, e vendo-o deix-la, disse em
tom proftico123:
Este no nasceu para a Medicina!
Mas Augusto afastou-se de d. Violante, dando graas ao
poder de seu diagnstico e augurava124 muito bem o seu futuro
mdico, pela grande vitria que acabava de alcanar.
Agora, sim, disse ele com os seus botes, vou recuperar o
tempo perdido. E procurava uma cadeira, cuja vizinhana lhe
conviesse.
A digna hspeda125 compreendeu perfeitamente os desejos
do estudante, pois, mostrando-lhe um lugar junto de sua neta,
disse:
Aquela menina o poder divertir alguns instantes.
Mas, minha av, exclamou a menina com prontido, at
ao dia de hoje ainda no me supus boneca.
Menina!...
Contudo, eu serei bem feliz se puder fazer com que o se-
nhor... senhor...
Augusto, minha senhora.
... o sr. Augusto passe junto a mim momentos to agra-
dveis, como lhe foram as horas que gozou ao p da sra. d.
Violante.
Augusto gostou da ironia, e j se dispunha a travar
conversao com a menina travessa, quando Fabrcio se chegou
a ele e lhe disse:
Tu me deves dar uma palavra.
Creio que no preciso que seja imediatamente.
Se a sra. d. Carolina o permitisse, eu estimaria falar-te j.
Por mim no seja... disse a menina erguendo-se.
No, minha senhora, eu o ouvirei mais tarde, acudiu
Augusto, querendo ret-la.
Nada... no quero que o sr. Fabrcio me olhe com maus
olhos... Alm de que, eu devo ir apressar o jantar, pois leio no
32
seu rosto que a conversao que teve com a sra. d. Violante,
quando mais no desse, ao menos produziu-lhe muito apetite...
mesmo um apetite de... de...
Acabe.
De estudante.
E mal disse isto, a travessa moreninha correu para fora da
sala.
33
IV
FALTA DE CONDESCENDNCIA126
34
desfavorvel, porque, diante de um ranchinho de belas moas,
quem poder tramar contra o sossego delas?... Ento Augusto,
dos tais que por semelhante povo so como formiga por acar,
macaco por banana, criana por campainha... e ele tinha razo!
Por ltimo, as circunstncias tambm contrariavam Fabrcio,
pois a sra. d. Violante havia tido o poder de esgotar toda a
elstica pacincia do pobre estudante, que no acharia nem mais
uma s dose homeoptica desse to necessrio confortativo para
despender133 com o novo macista.
Fabrcio tomou, pois, o brao de Augusto e ambos saram da
sala, este com vivos sinais de impacincia, e o primeiro com ares
de quem ia tratar importante negcio.
A inocente d. Joaninha os acompanhou com os olhos e riu-
se brandamente, encontrando os de Fabrcio, que teve ainda
bastante audcia134 para fingir um sorriso de gratido.
Eles se dirigiram ao gabinete do lado direito da sala, o qual
fora destinado para os homens; e entrando, fechou Fabrcio a
porta contra si, para se achar em toda a liberdade. Enfim,
estavam ss. Voltados um para o outro, guardavam alguns
momentos de silncio. Foi Augusto que teve de romp-lo.
Ento, ficamos a jogar o siso?
Espero a tua resposta, disse Fabrcio.
Ainda me no perguntaste nada, respondeu o outro.
A minha carta?...
Eu a li, sim... tive a pacincia de l-la toda.
E ento?...
Ento o qu, homem...
A resposta?...
Aquilo no tem resposta.
Ora, deixa-te disso; vamos mangar135 com a moa.
Tu ests doido, Fabrcio?
Por tua culpa, Augusto.
Pois ento cuidas136 que o amor de uma senhora deve ser
35
a peteca com que se divirtam dois estudantes?...
Quem que te fala em peteca?... Pelo contrrio, o que eu
quero desgrudar-me do fatal contrabando.
No; a pesar teu, deves respeitar e cultivar o nobre sen-
timento que te liga j a d. Joaninha. Que se diria do teu
procedimento, se depois de trazeres uma moa toda cheia de
amor e f na tua constncia, por espao de trs meses, a
desprezasses sem a menor aparncia de razo, sem a mais
pequena137 desculpa?...
Ento tu, com o teu sistema de...
Eu desengano: previno a todas que as minhas paixes
tm apenas horas de vida, e tu, como os outros, juras amor
eterno.
Estou desconhecendo-te, Augusto. Sempre te achei com
juzo e bom conceito e agora temo muito que estejas com
princpios de alienao mental! Explica-me, por quem s, que
sbito acesso de moralidade esse que tanto te perturba.
Isso, Fabrcio, chama-se inspirao de bons costumes.
Bravo! bravo! foi muito bem respondido, mas, palavra de
honra, que tenho d te ti! Vejo que em matria da natureza da de
que tratamos ests to atrasado como eu em fazer sonetos.
Apesar de todo o teu romantismo ou, talvez, principalmente por
causa dele, no vs o que se passa a duas polegadas do teu nariz.
Pois meu amigo, quero te dizer: a teoria do amor do nosso tempo
aplaude e aconselha o meu procedimento; tu vers que eu estou
na regra138, porque as moas tm ultimamente tomado por
mote139 de todos os seus apaixonados extremos ternos afetos e
gratos requebros, estes trs infinitos de verbos: iscar, pescar e
casar. Ora, bem vs que, para contrabalanar to parlamentares e
viscosas140 disposies, ns, os rapazes, no podamos deixar de
inscrever por divisa141 em nossos escudos os infinitos destes trs
137. Mais pequena: forma usual em Portugal, mas que, no Brasil, consta de um
desvio da norma padro.
138. Estar na regra: estar conforme os costumes, conforme as normas sociais.
139. Mote: motivo para desenvolver.
140. Viscoso: pegajoso.
141. Divisa: pensamento caracterstico expresso em poucas palavras; emblema.
36
outros verbos: fingir, rir e fugir. Portanto, segue-se que estou
encadernado nos axiomas142 da cincia.
Com efeito!... no te supunha to adiantado!
Pois que dvida? Para viver-se vida boa e livre preciso
andar com o olho aberto e p ligeiro. Ento as tais sujeitinhas
que, com a facilidade e indstria143 com que a aranha prende a
mosca na teia, so capazes de tecer de repente, com os olhares,
sorrisos, palavrinhas doces, suspiros a tempo, medeixes144
aproximando-se, zelos afetados e arrufos145 com sal e pimenta,
uma armadilha to emaranhada que, se o papagaio tolo e no
voa logo, mete por fora o p no lao e adeus minhas
encomendas, fica de gaiola para todo o resto de seus dias... E,
portanto, meu Augusto, deixa-te de inspidos146 escrpulos147 e
ajuda-me a sair dos apuros em que me vejo.
Torno a dizer-te que ests doido, Fabrcio, pois que me
acreditas capaz de servir de instrumento para um enredo... uma
verdadeira traio. Ento, que pensas?... Eu requestaria d.
Joaninha, no assim?... Tu a deixavas, fingindo cimes e
depois quem me livraria dos apertos em que necessariamente
tinha de ficar?...
Ora, isso no te custava cinco minutos de trabalho. Tu...
inconstante por ndole148 e por sistema!
Fabrcio, deixa-te de asneiras; j que te meteste nisso,
avante! Alm de que, d. Joaninha um peixo.
Oh! oh! oh!... uma desenxabida...
Que blasfmia149!
Alm disso impossvel... no posso suportar o peso:
escrever quatro cartas por semana... Isto s! o talento que
preciso para inventar asneiras e mentiras dezesseis vezes por
ms! e depois, o Tobias...
37
Puxa-lhe as orelhas.
Como?... se ele criado de d. Joaninha, o alfenim150 da
casa, o So Benedito da famlia!...
No sei, meu amigo, arranja-te como puderes.
Lembra-te que foste a causa principal de tudo isso.
Quem?... eu?... eu apenas te disse que no sabias o gosto
que tinha o amor moderna.
Pois bem, sa do meu elemento, fui experimentar a
paixo romntica... a a tem!... a tal paixozinha me esgotou j a
pacincia, juzo e dinheiro. No a quero mais.
Tu sempre foste um papa-empadas.
Sim, e h dois meses que nem sei o que o cheiro delas.
Anda, meu Augustozinho, ajuda-me!
No posso e no devo.
V l o que dizes!
Tenho dito.
Augusto!
Agora digo mais que no quero.
Olha que te hs de arrepender!
Esta melhor!... pretendes meter-me medo?...
Eu sou capaz de vingar-me.
Desafio-te a isso.
Desacredito-te na opinio das moas.
um meio de tornar-me objeto de suas atenes. Peo-te
que o faas.
Descubro e analiso o teu sistema de iludir a todas.
Tornar-me-s interessante a seus olhos.
Direi que s um bandoleiro151.
Melhor, elas faro por tornar-me constante.
Mostrarei que a tua moral a respeito de amor a pior
possvel.
timo!... elas se esforaro por faz-la boa.
Hei de, nestes dois dias, atrapalhar-te continuamente.
Bravo!... no contava divertir-me tanto!
150. Alfenim: pessoa melindrosa, delicada, com a qual se tem muito cuidado,
luxo ao lidar.
151. Bandoleiro: inconstante no amor ou na amizade; volvel.
38
Ento tu teimas no teu propsito?...
Pois, se precisamente agora que estou vendo os bons
resultados que ele me promete!
Portanto, estes dois dias: guerra!
Bravssimo, meu Fabrcio: guerra!
Antecipo-te que meu primeiro ataque ter lugar durante o
jantar.
Oh! por milhares de razes, tomara eu que chegasse a
hora dele!...
Augusto, at o jantar!
Fabrcio, at o jantar!
Neste momento Filipe abriu a porta do gabinete e, dirigindo-
se aos dois, disse:
Vamos jantar.
39
V
JANTAR CONVERSADO
40
Durante as primeiras cobertas157 ela dissertou maravilhosa-
mente acerca de suas companheiras. Maliciosa e picante, lanou
sobre elas o ridculo, que manejava, e os sorrisos de Augusto,
que com destreza158 desafiava. As nicas que lhe haviam
escapado eram d. Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito
vizinha, e a irm de Filipe, que estava defronte ou, como moda
dizer vis--vis159.
Augusto quis provocar os tiros de d. Clementina contra
aquela menina impertinente, que to pouco lhe agradava.
E que pensa V. Sa. desta jovem senhora que est defronte
de ns? perguntou ele com voz baixa.
Quem?... a Moreninha?... respondeu ela no mesmo tom.
Falo da irm de Filipe, minha senhora.
Sim... todos ns gostamos de cham-la a Moreninha. Es-
sa...
Acabe d. Clementina, disse a irm de Filipe, que, fingin-
do antes no prestar ateno ao que conversavam os dois,
acabava de fixar de repente na terrvel cronista dois olhares
penetrantes e irresistveis.
Parecia que uma luta interessante ia ter lugar; as duas
adversrias mostravam-se ambas fortes e decididas, porm d.
Clementina para logo recuou; e, como querendo no passar por
vencida, sorriu-se maliciosamente e, apontando para a Moreni-
nha, disse, afetando um acento gracejador:
Ela travessa como o beija-flor, inocente como uma
boneca, faceira como o pavo, e curiosa como... uma mulher.
Sim, tornou-lhe d. Carolina. Preciso que os ouvidos
estejam bem abertos e a ateno bem apurada, quando se est
defronte de uma moa como d. Clementina, que sempre tem
coisas to engraadas e to inocentes para dizer!... Oh! minha
camarada, juro-lhe que ningum lhe iguala na habilidade de
compor um mapa.
Mas... d. Carolina... voc deu o cavaco160?...
41
Oh! no, no... continuou a menina, com picante ironia;
porm, fato que nenhuma de ns gosta de ser ofuscada com o
esplendor161 de outra. J basta de brilhar, d. Clementina; o sr.
Augusto deve estar to enfeitiado com o seu esprito e talento,
que decerto no poder toda esta tarde e noite olhar para ns
outras, sem compaixo ou desgosto; portanto, j basta... se no
por si, ao menos por ns.
A cronista fez-se cor de ncar e a sua adversria, imitando-a
na malcia do sorriso e no acento gracejador, prosseguiu ainda:
Mas ningum conclua daqui que, por ofuscada, perco o
amor que tinha ao astro que me ofuscou. Bela rosa do jardim!
teus espinhos feriram a borboleta, mas nem por isso deixars de
ser beijada por ela!...
E assim dizendo, a Moreninha estendeu e apinhou162 os
dedos de sua mo direita, fez estalar um beijo no centro do belo
grupo que eles formaram e, enfim, executou com o brao um
movimento, como se atirasse o beijo sobre d. Clementina.
Oh! disse Augusto consigo mesmo: a tal menina travessa
no to tola como me pareceu ainda h pouco. E desde ento
comeou o nosso estudante a demorar seus olhares naquele rosto
que, com tanta injustia, tachara de irregular e feio. Prevenido
contra d. Carolina, por hav-la surpreendido fazendo-lhe uma
careta, o tal sr. Augusto, com toda a empfia163 de um
semidoutor, decidiu magistralmente164 que a moa tinha todos os
defeitos possveis. Coitadinho... espichou-se to completamente,
que agora mesmo j estava pensando com os seus botes: ela no
ser bonita!... porm feia... isso demais!
Chegou muito tarde ilha... balbuciou d. Quinquina,
como quem desejava travar conversao com Augusto.
Pensa deveras isso, minha senhora?!... respondeu este,
pregando nela um olhar de quem est pedindo um sim.
42
Penso... disse a moa enrubescendo165.
Pois precisamente agora que eu reconheo ter chegado
muito tarde ou, pelo contrrio, talvez cedo demais.
Cedo demais?...
Certamente... no se chegar sempre cedo demais onde se
corre algum risco?
Aqui, portanto...
Neste lugar, portanto, continuou o estudante, voltando os
olhos por todas as senhoras, e apontando depois para d.
Quinquina; e aqui principalmente, floresce e brilha o prazer, mas
perde-se tambm a liberdade de um mancebo!
Os dois foram aqui interrompidos para corresponder a uma
longa e interminvel coleo de brindes que o alemo principiou
a desenrolar, e com tanta freqncia e to pouca fertilidade, que
s a sra. d. Ana teve, por sua sade, de v-lo beber seis vezes.
Enfim, cedeu um pouco a tormenta, e d. Quinquina, que
havia gostado do que lhe dissera o estudante, continuou:
No quis vir com seus colegas?
Eu gosto de andar s, minha senhora.
Sempre m e triste a solido.
Mas s vezes tambm a sociedade se torna insuportvel...
por exemplo, depois de amanh...
Depois de amanh? repetiu ela, sorrindo-se; depois de
amanh o qu?
Minha senhora, ouvidos que escutaram acordes, sons de
harpa sonora, vibrada por ligeira mo de formosa donzela,
doem-se de ouvir o toque inqualificvel da viola desafinada da
rude saloia166.
Eu no compreendo bem...
Quem respirou o ar embalsamado167 dos jardins, o aroma
das rosas, os eflvios168 da anglica, se incomoda ao respirar
43
logo depois a atmosfera grave e carregada de miasmas169 de um
hospital.
Ainda no entendi.
Pois juro, minha senhora, que desta vez me h de com-
preender perfeitamente. Digo que, vendo eu hoje dois olhos que
por sua cor e brilho se assemelham a dois belos astros de luz,
cintilando em cus do mais puro azul; que, escutando uma voz
to doce como sero as melodias dos anjos; que, enfim,
respirando junto de algum, cujo bafo um perfume de delcias,
depois de amanh preferirei no ver, no ouvir e no cheirar
coisa alguma, a ver os olhos pardos e escovados ali do meu
amigo Leopoldo, a ouvir a voz de taboca170 do meu colega Filipe
e a respirar a fumaa dos charutos de meu companheiro Fabrcio.
Ah!... exclamou outra vez inesperadamente d. Carolina,
eu creio que d. Quinquina ter finalmente compreendido o que o
sr. Augusto tanto se empenha em lhe explicar.
Minha prima, atreveu-se a dizer a ingnua, modesta,
medrosa e muito sonsa d. Quinquina, minha prima, voc o teria
compreendido no primeiro instante, no assim?...
Certamente, respondeu a mocinha, sem perturbar-se; o sr.
Augusto, alm de falar com habilidade e fogo, ps em ao trs
sentidos; o que poderia tambm suceder, era que, como algumas
costumam fazer, eu fingisse no compreend-lo logo, para dar
lugar a mais vivas finezas, at que ele, fatigado171, dissesse tudo,
sem figuras172 e flores de eloqncia173... Ora, isso quase que
aconteceu, porque os olhos, os ouvidos e o nariz do sr. Augusto
ho de estar certamente cansados de to excessivo trabalho!...
Minha senhora!...
Por desdita174 dele no houve ocasio de pr em campo
44
um outro sentido; o gosto ficou em inao175, bem contra a sua
vontade, no assim, sr. Augusto?...
Minha prima, todos olham para ns...
A respeito de tato, no direi palavra, continuou a terrvel
Moreninha; porque, se as mos do sr. Augusto conservaram-se
em justa posio, quem sabe os transes176 por que passariam os
ps de minha prima?... Os senhores esto juntinhos, que com
facilidade e sem risco se podem tocar por baixo da mesa.
Menina! exclamou a sra. d. Ana, com acento de repre-
enso.
Minha senhora, consinta177 que ela continue a gracejar,
disse Augusto, meio aturdido. Alm de me dar a honra de tomar-
me por objeto de seus gracejos, d-me tambm o prazer de
apreciar e admirar seu esprito e agudeza.
Agradecida! muito agradecida! tornou o diabinho da me-
nina, rindo-se com a melhor vontade. Eu c no custo tanto a
compreend-lo como minha prima; j sei o que querem de mim
os seus elogios... estou comprada, no falo mais.
Uma risada geral aplaudiu as ltimas palavras de d.
Carolina; no h nada mais natural: ela neta da dona da casa,
alm de ser moa e rica.
E eu, apesar de amigo e colega de Augusto, disse por fim
Fabrcio, endireitando-se, no posso deixar de lastimar a sra. d.
Joaquina, pela triste conquista que acaba de fazer.
Augusto conheceu que lhe era dado o sinal do combate.
Fabrcio queria tomar vingana de sua nenhuma condescendn-
cia, e, pois, preparou-se para sustentar a luta com todo o esforo.
Vendo que todos tinham os olhos fitos nele, como que esperando
uma resposta, no hesitou:
Obrigado, disse; nem eu mesmo posso de mim formar
outro conceito. Devo, todavia, declarar que, se me fosse dado
conhecer a ditosa178 mortal que conseguiu ganhar os
pensamentos e o corao do meu colega, certo que lhe eu daria
45
meus parabns em prosa e verso, porque Fabrcio , sem
contradio, a mais alegre e aprecivel conquista!
A ironia o feriu. A interessante Moreninha lanou sobre
Augusto um olhar de aprovao e sorriu-se brandamente; gostou
de o ver manejar sua arma favorita. Sem se explicar o porqu,
tambm o nosso estudante teve em muita conta aquele sorriso da
menina travessa. Fabrcio continuou:
Venha embora o ridculo, que nem por isso poder-se-
negar que para o nosso Augusto no houve, no h, nem pode
haver amor que dure mais de trs dias.
Todas as senhoras olharam para o ru daquele horrendo
crime de lesa-formosura179. Augusto respondeu:
E o que h a mais engraado, que Fabrcio tem a culpa,
disso, porque, enfim, manda o meu destino que eu sempre tenha
andado, ande, e haja de andar em companhia dele, que, com a
maior crueldade do mundo, tira-me todos os lances, antes de trs
dias de amor.
Novo olhar, novo sorriso de aprovao de d. Carolina, novo
prazer de Augusto por merec-lo.
Fabrcio torceu-se sobre a cadeira e prosseguiu:
Nada de fugir da questo. Poder-se-ia julgar fraqueza,
querer de algum modo ocultar que, tanto em prtica como em
teoria, o meu colega e se preza de ser o prottipo180 da incons-
tncia.
Eis o que ele no pode negar, acudiram Leopoldo e
Filipe, rindo-se.
E para que negar, se j o nosso colega afirmou que eu me
prezava de ter essa qualidade?...
Misericrdia! exclamou uma das moas.
possvel?!... perguntou a av de Filipe, com seriedade.
absolutamente verdade, respondeu o estudante.
Lanou depois um olhar ao derredor da mesa e todas as
senhoras lhe voltaram o rosto. D. Quinquina tinha nos lbios um
triste sorriso. A Moreninha olhou-o com espanto, durante um
46
certo momento, mas logo depois soltou uma sofrvel risada e
pareceu ocupar-se exclusivamente de uma fatia de pudim.
Reinou silncio por alguns instantes; Fabrcio parecia
vitorioso; Augusto estava como em isolamento, as senhoras
olhavam para ele com receio, e mostravam temer encontrar seus
olhos; dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhares
nascesse para logo o sentimento que as devesse tornar
desgraadas. Desde as fatais palavras de Fabrcio, Augusto era
naquela mesa o que costumava ser um leproso na Idade Mdia:
o homem perigoso, cujo contato podia fazer a desgraa de outro.
Fabrcio compreendeu em quo triste situao estava o seu
adversrio, e, inexperiente, se havia de deix-lo debatendo-se em
sua m posio, quis ainda mais pior-la, e foi, talvez, arranc-lo
dela. Fabrcio, pois, fala; as senhoras embebem nele seus olhos e
o aplaudem, enquanto Augusto, servindo-se de um prato de
grosso melado181, afeta182 prestar pouca ateno ao seu acusador.
Sim, minhas senhoras, um jovem inconstante, acessvel
a todas as belezas, repudiando-as ao mesmo tempo para correr
atrs de outra, que ser logo deixada pela vista de uma nova,
como se ele fosse a inrcia da matria, que conserva uma
impresso, mas que no a guarda se no o tempo que gasto
para um novo agente modific-la!
Muito bem! muito bem! disseram algumas vozes.
Seu corao ptrea183 abbada184 de teatro, que no
entende o dizer de Auber185, quando solua flauta ternos sons
de msico discurso, pois aquela muda superfcie reflete a todos e
a todos esquece com estpida indiferena!...
Bravo!... Fabrcio est hoje romntico! exclamou
Leopoldo, apontando maliciosamente para uma garrafa que se
achava defronte do orador, e quase de todo esgotada.
47
Apoiadssimo!... murmurou Augusto, apontando tambm
para a garrafa.
Mas ele dever viver de lgrimas, suspiros e nsias de
condenado... concluiu Fabrcio.
Bravo!... muito bem!... bravo!...
Peo a palavra para responder! exclamou Augusto.
Tem a palavra, mas nada de maada!
Duas palavras, minhas senhoras, s duas palavras.
Sim, defenda-se, defenda-se.
Defender-me?... certo que o no farei; poderia, ao
contrrio, acusar, mas tambm no quero; julgo apenas oportuno
dar algumas explicaes. Minhas senhoras, debaixo de certo
ponto de vista o meu colega Fabrcio disse a verdade, porque eu
sou, com efeito, o mais inconstante dos homens em negcio de
amor.
Ainda repete?!
Mas tambm quem me conhece bastante conclui que, por
fim de contas, no h amante algum mais firme do que eu.
O senhor est compondo enigmas.
No o interrompam, deixem-no apresentar o seu progra-
ma amoroso.
Sim, minhas senhoras, continuou Augusto; vamos ao
desenvolvimento da primeira proposio.
Ouam! ouam!
A minha inconstncia natural, justa e, sem dvida, esti-
mvel. Eu vejo uma senhora bela, amo-a no porque ela seja
senhora... mas porque bela; logo, eu amo a beleza. Ora, esse
atributo no foi exclusivamente dado a uma senhora, e quando o
encontro em outra, fora injustia que eu desprezasse nesta aquilo
mesmo que eu tanto amei na primeira.
Bravo!... viva o raciocnio!
Mais ainda. Todo o mundo sabe que no h quem nasa
perfeito. Suponhamos que eu estou na agradvel companhia de
trs jovens; so todas lindas; mas a primeira vence a segunda na
delicadeza do talhe186, esta supera aquela na ternura do olhar e na
48
graa dos sorrisos, e a terceira, enfim, ganha na sublime
harmonia de umas bastas187 madeixas negras, coroando um rosto
romanticamente plido; ora, bem se v que seria a cometer a
mais detestvel injustia se eu, por amar a delicadeza do talhe da
primeira, me esquecesse das ternuras dos olhares e da graa dos
sorrisos da segunda, assim como das bastas madeixas negras e
do rosto romanticamente plido da ltima...
Muito bem, Augusto, exclamou Filipe. Estou achando um
no-sei-qu to aproveitvel no teu sistema, que me vejo em
termos188 de segui-lo.
Eis aqui, pois, porque sou inconstante, senhoras; o res-
peito que tributo ao merecimento de todas, talvez o excesso a
que levo as consideraes que julgo devidas ao sexo amvel, que
me faz ser volvel. Agora eu entro na segunda parte de minha
explicao.
Ateno!... ele vai provar que constante!...
Antes que ningum, minhas senhoras, eu repreendi o meu
corao pela sua volubilidade; mas vendo que era vo trabalho
querer extinguir por tal meio uma disposio que a natureza nele
plantara, pretendi primeiro achar na mesma natureza um
corrosivo que o fizesse constante: procurei uma jovem bem
encantadora para me lanar em cativeiro eterno, mas debalde189 o
fiz, porque eu sou to sensvel ao poder da formosura, que
sempre me sucedia esquecer a bela de ontem pela que via hoje, a
qual, pela mesma razo, era esquecida depois. Quantas vezes,
minhas senhoras, nos meus passeios da tarde, eu olvidei o amor
da manh desse mesmo dia por outro amor, que se extinguiu no
baile dessa mesma noite!...
exagerao! disse uma senhora.
exatamente assim, acudiu Fabrcio.
Que folha dalho190!... exclamou d. Quinquina.
Ento, minhas senhoras, prosseguiu Augusto, eu entendi
que deveria recorrer a mim prprio para tornar-me constante.
49
Consegui-o. Sou firme amante de um objeto... mas de um objeto
que no tem existncia real, que no vive.
Como isto!... ento a quem ama?
A sua sombra, como Narciso191?...
A boneca que se v na vidraa do Desmarais192?...
Ao cupido de Praxteles193, como Aqudias de Rodes?
Alguma esttua da Academia das Belas-Artes?...
Nada disso.
Ento a quem?
A todas as senhoras, resumidas num s ente ideal.
custa dos belos olhos duma, das lindas madeixas doutra, do colo
de alabastro desta, do talhe elegante daquela, eu formei o meu
belo ideal, a quem tributo o amor mais constante. Reno o que
de melhor est repartido e fao mais ainda: aperfeio a minha
obra todos os dias. Por exemplo, retirando-me desta ilha, eu
creio que vestirei o meu belo ideal de novas formas!
Viva o cumprimento!...
Foi assim, minhas senhoras, que eu me pude tornar
constante e, graas a meu proveitoso sistema, posso amar a todas
as senhoras a um tempo sem ser infiel a nenhuma. Disse.
Muito bem!... muito bem!...
Augusto desempenhou-se.
O champagne estourava naquele momento. Leopoldo tomou
a palavra pela ordem.
Eu vou, exclamou, propor um belo meio de terminar
estas discusses, convidando a todos os senhores para um
brinde, no qual Augusto, por castigo de sua inconstncia, nos
no poder acompanhar. No novo que mancebos bebam, no
191. Narciso: segundo a mitologia grega, Narciso era um jovem muito belo, que
desprezava o amor. Como castigo dos deuses aclamados pelas jovens que
se enamoraram de Narciso sem terem xito, o jovem, ao debruar-se sob
as guas de uma fonte, apaixonou-se pela prpria imagem refletida,
deixando-se morrer na perptua contemplao de si mesmo. No lugar de
sua morte, surgiu uma flor de nome narciso.
192. Desmarais: perfumaria que levava o nome de seu proprietrio, Ernesto
Desmarais, perfumista e cabeleireiro, introdutor dos penteados altos na
sociedade carioca.
193. Praxteles: clebre escultor grego, que viveu entre 390 a.C.-335 a.C..
50
meio dos prazeres de um festim, um copo de vinho depois de
pronunciar o nome daquela que a dama de seus pensamentos:
aqui no estamos s mancebos e, pois, no faremos tanto;
pronunciaremos, contudo, a inicial do primeiro nome.
Sim! sim! disse Filipe, Augusto no beber conosco...
No, maninho, acudiu a interessante Moreninha, ele h
de beber tambm.
Ah, minha senhora! no beber um copo de champagne no
est a dvida; a dificuldade toda poder, entre tantos nomes,
escolher o mais amado. Acode-me tal nmero dos quem tm
tocado o superlativo do amor...
M... disse Leopoldo, esvaziando seu copo.
C... pronunciou Filipe, olhando para d. Clementina.
J... balbuciou Fabrcio, exasperado194 com um acesso de
tosse que atacara Augusto.
Os outros mancebos pronunciaram suas letras e s o
inconstante faltava.
Eia! nimo, sr. Augusto, disse d. Carolina.
Mas que letra, minha senhora?... se eles me dessem
licena, eu faria o enorme sacrifcio de reduzir as que me
lembram ao diminuto nmero de vinte e trs.
Nada! nada! nesta sade no entra o nmero plural.
Pois bem, sr. Augusto, continuou a menina, uma coleo
no deixa de ser singular; beba o seu copo de champagne ao
alfabeto inteiro!
Sim, minha senhora, ao alfabeto inteiro!
Meia hora depois levantaram-se da mesa. Leopoldo
aproximou-se de Augusto.
Ento que dizes, Augusto?...
Que passaremos a mais agradvel noite.
E quem ganhar a aposta?
Eu.
De qual destas meninas ests mais apaixonado...
Estou na minha regra, mas hoje tenho-me apaixonado s
de trs, principalmente.
51
E o que pensas da irm de Filipe?
A melhor resposta que te posso dar, ... no sei... porque,
ao meio-dia, a julgava travessa, importuna e feia, mas era-me
completamente indiferente...
uma hora?...
Eu a supus estouvada e desagradvel.
s duas horas?...
M, e desejava v-la longe de mim.
Durante o jantar?...
Fui achando-lhe algum esprito e acusei-me por hav-la
julgado feia.
E agora?
Parece que me sinto muito inclinado a declar-la engra-
ada e bonitinha.
E daqui a pouco?
Eu direi...
52
VI
AUGUSTO COM SEUS AMORES
53
E o mesmo faria a respeito de todas as flores que lhe
mostrava. Era uma doutora de borla197 e capelo198 em todas as
cincias amatrias; e esta menina era, sem mais nem menos,
aquela lnguida e sonsinha d. Quinquina. Fiai-vos199 nas sonsas!
Um moo e uma moa, porm, andavam, como se costuma
dizer, solteiros; cem vezes dela se aproximava o sujeito, mas a
bela, quando mais perto o via, saltava, corria, voava como um
beija-flor, como uma abelha ou, melhor, como uma doidinha.
Eram eles d. Carolina e Augusto.
Augusto passeava s, contra a vontade; d. Carolina, por
assim o querer.
Augusto viu de repente todos os braos engajados. Duas
senhoras, a quem se dirigiu, fingiam no ouvi-lo ou se
desculparam. O inconstante no lhes fazia conta, ou, antes,
queriam, tornando-se difceis, v-lo requestando-as; porque,
desde o programa de Augusto, cada uma delas entendeu l
consigo que seria grande glria, para qualquer, o prender com
inquebrveis cadeias aquele capoeira200 do amor e que o melhor
meio de isto conseguir era fingir desprez-lo e mostrar no fazer
conta dele. Exatamente intentavam bat-lo por meio dessa
ttica201 poderosa, com que quase sempre se triunfa da202 mulher,
isto , pouco-caso.
D. Carolina, pelo contrrio, havia rejeitado dez braos.
Queria passear s. Um brao era uma priso e a engraada
Moreninha gostava, sobretudo, da liberdade. Ela quer correr,
saltar e entender com as outras; ir agora adiante de todos, e daqui
a pouco ser a ltima no passeio: viva, com seus olhos sempre
brilhantes, gil, com seu pezinho sempre pronto para a
54
carreira203; inocente para no se envergonhar de suas travessuras
e criada com mimo demais para prestar ateno aos conselhos de
seu irmo, ela est em toda a parte, v, observa tudo e de tudo
tira partido para rir-se: em contnua hostilidade204 com todas
aquelas que passeavam com moos, de cada vista dolhos, de
cada suspiro, de cada ao que percebia, tirava motivo para seus
epigramas; e, inimigo invencvel, porque no tinha fraco por
onde fosse atacado, era por isso temido e acariciado. Deixemo-
la, pois, correr e saltar, aparecer e desaparecer ao mesmo tempo;
nem nossa pena dado o poder acompanh-la, que ela to
rpida como o pensamento.
Finalmente, o pobre Augusto encontrou uma senhora que
teve piedade dele. Esto afastados do resto da companhia;
conversam. Vamos ouvi-los:
Com efeito, disse a sra. d. Ana, devo confessar que me
espantei ouvindo-o sustentar com to vivo fogo a inconstncia
no amor.
Mas, minha senhora, no sei por que se quer espantar!...
uma opinio.
Um erro, senhor!... ou, melhor ainda, um sistema peri-
goso e capaz de produzir grandes males.
Eis o que tambm me espanta!
No senhor, nada h aqui que exagerado seja; rogo-lhe
que por um instante pense comigo: se o seu sistema bom, deve
ser seguido por todos; e se assim acontecesse, onde iramos
assentar o sossego das famlias, a paz dos esposos, se lhes faltava
a sua base a constncia?...
Augusto guardou silncio e ela continuou:
Eu devo crer que o sr. Augusto pensa de maneira
absolutamente diversa daquela pela qual se explicou; consinta
que lhe diga: no seu pretendido sistema, o que h muita
velhacaria205; finge no se curvar por muito tempo diante de
beleza alguma, para plantar no amor-prprio das moas o desejo
de triunfar de sua inconstncia.
55
No, minha senhora, o nico partido que eu procuro e
tenho conseguido tirar, o sossego que h algum tempo gozo.
Como?
uma histria muito longa, mas que eu resumirei em
poucas palavras. Com efeito, no sou tal qual me pintei durante
o jantar. No tenho a louca mania de amar um belo ideal, como
pretendi fazer crer; porm, o certo que eu sou e quero ser
inconstante com todas e conservar-me firme no amor de uma s.
Ento o senhor j ama?
Julgo que sim.
A uma moa?
Pois ento a quem?
Sem dvida bela?...
Creio que deve ser.
Pois o senhor no sabe?...
Juro que no.
O seu semblante?
No me lembro dele.
Mora na Corte206?...
Ignoro-o.
V-a muitas vezes?
Nunca.
Como se chama?...
Desejo sab-lo.
Que mistrio!...
Eu devo mostrar-me grato bondade com que tenho sido
tratado, satisfazendo a curiosidade que vejo muito avivada no
seu rosto e, pois, a senhora vai ouvir o que ainda no ouviu
nenhum de meus amigos, o que eu no lhes diria, porque eles
provavelmente rir-se-iam de mim. Se deseja saber o mais
interessante episdio de minha vida, entremos nesta gruta, onde
praticaremos livres de testemunhas e mais em liberdade.
Eles entraram.
56
Era uma gruta pouco espaosa e cavada na base de um
rochedo que dominava o mar. Entrava-se por uma abertura alta e
larga, como qualquer porta ordinria. Ao lado direito havia um
banco de relva, em que poderiam sentar-se a gosto trs ou quatro
pessoas; no fundo via-se uma pequena bacia de pedra, onde caa,
gota a gota, lmpida e fresca gua que do alto do rochedo se
destilava; preso por uma corrente bacia de pedra, estava um
copo de prata, para servir a quem quisesse provar da boa gua do
rochedo.
Foi este lugar escolhido por Augusto para fazer suas
revelaes digna hspeda.
O estudante, depois de certificar-se de que toda a companhia
estava longe, veio sentar-se junto da sra. d. Ana, no banco de
relva, e comeou a histria dos seus amores.
57
VII
OS DOIS BREVES207, BRANCO E VERDE
207. Breve: objeto de devoo formado por dois pequenos quadrados de pano
bento, com imagens, relquias ou insgnias religiosas, unidos por duas fitas,
e que os devotos trazem pendente no pescoo.
208. Vaga: onda.
58
depois pareceu haver tomado uma resoluo: o capricho de
criana tinha vencido. Com suas lindas mozinhas arregaou o
vestido at aos joelhos, e quando a onda recuou, ela fez um
movimento, mas ficou ainda no mesmo lugar, inclinada para
diante e na ponta dos ps; segunda, terceira, quarta, quinta onda,
e sempre a mesma cena de ataque e receio do inimigo.
Finalmente, ao refluxo da sexta, ela precipitou-se sobre a
concha, mas a areia escorregou debaixo de seus ps e a
interessante menina caiu na praia, sem risco e com graa;
erguendo-se logo e, espantada ao ver perto de si a nova onda,
que dessa vez vinha mansa e fraca como respeitosa, correu para
trs e sem o pensar atirou-se nos meus braos exclamando:
Ah!... eu ia morrer afogada!...
Depois, vendo-se com o vestido cheio de areia, comeou a
rir-se muito, sacudindo-o e dizendo ao mesmo tempo:
Eu ca! eu ca!...
E como se no bastasse esta passagem rpida do susto para o
prazer, ela olhou de novo para o mar, e tornando-se levemente
melanclica, balbuciou com voz pesarosa, apontando para a
concha.
Mas... a minha concha!...
Ouvindo a sua voz harmoniosa e vibrante, eu no quis saber
de fluxos nem refluxos de ondas; corri para ela com entusiasmo
e, radiante de prazer e felicidade, apresentei-me linda menina,
embora um pouco molhado, mas trazendo a concha desejada.
Este acontecimento fez-nos logo camaradas. Corremos a
brincar juntos com toda essa confiana infantil que s pode
nascer da inocncia, o que ainda em parte se dava em mim, posto
que j a esse tempo fosse eu um pouco velhaquete e sonso, como
um estudante de latim que era, e que por tal j procurava minhas
blasfmias no dicionrio.
sempre digno de observar-se esta tendncia que tm as
calas para o vestido... Desde a mais nova idade e no mais
inocente brinquedo aparece o tal mtuo pendor209 dos sexos... e
de mistura umas vergonhas muito engraadas...
59
Eu c sempre fui assim; quando brincava o tempo-ser210,
por exemplo, sempre preferia esconder-me atrs das portas com
a menos bonita de minhas primas, do que com o mais formoso
de meus amigos de infncia.
Mas, como ia dizendo, ns brincamos juntos, corramos e
caamos na areia, e depois ramos ambos de ns mesmos.
Tnhamos esquecido todo o mundo, e pensvamos somente em
nos divertir, como os melhores amigos.
Depois de uma agradvel hora passada em mil diversas
travessuras, que nossa imaginao e inconstncia de meninos
modificava e inventava a cada momento, a minha interessante
camarada voltou-se de repente para mim, e perguntou:
Sou bonita, ou feia?...
Eu quis responder-lhe mil coisas... corei... e finalmente
murmurei tremendo:
To bonita!...
Pois ento, tornou-me ela, quando formos grandes, ha-
vemos de nos casar, sim?
Oh!... pois bem!...
Havemos, continuou o lindo anjinho de sete anos, eu o
quero... Olhe, o meu primo Juca me queria tambm, mas ainda
ontem quebrou a minha mais bonita boneca... ora, o marido no
deve quebrar as bonecas de sua mulher!... Eu quero, pois, me
casar com o senhor, que h de apanhar bonitas conchinhas para
mim... Alm disso ele no tem como o senhor os cabelos loiros
nem a cor rosada...
Porm, eu gosto mais dos cabelos pretos...
Melhor!... melhor!... exclamou a menina, saltando de
prazer. Olhe: os meus so pretos!
E nisto ela puxou com a sua pequena mozinha um de seus
belos anis da madeixa, para mostrar-mo, e largando-o depois,
eu vi cair outra vez em seu pescoo, de novo torcido como um
caracol.
Ainda corremos mais e continuamos a brincar juntos; e, sem
o pensar, ns nos esquecemos de procurar saber os nossos
60
verdadeiros nomes, porque nos bastavam esses com que j nos
tratvamos, de: meu marido, minha mulher!
A viveza, a graa e o esprito da encantadora menina tinham
feito desaparecer meu natural acanhamento, ns estvamos como
dois antigos camaradas, quando fomos interrompidos em nossas
travessuras por um outro menino que para ns corria chorando.
O que tem?... perguntamos ambos.
meu pai que morre! exclamou ele, apontando para uma
velha casinha que avistamos algumas braas distante de ns.
Ficamos um momento tristemente surpreendidos; depois,
como dominados pelo mesmo pensamento, ela e eu dissemos a
um tempo:
Vamos l.
E corremos para a pequena casa.
Entramos. Era um quadro de dor e luto que tnhamos ido
ver. Uma pobre velha e trs meninos mal vestidos e magros
cercavam o leito em que jazia moribundo um ancio de
cinqenta anos, pouco mais ou menos. Pelo que agora posso
concluir, uma sncope211 havia causado todo o movimento,
pranto e desolao que observamos. Quando chegamos ao p de
seu leito, ele tornava a si.
Ainda no morri, balbuciou, olhando com ternura para
seus filhos, e deixando cair dos olhos grossas lgrimas. Depois,
deparando conosco, continuou:
Quem so estes dois meninos?...
Ningum lhe respondeu, porque todos choravam, sem
excetuar a minha bela camarada e eu.
No chorem ao p de mim, exclamou o velho, sufocado
em pranto e escondendo o rosto entre as mos, enquanto seus
trs filhos e o quarto, que tnhamos h pouco visto fora, se
atiravam sobre ele, no excesso da maior, da mais nobre e da mais
sublime das dores.
A minha camarada dirigiu-se ento velha.
O que tem ele?... perguntou com viva demonstrao de
interesse.
61
Oh, meus meninos, respondeu a aflita velha, ele sofre
uma enfermidade cruel, mas que poderia no ser mortal... porm
pobre... e morre mais depressa pelo pesar de deixar seus filhos
expostos fome!... morre de misria!... morre de fome!...
Fome! exclamamos com espanto; fome! pois tambm
morre-se de fome?...
E instintivamente a minha interessante companheira tirou do
bolso do seu avental uma moeda de ouro e, dando-a velha,
disse:
Foi meu padrinho que ma deu hoje de manh... eu no
preciso dela... no tenho fome.
E eu tirei de meu bolso uma nota, no me lembro de que
valor e por minha vez a entreguei, dizendo:
Foi minha me que ma deu e ela me d tambm um
abrao, sempre que fao esmola aos pobres.
No possvel descrever o que se passou ento naquela
miservel choupana. Minha linda mulher e eu tivemos de ser
abraados mil vezes, de ver de joelhos a nossos ps a velha e os
meninos... O ancio forcejava por falar h muito tempo... Dava
com as mos, chamando-nos... Finalmente ns nos aproximamos
dele, que nos apertou com entusiasmo contra o corao.
Quem sois? pde, enfim, dizer; quem sois?
Duas crianas, foi a menina que respondeu.
Dois anjos, tornou o velho. E quem este menino?...
o meu camarada, disse ainda ela.
Vosso irmo?...
No senhor, meu... marido.
Marido?
Sim, eu quero que ele seja meu marido.
Deus realize vossos desejos...
Acabando de pronunciar estas palavras, o ancio guardou
silncio por alguns instantes... bebeu com sofreguido212 um
pcaro cheio dgua e, olhando de novo para ns, e tendo no
rosto um ar de inspirao e em suas palavras um acento
proftico, exclamou:
62
Seja dado ao homem agonizante lanar seus ltimos
pensamentos do leito da morte, alm dos anos, que j no sero
para ele, e penetrar com seus olhares atravs do vu do futuro!...
Meus filhos! amai-vos, e amai-vos muito. A virtude se deve
ajuntar, assim como o vcio se procura; sim, amai-vos. Eu no
vos iludo... vejo l... bem longe... a promessa realizada! So dois
anjos que se unem... vede!... os meninos que entraram na casa do
miservel, que enxugaram o pranto e mataram a fome da
indigncia, so abenoados por Deus e unidos em nome dEle!...
Meus filhos, eu vos vejo casados l no futuro!...
Oh!... eis a outra vez o delrio!... disse a velha vendo a
exaltao213 e o semblante afogueado do enfermo.
No, minha me, continuou ele, no! no delrio... Pois
qu!... No pode o Eterno abenoar a virtude pela minha boca?...
Oh, meus meninos! Deus paga sempre a esmola que se d ao
pobre!... ainda uma vez... l no futuro... vs o sentireis.
Ns estvamos espantados; o rosto do ancio se havia
tornado rubro, seus olhos flamejantes... Seus lbios tremiam
convulsivamente, sua mo rugosa tinha trs vezes nos
abenoado.
Escutando suas palavras, eu acreditei que estvamos
ouvindo uma profecia infalivelmente realizvel, pronunciada por
um inspirado do Senhor.
No parou a nossa admirao. O doente, cujas foras
pareciam haver reaparecido subitamente, apoiando-se sobre um
dos cotovelos, abriu a gaveta de uma mesa que estava junto de
seu leito, e tirando de uma pequena e antiga caixa dois breves, os
deu velha, dizendo:
Minha me, descosa214 esses dois breves.
A velha, obedecendo pontualmente, os descoseu com
prontido. Os breves eram dois: um verde e outro branco.
Depois o ancio, voltando-se para mim, disse:
Menino! que trazeis convosco que possais oferecer a esta
menina?...
63
Eu corri com os olhos tudo que em mim havia e s achei,
para entregar ao admirvel homem que me falava, um lindo
alfinete de camafeu215, que meu pai me tinha dado para trazer ao
peito e, maquinalmente, pus-lhe nas mos o meu camafeu.
O velho quebrou o p do alfinete e dando-o a sua me,
acrescentou:
Minha me, cosa dentro do breve branco este camafeu.
E voltando-se para minha bela camarada, continuou:
Menina! que trazeis convosco que possais oferecer a este
menino?...
A menina, atilada216 e viva, como que j esperando tal
pergunta, entregou-lhe um boto de esmeralda que trazia em sua
camisinha.
O velho o deu a sua me, dizendo:
Minha me, cosa esta esmeralda dentro do breve verde.
Quando as ordens do ancio foram completamente
executadas, ele tomou os dois breves e, dando-me o de cor
branca, disse-me:
Tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma
daquela menina. Ele contm o vosso camafeu: se tendes bastante
fora para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo,
dai-lho, a fim de que ele o guarde com desvelo.
Eu mal compreendi o que o velho queria ainda: maquinal-
mente entreguei o breve linda menina, que o prendeu no cor-
do de ouro que trazia ao pescoo.
Chegou a vez dela. O homem deu-lhe o outro breve,
dizendo:
Tomai este breve, cuja cor exprime as esperanas do co-
rao daquele menino. Ele contm a vossa esmeralda: se tendes
bastante fora para ser constante e amar para sempre aquele bom
anjo, dai-lho, a fim de que ele o guarde com desvelo.
Minha bela mulher executou a insinuao do velho com
prontido, e eu prendi o breve ao meu pescoo com uma fita que
me deram.
215. Camafeu: pedra semipreciosa, com duas camadas de cores diferentes, numa
das quais se talha uma figura em relevo.
216. Atilado: perspicaz, sagaz.
64
Quando tudo isto estava feito, o velho prosseguiu ainda:
Ide, meus meninos; crescei e sede felizes! vs olhastes
para minha me, olhastes para meus filhos, olhastes para mim,
pobre e miservel, e Deus olhar para vs... ah! recebei a bno
de um moribundo!... recebei-a e sa para no v-lo expirar217...
Isto dizendo, apertou nossas mos com ardor, e eu senti,
ento, que o velho ardia; senti, ento, que seu bafo era como
vapor de gua fervendo, que sua mo era uma brasa que
queimava... Sinto ainda sobre os meus dedos o calor abrasador
dos seus e agora compreendo que, com efeito, ele delirava
quando assim praticou com duas crianas.
Enfim, ns deixamos aquela morada aflitos e admirados.
Ss, ns pensamos no velho e choramos juntos; depois, nas
crianas, isto no merece reparo, nossa dor se mitigou218, para
cuidarmos em brincar outra vez.
De repente, a menina olhou para mim e disse:
E quando minha me perguntar pela minha esmeralda?...
Eu cuidei que lhe respondia, e fiz-lhe igual pergunta:
E quando meu pai perguntar pelo meu camafeu?
Ficamos olhando um para o outro; passados alguns instantes
minha linda mulher, que me parecera estar pensando, disse
sorrindo-se:
Eu vou pregar uma mentira.
E qual?...
Eu direi minha me que perdi a minha esmeralda na
praia.
E eu responderei a meu pai que perdi o meu camafeu nas
pedras.
Eles mandaro procurar, sem dvida...
E no o achando, esquecer-se-o disso.
E os breves?... Ns os guardaremos?...
O velho disse que sim.
Para que ser isto?...
Diz que para nos casarmos quando formos grandes.
Pois ento ns os guardaremos.
65
Oh! eu o prometo.
Eu o juro.
Neste momento soou ave-maria.
To tarde! exclamou a menina... minha me ralhar219 co-
migo!
E, dizendo isto, correu, esquecendo-se at de despedir-se de
mim. Esse fatal descuido acabava de entristecer-me, quando ela,
j de longe, voltou-se para onde eu estava e, mostrando-me o
breve branco, gritou:
Eu o guardarei!
Pela minha parte entendi dever dar-lhe igual resposta, e,
pois, mostrei-lhe o meu breve verde e gritei-lhe tambm:
Eu o guardarei!...
Aqui parou Augusto para respirar, to cansado estava com a
longa narrao; porm ergueu-se logo, ouvindo rudo entrada
da gruta.
Algum nos escuta! disse ele.
Foi talvez uma iluso! respondeu a digna hspeda.
No, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha220 que
faz uma pessoa que corre, tornou Augusto, dirigindo-se entrada
da gruta e observando em derredor dela.
Ento?... perguntou a sra. d. Ana.
Enganei-me, na verdade.
Mas v alguma pessoa?...
Apenas l vejo sua bela neta, a sra. d. Carolina, pensativa
e recostada efgie221 da Esperana.
66
VIII
AUGUSTO PROSSEGUINDO
A estudante lhe fez ver que ainda muito faltava para o fim
da sua histria, e voltando de novo ao seu lugar,
continuou:
O acontecimento que acabo de relatar, minha senhora,
produziu vivssima impresso no meu esprito; ajudado por
minha memria de menino de treze anos, apenas entrei em casa
escrevi, palavra por palavra, quanto me havia acontecido. Isto
me tirou o trabalho de mentir, porque, adormecendo sobre o
papel que acabava de escrever, meu pai o leu sua vontade e
soube o destino do camafeu, sem precisar que eu lho dissesse.
Ele ainda estava junto de mim quando despertei, exclamando: o
meu breve!... o velho!... minha mulher!...
Anda, doidinho, disse-me meu pai com bondade; eu te
perdo as novas loucuras, em louvor da ao que praticaste,
socorrendo um velho enfermo; agora, guarda, eu to peo, e
mesmo to mando: guarda melhor esse breve do que guardaste o
camafeu.
E isto dizendo, deixou-me.
No se falou mais nesse acontecimento; soube que o velho
morrera no dia seguinte e que no momento da agonia abenoara
de novo a minha camarada e a mim.
Meu pai fez todas as despesas do enterro do velho e
socorreu a sua desgraada famlia.
Eu nunca mais vi, nem soube notcia alguma da minha
interessante camarada, mas nem por isso a esqueci, minha
senhora... porque, ou seja que meu corao a tivesse amado
deveras, ou que esse breve tivesse em si alguma coisa de
encantador, o certo que eu ainda hoje me lembro com saudades
dessa criana to travessa, porm to bela. Sem saber seu nome,
pois nem lho perguntei, nem ela mo disse, quando quero falar a
seu respeito, digo: minha mulher! Riem-se? no me importo: eu
no posso dizer de outro modo.
67
Sempre com sua imagem na minhalma, com seu engraado
sorriso diante de meus olhos, com suas sonoras palavras soando
a meus ouvidos, passei cinco anos pensando nela de dia, e com
ela sonhando de noite; era uma loucura, mas que havia eu de
fazer?... Cheguei assim aos meus dezoito anos.
Eu j era, pois, um mancebo. Meus pais nada poupavam
para me educar convenientemente, aprendia quanto me vinha
cabea; diziam que a minha voz era sonora, e por tal
convidavam-me para cantar em elegantes sociedades; julgavam
que eu danava com graa e l ia eu para os bailes; finalmente,
como cheguei a fazer algumas quadras, pediam-me para recitar
sonetos em dias de anos, e assim introduziram-me em mil
reunies, onde as belezas formigavam e os amores eram
dardejados por brilhantes olhos de todas as cores. Alm disto
freqentava as casas de meus companheiros de estudos e os
ouvia contar proezas222 de paixes, triunfos e derrotas amorosas.
Meu amor-prprio se despertou; tive vontade de amar e ser
amado.
Julguei esta minha determinao ainda mais justa, pois tendo
ido passear certas frias na roa, e l falando mil vezes no meu
breve e em minha mulher, ouvi a minha me dizer uma vez, em
que me julgava longe:
Temo que esse breve tire o juzo quele menino: talvez
que nos seja preciso cas-lo cedo.
Portanto, para no ouvir somente, mas tambm para contar
alguma vitria de amor, para no endoidecer por causa do breve
e, finalmente, para no ser necessrio minha me casar-me
cedo, determinei-me a amar.
Esqueceu-se, por conseqncia, de sua mulher e do seu
breve?! perguntou a sra. d. Ana, interrompendo Augusto.
Ao contrrio, minha senhora, tornou este; foi essa minha
resoluo que me tornou mais firme e mais amante de minha
mulher.
No sei, continuou Augusto, que teve o amor comigo,
para entender que todas as moas deviam rir-se de mim e zombar
68
de meus afetos! Pensa que brinco, minha senhora?... pois foi isso
mesmo o que me sucedeu no decurso de minhas paixes. Eu
resumo algumas:
A primeira moa que amei era uma bela moreninha, de
dezesseis anos de idade. Fiz-lhe a minha declarao na carta
mais pattica223 que um pateta poderia conceber: no fim de trs
dias recebi uma resposta abrasadora e cheia de protestos224 de
gratido e ternura; meu corao se entusiasmou com isso... Na
primeira reunio de estudantes contei a minha vitria, li a minha
carta e a resposta que havia recebido: fui vivamente aplaudido;
porm, oito dias depois, os mesmos estudantes quase que me
quebraram a cabea com cacholetas225 e gargalhadas, porque oito
dias, bem contadinhos, depois dessa resposta, a minha terna
amada casou-se com um velho de sessenta anos. Jurei no amar
moa nenhuma que tivesse a cor morena.
Apaixonei-me logo e fui, desgraadamente, correspondido
por uma interessante jovem to coradinha, que parecia mesmo
uma rosa francesa. Ns nos encontrvamos nas noites dos
sbados em certa casa, onde se dava todas as semanas uma
partida; era a mais agradvel sabatina que podia ter um
estudante; porm, o meu novo amor chegava a ser tocante
demais: a minha querida levava o cime at um ponto que
atormentava prodigiosamente: se passava algum dia em que a
no visse e lhe no mandasse uma flor, aparecia-me depois
chorosa e abatida; se na tal partida eu me atrevia a danar com
alguma outra moa bonita, era contar com um desmaio certo, e
desmaio de que no acordava sem que eu mesmo lhe chegasse ao
nariz o seu vidrinho de essncia de rosas; e tudo mais por este
teor e forma. Este amor j estava um pouco velho, certamente,
tinha trs meses de idade. Um sbado mandei-lhe prevenir que
faltaria partida; mas, tendo terminado cedo meus trabalhos, no
pude resistir ao desejo de v-la e fui reunio; eram onze horas
da noite, quando entrei na sala, procurei-a com os olhos e certo
69
moo, com quem me dava, que me entendeu, apontou para um
gabinete vizinho. Voei para ele.
Ela estava sentada junto de um mancebo e com as costas
voltadas para a porta: tomavam sorvetes. Cheguei-me de manso:
conversavam os dois, sem vergonha nenhuma, em seus
amores!... Fiquei espantado e tanto mais que, pelo que ouvi, eles
j se correspondiam h muito tempo; mas o meu espanto se
tornou em fria quando ouvi o machacaz226 falar no meu nome,
fingindo-se zeloso, e receber em resposta as seguintes palavras:
O Augustozinho?... Lamenta-o antes, coitado! um pobre
menino com quem me divirto nas horas vagas!... Soltei um surdo
gemido; a traidora olhou para mim e, voltando-se depois para o
seu querido, disse com o maior sangue-frio: Ora, a tem! perdi
por sua causa um divertimento.
Jurei no amar a moa nenhuma de cor rosada. Sem
emendar-me227, ainda tornei-me cego amante de uma jovem
plida, e, como das outras vezes, fui correspondido com ardor;
mas desta tive eu provas de afeto muito srias. Antes de ver-me,
ela amava um primo e at escrevia-lhe a mido; eu exigi que a
minha terceira amada continuasse a receber cartas dele e que as
respondesse; consenti nisso, com a condio de lhe redigir eu as
respostas. Belo! disse eu comigo: vou tambm divertir-me por
minha vez custa de um amante infeliz!
E o negcio ficou assentado.
Infelizmente eu no conhecia o primo da minha amada, mas
essa era a infelicidade mais tolervel possvel.
Um dia tratamos de encontrar-nos em certa igreja, onde
tinha de haver esplndida festa; cheguei cedo, mas logo depois
da minha chegada, rebentou uma tempestade e choveu
prodigiosamente228. Pouco durou o mau tempo, porm as ruas
deveriam ter ficado alagadas e a bela esperada no podia vir;
apesar disso eu olhava a todos os momentos para a porta e, coisa
notvel, sempre encontrava os olhos de um outro moo, que se
dirigiam tambm para l; finalmente, j nos ramos de
70
semelhante coincidncia; acabada a festa, ambos nos aproxima-
mos.
Ns devemos ser amigos, disse ele.
Eu penso do mesmo modo, respondi.
E apertamos as mos.
Sou capaz de jurar que adivinho a razo por que o senhor
olhava tanto para aquela porta, continuou ele.
E eu tambm.
Convenho: espervamos ambos as nossas amadas e a
chuva mangou conosco.
Exatamente.
Mas ns vamos, sem dvida, vingar-nos, indo agora v-
las janela.
Eu queria propor a mesma vingana.
Bravo!... iremos juntos... onde mora a sua?...
Na rua de...
Ainda melhor... a minha na mesma rua.
Samos da igreja, abraamo-nos e fomos. A minha amada
morava perto, eu avistei-a debruada na janela, talvez me
esperando, pois olhava para o lado donde eu vinha; abri a boca
para dizer ao meu novo amigo: aquela!... quando ele me
pronunciou com indizvel prazer a mesma coisa!... Julgue, minha
senhora, da minha exasperao! pela terceira vez eu era de
boneca de uma menina!...
No sei por que ainda tive nimo de tirar o meu chapu tal
plida, que ao menos dessa vez se fez cor-de-rosa, talvez por
ver-me de brao com o meu novo amigo.
Passando a maldita casa, Jorge, que assim se chamava o
moo, disse-me com fogo:
Aquela jovem adora-me!
Est certo disso, meu amigo?...
Tenho provas.
Acredita muito nelas?
Tenho as mais fortes; por ltimo recebi ainda uma de
maior confiana... eu lhe conto. Um estudante a requestou e
escreveu-lhe; ela mandou-me a carta, e eu respondi em seu lugar.
A correspondncia tem continuado por minha vontade e sou eu
71
quem sempre fao a norma das cartas que ela deve escrever;
achar isto imprudncia, e eu acho um belo divertimento.
Sim... um belo divertimento.
Mas que isso? Est to plido!...
No coisa de cuidado... Eu... ora... o estudante...
por certo um famoso pateta...
No bom ir to longe...
No tem dvida... um tolo rematado229.
Fale-me a verdade: eu acho aquela moa com cara de ser
sua prima.
Quem lhe disse?... , com efeito, minha prima!
Pois vamos a minha casa.
E a sua amada?...
No me fale mais nela.
Apenas chegamos a minha casa, abri a minha gaveta, e
tirando dela todas as cartas que Jorge havia escrito sua prima, e
que ela me tinha mandado, assim como as normas que eu
redigira para as que deveriam ser enviadas ao primeiro, as
entreguei ao meu amigo, acrescentando:
Concordemos ambos que, se o estudante foi um famoso
pateta e um tolo rematado, no o foi menos o primo daquela
senhora a quem cortejamos na rua de...
Jorge devorou todas as cartas e normas que lhe dera; depois
desatou a rir e, abraando-me, exclamou:
Concordemos tambm, caro estudante, que minha prima
tem bastante habilidade para se corresponder com meio mundo,
sem se incomodar com o trabalho da redao de suas cartas!...
O bom humor de Jorge tornou-me alegre. Jantamos juntos,
rimo-nos todo o dia, e s noite se retirou.
Tratei de dormir, mas, antes de adormecer, falei ainda
comigo mesmo: juro que no hei de amar mais moa nenhuma
de cor plida.
Desde ento declarei guerra ao amor, minha senhora; tornei-
me ao que era dantes, isto , ocupei-me somente em me lembrar
de minha mulher e em beijar o meu breve.
72
Mas eu andava triste e abatido e s vezes pensava assim:
ora pois, jurei no amar a moa nenhuma que fosse morena,
corada ou plida; estas so as cores; estes so os tipos da
beleza... e, portanto, minha mulher ter, a pesar meu, uma das
tais cores; logo no me caso com minha mulher e, em ltima
concluso, serei celibatrio, vou ser... frade... frade!...
Minha tristeza, meu abatimento deu nos olhos da digna,
jovial e espirituosa esposa de um de meus bons amigos. Ela me
pediu que lhe confiasse as minhas penas e eu no pude deixar de
relatar estes trs fatos consorte230 de um caro amigo.
A nica consolao que obtive foi v-la correr para o piano,
e ouvi-la cantar as seguintes e outras quadrinhas231 musicadas no
gosto nacional:
I
Menina solteira
Que almeja casar,
No caia em amar
A homem algum;
II
Meream-lhes todos
Olhares ardentes,
Suspiros ferventes
Bem pode soltar;
No negue a nenhum
Protestos de amor;
A qualquer que for
O pode jurar.
73
III
Os velhos no devem
Formar exceo,
Porquanto eles so
Um grande partido;
IV
Cimes e zelos,
Amor e ternura,
No ser loucura
Fingida estudar;
V
Contra os ardilosos
Oponha seu brio:
Tenha sangue-frio
Pra saber fugir;
Em todos os casos
Sempre deve estar
Pronta pra chorar,
Pronta pra rir.
VI
Pode bem a moa,
Assim praticando,
Dos homens zombando,
A vida passar;
74
Mas, se aparecer
Algum toleiro232,
Sem mais reflexo,
logo casar.
75
No, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha de
uma pessoa que corre, tornou Augusto, dirigindo-se entrada da
gruta e observando ao derredor dela.
Ento?... perguntou a sra. d. Ana.
Enganei-me, na verdade.
Mas v algum?...
Apenas l vejo a sua bela neta, a sra. d. Carolina, que se
precipita com a maior graa do mundo sobre uma borboleta que
lhe voa e que ela procura prender.
Uma borboleta...
76
IX
A SRA. D. ANA COM SUAS HISTRIAS
As Lgrimas de Amor
77
velho gentio238 que nesta ilha habitava.
Era no tempo em que ainda os portugueses no haviam feito
a descoberta da Terra de Santa Cruz. Esta pequena ilha abundava
de belas aves e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma
jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em
que ardia-lhe o corao, muito linda e sensvel, tinha por
habitao esta rude gruta, onde ainda ento no se via a fonte
que hoje vemos. Ora, ela, que at aos quinze anos era inocente
como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha
nova, comeou a fazer-se tmida e depois triste, como o gemido
da rola; a causa disto estava no agradvel parecer de um
mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caar ou pescar na
ilha, e vinte vezes j o havia feito, sem que uma s desse f dos
olhares ardentes que lhe dardejava a moa. O nome dele era
Aoitin; o nome dela era Ahy. A pobre Ahy, que o seguia, ora lhe
apanhava as aves que ele matava, ora lhe buscava as flechas
disparadas, e nunca um s sinal de reconhecimento obtinha;
quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na gruta,
ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava,
movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas
tantos extremos eram to mal pagos, que Ahy, de cansada,
procurou fugir do insensvel moo e fazer por esquec-lo;
porm, como era de esperar, nem fugiu-lhe nem o esqueceu.
Desde ento tomou outro partido: chorou. Ou porque a sua
dor era to grande que lhe podia exprimir o amor em lgrimas
desde o corao at aos olhos, ou porque, selvagem mesma, ela
j tinha compreendido que a grande arma da mulher est no
pranto, Ahy chorou.
E porque tambm nas lgrimas de amor h, como nas da
saudade, uma doce amargura, que veneno que no mata, por
vir sempre temperado com o reativo da esperana, a moa julgou
dever separar da dor, que a fazia chorar amargores, a esperana
que no pranto lhe adicionava a doura, e, tendo de exprimir a
doura, Ahy cantou.
78
Seu canto era triste e selvagem, mas era terno canto. Dizem
que um velho frade portugus, ouvindo-o por tradio ao fim de
muitos anos, o traduziu para a nossa lngua e fez dele uma
balada239, a qual minha neta canta.
Todos os dias, ao romper da aurora, a pobre Ahy subia ao
rochedo, que serve de teto a esta gruta, e esperava a piroga240 de
Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e cantava horas inteiras,
sem descanso, at que se partia o brbaro que nunca dela dera f,
nem mesmo quando, dormindo na gruta, o canto soava sobre a
sua cabea.
Mas Ahy era to formosa e sua voz to sonora e terna, que o
mesmo que no pde vencer do insensvel moo, pde do bruto
rochedo; com efeito, seu canto havia amolecido a rocha e as suas
lgrimas a traspassaram.
E o mancebo vinha sempre, ela cantava e chorava, e nunca
ele atendia.
Uma vez, e j ento o rochedo estava todo traspassado pelas
lgrimas da virgem selvagem, uma vez veio Aoitin e, como das
outras, no olhou para Ahy, nem lhe escutou as sentidas
cantigas; entregou-se a seus prazeres e, quando se sentiu
fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva;
mas, ao tempo que em mais sossego dormia, duas gotas das
lgrimas de amor, que tinham passado atravs do rochedo,
caram-lhe sobre as plpebras, que lhe cerravam os olhos. Aoitin
despertou; e tomando suas flechas, correu para o mar, mas,
saltando dentro de sua piroga e afastando-se da ilha, ele viu
sobre o rochedo a jovem Ahy e disse bem alto:
Linda moa!
No outro dia ele voltou e j, ento, olhou para a virgem
selvagem, mas no ouviu ainda o canto dela; depois de caar
veio, como sempre, adormecer na gruta; e, dessa vez, a gota de
79
lgrimas lhe veio cair no ouvido; na volta no s admirou a
beleza da jovem, como, ouvindo a terna cantiga, disse bem alto:
Voz sonora!
Terceiro dia amanheceu e Aoitin viu e ouviu Ahy; caou e
cansou, veio repousar na gruta e dessa vez a gota de lgrimas lhe
caiu no lugar do corao e, quando voltava, disse bem alto:
Sinto amar-te!
Ora, parece que nada mais faltava a Ahy, e que a ela
cumpria responder a este ltimo grito de Aoitin, confessando
tambm o seu amor to antigo; mas a natureza da mulher a
mesma, tanto na selvagem, como na civilizada: a mulher deseja
ser amada, fingindo no amar; deseja ser senhora do mesmo de
quem escrava, e pois Ahy nada respondeu; mas riu-se, suas
lgrimas secaram; porm j a este tempo as muitas que havia
derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje
existe.
No dia seguinte veio Aoitin, e viu a sua amada, que j no
cantava, nem chorava; mesmo antes de abicar praia, foi
clamando:
Sinto amar-te!
E Ahy no respondeu e s sorriu-se.
Nada de caa... nada de pesca... j o insensvel era escravo e
no vivia longe do encanto que o prendia: correu, pois, para a
gruta, deitou-se, mas no dormiu. Quem ama no dorme; sentiu
que em suas veias corria sangue ardente, que seu corao estava
em fogo: era a febre do amor. Aoitin teve sede, e a dois
passos viu a fonte que manava; correu aodado241 para ao p dela
e, ajuntando suas mos, foi bebendo as lgrimas de amor. A cada
trago que bebia, um raio de esperana lhe brilhava, e quando a
sede foi saciada, j estava feliz: a fonte era milagrosa.
As lgrimas de amor, que haviam tido o poder de tornar
amante o insensvel mancebo, no puderam esconder a sua
origem e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado.
Ento ele no mais buscou sua piroga. Saindo da gruta, fez
um rodeio e foi, de manso, trepando pelo rochedo, at chegar
80
junto de Ahy, que, com os olhos na praia do lado oposto,
esperava ver partir o seu amante e ouvir o seu belo grito:
Sinto amar-te!
Mas de repente ela estremeceu, porque uma mo estava
sobre seu ombro; e quando olhou viu Aoitin, que sorrindo-se lhe
disse num tom seguro e terno:
Tu me amas!?
Ahy no respondeu, mas tambm no fugiu dos braos de
Aoitin, nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou
na face.
Desde ento foram felizes ambos na vida, e foi numa mesma
hora que morreram ambos.
A fonte nunca mais deixou de existir e h ainda quem
acredite que por desconhecido encanto conserva duas grandes
virtudes...
Dizem, pois, que quem bebe desta gua no sai da nossa ilha
sem amar algum dela e volta, por fora, em demanda do objeto
amado. Em segundo lugar, querem tambm alguns que algumas
gotas bastam para fazer a quem bebe adivinhar os segredos de
amor.
Terminei aqui a minha histria, disse a sra. d. Ana,
respirando.
E eu sou capaz de jurar, disse Augusto, que pela terceira
vez sinto rudo de algum que se retira correndo.
Pois examine depressa.
Augusto correu porta e voltou logo depois.
E ento?... perguntou a sra. d. Ana.
Ningum, respondeu o estudante.
E v algum no jardim?...
Apenas a sra. d. Carolina, que vai apressadamente para o
rochedo.
Sempre minha neta!...
E eu, minha senhora, tenho que pedir-lhe uma graa.
Diga.
Rogo-lhe que, por sua interveno, me facilite o prazer
de ouvir sua linda neta cantar a balada de Ahy, que tanto me
interessou com o seu amor.
81
Oh!... no carece pedir... no a ouve cantar... sobre o
rochedo?... a balada.
Ser possvel?!
Adivinhou seu pensamento.
82
X
A BALADA DO ROCHEDO
hspeda e o estudante deixaram ento a gruta e, tomando
I
Eu tenho quinze anos
E sou morena e linda!
Mas amo e no me amam,
E tenho amor ainda:
E por to triste amar,
Aqui venho chorar.
II
O riso de meus lbios
H muito que murchou;
Aquele que eu adoro
Ah! foi quem o matou:
Ao riso, que morreu,
O pranto sucedeu.
III
O fogo de meus olhos
De todo se acabou,
Aquele que eu adoro
Foi quem o apagou:
Onde houve fogo tanto
Agora corre o pranto.
83
IV
A face cor de jambo
Enfim se descorou,
Aquele que eu adoro
Ah! foi quem a desbotou:
A face to rosada
De pranto est lavada!
V
O corao to puro
J sabe o que amor,
Aquele que eu adoro
Ah! s me d rigor:
O corao no entanto
Desfaz o amor em pranto.
VI
Diurno aqui se mostra
Aquele que eu adoro;
E nunca ele me v,
E sempre o vejo e choro;
Por paga a tal paixo
S lgrimas me do!
VII
Aquele que eu adoro
qual o rio que corre,
Sem ver a flor pendente
Que margem murcha e morre:
Eu sou a pobre flor
Que vou murchar de amor.
VIII
So horas de raiar
O sol dos olhos meus,
Mau sol! queima a florzinha
Que adora os olhos seus:
Tempo do sol raiar
84
E o tempo de chorar.
IX
L vem sua piroga
Cortando leve os mares,
L vem uma esperana
Que sempre d pesares:
L vem o meu encanto,
Que sempre causa pranto.
X
Enfim abica praia;
Enfim salta apressado,
Garboso243 como o cervo
Que salta alto valado244:
Quando h de ele c vir
S pra me ver sorrir?...
XI
L corre em busca de aves
A selva que lhe cara,
Ligeiro como a seta
Que do arco seu dispara:
Quando h de ele correr
Somente pra me ver?
XII
L vem do feliz bosque
Cansado de caar,
Qual beija-flor, que cansa
De mil flores beijar:
Quando h de ele, cansado,
Descansar a meu lado?...
85
XIII
L entra para a gruta,
E cai na rude cama,
Qual flor de belas cores,
Que cai o p na grama:
Quando h de nesse leito
Dormir junto a meu peito?
XIV
L sbito desperta,
E na piroga embarca,
Qual sol que, se ocultando,
O fim do dia marca:
Quando hei de este sol ver
No mais desaparecer?
XV
L voa na piroga,
Que o rasto deixa aos mares,
Qual sonho que se esvai
E deixa aps pesares:
Quando h de ele c vir
Pra nunca mais fugir?...
XVI
Oh brbaro! tu partes
E nem sequer me olhaste?
Amor to delicado
Em outra j achaste?
Oh brbaro! responde
Amor como este, aonde?
XVII
Somente pra teus beijos
Te guardo a boca pura;
Em que lbios tu podes
Achar maior doura?...
Meus lbios, murchareis,
86
Seus beijos no tereis!
XVIII
Meu colo alevantado
No vale teus abraos?...
Que colo h mais formoso,
Mais digno de teus braos?
Ingrato! morrerei...
E no te abraarei.
XIX
Meus seios entonados
No podem ter valia?
Desprezas as delcias
Que neles te oferecia?
Pois ho de os seios puros
Murcharem prematuros?
XX
No sabes que me chamam
A bela do deserto?...
Empurras para longe
O bem que te est perto!...
S pagas em rigor
As lgrimas de amor?...
XXI
Ingrato! ingrato! foge...
E aqui no tornes mais,
Que, sempre que tornares,
Ters de ouvir meus ais:
E ouvir queixas de amor,
E ver o pranto de dor!...
XXII
E, se amanh vieres,
Em p na rocha dura
Starei cantando aos ares.
87
A mal paga ternura...
Cantando me ouvirs.
Chorando me achars!...
88
XI
TRAVESSURAS DE D. CAROLINA
89
Am-la? no faltava mais nada! amo-a como amo as
outras... isto sim.
Pois meu amigo, todos ns estamos derrotados: o dia-
binho da menina nos tem posto o corao em retalhos. Se, de
novo, se fizer a sade que hoje fizemos, todos, exceo de
Filipe, pronunciaro a letra C...
Tambm Fabrcio?
Ora! esse est doente... perdido... doido, enfim!
E ela?
Zomba de todos ns; cada cumprimento que lhe endere-
amos paga ela com uma resposta que no tem troco e que nos
racha de meio a meio. Tu ainda no lhe disseste nada?
Coisas vs... e palavras da tarifa248.
E ela?
Palavras da tarifa... e coisas vs.
Pois opinio geral que ela te prefere a todos ns.
Tanto melhor para mim.
E pior para ela, mas... adeus! o meu lindo par se levanta
do banco de relva em que descansa; vou tomar-lhe o brao;
tenho-me singularmente divertido: a bela senhora filsofa!...
faze idia! J leu Mary de Wollstonecraft249 e, como esta defende
os direitos das mulheres, agastou-se250 comigo, porque lhe pedi
uma comenda251 para quando fosse ministra de Estado, e a
patente de cirurgio do exrcito, no caso de chegar ela a ser
general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe prometi que, apenas
me formasse, trabalharia para encartar-me na Assemblia
Provincial e l, em lugar das maadas de pontes, estradas e
canais, promoveria a discusso de uma mensagem ao Governo
Geral, em prol dos tais direitos das mulheres; alm de que...
Mas... tu bem vs que ela me est chamando: adeus!... adeus!...
No entanto d. Carolina continuava a cativar todos os olhares
e atenes; tinham notado, verdade, que ela estivera alguns
90
momentos recostada efgie da Esperana, triste e pensativa.
Fabrcio jurava mesmo que a vira enxugar uma lgrima, mas
logo depois, lhe desaparecera completamente a menor aparncia
de tristeza, tornando a brilhar-lhe o prazer em ebulio.
Todos tinham tido seu quinho, maior ou menor, segundo
os merecimentos de cada um, nas graas maliciosas da menina.
Ningum havia escapado: Fabrcio era a vtima predileta, porque
tambm fora ele o nico que se atreveu a travar luta com ela.
Finalmente d. Carolina acabava de entrar outra vez no
jardim, depois de ter cantado sua balada. De todos os lados
soavam-lhe os parabns, mas ela escapou a eles, correndo para
junto de uma roseira toda coroada por suas belas e rubras flores.
Fabrcio, que ainda no estava suficientemente castigado e
que, alm disto, comeava a gostar seu tantum252 da Moreninha,
se dirigiu com d. Joaninha para o lado em que ela se achava.
decididamente o que eu pensava, disse Fabrcio, quan-
do se viu ao p de d. Carolina; e dirigindo-se a d. Joaninha:
sim... sua bela prima ama as rosas, exclusivamente.
Conforme as ocasies e circunstncias, respondeu a me-
nina.
Poderia eu merecer a honra de uma explicao? per-
guntou Fabrcio.
Com toda a justia e, continuou d. Carolina rindo-se,
tanto mais que foi a V. Sa. que me dirigi. Eu queria dizer que
entre um beijo-de-frade ou um cravo-de-defunto e uma rosa no
hesito em preferir a ltima.
Fabrcio fingiu no entender a aluso e continuou:
Todavia no sempre bem pensada semelhante prefe-
rncia; a rosa como a beleza: encanta mas espinha! V. Sa. o
sabe, no assim?
Perfeitamente, mas tambm no ignoro que a rosa s
espinha quando se defende de alguma mo impertinente que vem
perturbar a paz de que goza; V. Sa. o sabe, no assim?
Oh! ento a sra. d. Carolina foi bem imprudente em
quebrar esta rosa com que brinca, expondo assim seus delicados
91
dedos; e bem cruel tambm em faz-la murchar de inveja, tendo-
a defronte de seu formoso semblante.
Pela minha vida, meu caro senhor! nunca vi pedir uma
rosa com tanta graa: quer servir-se dela?
Seria a mais apetecvel253 glria...
Pois aqui a tem... Querida prima, nada de cimes.
E Fabrcio, recebendo o belo presente, em vez de olhar para
a mo que o dava, atentava254 em xtase255 o rosto moreno e o
sorrir malicioso de d. Carolina. Ao momento de se encontrar a
mo que dava e a que recebia, Fabrcio sentiu que lhe apertavam
os dedos; seu primeiro pensamento foi crer que era amado; mas
logo se lhe apagou esse raio de vaidade, pois que ele retirou
vivamente a mo, exclamando involuntariamente:
Ai! feri-me!...
Era que a travessa lhe havia apertado os dedos contra os
espinhos da rosa. Mas a flor tinha cado na relva, e Fabrcio, j
menos desconcertado, a levantou com presteza256; e encarando a
irm de Filipe, disse-lhe, em tom meio vingativo:
Foi um combate sanguinolento, mas ganhei o prmio da
vitria!...
Pois feriu-se?... perguntou d. Carolina, chegando-se com
fingido cuidado para ele.
Nada foi, minha senhora: comprei uma rosa por algumas
gotas de sangue... valeu a pena.
Maldita rosa! exclamou a Moreninha, teatralmente...
maldita rosa! eu te amaldio!...
E dando um piparote257 na inocente flor, a desfolhou
completamente; no ficou na mo de Fabrcio mais que o verde
clice258. D. Carolina correu para junto de sua digna av; e o
pobre estudante ficou desconcertado.
92
E esta! murmurou ele, enfim.
Foi muito bem-feito! disse d. Joaninha, cheia de zelos e
dando-lhe um belisco que o fez ir s nuvens.
Perdo, minha senhora... seja pelo amor de Deus! excla-
mou Fabrcio, que se via batido por todos os lados.
No entanto comeava a declinar a tarde; uma voz reuniu
todas as senhoras e senhores em um s ponto: serviu-se o caf
num belo caramancho259; mas como fosse ele pouco espaoso
para conter to numerosa sociedade, a s se abrigaram as
senhoras, enquanto os homens se conservavam da parte de fora.
Escravas, decentemente vestidas, ofereciam chvenas de
caf fora do caramancho e, apesar disso, d. Carolina se dirigiu
com uma para Fabrcio, que praticava com Augusto.
Eu quero fazer as pazes, sr. Fabrcio; vejo que deve estar
muito agastado comigo e venho trazer-lhe uma chvena de caf
temperado pela minha mo.
Fabrcio recuou um passo e colocou-se ilharga260 de
Augusto; ele desconfiava das tenes da menina: sua primeira
idia foi esta: o caf no tem acar.
Ento, comeou entre os dois um duelo de cerimnias, que
durou alguns instantes, e, finalmente, o homem teve de ceder
mulher. Fabrcio ia receber a chvena, quando esta estremeceu
no pires... d. Carolina, temendo que sobre ela se entornasse o
caf, recuou um pouco. Fabrcio fez outro tanto, e a chvena,
ainda mal tomada, tombou e o caf derramou-se inopinadamen-
te261. Fabrcio recuou ainda mais com vivacidade, mas, encon-
trando a raiz de um choro, que sombreava o caramancho,
perdeu o equilbrio e caiu redondamente na relva.
Uma gargalhada geral aplaudiu o sucesso.
Fabrcio espichou-se completamente! exclamou Filipe.
O pobre estudante ergueu-se com ligeireza, mas, na verdade,
corrido262 do que acabava de sobrevir-lhe; as risadas
93
continuavam, as terrveis consolaes o atormentavam, todas as
senhoras tinham sado do caramancho e riam-se, por sua vez,
desapiedadamente. Fabrcio muito daria para ser livrar dos
apuros em que se achava, quando de repente soltou tambm a
sua risada e exclamou:
Vivam as calas de Augusto!
Todos olharam. Com efeito, Fabrcio tinha encontrado um
companheiro na desgraa: Augusto estava de calas brancas, e a
maior poro do caf entornado havia cado nelas.
Continuaram as risadas. Redobraram os motejos263. Duas
eram as vtimas.
94
XII
MEIA HORA EMBAIXO DA CAMA
95
anjinhos, quando se ajuntam, fazem, conversando, matinada268
tal, que a um quarto de lgua se deixam adivinhar; se cedio e
mesmo inslito269, compar-los a um bando de lindas maitacas270,
no h remdio seno dizer que muito se assemelham a uma
orquestra de peritos instrumentistas, na hora da afinao.
Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrxula271 figura,
incapaz de aparecer a pessoa alguma; em ceroulas e nu da cinta
para cima, faria recuar de espanto, horror, vergonha e no sei
que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que,
certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as
mos; e, portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento
que lhe veio mente: ajuntou toda a sua roupa, enrolou-a, e com
ela embaixo do brao escondeu-se atrs de uma linda cama que
se achava no fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre
de to intempestiva visita; mas, ainda outra vez, pobre estudante!
teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo da cama, pois
quatro moas entraram no quarto. E eram elas d. Joaninha, d.
Quinquina, d. Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito
adocicada, muito espartilhada, muito estufada, e que seria tudo
quanto tivesse vontade de ser, menos o que j acreditava que era,
isto ... bonita.
Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos,
enfeites e mil outros objetos que estavam todos muito em ordem,
mas que as mozinhas destas quatro demoiselles272 no puderam
resistir ao prazer, muito habitual nas moas, de desarranjar para
outra vez arranjar, foram, por mal dos pecados de Augusto,
sentar-se da maneira seguinte: d. Clementina e d. Joaninha na
cama, embaixo da qual ele estava; d. Quinquina de um lado, em
uma cadeira, e d. Gabriela exatamente defronte do espelho, do
qual no tirava os olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de
braos e larga, pequena era para lhe caber sem incmodo toda a
96
coleo de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade
de enchimentos que lhe faziam de suplemento natureza, que
com d. Gabriela, segundo suas prprias camaradas, tinha sido
um pouco mesquinha a certos respeitos.
Depois de respirar um momento, as meninas, julgando-se
ss, comearam a conversar livremente, enquanto Augusto, com
sua roupa embaixo do brao, coberto de teias de aranha e suando
suores frios, comprimia a respirao e conservava-se mudo e
quedo, medroso de que o mais pequeno rudo o pudesse
descobrir; para seu maior infortnio, a barra da cama era
incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura
descobertos, por onde, se alguma das moas olhasse, seria ele
impreterivelmente273 visto. A posio do estudante era penosa,
certamente; por ltimo, saltou-lhe uma pulga ponta do nariz, e
por mais que o infeliz a soprasse, a teimosa continuou a chuch-
lo274 com a mais descarada impunidade.
Antes mil vezes cinco sabatinas seguidas, em tempo de
barracas no campo!... dizia ele consigo.
Mas as moas falavam havia j cinco minutos; faamos por
colher algumas belezas, o que na verdade um pouco difcil,
pois, segundo o antigo costume, falam todas quatro ao mesmo
tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitar.
Que calor!... exclamou d. Gabriela, afetando no abanar
de seu leque todo o donaire275 de uma espanhola; oh! no parece
que estamos no ms de julho; mas, por minha vida, vale bem o
incmodo que sofremos, o regalo276 que tm tido nossos olhos.
Bravo, d. Gabriela!... ento seus olhos...
Tm visto muita coisa boa. Olhe, no por falar mas, por
exemplo, h objeto mais interessante do que d. Lusa mostrar-se
gorda, esbelta, bem feita?...
verdade! verdade! bradavam as trs.
97
E ns que a conhecemos! disse d. Clementina. Fora o
que se v e em casa, to escorridinha!... Ora, nem se sabe onde
lhe fica a cintura.
um saco!
E como feia!...
horrenda!
um bicho!
E no vimos a filha do capito com sua dentadura posti-
a?... Agora no faz seno rir!...
Coitadinha! aperta tanto os olhos!
Se ela pudesse arranjar tambm um postio para o quei-
xo!
Ora, d. Clementina, no me obrigue a rir!...
D. Joaninha, voc reparou no vestido de chalim de d.
Carlota?... Quanto a mim, est absolutamente fora da moda.
Ainda que estivesse na moda, no h nada que nela as-
sente bem.
Ora... um pau vestido!... tem uma testa maior que a
rampa do Largo do Pao!...
Um nariz com tal cavalete, que parece o Morro do Cor-
covado!...
E a boca?... ah! ah! ah!
Parece que anda sempre pedindo boquinhas277...
E que lngua ela tem!
uma vbora!
Eu no sei por que as outras no ho de ser como ns,
que no dizemos mal de nenhuma delas.
verdade, porque se eu quisesse falar...
Diga sempre, d. Quinquina.
No... no quero. Mas, passando a outra coisa... d. Jose-
fina aplaude com prazer a moda dos vestidos compridos!
Por qu?
Ora... porque tem pernas de canio de sacristo.
Pernas finas tambm moda, presentemente.
98
Deus me livre!... acudiu d. Clementina; pelo menos para
mim nunca deve ser, pois no posso emendar a natureza, que me
deu pernas grossas.
No lhe fico atrs, juro-lhe eu! exclamou d. Quinquina.
Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas.
Isso bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmen-
te, podemos tirar as dvidas.
Como?
Facilmente: vamos medir nossas pernas.
Ouvindo tal proposio, o nosso estudante, apesar de se ver
em apuros embaixo da cama, arregalou os olhos de maneira que
lhe pareciam querer saltar das rbitas; porm, d. Gabriela, que
no parecia contar muito consigo e que s por honra da firma278
dissera o seu, nem eu!, veio deix-lo com gua na boca.
Havia de ser engraado, disse ela, arregaarmos aqui
nossos vestidos!...
Que tinha isso?... acudiu d. Quinquina; no somos todas
moas?... dir-se-ia que no temos dormido juntas.
verdade, acrescentou d. Clementina e, alm do que, no
se veria demais seno quatro ou cinco saias por baixo do
segundo vestido.
E talvez algum saiote... vamos a isto!
No... no... disse, por sua vez, d. Joaninha.
Pois por mim no era a dvida, tornou d. Clementina,
com ar de triunfo, recostando-se mole e voluptuosamente nas
almofadas, e deixando escorregar de propsito uma das pernas
para fora do leito, at tocar com o p no cho, de modo que ficou
mostra at o joelho.
Quem me dera j casar... suspirou ela.
Pobre Augusto!... no te chamarei feliz!... ele v a um palmo
dos olhos a perna mais bem torneada que possvel imaginar!...
atravs da finssima meia aprecia uma mistura de cor de leite
com a cor de rosa e, rematando este interessante painel rseo, um
pezinho que s se poderia medir a polegadas, apertado em um
sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez...
99
cem... mil beijos: mas, quem o pensaria? no foram beijos o que
desejou o estudante outorgar279 quele precioso objeto; veio-lhe
ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada...
Quase que j no se podia suster... j estava de boca aberta e
para saltar... Porm, lembrando-se da extica figura em que se
via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e,
apertando-os com fora contra ela, procurava iludir a sua
imaginao.
Quem me dera j casar!... repetiu d. Clementina.
Isso fcil, disse d. Gabriela; principalmente se devemos
dar crdito aos que tanto nos perseguem com finezas. Olhem, eu
vejo-me doida!... mais de vinte me atormentam! Querem saber o
que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me
correspondo com cinco... isto s para ver qual dos cinco quer
casar primeiro; pois bem, ontem, uma preta que vende empadas e
que se encarrega das minhas cartas, recebeu das minhas mos
duas...
Logo duas?...
Ora, pois, apesar de todas as minhas explicaes, a
maldita estava de mona. Mesmo dizendo-lhe eu dez vezes: a de
lacre azul a do sr. Joozinho e a de verde do sr. Juca, sabem o
que fez?... Trocou as cartas!
E o resultado?...
Ei-lo aqui, respondeu d. Gabriela, tirando um papel do
seio; ao vir embarcar, e quando descia a escada a tal preta, com a
destreza precisa, entregou-me este escrito do sr. Joozinho:
Ingrata! Ainda tremem minhas mos, pegando no corpo de
delito280 da tua perfdia281! Escreves a outro? Compareces por to
horrvel crime perante o jri do meu corao; e, bem que tenhas
nesse tribunal a tua beleza por advogado, o meu cime e justo
ressentimento, que so os juzes, te condenam s perptuas
100
gals282 do desprezo; delas s te poders livrar se apelares dessa
sentena para o poder moderador de minha cega paixo.
Bravo, d. Gabriela! o sr. Joozinho sem dvida
estudante de jurisprudncia?
No, doutor.
Bem mostra pelo bem que escreve.
Mas eu sou bem tola! conto tudo o que me sucede e nin-
gum me confia nada!
Isso razovel, disse d. Clementina; ns devemos pagar
com gratido a confiana de d. Gabriela. Eu comeo declarando
que estou comprometida com o sr. Filipe a deixar esta noite,
embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direita283 ao
caramancho, um embrulhozinho com uma trana de meus
cabelos.
Que asneira!... por que lhe no entrega ou no lhe manda
entregar?...
Ora... eu tenho muita vergonha... antes quero assim; at
parece romntico.
So caprichos de namorados! falou d. Quinquina; havia
tempo para isso! mas, enfim, de asneiras que o amor se
alimenta. Querem ver uma dessas? O meu predileto est de luto
e por isso exige que eu v festa de... com uma fita preta no
cabelo, em sinal de sentimento; exige ainda que eu no valse
mais, que no tome sorvetes, para no constipar284, que no d
dominus tecum285 a moo nenhum que espirrar ao p de mim, e
que jamais me ria quando ele estiver srio; e a tudo isso julga ele
ter muito direito por ser tenente da Guarda Nacional286! Pois, por
isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo, valso todas as
282. Gals: pena dos que eram condenados a remar nas gals antigas
embarcaes ; por extenso, gals passou a significar trabalhos forados
pblicos.
283. Direito: o que se segue ou estende em linha reta.
284. Constipar: resfriar.
285. Dominus tecum: expresso latina que significa O Senhor esteja contigo,
usada antigamente como saudao pessoa que espirrava, hoje substituda
por sade ou por Deus te ajude.
286. Guarda Nacional: fundada em 1831, em substituio s milcias,
ordenanas e guardas municipais.
101
vezes que posso, tomo sorvetes at no poder mais, dou dominus
tecum aos moos mesmo quando no espirram e no posso ver o
sr. Tenente Gusmo srio, sem soltar uma gargalhada.
Olhem l o diabinho da sonsa! murmurou consigo mes-
mo Augusto, embaixo da cama.
E voc, mana, no diz nada?... perguntou ainda ela a d.
Joaninha.
Eu?... o que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda
no amo.
a nica que ama deveras! pensou o estudante, a quem
j doam as cadeiras de tanto agachar-se.
E o sr. Fabrcio?... e o sr. Fabrcio?... exclamaram as trs.
Pois bem, tornou d. Joaninha, o nico de quem gosto.
Mas que temos ns hoje feito nesta ilha?... que triunfos
havemos conseguido?... Vaidade para o lado: moas bonitas,
como somos, devemos ter conquistado alguns coraes!
Juro que estou completamente aturdida com os protestos
de eterna paixo do sr. Leopoldo, disse d. Quinquina; mas uma
verdadeira desgraa ser hoje moda ouvir com pacincia quanta
frivolidade287 vem cabea no direi cabea, porque parece
que os tolos no a tm, porm aos lbios de um desenxabido
namorado. O tal sr. Leopoldo... no graa, eu ainda no vi
estudante mais desestudvel!...
Voc, d. Joaninha, acudiu d. Clementina, tem-se regala-
do hoje com o incomparvel Fabrcio. No lhe gabo o gosto... s
as perninhas que ele tem!...
Ora, respondeu aquela; ainda no tive tempo de olhar
para as pernas... mas tambm voc parece que no se arrepia
muito com a corcova do nariz de meu primo; confessemos,
minha amiga, todas ns gostamos de ser conquistadoras.
Pois confessemos... isso verdade.
Pela minha parte no digo nada, assobiou d. Gabriela mi-
rando-se no espelho; mas enfim... eu no sei se sou bonita, mas,
onde quer que esteja, vejo-me sempre cercada de adoradores;
hoje por exemplo, tenho-me visto doida... perseguiram-me
102
constantemente seis... era impossvel ter tempo de mangar com
todos a preceito288.
Mas, d. Gabriela, onde est o seu talento?...
Pois bem, que se ponha outra no meu lugar...
Alguns homens zombariam de doze de ns outras a um
tempo... Houve j um que no teve vergonha de escrever isto em
um papel:
Que pateta!...
Que tolo!...
Que vaidoso!
Essa opinio segue tambm o Augusto!
Oh!... e esse papelo!...
Ei-las comigo... murmurou entre dentes o nosso estudan-
te, estendendo o pescoo a modo de cgado289.
Como lhe fica mal aquela cabeleira!... assemelha-se
muito a uma preguia.
Tem as pernas tortas.
Eu creio que ele corcunda.
No, aquilo magreza.
Forte impertinente! falando um Lucas290...
H de ser interessante danando!
103
Vamos ns tom-lo nossa conta?
Vamos: pensemos nos meios de zombar dele cruelmen-
te...
Pois pensemos...
Mas elas no tiveram tempo de pensar, porque, nesse
momento, ouviu-se um grito de dor, ao qual seguiu-se viva
agitao no interior daquela casa, onde ainda h pouco s se
respirava prazer e delcias. As quatro moas levantaram-se
espantadas.
Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou d.
Joaninha.
Coitada! que lhe sucederia?...
Vamos ver.
As quatro moas correram precipitadamente para fora do
quarto.
Augusto, que no estava menos assustado, saiu do seu
esconderijo, vestiu-se apressadamente e ia, por sua vez, deixar
aquele lugar, em que se vira em tantos apuros, quando deu com
os olhos na carta do sr. Joozinho, que, com a pressa e agitao,
havia d. Gabriela deixado cair.
O estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e
com prontido e cuidado pde, sem ser visto, escapar-se do
gabinete.
Um instante depois foi cuidadoso procurar saber a causa do
rumor que ouvira.
O grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por d.
Carolina.
104
XIII
OS QUATRO EM CONFERNCIA
105
Quando da a pouco a ama de d. Carolina quis levantar-se,
pareceu-lhe que estava uma nuvem diante de seus olhos, que os
copos danavam, que havia duas mesas, duas salas e tudo em
dobro; ergueu-se e sentiu que as paredes andavam-lhe roda,
que o assoalho abaixava e levantava-se debaixo dos seus ps;
depois... no pde dar mais que dois passos, cambaleou e,
acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com estrondo contra
uma porta. Logo confuso e movimento... Ningum ousou
pensar que Paula, sempre sbria e inimiga de espritos295, se
tivesse deixado embriagar, e, por isso, correram alguns escravos
para o jardim, gritando que Paula acabava de ter um ataque.
A primeira pessoa que entrou em casa foi d. Carolina que,
vendo a infeliz mulher estirada no assoalho, caiu sobre ela,
exclamando com fora:
Oh! minha me!... Foi este o seu grito de dor.
Momentos depois Paula se achava deitada numa boa cama e
rodeada por toda a famlia; porm havia algazarra tal, que mal se
entendia uma palavra.
Isto foi o jantar que lhe deu fraqueza, gritou uma
avelhantada matrona, que se supunha com muito jeito para a
Medicina; fraqueza complicada com o tempo frio... no vale
nada... venha um copo de vinho!
E dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na
boca da pobre Paula que, por mais que lpida296 e risonha o fosse
engolindo a largos tragos, no pde livrar-se de que a
interessante Esculpia297 lhe entornasse boa poro pelos
vestidos.
So maleitas! exclamava d. Violante, com toda a fora de
seus pulmes... so maleitas!... Quem lhe olha para o nariz diz
logo que so maleitas! Eu j vi curar-se uma mulher, que teve o
mesmo mal, com cauda de cobra moda, torrada e depois desfeita
106
num copo dgua tirada do pote velho com um coco novo e com
a mo esquerda, pelo lado da parede. fazer isto j.
So lombrigas! gritava uma terceira.
ataque de estupor298! bradava a quarta senhora.
esprito maligno! acudiu outra, que foi mais ouvida que
as primeiras... esprito maligno que lhe entrou no corpo! Venha
quanto antes um padre com gua-benta e seu brevirio.
Ora, para que esto com tal azfama299?... disse uma
senhora, que acabava de entrar no quarto; no se v logo que isto
no passa de uma mona, que a boa da Paula tomou? Olhem: at
tem o vestido cheio de vinho.
Mona, no senhora! acudiu d. Carolina; a minha Paula
nunca teve to feio costume, e, se est molhada com vinho, a
culpa desta senhora, que h pouco lhe despejou meia garrafa
por cima. Oh! bem cruel que, mesmo vendo-se a minha dor,
digam semelhantes coisas!...
No meio de toda esta balbrdia era de ver-se o zelo e a
solicitude300 da menina travessa!... Observava-se aquela
moreninha de quinze anos, que parecera somente capaz de
brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte,
prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar
um servio ou acudir a um reclamo. S cuidava de si quando
devia enxugar as lgrimas.
Junto do leito apareceram os quatro estudantes.
Curto foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram para
denunciar-lhes com evidncia a natureza da molstia.
Isto no vale a pena, disse Filipe em tom baixo a seus
colegas: uma mona de primeira ordem.
Est claro, vamos sossegar estas senhoras.
No, tornou Filipe, sempre em voz baixa; aturdidas pelo
caso repentino e preocupadas pela sobriedade desta mulher,
nenhuma delas quer ver o que est diante de seus olhos, nem
sentir o cheiro que lhes est entrando pelo nariz; minha irm
ficaria inconsolvel, brigaria conosco e no nos acreditaria, se
107
lhe dissssemos que a sua ama se embebedou; e, portanto,
podemos aproveitar as circunstncias, zombar de todas elas e
divertir-nos fazendo uma conferncia.
Oh diabo!... isso catecismo dos charlates!
Ora, no sejas tolo... no pareces estudante; devemos
lanar mo de tudo o que nos possa dar prazer e no ofenda os
outros.
Mas que iremos dizer nesta conferncia, seno que ela
est espirituosa demais? perguntou Augusto.
Diremos tudo o que nos vier cabea, ficando entendido
que as honras pertencero ao que maior nmero de asneiras
produzir; o caso que nos no entendam, ainda que tambm ns
no entendamos.
H de ser bonito, tornou Augusto, vista de tanta gente
que, por fora, conhecer esta patacoada.
Qual conhecer!... aqui ningum nos entende, tornou
Filipe, que, voltando-se para os circunstantes, disse com voz
teatralmente solene: Meus senhores, rogamos breves momen-
tos de ateno; ns queremos conferenciar301.
Movimento de curiosidade.
Seguiu-se novo exame na enferma, no qual os quatro
estudantes fingiram observar o pulso, a lngua, o rosto e os olhos
da enferma; auscultaram302 e percutiram-lhe303 o peito e fizeram
todas as outras pesquisas do costume.
Depois eles se colocaram em um dos ngulos do quarto.
Filipe teve a palavra. Profundo silncio.
Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma enfermi-
dade que no deixa de pedir srias atenes e sobre a qual eu
vou respeitosamente submeter o meu juzo. Poucas palavras
bastam. A molstia de que nos vamos ocupar no nova para
ns; creio, mesmo, senhores, que qualquer de vs j a tem
padecido muitas vezes...
Est enganado.
108
No respondo aos apartes304. Eu diagnostico uma baqui-
tes. Concebe-se perfeitamente que as etesias desenvolvidas pela
decomposio dos teres espasmdicos e engendrados no
alambique intestinal, uma vez que a compresso do diafragma
lhes cause vibraes simpticas que os faam caminhar pelo
canal coldoco at o peristeo dos pulmes...
Cest trop fort!...
Da, passando gorje305, perturbam a quimificao da
hematose, que por isso se tornando em linfa hemosttica, v de
um jacto causar um tricocfalo no esfenide, podendo mesmo
produzir uma proctorragia nas glndulas de Meyer, at que,
penetrando pelas cmaras pticas, no esfncter do cerebelo,
cause um retrocesso prosttico, como pensam os modernos
autores, e promovam uma rebelio entre os indivduos cerebrais:
por conseqncia isto nervoso.
Muito bem concludo.
O tratamento que proponho concludente: algumas gotas
de ter sulfrico numa taa do lquido fontneo aucarado; o
cozimento dos frutos do Coffea arabica306 torrados, ou mesmo o
Thea sinensis307; e quando isto no baste, o que julgo impossvel,
as nossas lancetas308 esto bem afiadas e duas libras309 de sangue
de menos no faro falta doente. Tenho dito.
Como ele fala bem, murmurou uma das moas.
Fabrcio tomou a palavra.
Sangue! sempre sangue! eis a medicina romntica dos
insignificantes Broussais310! mas eu detesto tanto a medicina
sanguinria, como a estercorria, herbria, sudorria e todas as
304. Aparte: palavra ou frase com que se interrompe o discurso de outra pessoa.
305. Gorje: forma afrancesada da palavra gorja, que significa garganta.
306. Coffea arabica: nome cientfico do caf.
307. Thea sinensis: nome cientfico do ch.
308. Lanceta: instrumento pontiagudo com dois gumes, usado para praticar
sangrias, abrir abscessos etc.
309. Libra: medida inglesa de peso de 16 onas, equivalente a 453,592 gramas.
310. Broussais: Franois Joseph Victor Broussais (1772-1838), clebre mdico
francs, que tinha como prtica a aplicao de sanguessugas para extrao
do sangue.
109
que acabam em ria. Desde Hipcrates311, que foi o maior
charlato do seu tempo, at os nossos dias, tem triunfado a
ignorncia, mas j, enfim, brilhou o sol da sabedoria...
Hahnemann312... ah!... quebrai vossas lancetas, senhores! para
curar o mundo inteiro basta-vos uma botica313 homeoptica, com
o Amazonas ao p!... queimai todos os vossos livros, porque a
verdade est s, exclusivamente, no Alcoro de nosso
Mafoma314, no Organon315 do grande homem! Ah! se depois do
divino sistema morre por acaso algum, por se no ter ainda
descoberto o meio de dividir em um milho de partes cada
simples tomo da matria! Senhores, eu concordo com o
diagnstico do meu colega, mas devo combater o tratamento por
ele oferecido. Uma taa de lquido fontneo316 aucarado, e
acidulado com algumas gotas de ter sulfrico, , em minha
opinio, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O
mesmo direi do cozimento do Coffea arabica...
Mas por que no tm morrido envenenados os que por
vezes os tm tomado?...
Eis a a considerao que os leva ao erro!... Senhor meu
colega, porque a ao malfica desses medicamentos no se faz
sentir logo... s vezes s aparece depois de cem, duzentos e mais
anos... eis a grande verdade!... Mas eu tenho observaes de
molstias da natureza da que nos ocupa e vo mostrar a
superioridade do meu sistema. Ouam-me: uma mulher padecia
este mesmo mal; j tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe
mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem conta,
110
vomitrios s dzias e tisanas317 aos milheiros; quis o seu bom
gnio que ela recorresse a um homeopata, que, com trs doses,
das quais cada uma continha apenas a trimilionsima parte de um
quarto de gro de Nihilitas nihilitatis318, a ps completamente
restabelecida; e quem quiser pode ir v-la na rua... certo que
no me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em
uma casa e que hoje est ndia319, gorda, com boas cores e at
remoou e ficou mais bonita... Outro fato.
Basta! basta!...
...Pois bem, basta; e propondo a aplicao das Nihilitas
nihilitatis na dose da trimilionsima parte de um gro, dou por
terminado o meu discurso.
O sr. Leopoldo tem a palavra.
Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dvi-
das a respeito do diagnstico e, portanto, julgo til recorrermos
ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao
sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Alm disto, eu tenho
f de que no h molstia alguma que possa resistir
maravilhosa aplicao dos passes, que tanto abismaram
Paracelso320 e Kisker321. Ainda mais: se o diagnstico do colega
que falou em primeiro lugar exato, dobrada razo achou para
sustentar o meu parecer porque, enfim, se similia similibus
curantur322, necessariamente o magnetismo tem de curar a
baquites. Voto, pois, para que comecemos j a aplicar-lhe os
passes.
111
Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais,
parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu
as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por
ele proposto e falou com arte tal, que d. Carolina o escolheu para
assistncia de sua ama.
Augusto terminou as aplicaes convenientes ao caso, mas,
no tendo entrado no nmero delas a essencial lembrana de um
escalda-ps323, caiu a tropa das mezinheiras324 sobre o
desgraado estudante, que se viu quase doido com a balbrdia de
novo levantada no quarto.
Menos rudo, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode
ser fatal doente!
Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-ps!
Ainda em cima de no lhe mandar aplicar uma ajuda,
esquece-se tambm do escalda-ps!...
Se no lhe derem um escalda-ps, eu no respondo pelo
resultado!...
Olhem, como a doente est risonha, s por ouvir falar em
escalda-ps!...
Aquilo pressentimento!
Sr. doutor, um escalda-ps!...
Pois bem, minhas senhoras, disse Augusto para se ver
livre delas, dem-lhe o preconizado325 escalda-ps!
E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que
as coisas que mais contrariam o mdico so: primeiro, a sade
alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por ltimo, as senhoras
mezinheiras.
323. Escalda-ps: banho teraputico que se d aos ps com gua bem quente e,
s vezes, contendo cataplasmas ou mesmo tpicos.
324. Mezinheiro: indivduo que faz ou aplica mezinhas, isto , remdios
caseiros; curandeiro.
325. Preconizado: recomendado, aconselhado.
112
XIV
PEDILVIO326 SENTIMENTAL
114
mais adequados para se preencher o dficit provvel do Brasil
para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de
importao, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrrio, a
dcima urbana. J se v que d. Violante tinha casas na cidade.
Restavam quatro senhoras, que julgaram a propsito jogar o
embarque, que na verdade as divertia muito, como o episdio do
s galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores,
vivos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no
cart331, jogo muito bonito e muito variado, que nos vieram
ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dvida!...
A rapaziada empregava melhor o seu tempo: tambm
jogava, mas na sua roda no havia nem mesa, nem cartas, nem
dados. O seu jogo tinha um diretor que, exceo de regra entre
os mais, no podia ter menos de cinqenta anos. Era um homem
de estatura muito menos que a ordinria, tinha o rosto muito
vermelho, cabelos e barbas ruivas, gordo, de pernas arqueadas,
ajuntando ao ridculo de sua figura muito esprito; no estava
bem seno entre rapazes; por felicidade deles sempre se encontra
desses. Tal o diretor da roda dos moos. O sr. Batista (este o seu
nome) era frtil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo
outro melhor. J se havia jogado o do toucador e o do enfermo.
O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodcima vez,
com aplauso geral, principalmente das moas: era, sem mais nem
menos, o jogo da palhinha.
Caso clebre!... j se viu que coincidncia!... ora expliquem,
se so capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em
todas as doze tem a sorte feito com que Filipe abrace d.
Clementina e Fabrcio d. Joaninha! E sempre, no fim de cada
jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade
houvesse nelas de dar o abrao, e fazendo-se coradinhas,
exclamam:
Quantos abraos!... pois outra vez?...
Eu j no dei ainda agora?... ora isto!...
331. cart: palavra francesa para designar o jogo de cartas para dois parceiros,
jogado com baralho de 32 cartas. Vence a partida quem primeiro faz o
nmero de pontos estipulado de antemo.
115
Entre os rapazes, porm, h um que no est absolutamente
satisfeito: Augusto. Ser porque no tal jogo da palhinha tem
por vezes ficado vivo?... no! ele esperava isso como castigo da
sua inconstncia. A causa outra: a alma da ilha de... no est
na sala! Augusto v o jogo ir seguindo o seu caminho muito em
ordem; no se rasgou ainda nenhum leno, Filipe ainda no
gritou com a dor de nenhum belisco, tudo se faz em regra e
muito direito; a travessa, a inquieta, a buliosa332, a tentao-
zinha no est a: d. Carolina est ausente!...
Com efeito, Augusto, sem amar d. Carolina (ele assim o
pensa), j faz dela idia absolutamente diversa da que fazia ainda
h poucas horas. Agora, segundo ele, a interessante Moreninha
, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta tanta graa,
que tudo se lhe perdoa. D. Carolina o prazer em ebulio; se
inquieta e buliosa, est em s-lo a sua maior graa; aquele rosto
moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como abelha,
perderia metade do que vale, se no estivesse em contnua
agitao. O beija-flor nunca se mostra to belo como quando se
pendura na mais tnue flor e voeja nos ares; d. Carolina um
beija-flor completo.
Neste momento a sra. d. Ana entrou na sala, e depois,
dirigindo-se grande varanda da frente, sentou-se defronte do
jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da palhinha e
comeava um novo; Augusto pediu que o dispensassem e foi ter
com a dona da casa.
No joga mais, sr. Augusto? disse ela.
Por hora no, minha senhora.
Parece-me pouco alegre.
Ao contrrio... estou satisfeitssimo.
Oh! seu rosto mostra no sentir o que me dizem seus
lbios; se aqui lhe falta alguma coisa...
Na verdade que aqui no est tudo, minha senhora.
Ento que falta?
A sra. d. Carolina.
116
A boa senhora riu-se com satisfao. Seu orgulho de av
acabava de ser incensado333; isto era tocar-lhe no fraco.
Gosta de minha neta, sr. Augusto?
a delicada e encantadora borboleta deste jardim,
respondeu ele, mostrando as flores.
V busc-la, disse a sra. d. Ana, apontando para dentro.
Minha senhora, tanta honra!...
O amigo de meu neto deve merecer minha confiana;
esta casa dos meus amigos e tambm dos dele. Carolina est
sem dvida no quarto de Paula; v v-la e consiga arranc-la de
junto da sua ama.
A sra. d. Ana levou Augusto pela mo at o corredor e
depois o empurrou brandamente.
V, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de
minha estima para com o amigo de meu neto.
Augusto no esperou ouvir nova ordem, e endireitou para o
quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada;
abriu sem rudo e parou no limiar.
Trs pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob
o peso de sua sofrvel mona, era um objeto triste e talvez
ridculo, se no padecesse; a segunda era uma escrava que
acabava de depor, junto do leito, a bacia em que Paula deveria
tomar o pedilvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era
uma menina de quinze anos, que desprezava a sala, em que
borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre
mulher; este objeto era nobre...
D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a
porta e por isso no viam Augusto: Paula olhava, mas no via,
ou antes no sabia o que via.
Anda, Tomsia, d-lhe o escalda-ps! disse d. Carolina.
Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.
A escrava abaixou-se; puxou os ps da pobre Paula; depois,
pondo a mo ngua, tirou-a de repente, e sacudindo-a:
Est fervendo!... disse.
No est fervendo, respondeu a menina; deve ser bem
117
quente, assim disseram os moos.
A escrava tornou a pr a mo e de novo retirou-a com
presteza tal, que bateu com os ps de Paula contra a bacia.
Estonteada!... sai... afasta-te, exclamou d. Carolina,
arregaando as mangas de seu lindo vestido.
A escrava no obedeceu.
Afasta-te da, disse a menina com tom imperioso; e
depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os ps de sua ama,
apertou-os contra o peito, chorando, e comeou a banh-los.
Belo espetculo era o ver essa menina delicada, curvada aos
ps de uma rude mulher, banhando-os com sossego,
mergulhando suas mos, to finas, to lindas, nessa mesma gua
que fizera lanar um grito de dor escrava, quando a tocara de
leve com as suas, to grosseiras e calejadas!... Os ltimos
vislumbres das impresses desagradveis que ela causara a
Augusto de todo se esvaram. Acabou-se a criana estouvada...
ficou em seu lugar o anjo da candura.
O sensvel estudante viu as mozinhas to delicadas da
piedosa menina j roxas, e adivinhou que ela estava engolindo
suas dores para no gemer; por isso no pde suster-se e,
adiantando-se, disse:
Perdoe, minha senhora.
Oh!... o senhor estava a?
E tenho testemunhado tudo!
A menina abaixou os olhos, confusa e apontando para a
doente, disse:
Ela me deu de mamar...
Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas
mos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que
a cercam poderia encarregar-se do trabalho em que a vi to
piedosamente ocupada.
Nenhum o far com jeito.
Experimente.
Mas a quem encarregarei?
A mim, minha senhora.
O senhor falava de meus escravos...
Pois nem para escravo eu presto?
Senhor!...
118
Veja se eu sei dar um pedilvio!
E nisto o estudante abaixou-se e tomou os ps de Paula,
enquanto d. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.
Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a
jovenzinha recebeu os ps de sua ama e os envolveu na toalha
que tinha nos braos.
Agora deixemo-la descansar, disse o moo.
Ela corre algum risco?... perguntou a menina.
Afirmo que acordar amanh perfeitamente boa.
Obrigada!
Quer dar-me a honra de acompanh-la at sala? disse
Augusto, oferecendo a sua mo direita bela Moreninha.
Ela no respondeu, mas olhou-o com gratido, e aceitando o
brao do mancebo, deixou o quarto de Paula.
119
XV
UM DIA EM QUATRO PALAVRAS
120
Oh! beleza! oh! inexplicvel poder de um rosto bonito que,
no contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o
ilude e ainda zomba dele dormindo!
Estava o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de
quem tivera at aborrecimentos e que agora comeava com olhos
travessos a fazer-lhe ccegas no corao, vinha terna e
amorosamente despert-lo; que ele fingira continuar a dormir e
ela se sentara sua cabeceira; que, traquinas335 como sempre, em
vez de cham-lo, queria rir-se, acordando-o pouco a pouco; que
para isso aproximava seu rosto do dele, e, assoprando-lhe os
lbios, ria-se ao ver as contraes que produzia a titilao
causada pelo sopro; que ele, ao sentir to perto dos seus os
lindos lbios dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um
beijo, mas que temia v-la fugir ao menor movimento; que,
finalmente, no podendo mais resistir aos seus frvidos desejos,
assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um salto
colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de boto de rosa; o
rosto chegou distncia de meio palmo e... (aqui parou o sonho
e principiou a realidade) e ele deu um salto e em lugar de pregar
um terno beijo nos lbios de d. Carolina foi, com toda a fora e
estouvamento, bater com os beios e nariz contra a testa de
Fabrcio; e como se o pobre colega tivesse culpa de tal
infelicidade, deu-lhe dois empurres dizendo:
Sai-te da, peste!... ora, quando eu sonhava com um anjo,
acordo-me nos braos de Satans!...
Corra-se, porm, um vu sobre quanto se passou at que se
levantaram do almoo. A sociedade se dividiu logo depois em
grupos. Uns conversavam, outros jogavam, dois velhos ferraram-
se no gamo, as moas espalharam-se pelo jardim e os quatro
estudantes tiveram a pssima lembrana de formar uma mesa de
voltarete336.
E apesar do poder todo da cachaa do jogo, de cada vez que
qualquer deles dava cartas, ficava na mesa um lugar vazio, e
121
junto do arco da varanda, que olhava para o jardim colocava-se
uma sentinela.
J se v que o voltarete no podia seguir marcha muito
regular. Augusto, por exemplo, distraa-se com freqncia tal,
que s vezes passava com basto337 e espadilha338, e era
codilhado339 todas as mos que jogava de feito.
A Moreninha j fazia travessuras muito especiais no
corao do estudante; e ele, que se acusava de haver sido injusto
para com ela, agora a observava com cuidado e prazer, para, em
compensao, render-lhe toda justia.
D. Carolina brilhava no jardim e, mais que as outras, por
graas e encantos que todos sentiam e ningum poderia bem
descrever, confessava-se que no era bela, mas jurava-se que era
encantadora; algum queria que ela tivesse maiores olhos, porm
no havia quem resistisse viveza de seus olhares; os que mais
apaixonados fossem da doce melancolia de certos semblantes em
que a languidez dos olhos e a brandura de custosos risos esto
exprimindo amor ardente e sentimentalismo, concordariam por
fora que no lindo rosto moreno de d. Carolina nada iria melhor
do que o prazer que nele transluz e o sorriso engraado e picante
que de ordinrio enfeita seus lbios; alm disto, sempre em
brincadora guerra com todos e em interessante contradio
consigo mesma, ela a um tempo solta um ai e uma risada,
graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando no dizer palavra,
apresenta-se escondendo-se, sempre quer, jamais querendo.
Nunca tambm se havia mostrado a Moreninha to jovial e
feiticeira, mas para isso boas razes havia: esse era o dia dos
anos da sua boa av e a pobre Paula, sua estimada ama, estava
completamente restabelecida.
Eis uma deliciosa invaso!... dez moas entram de repente
na varanda e num momento tudo se confunde e amotina340; d.
Carolina atira no meio da mesa do voltarete uma mo cheia de
flores; enquanto Filipe faz teno de dirigir-lhe um discurso
122
admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa, para tornar a
aparecer logo depois. impossvel continuar assim!... d-se por
acabado o jogo e a Moreninha, custa de um nico sorriso, faz
as pazes com o irmo.
Parabns, sra. d. Joaquina, disse Augusto; j triunfou de
uma de suas rivais!
Como?... perguntou ela.
Ora, que esta minha prima nunca entende as figuras do
sr. Augusto, acudiu d. Carolina; explique-se, sr. doutor!
Sua prima, minha senhora, a aurora e a rosa disputam
sobre qual primar na viveza da cor, e eu vejo que ela j tem
presa no cabelo uma das duas rivais.
Eu o encarrego com prazer da guarda fiel desta minha
competidora... seja o seu carcereiro! disse d. Quinquina, queren-
do tirar uma linda rosa do cabelo, para oferec-la a Augusto.
Oh! minha senhora! seria um cruel castigo para ela, que
se mostra to vaidosa!
Pois rejeita?...
Certo que no; aceito, mas rogo um outro obsquio.
Qual?...
Que por ora lhe conceda seus cabelos por homenagem.
Pois bem, ser satisfeito; eu guardarei a sua rosa.
Mas cuidado, no haja quem liberte a bela cativa! disse
Leopoldo.
Protesto que a hei de furtar, acrescentou d. Carolina.
Desafio-lhe a isso! respondeu-lhe a prima.
Ento comeou uma luta de ardis341 e cuidados entre a
Moreninha e d. Quinquina. Aquela j tinha debalde esgotado
quantos estratagemas lhe pde sugerir seu frtil esprito, e enfim,
fingindo-se fatigada, veio sossegadamente conversar junto de d.
Quinquina, que, no menos viva, conservava-se na defensiva.
Depois de uma meia hora de hbil afetao342, a menina
travessa, com um rpido movimento, fez cair o leque de sua
adversria; Leopoldo abaixou-se para levant-lo e d. Quinquina,
um instante despercebida, curvou-se tambm e soltou logo um
123
grito, sentindo a mo da prima sobre a rosa, e com a sua foi
acudir a esta; houve um conflito entre duas finas mozinhas, que
mutuamente se beliscaram, e em resultado desfolhou-se comple-
tamente a rosa.
Morreu a bela cativa!... morreu a pobre cativa!... grita-
ram as moas.
D. Carolina est criminosa! disse d. Clementina.
Vai ao jri, minha senhora!
verdade, vamos lev-la ao jri.
A idia foi recebida com aplauso geral, s Filipe se ops.
No, no, disse ele. Carolina muito rebelde, e se fosse
condenada no cumpriria a sentena.
Oh maninho! no diga isso.
Voc jura obedecer?...
Eu juro por voc.
Tanto pior... era mais um motivo para se tornar perjura343.
Pois bem, dou a minha palavra, no suficiente?
Basta! basta!
Organizou-se o jri; Fabrcio foi encarregado da presidn-
cia, um outro moo serviu de escrivo, e cinco moas saram por
sorte para juradas; d. Clementina ter de ser a relatora da
sentena. A Augusto declararam suspeito na causa, e Filipe foi
escolhido para advogado da r e Leopoldo da autora.
A sesso comeou.
Longo fora enumerar tudo o que se passou em duas horas
muito agradveis e por isso muito breves, tambm.
Toda a companhia veio tomar parte naquele divertimento
improvisado e at, quem o diria?! os dois velhos deixaram o
tabuleiro do gamo! Resuma-se alguma coisa.
As testemunhas foram d. Gabriela e uma outra, que deram
provas de bastante esprito. O interrogatrio de d. Carolina fez
rir a quantos o ouviram. O debate dos advogados esteve curioso.
Leopoldo acusou a r, demonstrando que tinha havido a
circunstncia agravante da premeditao e que o crime se
tornava ainda mais feio, por ser causado pelo cime; procurou
343. Perjuro: indivduo que falta f jurada, que quebra um juramento feito.
124
provar que d. Carolina, cnscia344 de seus encantos e beleza,
queria ser senhora absoluta de todos os coraes e at de todos
os seres, que ela se enchera de zelos supondo, com razo, que
Augusto desse subido valor rosa, por lhe ser dada por uma
moa bela como era a autora e, enfim, que o cime da r era
excessivo, que j da tarde antecedente jurara a perda daquela
flor, por desconfiar que o zfiro345 brincava mais com ela do que
com seus olhos.
Filipe no se deixou ficar atrs. Argumentou dizendo que
era impossvel decidir que mo tinha dado a morte bela cativa,
que no houvera premeditao, porque a r no quisera matar
mas sim libertar; que, se havia crime, s o cometera a autora, por
prender uma inocente flor; e que, por ltimo, ainda quando fosse
a r que desfolhara a rosa e mesmo dando-se o propsito de
fazer, dever-se-ia atribuir tal ao piedade, pois que d.
Quinquina a estava matando pouco a pouco com o veneno da
inveja, colocando-a to perto de suas faces, que tanto a venciam
em rubor e vio.
As juradas recolheram-se ao toilette346 e cinco minutos
depois voltaram com a sentena, que foi lida por d. Clementina.
O jri declarou d. Carolina criminosa e a condenou a
indenizar o dono da rosa com um beijo.
Para fazer tal, disse a r, no carecia eu de sentena do
jri: tome um beijo, minha prima...
No a mim que o deve dar, respondeu a autora; o dono
da rosa o sr. Augusto.
De rosa fez-se ento o rosto de d. Carolina.
O beijo! o beijo! gritaram as juradas. Voc deu sua pala-
vra!
Ela hesitou alguns momentos... depois, aproximou-se de
Augusto e, com seu sorriso feiticeiro e irresistvel nos lbios,
disse:
125
O senhor me perdoa?...
No! No! No! clamaram de todos os lbios.
Mas a menina parecia contar com o poder de seus lbios,
porque, sorrindo-se ainda do mesmo modo, tornou a perguntar
com meiguice e ternura:
Me perdoa?...
No! no!
Porm, como resistir ao seu sorriso?... como dizer que
no a quem pede como ela?... exclamou Augusto, entusiasmado.
D. Carolina estava, pois, perdoada.
Agradecida! disse ela com vivo acento de gratido e
estendeu sua destra347 para Augusto que, no podendo ceder tudo
com to criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela
mozinha de querubim348 e fez estalar sobre ela o beijo mais
gostoso que tinham at ento dado seus lbios.
A manh deste dia foi assim passada; e tarde voltou-se aos
preparativos do sarau349.
126
XVI
O SARAU
127
conduziram da Corte para a ilha de... senhoras e senhores,
recomendveis por carter e qualidades; alegre, numerosa e
escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em
toda a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre todas essas elegantes e agradveis moas, que com
aturado empenho se esforam por ver qual delas vence em
graas, encantos e donaires, certo sobrepuja356 a travessa
Moreninha, princesa daquela festa.
Hbil menina ela! Nunca seu amor-prprio presidiu com
tanto estudo seu toucador e, contudo, dir-se-ia que o gnio da
simplicidade a penteara e vestira. Enquanto as outras moas
haviam esgotado a pacincia de seus cabeleireiros, posto em
tributo toda a habilidade das modistas da Rua do Ouvidor357 e
coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jias, d.
Carolina dividiu seus cabelos em duas tranas, que deixou cair
pelas costas: no quis adornar o pescoo com seu adereo de
brilhantes nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um
finssimo, mas simples vestido de gara358, que at pecava contra
a moda reinante, por no ser sobejamente comprido. E vindo
assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e atenes.
Porm, se um atento observador a estudasse, descobriria
que ela adrede359 se mostrava assim, para ostentar as longas e
ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a alvura de
seu vestido branco, para mostrar, todo nu, o elevado colo de
alabastro, que tanto a aformoseia, e que seu pecado contra a
moda reinante no era seno um meio sutil de que se aproveitara
para deixar ver o pezinho mais bem-feito e mais pequeno que se
pode imaginar.
Sobre ela esto conversando agora mesmo Fabrcio e
Leopoldo. Vamos ouvi-los.
Est na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez
aquele.
128
Danas com ela? perguntou Leopoldo.
No, j estava engajada360 para doze quadrilhas.
Oh! l vai ter com ela o nosso Augusto. Vamos apreci-
lo.
Os dois estudantes aproximaram-se de Augusto, que
acabava de rogar linda Moreninha a merc da terceira
quadrilha.
Leva de tbua361, disse Fabrcio ao ouvido de Leopoldo...
a mesma que eu lhe havia pedido.
Mas a jovenzinha pensou um momento antes de responder
ao pretendente; olhou para Fabrcio e com particular mover de
lbios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e respondeu
a Augusto:
Com muito prazer.
Mas, minha senhora, disse Fabrcio, vermelho de despei-
to e aturdido com um belisco que lhe dera Leopoldo; h cinco
minutos que j estava engajada at duodcima.
verdade, tornou d. Carolina; e agora s acabo de
ratificar362 uma promessa: o sr. Augusto poder dizer se ontem
pediu-me ou no a terceira contradana?
Juro... balbuciou Augusto.
Basta! acudiu Fabrcio interrompendo-o; intil qual-
quer juramento de homem, depois das palavras de uma senhora.
Fabrcio e Leopoldo retiraram-se; d. Carolina, que tinha
iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer na face de Augusto, e
temendo que daquela ocorrncia tirasse este alguma explicao
lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se,
tomou o brao de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:
Agradeo-lhe a condescendncia com que ia tomar parte
na minha mentira... foi necessrio que eu praticasse assim; quero
antes danar com qualquer, do que com aquele seu amigo.
Ofendeu-a, minha senhora?
Certo que no, mas... diz-me coisas que no quero saber.
Ento... que diz ele?...
129
Fala tantas vezes em amor...
Meu Deus! um crime que eu tenho estado bem perto de
cometer!
Pois bem, foi esta a nica razo.
Mas eu temo perder a minha contradana... alguns mo-
mentos mais e serei ru como Fabrcio.
A culpa ser de seus lbios.
Antes dos seus olhos, minha senhora.
Cuidado, sr. Augusto! lembre-se da contradana!
Pois ser preciso dizer que a detesto?...
Basta no dizer que me ama.
no dizer o que sinto e eu... no sei mentir.
Ainda h pouco ia jurar falso...
Nas palavras de um anjo ou de uma...
Acabe.
Tentaozinha.
Perdeu a terceira contradana.
Misericrdia! eu no falei em amor!...
Neste momento a orquestra assinalou o comeo do sarau.
preciso antecipar que nos no vamos dar ao trabalho de
descrever este; um sarau como todos os outros, basta dizer o
seguinte:
Os velhos lembraram-se do passado, os moos aproveitaram
o presente, ningum cuidou do futuro. Os solteiros fizeram por
lembrar-se do casamento, os casados trabalharam por esquecer-
se dele. Os homens jogaram, falaram em poltica e requestaram
as moas; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e
criticaram desapiedadamente umas s outras. As filhas deram
carreirinhas ao som da msica, as mes, j idosas, receberam
cumprimentos por amor daquelas e as avs, por no terem que
fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar as toucas
e a comer doces. Tudo esteve debaixo destas regras gerais, s
resta dar conta das seguintes particularidades:
D. Carolina sempre danou a terceira contradana com
Augusto, mas, para isso, foi preciso que a sra. d. Ana empenhas-
se todo o seu valimento; a tirana princesinha da festa esteve
realmente desapiedada; no quis passear com o estudante.
130
A interessante d. Violante fez o diabo a quatro: tomou doze
sorvetes, comeu po-de-l, como nenhuma, tocou em todos os
doces, obrigou alguns moos a tom-la por par e at danou uma
valsa de corrupio.
Augusto apaixonou-se por seis senhoras com quem danou;
o rapaz incorrigvel. E assim tudo o mais.
Agora so quatro horas da manh; o sarau est terminado, os
convidados vo retirando-se e ns, entrando no toilette, vamos
ouvir quatro belas conhecidas nossas, que conversam com ardor
e fogo.
possvel?!... exclamou d. Quinquina, dirigindo-se sua
mana; pois verdade que esse sr. Augusto lhe fez uma
declarao de amor?...
Como quer que lhe diga, maninha?... Asseverou que
meus olhos pretos davam sua alma mais luz do que a seus
olhos todos os candelabros da sala nesta noite, e mesmo do que o
sol, nos dias mais brilhantes... palavras dele.
Que insolente363!... tornou d. Quinquina; ele mesmo, que
me jurou ser eu a mais bela a seus olhos e a mais cara a seu
corao, porque meus cabelos eram fios douro e a cor das
minhas faces o rubor de um belo amanhecer!... palavras dele.
Que atrevido!... bradou d. Clementina; o prprio que
afirmou ser-lhe impossvel viver sem alentar-se com a esperana
de possuir-me, porque eu sabia ferir coraes com minhas vistas
e curar profundas mgoas com meus sorrisos!... palavras dele.
Oh! que moo abominvel!... disse, por sua vez, d.
Gabriela; e ousou dizer-me que me amava com to subida paixo
que, se fora por mim amado e pudesse desejar e pedir algum
extremo, no me pediria como a outras, para beijar-me a face,
porque das virgens do cu somente se beijam os ps, e de
joelhos!... palavras dele.
Mais isto um insulto feito a todas ns!
Como estar ele rindo!...
Qual! se ele est apaixonado...
Apaixonado?!... E por quem?
131
Por ns quatro... talvez por outras mais... ele pensa assim.
Que maldito brasileiro com alma de mouro364!...
E havemos de ficar assim?...
No, acudiu d. Joaninha, vamos ter com ele, desmascare-
mo-lo.
Isto nada para quem no tem vergonha!...
Pois troquemos os papis: finjamos que estvamos trata-
das para desafiar-lhe os requebros... ridicularizemo-lo como for
possvel.
Sim... obriguemo-lo a dizer qual de ns a mais bonita.
Cada uma lhe pedir um anel de seus cabelos... uma prenda...
uma lembrana... ponhamo-lo doido...
Muito bem pensado! vamos!
Deus nos livre!... vista de tanta gente!...
Ento, quando e onde?
Uma idia!... seja a zombaria completa: escreva-se uma
carta annima, convidando-o para estar ao romper do dia na
gruta.
Bravo! ento escreva...
Eu no, escreva voc...
Deus me defenda!... escreva, d. Gabriela, que tem boa
letra...
Ento, nenhuma escreve?
Pois tiremos por sorte.
A idia foi recebida com aprovao e a sorte destinou para
secretria d. Clementina que, tirando de seu lbum365 um lpis e
uma tira de papel, escreveu sem hesitar:
Senhor: Uma jovem que vos ama e que de vs escutou
palavras de ternura, tem um segredo a confiar-vos. Ao raiar da
aurora a encontrareis no banco de relva da gruta; sede circuns-
pecto366 e vereis a que, por meia hora ainda, quer ser apenas
Uma incgnita.
132
Bem... disse d. Quinquina, eu me encarrego de fazer-lhe
receber a carta. Saiamos.
As quatro moas iam sair, quando um suspiro as suspendeu;
mais algum estava no toilette. D. Joaninha, medrosa de que uma
testemunha tivesse presenciado a cena que se acabava de passar,
voltou-se para o fundo do gabinete e o susto para logo se lhe
dissipou.
Vejam como ela dorme!... disse.
Com efeito, recostada em uma cadeira de braos, d.
Carolina estava profundamente adormecida.
A Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole
descuido de seu dormir, e merc de um doce resfolegar, os
desejos se agitavam entre seus seios; seu pezinho bem mostra,
suas tranas dobradas no colo, seus lbios entreabertos e como
por costume amoldados quele sorrir cheio de malcia e de
encanto que j lhe conhecemos e, finalmente, suas plpebras
cerradas e coroadas por bastos e negros superclios, a tornavam
mais feiticeira que nunca.
D. Clementina no pde resistir a tantas graas; correu para
ela... dois rostos anglicos se aproximaram... quatro lbios cor-
de-rosa se tocaram e este toque fez acordar d. Carolina.
Um beijo tinha despertado um anjo, se que o anjo
realmente dormia.
133
XVII
FORAM BUSCAR L E SARAM
TOSQUIADAS
134
Porm, nada mais havia; tambm duas cartas to curiosas j
eram de sobra em uma s noite.
O estudante pensou no contedo de ambas e ainda
reflexionava se lhe cumpria fugir ou aceitar um certame367 com
quatro moas, que ele adivinhava quais eram, quando a primeira
rosa da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para a
gruta encantada.
Chegando ao p, foi de mansinho se aproximando, sentiu o
rumor e ouviu que algum dizia em tom baixo:
Oh! se ele vier!
Ei-lo aqui, minhas belas senhoras, exclamou o estudan-
te, que entendeu no lhes dever nunca dar tempo a tomarem a
ofensiva; eis-me aqui!...
As moas, que estavam todas sentadinhas no banco de relva,
como quatro pombas-rolas enfiladas no mesmo galho, ergueram-
se sobressaltadas ao ver entrar inopinadamente o estudante; era
isso mesmo o que ele queria, pois continuou:
As senhoras vem que acudi de pronto ao honroso
convite e que me entusiasmo vendo quatro auroras, em lugar de
uma s! Belo amanhecer este, sem dvida... mas, exposto ao
fogo abrasador de oito olhos brilhantes... eu me sinto arder...
juro que tenho sede... Eis ali uma fonte... Mas, meu Deus, a
fonte encantada que descobre os segredos de quem est
conosco!... Bem! bem! melhor... uma gota desta linfa368 de
fadas!...
O que que ele est dizendo, mana? exclamou d.
Quinquina, apontando para Augusto, que tinha entre os lbios o
copo de prata.
preciso decidir-nos a comear, disse d. Gabriela.
Principie voc, disse d. Joaninha.
Eu, no, comece voc...
Eu no, que sou a mais moa...
Ento o estudante, que tinha acabado de esgotar o seu copo
dgua, voltou-se para elas, e dando a seu rosto uma expresso
animada e s palavras estudado acento:
135
Comeo eu, minhas senhoras, disse, e comeo por dizer-
vos que aquela fonte realmente encantada; sim, eu tenho,
merc de sua gua, adivinhado belos segredos: escutai vs...
Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos falar
inspirado por um poder sobrenatural. Vs viestes aqui para
maltratar-me e zombar de mim, por haver amado a todas vs
numa s noite; que ingratido!... eu vos poderia perguntar como
o poeta:
Assim se paga a um corao amante?!
Mas, desgraadamente, a fada que preside quela fonte, quer
mais alguma coisa ainda e me d uma cruel misso! Ordena-me
que eu diga a cada uma de vs, em particular, algum segredo do
fundo de vossos coraes, para melhor provar os seus
encantamentos. Pois bem, preciso obedecer; qual de vs quer
ser a primeira?... Eu no ouso falar alto, porque pelo jardim
talvez estejam passeando alguns profanos369. Qual de vs quer
ser a primeira?...
Nenhuma se moveu.
Ser preciso que eu escolha? continuou o tagarela. Esco-
lherei, minhas senhoras, escolherei... Iluminai-me, boa fada!
Quem ser?... ser... a... sra. d. Gabriela?
Eu?! respondeu a menina, recuando.
A senhora mesma, disse Augusto, trazendo-a pela mo
para junto da fonte; vinde, senhora, para bem perto do lugar
encantado; agora silncio... ouvi.
Ele est mangando conosco, murmurou d. Clementina.
Augusto j estava falando em voz baixa a d. Gabriela.
Vs, senhora, ainda no amastes a pessoa alguma; para
vs o amor no existe: um sonho apenas, e s olhais como real
a galanteria370; vs quereis zombar de mim, porque vos protes-
tei os mesmos sentimentos que havia protestado a mais trs
companheiras vossas e, todavia, estais incursa371 em igual delito,
pois s por cartas vos correspondeis com cinco mancebos.
Senhor!...
136
Oh! no vos impacienteis; quereis provas?... H quatro
dias, uma vendedeira de empadas, que se encarrega de vossas
cartas, enganou-se na entrega de duas; trocou-as e deu, se bem se
lembra a fada, a de lacre azul ao sr. Juca e a de lacre verde ao sr.
Joozinho.
Ora... ora, senhor! quem lhe contou essas invenes?
A fada! e fez mais ainda. Vs no achareis em vosso
lbum o escrito desesperado do sr. Joozinho, que vos foi
entregue no momento de vossa partida para esta ilha; sou eu que
o tenho, pois a fada mo deu h pouco com sua mo invisvel.
Impossvel! balbuciou d. Gabriela, recorrendo ao seu
lbum.
Ela no podia encontrar o escrito.
Sr. Augusto, disse ento, toda vergonha e acanhamento,
eu lhe rogo que me d esse papel.
Pois no quereis ouvir mais nada!...
Basta o que tenho ouvido e que no posso bem compre-
ender; mas d-me o que lhe pedi.
Daqui a pouco, senhora, na hora de minha partida para a
Corte, porm com uma condio.
Pode diz-la.
Sois sobremaneira delicada, senhora; este excesso vos
deve ser nocivo; quereis fazer-me o obsquio de ir descansar e
dar-me a honra de aceitar a minha mo at porta da gruta?...
Com muito prazer.
Ento os dois se dirigiram para fora; passando junto das trs
companheiras, d. Gabriela pde apenas dizer-lhes:
At logo.
Chegando porta, Augusto falou j em outro tom:
Minha senhora, espero que me faa a justia de crer que
fico extremamente penalizado por no poder dilatar por mais
tempo a glria de acompanh-la; mas sabe o que ainda tenho de
fazer.
Obrigada, respondeu d. Gabriela, no poupe as outras.
No possvel bem descrever a admirao das trs.
Augusto chegou-se a d. Quinquina, e tomando-lhe a mo,
disse:
Minha senhora, chegada vossa vez.
137
D. Quinquina deixou-se levar para junto da fonte; as moas
tinham perdido toda a fora; o que diante delas se passava pedia
uma explicao que no estava ao seu alcance dar. Augusto
comeou:
Senhora, eu poderia dizer-vos, pelo que me conta a boa
fada, que vs sois como as outras de vossa idade, to volveis
como eu; mas para tal saber no precisava eu beber da gua
encantada; podia tambm gastar meia hora em falar-vos do vosso
galanteio com um tenente da Guarda Nacional, por nome
Gusmo...
Senhor!...
Por nome Gusmo, que leva o seu despotismo amoroso
ao ponto de exigir que no valseis, que no tomeis sorvetes, que
no deis dominus tecum quando ao p de vs espirrar algum
moo e que no vos riais quando ele estiver srio.
Quem lhe disse isso, senhor?...
A fada, senhora; e ainda me disse mais: por exemplo,
contou-me que no baile desta noite, passeando com um velho
militar, vs recebestes da mo dele um lindo cravo e a seus olhos
o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio; mas da
a um quarto de hora essa mesma flor, to ternamente aceita,
deveria ir parar no bolso de um belo jovem, chamado Lcio, se
acaso no fosse roubada pela fada que preside esta fonte.
Eu no entendo nada do que o senhor est dizendo... isso
no comigo.
Eu me explico: o sr. Lcio viu ser dado e recebido o
presente e, fingindo-se zeloso, vos pediu esse cravo, muito
notvel, porque, alm da flor aberta, havia sete flores em boto.
Ora, dizei, no verdade? Pois o sr. Lcio queria esse cravo,
mas vs lho no podeis dar, porque o velho militar no tirava os
olhos de vs; ora, conversando com o sr. Lcio, acordastes
ambos que ele iria esperar um instante no jardim e que um
pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a flor; e como o
tal Tobias ainda no conhecia o sr. Lcio, este lhe daria por
senha as seguintes palavras: sete botes; no foi assim?
D. Quinquina guardou silncio; tudo era verdade; ela estava
cor de ncar. Augusto prosseguiu:
Isto se passou estando vs na grande varanda, sentada em
138
um banco e com as costas voltadas para a janela da sala de jogo;
ora a fada esteve recostada a essa janela, ouviu quanto dissestes
e, como lhe dado tomar todas as figuras, tomou a de moo, foi
ao jardim, e quando viu o Tobias, disse sete botes; e o cravo foi
logo da fada e agora meu, ei-lo aqui!...
Isto uma inveno; eu no conheo essa flor.
Bem! ento consentireis que eu a traga esta manh no
meu peito?... Se no confessais, eu a mostrarei... O senhor
coronel ainda se no retirou e...
Perdoe-me, balbuciou, enfim, d. Quinquina, deixando
cair uma lgrima na mo de Augusto. D-me esse maldito cravo.
Eu vo-lo darei na hora de minha partida, senhora; porm,
ouvi mais.
Basta.
Pois bem, basta; mas eu vejo que vossa face est ume-
decida; seria uma lgrima se o relento372 da noite no molhasse
tambm a rosa. Quereis descansar, sem dvida; poderei gozar o
prazer de conduzir-vos at porta da gruta?...
Sim, senhor.
Duas guerreiras tinham sido batidas; s a curiosidade retinha
as outras: Augusto se chegou para elas e falou a d. Clementina:
Agora ns, senhora.
Ela deixou-se levar pela mo at junto da fonte, e o
estudante comeou:
Quereis fatos de anteontem ou da noite passada, senhora?
Eu no entendo o que o senhor quer dizer.
Pergunto, senhora, se vos d gosto que eu vos repita o
que convosco se passou, quando tomveis um sorvete ao lado de
um jovem de cabelos negros... o que convosco conversou o meu
colega Filipe, quando tomveis ch?
Eu no preciso saber nada disso.
Ento dir-vos-ei o que mais vos interessa, sossegarei
mesmo os vossos cuidados e os do sr. Filipe, a respeito da perda
de certo objeto...
Sr. Augusto!...
139
Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos rou-
bou um precioso embrulho que continha uma trana de vossos
cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira da
rua que vai ter ao caramancho, e essa trana pra, hoje, em
minhas mos, ei-la aqui...
Oh! d-ma.
No preferis antes que eu a entregue ao feliz para quem a
destinveis?
No, eu lhe peo que ma d.
Eu estou pronto a obedecer-vos, senhora, mas s na hora
de minha partida. Vs quatro quereis zombar de mim; no
concebo at onde iria a vossa vingana; preciso de refns que
assegurem a paz entre ns; estes so meus; quereis saber mais
alguma coisa?
Eu j sei que o senhor sabe demais!
Ento...
Quer, como s duas primeiras, oferecer-me a mo e obri-
gar-me a desamparar373 o campo? Venceu, senhor, e sou eu que
lhe peo que me acompanhe at porta da gruta.
Eu estou pronto, senhora, para servir-vos em tudo.
S restava d. Joaninha, era a vez dela.
Eu vos deixei para o fim, disse Augusto, porque a vs
que eu mais admiro, porque vs sois exatamente a nica dentre
elas que tem amado melhor e que mais infeliz tem sido; eu vos
explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em
exigncias...
Que quer dizer, sr. Augusto?
Que quereis muito, quando ordenais a um estudante que
vos escreva quatro vezes por semana, pelo menos; que passe por
defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que v a mido ao
teatro e aos bailes que freqentais, e at que no fume charutos
de Havana nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.
Quem lhe disse isso? senhor!
A fada, senhora, que sabe que amais a um moo, a quem
dais a honra de chamar querido primo.
140
uma vil374 traio!
Exatamente diz o mesmo a nossa boa fada, e ainda mais,
senhora: quer que eu vos aconselhe a que desprezeis esse jovem
infiel, que no sabe pagar o vosso amor! Eu poderia dar-vos
provas...
No as tenho eu bastantes, exclamou d. Joaninha com
sentimento, quando lhe ouo repetir o que deveria ser sabido
dele e de mim somente?
Augusto ia falar, mas ela o interrompeu.
Senhor, eu agradeo o benefcio que recebi; o senhor quis
zombar de mim, como das outras, mas no o fez: ao contrrio,
atalhou375 em princpio uma grande enfermidade, que, talvez,
fosse daqui a pouco tempo incurvel! Eu galanteio tambm s
vezes, porm sei amar ao extremo. Adeus, senhor! eu posso
apenas agradecer-lhe, dizendo que tenho tanta confiana na sua
discrio e no seu carter, que nem mesmo lhe recomendo o
cuidado do meu segredo.
D. Joaninha ia deixar a gruta, e Augusto lhe ofereceu o
brao.
Agradecida, disse ela; permita que eu entre s em casa.
Augusto ficou s. Esteve alguns momentos lembrando-se da
cena que acabava de ter lugar; finalmente disse, soltando uma
risada:
Vieram buscar l e saram tosquiadas!
E j estava para pr o p fora da gruta, quando uma voz
branda e sonora o suspendeu376, dizendo:
Agora, sr. Augusto, chegada a sua vez...
141
XVIII
ACHOU QUEM O TOSQUIASSE
142
E quem era ela? Como se chamava? perguntou Augusto
com fogo, talvez pensando que d. Carolina estava, com efeito,
adivinhando e podia dizer-lhe o que ele mesmo ignorava.
Posso eu sab-lo? respondeu a Moreninha; a fada s me
diz o que se passou em vosso corao e vs, por certo, que
tambm no sabeis quem era essa menina e s a conheceis pelo
nome de minha mulher.
Prossiga, minha senhora!
Poderia eu contar-vos uma longa histria de velho mori-
bundo, esmeralda, camafeu, mas basta de vossa mulher; permiti
que vos diga que mostrava ser uma criana doidinha, que cedo
comeava a fazer loucuras.
Que cruel juzo!
Oh! no vos agasteis; eu a respeito tambm, em ateno a
vs, porm, vamos acabar com o vosso passado. Houve um
tempo em que quisestes figurar entre os vossos amigos como
galanteador de damas, e por justo e bem merecido castigo fostes
desgraado: todas elas zombaram de vs!
E a menina interrompeu-se, para rir-se da cara que fazia
Augusto.
Ora, por esta no esperava eu, disse o estudante.
A primeira jovem que requestastes foi uma moreninha de
dezesseis anos, que vos jurou gratido e ternura, e casou-se oito
dias depois com um velho de sessenta anos! no foi assim?
E a menina, de novo, desatou a rir.
Minha senhora! de que gosta tanto?
Ora! que a fada est-me dizendo que ainda em cima os
vossos amigos, quando souberam de tal, deram-vos uma roda de
cacholetas!
Ento a sra. d. Ana lhe contou tudo isso?
Juro-vos, senhor, que minha av no me fala em seme-
lhantes objetos. Consenti que eu continue. A segunda foi uma
jovem coradinha, a quem em uma noite ouvistes dizer num baile
que reis um pobre menino com quem ela se divertia nas horas
vagas, no foi assim?
Prossiga, minha senhora.
A terceira foi uma moa plida, que zombou solenemen-
te, tanto de um primo que tinha, como de vs. Eis alguns de
143
vossos principais galanteios. Exasperado com o infeliz resultado
deles e vivamente tocado das letras e da msica de certo lundu
que se vos cantou, tomastes outro partido e desde ento vs
pretendeis fazer-vos passar por borboleta de amor.
Borboleta?!... Sim... sim... lembro-me agora que a
senhora passeava pelo jardim. J sei de quem foram certas
carreirinhas e, portanto, compreendo que sabeis tudo custa de...
custa da fada, senhor, e escuso estender-me mais,
porque vs estais bem certo de que eu devo saber ainda muito.
Sim, mas diga sempre.
No, antes quero falar-vos do vosso presente.
Pelo amor de seus belos olhos, minha senhora, vamos
antes ao que eu no sei, vamos ao meu futuro.
Sois sobejamente sfrego! no vedes como isso vai
contra a boa ordem da narrao?
Mas a desordem hoje a moda! o belo est no
desconcerto; o sublime no que se no entende; o feio s o que
podemos compreender: isto , romntico; queira ser romntica,
vamos ao meu futuro.
Pois bem, vamos ao vosso futuro. Principiarei, como
pretendia fazer, se falasse do presente de vossa vida, dizendo-
vos que vs no sois inconstante como afetais.
Misericrdia!
Mas que estais a ponto de o ser: digo-vos que perdereis
uma certa aposta que fizestes com trs estudantes.
Como isso? Ento a senhora sabe...
A fada, que me revelou isso, leu a termo na carteira de
quem o guardou.
A fada? sim, a feiticeira o leu... Compreendo.
Vs no sois inconstante, porque tendes at hoje
cultivado com religioso empenho o amor de vossa mulher; mas
vs o ides ser, porque no longe est o dia em que a esquecereis
por outra.
A culpa ser dos olhos dessa outra; porm quem sabe?...
Desejo que no; contudo, eu j vos vejo em princpio e
temo que vades ao fim; sereis perjuro, tereis de escrever um
romance e perdoai-me se vos desejo este mal: eu quisera que ao
p de meu irmo, que vos apresentar o termo da aposta,
144
aparecesse a vossos olhos a mulher trada. Do vosso futuro eis
quanto me disse a fada.
E disse bastante para me confundir.
Quereis que vos fale agora de vosso presente?
Oh, se quero! No presente est a minha glria.
Ontem, no baile, dissestes palavras de ternura pelo menos
a seis senhoras.
Esta agora melhor! e quem o pde notar?
Provavelmente a fada vos observava.
Ento a fada, a feiticeira fazia isso?
Depois do baile puseram-vos duas cartas no bolso.
Que mos delicadas?...
No mo sabe dizer a fada; porm vs viestes para esta
gruta acudindo a um convite e fingistes adivinhar segredos de
coraes. No era verdade: a fada nada vos revelou; o que
dissestes sabeis antes e a fada me disse como.
Explique-me, pois, minha senhora.
Quando involuntariamente fui causa de vos entornarem
caf nas calas, vs fostes mudar de roupa e entrastes para o
gabinete das senhoras; l ouvistes tudo o que afetastes adivinhar
h pouco.
E quem me viu entrar?
A fada, sem dvida. O cravo de d. Quinquina fostes vs
que o recebestes no jardim; na noite dos jogos de prendas, fostes
vs ainda quem, com uma luz na mo, procurou e achou a trana
de cabelos de d. Clementina, embaixo da quarta roseira da rua
que vai para o caramancho.
Mas quem observou o que eu fiz s escondidas e com
tanto cuidado?
A fada, que, segundo penso, vos tem sempre seguido
com os olhos.
A fada?!... a feiticeira me segue sempre com os
olhos?!... Oh! como sou feliz!... a feiticeira a senhora!
Senhor! sois pouco modesto; que me importariam vossos
passos e vossas aes?...
145
Perdo! perdo!... eu sou um tresloucado379... um
incivil380... um doido... no sei o que fao, nem o que digo; mas
continue...
Basta! vs duvidastes da fada e por isso eu termino aqui.
No! no, minha senhora! preciso dizer-me mais algu-
ma coisa ainda!... por fora a fada lhe deveria ter revelado! ela,
que adivinha tudo o que est dentro do meu corao, digo o que
ainda se passa nele.
Nada mais me disse.
Beba outro copo dgua...
No julgo necessrio.
Pois ento...
Cumpre retirar-me.
No, por certo! perdoe-me, minha senhora, mas eu devo
descobrir todos os meus segredos a quem conhece to boa parte
deles.
Eu me contento com o pouco que sei.
Oua uma s palavra...
No sou curiosa.
Pois a senhora...
Sei que sou senhora, mas sou exceo de regra; no
quero saber.
Embora, eu lhe direi ainda contra a vontade...
E para isso toma-me a sada?...
s para dizer que eu amo...
J sei, sua mulher.
No isso: a uma bela moa...
Ela o deve ser agora.
Muito espirituosa...
J ela o era em criana.
E que se chama...
Ah! espreitam-nos da entrada da gruta!
Augusto correu a examinar quem era a indiscreta
testemunha; no aparecia pessoa alguma; compreendeu ento
que fora ainda um meio de que se lembrara d. Carolina para no
146
deix-lo concluir sua declarao e, disposto a lanar-se aos ps
da menina, voltou-se j com o nome da bela nos lbios e...
D. Carolina tinha desaparecido da gruta.
147
XIX
ENTREMOS NOS CORAES
148
gruta.
Que diabinho de menina!
Quanto mais se tu notasses a graa e malcia com que ela,
quando eu entrei na sala, me perguntou sossegadamente: Esteve
dormindo na gruta, sr. Augusto?...
Ento ela gostou da tua semideclarao?!...
No... no... se ela tivesse gostado, no me fugiria.
Ora, boa! no devia fazer outra coisa.
Se ela gostasse de mim!... mas, por que me no deu um
s sinal de ternura?... Tambm eu, s vezes to adiantado, fui
desta um tolo, um basbaque! tremi diante de uma criana que
no tem quinze anos e no soube dizer duas palavras.
Ests doido, Augusto, e doido varrido; acredita que d.
Carolina foi mais sensvel aos teus cumprimentos que aos de
nenhum outro; e se no, diz por que se no deixou ela dormir,
como as outras senhoras, e foi hora de tua partida passear pela
praia e ver-te embarcar?... Por que ficou ali passeando at
desaparecer o teu batelo?...
Isto no significa nada.
Ora, ature-se um namorado!... mas venha c, sr. Augusto,
ento como isto?... ests realmente apaixonado?!
Quem te disse semelhante asneira?...
H trs dias que no falas seno na irm de Filipe e...
Ora, viva! quero divertir-me... digo-te que a acho feia,
no l essas coisas, e parece ter mau gnio. Realmente notei-
lhe muitos defeitos... sim... mas, s vezes... Olha, Leopoldo,
quando ela fala ou mesmo quando est calada, ainda melhor;
quando ela dana ou mesmo quando est sentada... ah! ela rindo-
se... e at mesmo sria... quando ela canta ou toca ou brinca ou
corre, com os cabelos nglig383, ou divididos em belas tranas;
quando... Para que dizer mais? sempre, Leopoldo, sempre ela
bela, formosa, encantadora, anglica!
Ento, que histria essa? Acabas divinizando a mesma
pessoa que, principiando, chamaste feia?...
149
Pois eu disse que ela era feia? verdade que eu... no
princpio... Mas depois... Ora! estou com dores de cabea; este
maldito Velpeau!... Que lio temos amanh?
Tratar-se-ia das representaes de...
Temos maada! Quem te perguntou por isso agora? Fale-
mos de d. Carolina, do baile, do...
Eis a outra! No acabaste de perguntar-me qual era a
lio de amanh?
Eu? Pode ser... Esta minha cabea!...
No a tua cabea, Augusto, o teu corao.
Houve um momento de silncio. Augusto abriu um livro e
fechou-o logo; depois tomou rap, passeou pelo quarto duas ou
trs vezes e, finalmente, veio de novo sentar junto de Leopoldo.
verdade, disse; no a minha cabea: a causa est no
corao. Leopoldo, tenho tido pejo384 de te confessar, porm no
posso mais esconder estes sentimentos que eu penso que so
segredos e que todo o mundo mos l nos olhos! Leopoldo,
aquela menina que aborreci no primeiro instante, que julguei
insuportvel e logo depois espirituosa, que da a algumas horas
comecei a achar bonita, no curto trato de um dia, ou, melhor
ainda, em alguns minutos de uma cena de amor e piedade, em
que a vi de joelhos banhando os ps de sua ama, plantou no meu
corao um domnio forte, um sentimento filho da admirao,
talvez, mas, sentimento que novo para mim, que no sei como
o chame, porque o amor um nome muito frio para que o
pudesse exprimir!... Eu j me no conheo... no sei onde ir isto
parar... Eu amo! ardo! morro!
Modera-te, Augusto, acalma-te, no graa; olha que
ests vermelho como um pimento.
Oh! tudo naquela ilha fatal se assanhou para enfeitiar-
me, tudo, at a prpria mentira.
E tu acreditaste muito nessa senhora?...
Escuta, Leopoldo: uma vez que com a av de Filipe con-
versava na gruta, eu, fatigado e sequioso385, bebi um copo dgua
da fonte do rochedo; ento, a nossa boa hspeda contou-me uma
150
fabulosa e singular tradio daquela fonte. A gua dizia-se
milagrosa e quem bebesse no sairia da ilha sem amar algum de
seus habitantes. Eis aqui, pois, uma mentira, mas uma mentira
que excitou a minha imaginao; uma mentira que me perseguiu
l dois dias e que me persegue ainda hoje; uma mentira, enfim,
que se transformou em verdade, porque eu bebi daquela gua e
no pude deixar a ilha sem amar, e muito, um de seus
habitantes...
Deveras que isso no deixa de ser interessante. Mas que
efeito esperas tu que provenha de toda essa moxinifada386?
Que efeito?... O amor...
Amor?... Amor no efeito, nem causa, nem princpio,
nem fim, e tudo, tudo isso ao mesmo tempo; uma coisa que...
sim... finalmente, para encurtar razes, amor diabo... Diz-me,
pois, sinceramente falando, qual o resultado que pensas tirar de
tudo isso que me contaste.
Que resultado?... O amor...
E ele a dar-me com o maldito amor! Augusto, falemos
srio; essa tua exaltao estava muito em ordem num moo que
quisesse desposar d. Carolina; porm tu nem cuidas em
casamento nem, se tal pensasses, te lembrarias, roceiro como s,
de escolher para mulher uma menina que foi criada, educada e
pode-se dizer que mora na Corte.
Esta agora no m!... Deveras que ainda no me passou
pela mente a idia do casamento, nem chegar a tal ponto minha
loucura; mas suponhamos o contrrio disto: que mal tu achas em
que um roceiro se case com uma moa da cidade?...
Que mal?... Ora, escuta: devendo ir morar na roa, a
moa tem, necessariamente, de mudar de costumes e de vida;
compreende, pois, quanto atormentar o corao do pobre
marido vista dos dissabores e contrariedades que sofrer na
solido e monotonia campestre a senhora amamentada no seio
dos prazeres e festins da Corte!... quanto te devem entristecer os
suspiros e saudades de que sers testemunha, quando a amada
companheira recordar-se de sua famlia, de suas amigas, do
151
teatro, do passeio, dessa cadeia de delcias, enfim, que a pesar
dela, a ligar ainda a seu passado!...
Oh! no, no, Leopoldo, se o marido for amado por ela!...
Quando se ama deveras e se est com o objeto do amor, no se
recorda, no se deseja, no se quer mais nada!...
Tu falas em amor, Augusto?... Ainda bem que somos
ambos estudantes da roa e posso dizer-te agora o que entendo,
sem medo de ofender suscetibilidades387 de corteso388 algum.
Pois ainda no observaste que o verdadeiro amor no se d
muito com os ares da cidade?... que por natureza e hbito, as
nossas roceiras so mais constantes que as cidadoas?... Olha,
aqui encontramos nas moas mais esprito, mais jovialidade,
graa e prendas389, porm, nelas no acharemos nem mais beleza,
nem tanta constncia. Estudemos as duas vidas. A moa da Corte
escreve e vive comovida sempre por sensaes novas e
brilhantes, por objetos que se multiplicam e se renovam a todo o
momento, por prazeres e distraes que se precipitam; ainda
contra a vontade, tudo a obriga a ser volvel: se chega janela
um instante s, que variedade de sensaes! seus olhos tm de
saltar da carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa para o
menino que brinca, do squito do casamento para o
acompanhamento do enterro! Sua alma tem de sentir ao mesmo
tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados
de alegria e o rudo do povo; depois tem o baile com sua
atmosfera de lisonjas e mentiras, onde ela se acostuma a fingir o
que no sente, a ouvir frases de amor a todas as horas, a mudar
de galanteador em cada contradana. Depois, tem o teatro, onde
cem culos fitos em seu rosto parecem estar dizendo s bela! E
assim enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade;
finalmente, ela se faz por fora e por costume to inconstante
como a sociedade em que vive, to mudvel como a moda dos
vestidos. Queres agora ver o que se passa com uma moa da
roa?... Ali ela est na solido de seus campos, talvez menos
152
alegre, porm, certamente, mais livre; sua alma todos os dias
tocada dos mesmos objetos: ao romper dalva, sempre e s a
aurora que bruxuleia390 no horizonte; durante o dia, so sempre
os mesmos prados, os mesmos bosques e rvores; de tarde,
sempre o mesmo gado que se vai recolhendo ao curral; noite,
sempre a mesma lua que prateia seus raios na lisa superfcie do
lago! Assim, ela se acostuma a ver e amar um nico objeto; seu
esprito, quando concebe uma idia, no a deixa mais, abraa-a,
anima-a, vive eternamente com ela; sua alma, quando chega a
amar, para nunca mais esquecer, para viver e morrer por
aquele que ama. Isto assim, Augusto; considera que l em
nossos campos que mais brilham esses sentimentos, que so a
mesma vida e que no podem acabar seno com ela!...
Como ests exagerado, Leopoldo! Juraria que desejas
casar com alguma moa da roa!
Oh!... se esse desejo me dominar, certamente que o
satisfarei com uma das muitas cachopinhas391 da minha terra.
Eu logo vi que em teus raciocnios e observaes andava
o gnio da preveno; escuso-me392, porm, de responder-te, pois
que falaste em geral e desse modo concedes...
Que h muitas excees, sem dvida?
Bem! quando no, tu me forarias a tomar a palavra para
defender a linda Moreninha, que tanto me cativa.
Ento, Augusto, teremos porventura um romance?
Que romance?
Perders a aposta e ao completar-se o ms...
Daqui at l... se eu pudesse esquec-la!... mas aquela
menina no como as outras: uma tentao... um diabinho...
Quando, pois, comeas a escrever?
Ests tolo... respondeu Augusto, tomando por um mo-
mento seu antigo bom humor; eu ainda pretendo nestes quinze
dias mudar de amor trs vezes.
153
Basta, porm, de estudantes. J temos ouvido bastante o
nosso Augusto e demorar-nos mais tempo em seu gabinete fora
querer escutar ainda as mesmas coisas; porque o tal mocinho,
que quer campar393 de beija-flor, parece que caiu no visco dos
olhos e graas da jovem beleza da ilha de... e est sinceramente
enamorado dela; ora, todos sabem que os amantes tm um prazer
indizvel em matraquear394 os ouvidos dos que os atendem com
uma histria muito comprida e mil vezes repetida que,
reduzindo-se expresso mais simples, ficaria em zero ou,
quando muito, nos seguintes termos: eu olhei e ela olhou; eu
lhe disse, ela me disse; pode ser, no pode ser. Deixemos,
portanto, o senhor Augusto entregue a seus cuidados de moo, e
tanto mais que j conhecemos o estado em que se acha. Vamos
agora entrar no coraozinho de um ente bem amvel, que no
tem, como aquele, uma pessoa a quem confie suas penas, e por
isso sofre talvez mais. Faremos uma visita nossa linda
Moreninha.
Tambm suas modificaes tm aparecido no carter de d.
Carolina, depois dos festejos de SantAna. Antes deles, era essa
interessante jovenzinha o prazer da ilha de... Irreconcilivel
inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar melanclica dez
minutos e praticava o despotismo de no consentir que algum o
estivesse; junto dela, por fora ou por vontade, tudo tinha que
respirar alegria; sabia tirar partido de todas as circunstncias
para fazer rir, e, boa, afvel e carinhosa para com todos,
amoldava os coraes sua vontade; era o dolo, o delrio de
quantos a praticavam, era a vida daquele lugar e empunhava com
suas graas o cetro do prazer. Hoje suas maneiras so outras;
mudou todo o seu viver; foge da famlia que a busca; e, enquanto
suas msicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros
fechado, suas bonecas no mudam de vestido, ela vaga solitria
pela praia, perdendo seus belos olhares na vastido do mar, ou,
sentada no banco de relva da gruta, descansa a cabea em sua
mo e pensa... Em qu?... Quais sero os solitrios pensamentos
154
de uma menina de menos de quinze anos?... E s vezes suspira...
um suspiro?... Eis o que j um pouco explicativo.
Assim como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o
gemido, tem o amor o suspiro; ah! o amor demoninho que no
pede licena para entrar no corao da gente e, hspede quase
sempre importuno, por pior trato que se lhe d, no desconfia,
no se despede, vai-se coando395 e deixando ficar, sem vergonha
nenhuma, faz-se dono da casa alheia, toma conta de todas as
aes, leva o seu domnio muito cedo aos olhos, e s vezes d
tais saltos no corao, que chega a ir encarapitar-se no juzo396;
ento, adeus minhas encomendas!...
Pois bem, parece que a tal tentao anda fazendo peloticas397
no peito da nossa cara menina; tambm no h molstia de mais
fcil diagnstico. Uma mocinha que no tem cuidados, com
quem a mame no impertinente, que no sabe dizer onde lhe
di, que no quer que se chame mdico, que suspira sem ter
flatos398, que no v o que olha, que acha todo o guisado399 mal
temperado, porque j ama; portanto, d. Carolina ama, mas... a
quem?!...
Ah! Sr. Augusto! Sr. Augusto! a culpa toda sua, sem
dvida. Esta bela menina, acostumada desde as faixas400 a
exercer um poder absoluto sobre todos os que a cercam, no
pde ouvir o estudante vangloriar-se401 de no ter encontrado
ainda uma mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais
vivo desejo de reduzi-lo a obediente escravo de seus caprichos;
ela ps ento em ao todo o poder de suas graas, ideou402
mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do
inimigo; observou; bateu-se: o combate foi fatal a ambos, talvez,
e no fim dele a orgulhosa guerreira apalpou o seu corao e
155
sentiu que nele havia penetrado um dardo; consultou a sua
conscincia e ouviu que ela respondia; se venceste tambm ests
vencida!
Com efeito, d. Carolina ama o feliz estudante, e uma mistura
de saudades e de temor da inconstncia do seu amado
provavelmente a causa da sua tristeza; ajunte-se a isto a
novidade e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o
incmodo de um sentimento novo, inexplicvel, que lhe enchia o
inocente corao e ver-se- que ela tem suas razes para andar
melanclica.
E, portanto, toda a famlia est assaltada do mesmo mal; h
na ilha uma epidemia de mau humor que tem chegado a todos,
desde a sra. d. Ana at ltima escrava. Alm de quanto se
acaba de expor, acresce que Filipe se deixou ficar na cidade a
semana inteira, sem querer dispensar uma s tarde para vir
visitar sua querida av e a to bonita maninha.
Eis, porm, o que se chama acusao injusta. Diz o ditado:
falai no mau, aprontai o pau! Filipe estava esperando pelo dia
de sbado para aproveitar o domingo todo no seio da famlia; ei-
lo a que recebe a bno de sua av e beija a fronte de sua irm.
Pensei, disse aquela, que no queria ver-nos!
E quase que deixei a viagem para amanh, minha boa
av.
O ingrato ainda o diz... ouves, Carolina?... Ento por
qu?...
Para vir na companhia de Augusto, que deve passar o dia
conosco.
Estas palavras tiveram poder eltrico; d. Carolina, para
ocultar a perturbao que a agitava, correu a esconder-se em seu
quarto.
L, bem s escondidas, ela derramou uma lgrima: doce
lgrima... era de prazer.
156
XX
PRIMEIRO DOMINGO: ELE MARCA403
157
Eu, minha av, sempre tive fama de desinquieta408 e
prazenteira; e se ontem adiantei, foi porque chegou-me um
companheiro para traquinar comigo.
No o negues, menina; tens estado melanclica e abatida
toda esta semana; eram saudades da agradvel companhia que
tivemos. Que eram saudades conheci eu pelos suspiros que
soltavas e tambm no vai mal nenhum em confess-lo.
D. Carolina voltou o rosto. Augusto arregalou os olhos e
sentiu que a ventura409 lhe inundava o corao.
O mesmo por l nos sucedeu, disse Filipe, tomando a
palavra; estivemos todos carrancudos e, seja dito em amor da
verdade, Augusto, mais do que nenhum outro, gostou de nosso
trato e da nossa companhia; realmente foi ele o que mostrou
sofrer maiores saudades.
verdade, sr. Augusto? perguntou a boa hspeda.
Minha senhora, a visita que vim ter o gosto de fazer a
melhor resposta que lhe posso dar.
D. Carolina tinha os olhos em um livro de msica, mas seus
ouvidos e sua ateno pendiam dos lbios de Augusto; ouvindo
as ltimas palavras do estudante, ela sorriu brandamente.
De que ests rindo, Carolina? perguntou Filipe.
De um engraado pedacinho da cavatina do Fgaro no
Barbeiro de Sevilha410.
Ento ele examinou o livro e viu que ela havia mentido,
porque o que tinha diante de seus olhos era uma coleo de
modinhas411 do Laforge.
Duas horas depois serviu-se o almoo. Mas, durante essas
duas horas, que se passaram muito depressa, Augusto teve de
agradecer as obsequiosas atenes da av de Filipe, que dizia ter
158
por ele notvel predileo, e tambm de reparar com esmero e
minuciosidade no objeto de seus recentes cultos. Em resultado
de suas observaes concluiu que d. Carolina estava bonita como
dantes, porm mais lnguida; que s vezes reparava suas
indiscries e que outras, quando mais parecia ocupar-se com
seus alegres trabalhos, olhava-o a furto, com uma certa
expresso de receio, pejo e ardor, que a embelecia ainda mais.
Durante o almoo a conversao divagou sobre inmeros
objetos; finalmente teve de ir bulir com um pobre lencinho que
estava na mo de d. Carolina, e que, se a no estivesse, passaria
despercebido.
Eu julgo que ele est trabalhoso e perfeitamente marcado,
disse Augusto.
ir muito longe, respondeu a menina; a o tem, observe-
o de perto, e repare que barafunda412 vai por aqui.
Ora, eu acho tudo o melhor possvel; ao muito, poder-se-
ia dizer que este X foi marcado por mo de moa travessa.
Quer dizer que foi pela minha? adivinhou.
Tem uma bela prenda, minha senhora.
Que muito comum.
E nem por isso merece menos.
Eu no entendo assim; aprecio bem pouco o que todo o
mundo pode ter. Quem no sabe marcar?
Eu, minha senhora.
porque no quer.
porque no posso; eu no me poderia haver com uma
agulha na mo.
Um dia de pacincia lhe seria suficiente.
Querem ver, acudiu Filipe, que minha maninha reduz
Augusto a aprender a marcar!
Ento, seria isso alguma asneira?
No, por certo; maninha pode mesmo dar-te algumas li-
es.
Nada, respondeu a menina; sou muito raivosa e primei-
ra linha que ele rebentasse, eu o chamaria a bolos413.
159
Se uma condio que oferece, eu a aceito, minha
senhora; ensine-me com palmatria.
Veja o que diz!...
Repito-o.
Pois bem; palmatria no, porque, enfim, podia doer-lhe
muito; mas, de cada vez que eu julgar necessrio, dar-lhe-ei um
puxo de orelha.
Menina! disse a sra. d. Ana.
Mas, minha av, eu no estou pedindo a ele que venha
aprender comigo.
Porm podes ensinar-lhe com bons modos.
o que pretendo fazer.
Ele h de aproveitar muito.
Ter os meus elogios.
E se por acaso errar alguma vez?
Levar um puxo de orelha.
Se me permitido, disse Augusto, aceito as condies.
Pois bem, respondeu d. Carolina, est o senhor matri-
culado na minha aula de marcar e daqui a uma hora
principiaremos a nossa lio.
E ento ele no passeia comigo? perguntou Filipe.
Depois da lio, respondeu a mestra, fazendo-se grave;
antes, no lhe dou licena.
Levantaram-se da mesa; algum tempo foi destinado a
descansar; Filipe desafiou Augusto para uma partida de gamo e
incontinenti414 foram travar combate na varanda; Filipe derrotou
seu competidor em trs jogos consecutivos; estavam no comeo
do quarto, e tocou na sala uma campainha; os dois estudantes
no deram ateno a isso e continuaram: o jogo tornou-se
duvidoso; qualquer dos dois podia dar ou levar gamo; Augusto
acabava de lanar uns dois e s, que desconcertaram seu
antagonista, quando d. Carolina apareceu e, dirigindo-se ao seu
discpulo, disse com engraada seriedade:
O senhor no ouviu tocar a campainha?
Ento isso era comigo?
160
Sim, senhor, so horas de lio, e espero que para outra
vez no me seja preciso cham-lo.
Aceito a admoestao415, minha bela mestra, mas rogo-
lhe o obsquio de consentir que termine esta partida.
No, senhor.
uma mo de honra!
Pior est essa!
Ora boa! acudiu Filipe; ento quer voc...
No tenho a dizer-lhes o que quero, nem o que no
quero; so horas da lio, vamos.
E preciso obedecer, concluiu Augusto levantando-se.
Da a pouco estava tudo em via de regra; Augusto, sentado
em uma banquinha aos ps de sua bela mestra, escutava, com os
olhos fitos no rosto dela, as explicaes necessrias. s vezes d.
Carolina no podia conservar imperturbvel sua afetada
gravidade; ento os sorrisos da bela mestra e do aprendiz
graciosamente se trocavam; ela se mostrava mais pacfica e ele
menos atento do que haviam prometido, porque era j pela
quarta vez que a bela mestra recomeava suas explicaes e o
aprendiz cada vez a entendia menos.
Filipe apareceu na sala, pronto para ir caar, e convidou o
seu amigo para com ele partilhar do mesmo prazer. Todo o
mundo adivinha que Augusto disse que no; ele poderia
responder que no queria caar, porque estava pescando, mas
contentou-se com dizer:
Minha bela mestra no d licena.
Tome cuidado no modo de pegar nessa agulha!... gritou
ela, com mau modo, e sem se importar com Filipe.
Est bem, disse este, saindo; eu no os posso aturar.
E depois acrescentou, sorrindo-se:
Fique-se a, sr. Alcides416, aos ps da sua bela Onfale!
161
Ouviu o que ele disse? perguntou Augusto.
J lhe tenho repetido trs vezes que no assim que se
pega na agulha.
Ora, minha senhora...
Ora, minha senhora!... ora, minha senhora! eu no sou
sua senhora, sou sua mestra.
Minha bela mestra!
Digo-lhe que j me vai faltando a pacincia. O senhor
no atenta no que faz!... j tem quatro vezes rebentado a linha e
a dcima segunda que lhe cai o dedal.
No se exaspere, minha bela mestra, eu o vou apanhar e
no cair mais nunca.
Augusto curvou-se e ficou quase de joelhos diante de d.
Carolina; ora, o dedal estava bem junto dos ps dela e o
aprendiz, ao apanh-lo, tocou, ningum sabe se de propsito,
com seus dedos em um daqueles delicados pezinhos; esse
contato fez mal; a menina estremeceu toda. Augusto olhou-a
admirado, os olhos de ambos se encontraram e os olhos de
ambos tinham fogo. Um momento se passou; o sossego se
restabeleceu.
J no posso mais! exclamou a bela mestra; rebentou o
senhor pela quinta vez a linha; no d um ponto que preste; no
h outro remdio...
E, dizendo isto, lanou uma das mos orelha do aprendiz,
que de sbito deu um grito e acudiu com as suas. Ora, essas
mos se encontraram, debateram-se, e nesse ensejo os dedos da
bela mestra foram docemente apertados pela mo do aprendiz.
Novo choque eltrico, novo fogo de olhares! que aproveitvel
lio!...
Menina, tenha modos!... o sr. Augusto no criana,
exclamou a sra. d. Ana, que a dez passos cosia, e que s podia
ver a exterioridade do que se passava entre a bela mestra e o
aprendiz.
A lio se prolongou at ao meio-dia e mais de mil vezes se
repetiu a mesma cena do encontro das mos; d. Carolina no
que seu amor servil chegava a sujeit-lo a fiar l aos ps de Onfale, vestido
com uma grande tnica de mulher.
162
conseguiu puxar uma s vez a orelha do estudante e o aprendiz
no perdeu uma s ocasio de apertar os dedos da bela mestra.
Augusto se comprometeu a apresentar na primeira lio um
nome marcado pela sua mo. Tudo foi s mil maravilhas.
O resto do dia se passou como se havia passado a princpio
para Augusto e d. Carolina.
Eles no se chamaram mais por seus nomes prprios; o amor
lhes tinha ensinado outros: meu aprendiz, e minha bela
mestra.
A madrugada foi triste, porque presidiu s despedidas do
aprendiz e sua bela mestra, mas ainda foi bem doce, porque
ambos meigamente se disseram:
At domingo!
163
XXI
SEGUNDO DOMINGO: BRINCANDO
COM BONECAS
164
Eles se sorriram, mas Filipe acaba de chegar e todos trs vo
pela avenida se dirigindo casa.
Ter a ventura de receber o brao de uma moa bonita e a
quem se ama, apreciar sobre si o doce contato de uma torneada
mo, que tantas noites se tem sonhado beijar; roar s vezes com
o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob
sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lbios virginais
e nacarados, cujo sorrir se considera um favor do cu; o apanhar
o leque que escapa da mo que estremeceu, tudo isso... mas para
que divagaes? que mancebo h a, de dezesseis anos por
diante, que no tenha experimentado esses doces enleios, to
leves para a reflexo e to graves e apreciveis para a
imaginao de quem ama? Pois bem, Augusto os est gozando
neste momento; mas, porque s a ele isto de grande intimidade
e convm dizer apenas o que absolutamente se faz preciso, pode-
se, sem inconveniente, abreviar toda a histria de duas boas
horas, dizendo-se: almoaram e chegou a hora da lio.
Vamos, disse d. Carolina a Augusto, que estava j
sentado a seus ps e em sua banquinha; vamos, meu aprendiz, o
senhor comprometeu-se a trazer-me um nome marcado pela sua
mo; que nome marcou?
Entendi que devia ser o nome da minha bela mestra.
Ela no esperava outra resposta.
Vamos, pois, ver a sua obra, continuou, e creia que estou
pouco disposta a perdoar-lhe, como fiz na lio passada. Venha a
marca.
Augusto apresentou ento um finssimo leno aos olhos da
sua bela mestra, que teve de ler em cada ngulo dele o nome
Carolina e no centro o dstico418 Minha bela mestra. Tudo estava
primorosamente trabalhado; preciso confessar: o aprendiz
havia marcado melhor do que nunca o tivera feito d. Carolina.
Augusto esperava com ansiedade ver brilhar nos olhos de
sua bonita querida o prazer da gratido; frua j de antemo o
terno agradecimento com que contava, quando viu, com espanto,
que sua bela mestra ia gradualmente corando e por fim se fez
165
vermelha de clera419 e de despeito.
Nunca a mo grosseira de um homem poderia marcar
assim!... disse ela a custo.
Mas, minha bela mestra...
Eu quero saber quem foi! exclamou com fora.
Eu no entendo...
Foi uma mulher! isso no carece que me diga. Uma moa
lhe marcou este leno para o senhor vir zombar e rir-se de mim,
de minha credulidade420, de tudo!...
Minha senhora...
Vejam!... j nem quer me chamar sua mestra!... agora s
sabe dizer minha senhora!...
A interessante jovem acabava de ser inesperadamente
assaltada de um acesso de cime. Augusto estava espantado e a
sra. d. Ana, levantando os olhos ao escutar a ltima exclamao
de sua neta, viu-a correndo para ela.
Que isto, menina? perguntou.
Veja, minha querida av: aqui est a marca que ele me
traz! Eu queria um nome muito malfeito, uma barafunda que se
no entendesse, o pano suado e feio, tudo mau, tudo pssimo; eu
me riria com ele. Sabe, porm, o que fez? foi para a Corte tomar
outra mestra, que no h de ter a minha pacincia nem o meu
prazer, mas que marca melhor que eu, que mais bonita!... veja,
minha querida av; ele tem outra mestra, outra bela mestra!...
E dizendo isto, ocultou o rosto no seio da extremosa senhora
e comeou a soluar.
Que loucura essa, menina? que tem que ele tomasse
outra mestra? pois por isso choras assim?
Mas nem me quer dizer o nome dela!... Que me importa
que seja moa ou bonita? nada tenho com isso, porm, quero
saber-lhe o nome, s o nome!...
Ento ela ergueu-se e, com os olhos ainda molhados, com a
voz entrecortada, mas com toda a beleza da dor e delrio do
cime, voltou-se para Augusto e perguntou:
Como se chama ela?
419. Clera: impulso violento contra o que nos ofende; ira, fria.
420. Credulidade: qualidade daquele que cr facilmente, que ingnuo.
166
Juro que no sei.
No sabe?...
Quis trazer um leno bem marcado para ostentar meus
progressos e motivar alguns gracejos e mandei-o encomendar a
uma senhora muito idosa, que vive destes trabalhos.
Muito idosa?...
a verdade.
No lhe deram este leno?
Paguei-o.
Pois eu o rasgo...
Pode faz-lo.
Ei-lo em tiras.
Que fazes, Carolina? exclamou a sra. d. Ana, querendo,
j tarde, impedir que sua neta rasgasse o leno.
Fez o que cumpria, minha senhora, acudiu Augusto:
exterminou o mau gnio que acaba de faz-la chorar.
E que importa que eu rasgasse um leno? minha querida
av, peo-lhe licena para dar um dos meus ao sr. Augusto.
A sra. d. Ana, que comeava a desconfiar da natureza dos
sentimentos da mestra e do aprendiz, julgou a propsito no dar
resposta alguma, mas nem isso desnorteou a viva mocinha que,
tirando da sua cesta de costura um leno recentemente por ela
marcado, o ofereceu a Augusto, dizendo:
Eu no admito uma s desculpa, no desejo ver a menor
hesitao; quero que aceite este leno.
Augusto olhou para a sra. d. Ana, como para ler-lhe nalma
o que ela pensava daquilo.
Pois rejeita um presente da minha neta? perguntou a
amante av.
A resposta de Augusto foi um beijo na prenda de amor.
Agora, que j estamos bem, disse ele, vamos minha
lio.
No, no, respondeu a bela mestra, basta de marcar; no
me sa bem do magistrio, chorei diante do meu aprendiz, no
falemos mais nisto.
Ento fui julgado incapaz de adiantamento?
167
Ao contrrio, pelo trabalho que trouxe, vi que o senhor
estava adiantado demais; porm, sou eu quem tem outros
cuidados.
J tem cuidados?...
Quem que deles no carece?... O pai de famlia tem os
filhos, o senhor os seus livros e eu, que sou criana, tenho as
minhas bonecas. Quer v-las?
Com o maior prazer.
Um momento depois a sala estava invadida por uma enorme
quantidade de bonecas, cada uma das quais tinha seus parentes,
seus vestidos, jias e um nmero extraordinrio de bugiarias421,
como qualquer moa da moda as tem em seu toucador.
Ora, o tal bichinho chamado amor capaz de amoldar seus
escolhidos a todas as circunstncias e de obrig-los a fazer
quanta parvoce422 h neste mundo. O amor faz o velho criana,
o sbio doido, o rei humilde, cativo; faz mesmo, s vezes, com
que o feio parea bonito e o gro de areia um gigante. O amor
seria capaz de obrigar um coxo423 a brincar o tempo-ser, a um
surdo o companheiro companho e a um cego o procura quem te
deu. O amor foi inventor das cabeleiras, dos dentes postios e de
outros certos postios que... mas, alto l! que isto bulir com
muita gente; enfim, o amor est fazendo um estudante do quinto
ano de Medicina passar um dia inteiro brincando com bonecas.
Com efeito, Augusto j sabe de cor e salteado todos os
nomes dos membros daquela famlia; conhece os diversos graus
de parentesco que existem entre eles, acalenta as bonecas
pequenas, despe uma e veste outra, conversa com todas, examina
o guarda-roupa, batiza, casa, em uma palavra, dobra-se aos
prazeres de sua bela mestra, como uma varinha ao vento.
No entanto a sra. d. Ana os observa cuidadosa; tem
simpatizado muito com Augusto, mas nem por isso quer entregar
todo o futuro do objeto que mais ama no mundo s ao abrigo do
168
nobre carter e srias qualidades que tem reconhecido no
mancebo.
Como de costume, a tarde teve de ser empregada em
passeios borda do mar e pelo jardim. O maior inimigo do amor
a civilidade424. Augusto o sentiu, tendo de oferecer o brao
sra. d. Ana; mas esta lhe fez cair a sopa no mel425, rogando-lhe
que o reservasse para sua neta.
Filipe acompanhava sua av e na viva conversao que
entretinham, o nome de Augusto foi mil vezes pronunciado.
Uma vez Augusto e Carolina, que iam adiante, ficaram
distantes do par que os seguia.
A mo da bela Moreninha tremia convulsivamente no brao
de Augusto e este apertava s vezes contra seu peito, como
involuntariamente, essa delicada mo; alguns suspiros vinham
tambm perturb-los mais e havia dez minutos eles se no
tinham dito uma palavra.
Em uma das ruas do jardim duas rolinhas mariscavam426;
mas, ao sentir passos, voaram e pousando no longe, em um
arbusto, comearam a beijar-se com ternura; e esta cena se
passava aos olhos de Augusto e Carolina!...
Igual pensamento, talvez, brilhou em ambas aquelas almas,
porque os olhares da menina e do moo se encontraram ao
mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se abaixaram
e em suas faces se acendeu um fogo, que era o do pejo. E o
mancebo, apontando para ambos, disse:
Elas se amam!
E a menina murmurou apenas:
So felizes!
Pois acredita que em amor possa haver felicidade?
s vezes.
Acaso, j tem a senhora amado?
Eu?!... e o senhor?!
Comecei a amar h poucos dias.
169
A virgem guardou silncio e o mancebo, depois de alguns
instantes, perguntou tremendo:
E a senhora j ama tambm?
Novo silncio; ela pareceu no ouvir, mas suspirou. Ele
falou menos baixo:
J ama tambm?...
Ela abaixou ainda mais os olhos e com voz quase extinta
disse:
No... No sei... talvez...
E a quem?...
Eu no perguntei a quem o senhor amava.
Quer que lho diga?...
Eu no pergunto.
Posso eu faz-lo?
No lho impeo.
a senhora.
D. Carolina fez-se cor-de-rosa e s depois de alguns
instantes pde perguntar, forcejando um sorriso:
Por quantos dias?
Oh! para sempre!... respondeu Augusto, apertando-lhe
vivamente o brao.
Depois ainda continuou:
E a senhora no me revela o nome feliz?...
Eu no... no posso...
Mas por que no pode?
Porque no devo.
E nunca o dir?!
Talvez um dia.
E quando?...
Quando estiver certa que ele no me ilude.
Ento... ele volvel?...
Ostenta427 s-lo...
Oh!... pelo cu!... acabe de matar-me!... basta o nome
pronunciado bem em segredo, bem no meu ouvido, para que
ningum o possa ouvir, nem a brisa o leve... Pelo cu!...
170
Senhor!...
Um s nome que peo!...
impossvel... eu no posso!...
Se eu perguntasse?...
Oh!... no!...
Serei eu?...
A virgem tremeu toda e no pde responder. Augusto lhe
perguntou ainda, com fogo e ternura:
Serei eu?...
A interessante Moreninha quis falar... No pde, mas, sem o
pensar, levou o brao do mancebo at ao peito e lhe fez sentir
como o seu corao palpitava.
Serei eu?... perguntou uma terceira vez Augusto, com
requintada ternura.
A jovenzinha murmurou uma palavra que pareceu mais um
gemido que uma resposta, porm que fez transbordar a glria e o
entusiasmo da alma do seu amante. Ela tinha dito somente:
Talvez.
171
XXII
MAU TEMPO
172
escarapela430, esperneia, escabuja431, morde, belisca e incomoda
mais que solto e livre; prudente facilitar-lhe o que deseja, para
que ele disso se desgoste; solt-lo no prado, para que no corra;
limpar-lhe o caminho, para que no passe; acabar com as
dificuldades e oposies, para que ele durma e muitas vezes
morra. O amor um anzol que, quando se engole, agadanha-se432
logo no corao da gente, donde, se no com jeito destravado,
por mais fora que se faa mais o maldito rasga, esburaca e se
aprofunda. Portanto, muita indstria deve ter quem o quer pr na
rua, e para consegui-lo convm ir despedindo-o com bons
modos, parlamentares oferecimentos e nunca bater-lhe com a
porta na cara. Porm os homens, mal passam de certa idade, s
se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem
completamente os ardores da mocidade. O resultado disso o
mesmo que tirara o pai de Augusto da energia e violncia com
que procura apagar a paixo do filho.
J era tarde. Augusto amava deveras, e pela primeira vez em
sua vida; e o amor, mais forte que seu esprito, exercia nele um
poder absoluto e invencvel. Ora, no h idias mais livres que
as do preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as
velas da barquinha de sua alma, que voou, atrevida, por esse mar
imenso da imaginao; ento, comeou a criar mil sublimes
quadros e em todos eles l aparecia a encantadora Moreninha,
toda cheia de encantos e graas. Viu-a, com seu vestido branco,
esperando-o em cima do rochedo; viu-a chorar, por ver que ele
no chegava, e suas lgrimas queimavam-lhe o corao. Ouviu-a
acus-lo de inconstante e ingrato; da a pouco pareceu-lhe que
ela soluava, escutou um grito de dor semelhante a esse que
soltara no primeiro dia que ele tinha passado na ilha! Aqui, foi o
nosso estudante s nuvens; saltou exasperado fora do leito em
que se achava deitado, passeou a largos passos por seu quarto,
acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia arrombar a
porta, fez mil planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como
nada disso lhe valesse, atirou com todos os seus livros para baixo
173
da cama e deitou-se de novo, jurando que no havia de estudar
dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou voltar o almoo, o
jantar e a ceia que lhe haviam trazido, sem tocar num s prato; e
sentindo que seu pai abria a porta do quarto, sem dvida para vir
consol-lo e dar-lhe salutares conselhos, voltou o rosto para a
parede e principiou a roncar como um endemoninhado433.
J dormes, Augusto? perguntou o bom pai, abrindo as
cortinas do leito.
A nica resposta que obteve foi um ronco que mais
assemelhou-se a um trovo.
O experimentado velho fingiu ter-se deixado enganar e,
retirando-se, trancou a porta ao pobre estudante.
Uma noite de amargor foi, ento, a que se passou para este;
na solido e silncio das trevas, a alma do homem que padece ,
mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se, mergulha-se
inteira em seu sofrimento, no concebe, no pensa, no vela e
no se exalta seno por ela. Isto aconteceu a Augusto, de modo
que, ao abrir-se na manh seguinte a porta do quarto, o pai veio
encontr-lo ainda acordado, com os olhos em fogo e o rosto mais
enrubescido que de ordinrio.
Augusto quis dar dois passos e foi preciso que os braos
paternais o sustivessem para livr-lo de cair.
Que fizeste, louco? perguntou o pai, cuidadoso.
Nada, meu pai; passei uma noite em claro, mas... eu no
sofro nada.
Oh! ele queria dizer que sofria muito!
Imediatamente foi-se chamar um mdico que, contra o
costume da classe, fez-se esperar pouco.
Augusto sujeitou-se com brandura ao exame necessrio e
quando o mdico lhe perguntou:
O que sente?
Ele respondeu, com toda fria segurana do homem
determinado:
Eu amo.
E mais nada?
174
Oh! senhor doutor, julga isso pouco?
E alm destas palavras no quis pronunciar mais uma nica
sobre o seu estado. E, contudo, ele estava em violenta
exacerbao. O mdico deu por terminada a sua visita. Algumas
aplicaes se fizeram e um dos colegas de Augusto, que o tinha
vindo procurar, fez-lhe o que chamou uma bela sangria de brao.
A enfermidade de Augusto no cedeu, porm, com tanta
facilidade como a princpio sups o mdico; trs dias se
passaram sem conseguir-se a mais insignificante melhora; uma
mudana apenas se operou: a exacerbao foi seguida de um
abatimento e prostrao de foras notveis; sua paixo, que
tambm se desenhava no ardor dos olhares, na viveza das
expresses e na audcia dos pensamentos, tomou outro tipo:
Augusto tornou-se plido, sombrio e melanclico; horas inteiras
se passavam sem que s uma palavra fosse murmurada por seus
lbios, prolongadas insnias eram marcadas minuto a minuto por
dolorosos gemidos, e seus olhos, amortecidos, como que
obsequiavam a luz quando por acaso se entreabriam. Na visita
do quarto dia o mdico disse ao pai de Augusto:
No vamos bem.
Uma idia terrvel apareceu ento no pensamento do
sensvel velho: a possibilidade de morrer seu filho, a flor de suas
esperanas, e tal idia derramou em seu corao todo esse fel,
cujo amargor s pode sentir a alma de um pai; entrou apressado
e trmulo no quarto do enfermo, e vendo-o prostrado no leito,
como insensvel, como meio morto, exclamou com lgrimas nos
olhos:
Oh! meu filho!... meu filho!... por que me queres matar?
Um brando favnio434 de vida passou pelo rosto de Augusto;
seus olhos se abriram, um leve sorriso de gratido lhe alisou os
lbios, tambm duas lgrimas ficaram penduradas em suas
plpebras e ele, tomando e beijando a mo paterna, murmurou
com voz sumida e terna:
Meu pai... to bom!...
175
Doces frases que retumbaram com mais doura ainda no
corao do velho.
Querido louco!... disse ele: tu me obrigas a fazer
loucuras!
E saiu do quarto e logo depois de casa, mas, voltando
passadas algumas horas, entrou de novo na cmara do doente;
fez retirar todas as pessoas que a se achavam e, ficando a ss
com ele, deu-lhe, provavelmente, algum elixir435 to admirvel,
que as melhoras comearam a aparecer como por encantamento,
no mesmo instante. Que milagre no ser capaz de fazer o amor
dos pais?
Novidades do mesmo gnero perturbavam a paz e os
prazeres da ilha de... D. Carolina tambm padecia. Os nossos
amantes acabavam de chegar ao ponto sentimental, e com seu
sentimentalismo estavam azedando a vida dos que lhes queriam
bem. Os namorados so semelhantes s crianas: primeiro
divertem-nos com suas momices436, depois incomodam-nos
choramingando.
A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do domingo,
no rochedo da gruta, e tendo, debalde, esperado o seu estudante
at alto dia, voltou para casa arrufada437. No almoo no houve
prato que no acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero
do amor; o ch no se podia tomar, o dia estava frio de
enregelar438, toda a gente de sua casa a olhava com maus olhos, e
seu prprio irmo tinha um defeito imperdovel: era estudante...
Pertencia a uma classe, cujos membros eram, sem exceo, sem
exceo nenhuma, (bradava ela lindamente enraivecida) falsos,
maus, mentirosos e at... feios. tarde sentiu-se incomodada.
Retirou-se, no ceou e no dormiu.
Tudo neste mundo mais ou menos compensado; o amor
no podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um
nadazinho tira motivo para o prazer de dias inteiros, que de uma
flor j murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um
176
s cabelo faz escarcus439 tais, que nem mesmo a sorte grande os
causaria, que por uma cartinha de cinco linhas pe os lbios de
um pobre amante em inflamao aguda com o estalar de tantos
beijos, se no produzisse tambm agastados arrufos, s vezes
algumas clicas, outras amargores de boca, palpitaes, ataques
de hipocondria, prudo440 de canelas etc., seria to completa a
felicidade c embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de ser
competidora do cu.
Um exemplo dessa regra est sendo a nossa cara menina.
Coitadinha! vai passando uma semana de cimes e amarguras.
Acordando-se ao primeiro trinar441 do canrio, ela busca o
rochedo, e com os olhos embebidos no mar, canta muitas vezes a
balada de Ahy, repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe
condiz, por principiar assim:
177
borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, e apontando
para o cu:
Esperana!
D. Carolina levantou a cabea e viu que j o batel cortava as
ondas, mas, como para corresponder a to animador cumprimen-
to, ela, por sua vez, apontou tambm para o cu, e pondo a outra
mo no lugar do corao disse:
Esperarei.
178
XXIII
A ESMERALDA E O CAMAFEU
179
E sou morena e linda
180
cumprimentar o pai dele.
Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a
palidez de seus semblantes e os vestgios de um padecer de oito
dias; guardaram silncio; no tiveram uma palavra para
pronunciar; tiveram s olhares para trocar e suspiros a verter. E
para que mais?...
A sra. d. Ana recebeu com sua costumada afabilidade o pai
de Augusto e abraou a este com ternura. Ao servir-se o almoo,
ela lhe perguntou:
Por que no veio o meu neto?
Ficou para vir mais tarde, com os nossos dois amigos
Leopoldo e Fabrcio.
Ento teremos um excelente dia.
Eu o espero.
Uma hora depois o pai de Augusto e a sra. d. Ana
conferenciavam a ss, e os dois namorados achavam-se defronte
um do outro, no vo de uma janela.
E eles continuavam no silncio, mas olhavam-se com fogo.
Augusto parecia querer comunicar alguma coisa bem
extraordinria sua interessante amada, porm sempre
estremecia ao entreabrir os lbios.
E d. Carolina, cnscia j de sua fraqueza, e como
lembrando-se dos pesares que tinha sofrido, no sabia mais
servir-se de seus sorrisos com a malcia do tempo da liberdade e
mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.
Alguma grande resoluo obrigava o moo a estar
silencioso, como tremendo pelo xito444 dela?...
No fim de muito tempo eles haviam conseguido dizer-se:
O mar est bem manso.
O dia est sereno.
Felizmente para eles a sra. d. Ana os convidou a entrar no
gabinete. Augusto para a se dirigiu tremendo, d. Carolina
curiosa. Quando eles se sentaram, o ancio falou:
Augusto, eu acabo de obter desta respeitvel senhora a
honra de te julgar digno de pretenderes a mo de sua linda neta,
181
e agora resta que alcances o sim da interessante pessoa que
amas. Fala.
Tanto d. Carolina como o pobre estudante ficaram cor de
ncar; houve bons cinco minutos de silncio, e o pai de Augusto
instou para que ele falasse. E o bom do rapaz no fez mais que
olhar para a moa, com ternura, abrir a boca e fech-la de novo,
sem dizer palavra.
A sra. d. Ana tomou, ento, a palavra, e disse, sorrindo-se:
Enfim, necessrio que os ajudemos. Carolina, o sr. Au-
gusto te ama e te quer para sua esposa; tu que dizes?...
Nem palavra.
Foi preciso que se repetisse pela terceira vez a pergunta,
para que a menina, sem levantar a cabea, murmurasse apenas:
Minha av... eu no sei.
Pois creio que ningum melhor que tu o poder saber.
Desejas que eu responda em teu nome?...
A bela Moreninha pensou um momento... no pde vencer-
se, sorriu-se como sorria dantes, e erguendo a cabea disse:
Eu rogo que daqui a meia hora se v receber a minha
resposta na gruta do jardim.
Querers consultar a fonte? Pois bem, iremos.
D. Carolina saiu com ar meio acanhado e meio maligno.
Passados alguns instantes a sra. d. Ana, como quem estava certa
do resultado da meia hora de reflexo, e j por tal podia gracejar
com os noivos, disse a Augusto:
O senhor no quer refletir tambm no jardim?
O estudante no esperou segundo conselho e para logo
dirigiu-se gruta. D. Carolina estava sentada no banco de relva,
e seu rosto, sem poder ocultar a comoo e o pejo que lhe
produzia o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o
antigo verniz do prazer e malcia. Vendo entrar o moo, disse:
Eu creio que ainda se no passou meia hora.
Ah! podia eu esperar tanto tempo?...
Acaso veio perguntar-me alguma coisa?...
No, minha senhora, eu s venho ouvir a minha sentena.
Ento... pede-me para sua esposa...
A senhora o ouviu h pouco.
182
Pois bem, sr. Augusto, veja como verificou-se o prog-
nstico que fiz do seu futuro! No se lembra que aqui mesmo lhe
disse que no longe estava o dia em que o senhor havia de
esquecer sua mulher?
Mas eu nunca fui casado... murmurou o estudante.
Oh! isso uma recomendao contra a sua constncia!...
E quem tem culpa de tudo, senhora?
Muito a tempo ainda me lana em rosto a parte que tenho
na sua infidelidade e, pois, eu emendarei a mo445 agora. O
senhor h de cumprir a palavra que deu h sete anos!
Augusto recuou dois passos.
O senhor um moo honrado, continuou a cruel More-
ninha, e, portanto, cumprir a palavra que deu, e s casar com
sua desposada antiga.
Oh!... agora j impossvel!
Ela deve ser uma bonita moa!... teria razo de queixar-
se contra mim, se eu roubasse um corao que lhe pertence... at
por direito de antigidade; ora eu, apesar de ser travessa, no sou
m, e, portanto, o senhor s ser esposo dessa menina.
Jamais!
Juro-lhe que h de s-lo.
E quem me poder obrigar?
Eu, pedindo.
A senhora?
E a honra, mandando.
Para que, pois, animou o amor que pela senhora sinto?...
Para satisfazer as minhas vaidades de moa, somente
para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma mulher seria capaz
de conserv-lo em amoroso enleio446 por mais de trs dias, e
desejei vingar a injria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso
que trabalhei por prend-lo; fiz talvez mais do que devia, s para
ter a glria de perguntar-lhe uma vez, como agora o fao:
Ento, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher?...
Foi a beleza.
183
Porm j passou o tempo do galanteio, e eu devo
lembrar-lhe o dever que com a paixo esquece. Escute: na idade
de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina, que
contava apenas sete.
J a senhora em outra ocasio me disse isso mesmo.
Junto ao leito de um moribundo jurou que havia de am-
la para sempre.
Foi um juramento de criana.
Embora, foi um juramento; trocou com ela a mesmo
prendas de amor, e quando a menina lhe apresentar a que
recebeu e lhe pedir a que lhe ofereceu e o senhor aceitou?...
Ah! senhora!...
Quando o velho moribundo, dando-lhe o breve de cor
branca disse: tomai este breve, cuja cor exprime a candura da
alma daquela menina; ele contm o vosso camafeu; se tendes
bastante fora para ser constante e amar para sempre aquele belo
anjo, dai-lho, para que ela o guarde com desvelo. Por que deu o
senhor o breve menina?...
Porque eu era um louco, uma criana!...
E nem ao menos se lembra de que o velho disse com voz
inspirada: Deus paga sempre a esmola que se d ao pobre!... l
no futuro vs o sentireis? No tem o senhor esperana de ver
realizar-se essa bela profecia? no se lembra de ouvi-la? Pois ela
soou bem docemente no meu corao quando, s escondidas, a
escutei repetida nesta gruta por seus lbios.
Oh! mas por que Deus no me prendeu a essa menina
com laos indissolveis, antes que eu visse o lindo anjo desta
ilha?
E como, senhor, posso eu acreditar nos seus protestos de
ternura e constncia, se j o vejo faltar f a uma outra?...
Senhor! senhor! o que foi que prometeu h sete anos passados?...
Ento eu no pensava no que fazia.
E agora pensa no que quer fazer?
Penso que sou um desgraado, um louco!... penso que
uma barbaridade inqualificvel que, enquanto eu padeo, e sofro
mil torturas, deixe a senhora brincar nos seus lbios o sorriso
com que costuma encantar para matar. Penso...
Acabe!
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Penso que devo fugir para sempre desta ilha fatal, deixar
aquela cidade detestvel, abandonar esta terra de minha ptria,
onde no posso ser outra vez feliz!... penso que a lembrana do
meu passado faz a minha desgraa, que o presente me
enlouquece e me mata, que o futuro... Oh! j no haver futuro
para mim! Adeus, senhora!...
Ento, parte?...
E para sempre.
D. Carolina deixou cair uma lgrima e falou ainda, mas j
com voz fraca e trmula:
Sim, deve partir... v... Talvez encontre aquela a quem
jurou amor eterno... Ah! senhor! nunca lhe seja perjuro.
Se eu encontrasse!...
Ento?... que faria?...
Atirar-me-ia a seus ps, abraar-me-ia com eles e lhe
diria: Perdoai-me, perdoai-me, senhora, eu j no posso ser
vosso esposo! tomai a prenda que me deste...
E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve,
que convulsivamente apertou na mo.
O breve verde!... exclamou d. Carolina, o breve que
contm a esmeralda!...
Eu lhe diria, continuou Augusto: recebei este breve que
j no devo conservar, porque eu amo outra que no sois vs,
que mais bela e mais cruel do que vs!...
A cena se estava tornando pattica; ambos choravam e s
passados alguns instantes a inexplicvel Moreninha pde falar e
responder ao triste estudante.
Oh! pois bem, disse; v ter com sua desposada, repita-lhe
o que acaba de dizer, e se ela ceder, se perdoar, volte que eu
serei sua... esposa.
Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar
essa moa a quem no tornei a ver, nem poderei conhecer?...
onde, meu Deus?... onde?...
E tornou a deixar correr o pranto por um momento
suspendido.
Espere, tornou d. Carolina, escute, senhor. Houve um dia,
quando a minha me era viva, em que eu tambm socorri um
velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome
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de sua famlia e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de
reconhecimento tambm este velho me fez um presente: deu-me
uma relquia447 milagrosa que, asseverou-me ele, tem o poder
uma vez, na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu
cosi essa relquia dentro de um breve; ainda no lhe pedi coisa
alguma, mas trago-a sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve,
descosa-o, tire a relquia e merc dela talvez encontre sua
antiga amada. Obtenha o seu perdo e me ter por esposa.
Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto,
porm, d-me esse breve!
A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que
comeou a descos-lo precipitadamente. Aquela relquia, que se
dizia milagrosa, era sua ltima esperana; e, semelhante ao
nufrago que no derradeiro extremo se agarra mais leve tbua,
ele se abraava com ela. S falta a derradeira capa do breve... ei-
la que cede e se descose... salta uma pedra... e Augusto,
entusiasmado e como delirante, cai aos ps de d. Carolina,
exclamando:
O meu camafeu!... o meu camafeu!...
A sra. d. Ana e o pai de Augusto entraram nesse instante na
gruta e encontraram o feliz e fervoroso amante de joelhos e a dar
mil beijos nos ps da linda menina, que tambm por sua parte
chorava de prazer.
Que loucura esta? perguntou a sra. d. Ana.
Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei
minha mulher!...encontrei minha mulher!...
Que quer dizer isto, Carolina?...
Ah! minha boa av!... respondeu a travessa Moreninha
ingenuamente: ns ramos conhecidos antigos.
447. Relquia: objeto precioso a que se atribui alta estima e que constitui
recordao ou lembrana.
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EPLOGO
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