Jacob Holzmann Netto - Espiritismo e Marxismo - PENSE

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or reconhecer o valor histrico deste texto, originrio do final dos anos 1960, o PENSE oferta-o a estudiosos e pesquisadores do pensamento

esprita vinculado temtica sociolgica. Trata-se de uma conferncia proferida pelo grande orador paranaense Jacob Holzmann Netto, em 1964, transcrita e editada em livro no incio de 1970 pelo Movimento Universitrio Esprita (MUE), em pleno perodo da ditadura militar. Natural de Ponta Grossa (PR), Jacob Holzmann Netto nasceu em 28 de julho de 1934 e faleceu no dia 26 de agosto de 1994, em Curitiba (PR). Bacharelou-se em Direito, em 1958, e formou-se em psicologia no ano de 1972, profisso que exerceu at o final de sua vida. Dominava, alm da lngua ptria, os idiomas ingls e francs. Holzmann Netto se destacou como um orador cativante, carismtico e extremamente culto. Ganhou dezenas de concursos estaduais e nacionais de oratria. Era considerado o maior orador esprita de sua poca. Foi tambm o idealizador e um dos fundadores da Comunho Esprita Crist de Curitiba. Suas posies doutrinrias controversas o colocaram em rota de coliso com o movimento esprita, pois via o Espiritismo como uma poderosa alavanca de libertao e transformao social, sem os prejuzos do religiosismo e do conservadorismo poltico. O resultado disso foi seu afastamento das fileiras espritas no final dos anos 1960, fato que tambm ocorreu com vrias lideranas do MUE. Tema delicado para a poca, as correlaes entre o marxismo e o Espiritismo so aqui abordadas por Holzmann Netto com maestria e slida fundamentao filosfica em pensadores como Manuel S. Porteiro (*), Gustavo Geley, Allan Kardec e Humberto Mariotti, filsofo esprita portenho que prefacia a obra e situa a atuao do orador paranaense como a de um ldimo representante do que denominou de esquerda kardeciana. Esta publicao, de difcil acesso, teve pequena tiragem, tendo sido lanada com poucos recursos grficos e editoriais. Mas uma obra que se imps com o tempo pelo contedo e a ousadia na anlise crtica do marxismo e do socialismo, agora disponvel em sua verso digital.
(*) O site ressalva que, embora o autor cite com nfase a obra Espiritismo Dialtico, de Manuel S. Porteiro, em algumas partes do texto h expresses idnticas s desse pensador esprita argentino, sem meno da fonte, o que no exclui o seu valor histrico. Fonte biogrfica: http://www.feparana.com.br

PENSE Pensamento Social Esprita Maio de 2008

Edio A FAGULHA

JACOB HOLZMANN NETTO

ESPIRITISMO E MARXISMO

A FAGULHA C x .P. 1536 - C a m p i n a s E s t a d o SP - B r a s i l

ESPIRITISMO E MARXISMO
Introduo de HUMBERTO MARIOTTI

NDICE

PRLOGO 1 - O IDEALISMO FILOSFICO DE GELEY a) Geley e Kardec b) O Dinamopsiquismo de Geley

1 10 10 11

2 - O MARXISMO COMO DIALTICA E COMO MATERIALISMO 15 a) Os Dogmas do Materialismo Dialtico.. 18 b) A Economia Como Fator Essencial do Determinismo Histrico 22

3 - O CONCEITO DINAMOGENTICO DA HISTRIA SEGUNDO O ESPIRITISMO DIALTICO 25 a) A Interpenetrao Homem-sociedade..... 29 4 - A FALNCIA DO ESPIRITUALISMO RELIGIOSO CLSSICO 31 a) A Razo de Ser do Homem de Marx....... 32 5 - A CONCILIAO DO SOCIALISMO COM A REALIDADE ESPIRITUAL a) Materialismo e Socialismo b) Socialismo e Espiritismo 6 - PELA VIVNCIA SOCIAL DA DOUTRINA ESPRITA NOTA EXPLICATIVA NOTAS DA EQUIPE A FAGULHA 35 35 36 42 48 50

NOSSA SEGUNDA EDIO


Esta obra responde aos imperativos dos dias que correm. Fruto de palestra cunhada pela inteligncia de Jacob Holzmann Netto, dispe-se a traar novas rotas ao conhecimento humano, em face das quais insta o homem a inaugurar uma atitude autenticamente crist perante seus semelhantes e a vida social em si mesma. No se avoca, contudo, o direito de dizer a ltima palavra a propsito do assunto que se prope. Sem estar imune a falhas, erros e omisses, representa, acima de tudo, uma corajosa tentativa de abordagem de um problema sumamente intrincado. Constitui-se, pois, num convite ao estudo e ao. Em assim sendo entendido, "ESPIRITISMO E MARXISMO" logrou polarizar a ateno de quantos compreendem que o saber configura o primeiro passo rumo ao ser. A bem da verdade, os pedidos de remessa j haviam se sucedido de tal maneira que por fora do interesse despertado junto s hostes espritas e universitrias decorridas apenas algumas semanas do anncio dessa publicao, vimos, como que por encanto, esgotar-se sua primeira edio. Este livro tem uma misso a cumprir. E dela se desincumbir embora esta segunda edio lhe custe o oprbrio de pessoas que por avessas ao progresso se deixam imantar a ideais conservadores. Ele reflete nossa nsia de saber e ser, propsito do qual jamais recuaremos, mesmo porque a cruzada de esclarecimento que a EQUIPE A FAGULHA empreende, encontra, a pouco e pouco, acstica no seio daqueles que, dialeticamente, laboram no sentido de criar condies para o surgimento do novo, cientes de que somos,

os homens, os fios condutores da evoluo. Dessa maneira malgrado ns saibamos percorrer um caminho atapetado por incompreenses de toda ordem esse fato, aliado a tantos outros, s nos soa moda de fator de estmulo a que prosseguimos, intimoratos, eretos, confiantes, com vistas a rasgar os horizontes conceituais da nova civilizao. Ou, numa palavra, a abreviar o amanh. Nossa plataforma , sobretudo, a conscientizao scio-espiritual do homem.

Campinas, maro de 1970 EQUIPE A FAGULHA

PRLOGO
Respondendo a um gentil convite da revista A FAGULHA e de seus jovens diretores, para que escrevamos um prefcio para Espiritismo e Marxismo, do Dr. Jacob Holzmann Netto, que traamos estas linhas, a fim de dar cumprimento a to amistosa solicitao. Conhecemos de h muitos anos o autor do presente trabalho e nos aventuramos a dizer que pertence ao que bem poderia chamar-se esquerda kardeciana. Encontramo-nos, porm, diante de um jovem que, no obstante sua vocao socialista, comea sua exposio com estas palavras: "Carssimos irmos em Cristo Jesus", as quais, ante certos "radicais" do Espiritismo, poderiam menoscabar sua postura progressista e revolucionria. Mas, apesar disso, o Dr. Jacob Holzmann Netto se nos apresenta como um dinmico crtico esprita do marxismo, no que se refere sua concepo materialista do homem e da histria, demonstrando-nos, assim, que a viso crist que o Espiritismo tem do processo histrico em nada anula o vigor progressista que o caracteriza. Estas palavras de Jacob, "Carssimos irmos em Cristo Jesus", nos falam do que significa o homem esprita forjado ideal e doutrinariamente ao calor da codificao kardeciana, pois, como se ver, o Espiritismo no um novo pio religioso, moda clssica, que vem adormecer as conscincias, como o supem os ortodoxos do marxismo. Ao contrrio, ele nos indica que, embora o esprito evanglico do homem esprita, sua viso do mundo e da sociedade responde aos mais elevados ideais de justia e liberdade. Do que resulta que o Dr. Jacob Holzmann Netto, e com ele toda a juventude que convive com o processo histrico contemporneo, no 1

se aparta da essncia evanglica do Espiritismo, apesar do seu af de ver no mundo uma sociedade mais eqitativa no que respeita justia social. E isto nos leva a pensar que a juventude universitria dos nossos tempos a que dar cumprimento, dentro do movimento esprita, grande determinao de Lon Denis: "Dar uma alma ao Socialismo". Com efeito, o presente estudo tende a essa sublime finalidade: espiritualizar o Socialismo e descobrir no processo dialtico da histria sua dimenso idealista e psicolgica, sobre a base esprita do Esprito em sua situao encarnada e desencarnada. Isto posto, sem subestimar a obra de notveis homens espritas j maduros, cremos que juventude compete levar o Espiritismo aos planos da cultura moderna, especialmente a juventude esprita universitria, que est mais preparada para contrastar os diversos valores cientficos, filosficos e religiosos do Mundo Moderno. E este trabalho assim no-lo demonstra, pois cremos que pode enfrentar os mais severos simpsios universitrios, j que, com sua anlise do marxismo, coloca a filosofia esprita, axiologicamente considerada, ao mesmo nvel do materialismo histrico e dialtico e ao dos mais graves problemas da filosofia contempornea. Nota-se em Holzmann Netto um novo esprito militante que ressoa com notveis pensadores espritas, j entrados em anos, como J. Herculano Pires, Remo Fedi, Andr Dumas, Manuel S.Porteiro, Santiago A. Bossero, Hugo L.Nale, os quais colocam o pensamento kardeciano frente aos mais delicados problemas da civilizao moderna. Alegra-nos agora que com o Dr. Jacob Holzmann Netto se engrandea a lista dos que elabo2

raram um novo humanismo social luz do iderio esprita, pois assinala-nos ele que o Espiritismo no ser sobrepujado por nenhum fato cientfico ou filosfico. Mas o de que a doutrina esprita necessita de homens preparados para julgar e sentir a evoluo do Mundo Moderno, de acordo com suas evolues e progressos atravs das grandes concepes ideolgicas que nos oferece a Codificao Kardeciana. S assim o Espiritismo ser reconhecido como uma verdade pela gnosiologia atual e penetrar o processo evolutivo dos povos com a fora espiritual mais viva e verdadeira que tero visto os tempos. E isto que nos faz pensar que a juventude no dever envelhecer ao ritmo das coisas j caducas e superadas. Ademais, na concepo esprita da vida no cabem os anos do corpo, assim como no Esprito no contam essas relatividades objetivas de espao e tempo. Na viso esprita da histria s se nos mostram a dinmica revolucionria das almas e a beleza do progresso sobre a base da eterna juventude das idias. Por isso cremos que o futuro pertence ao Espiritismo e que Kardec resplandecer sempre como uma estrela no cu cientfico, filosfico e religioso da humanidade. O presente estudo contribuir para demonstrar que no pelas vias do materialismo dialtico que se manifestar a nova sociedade humana. Ele acentua que o Idealismo no foi ultrapassado, como supem os tericos do marxismo, posto que a filosofia esprita possui os elementos necessrios para comprovar que a Idia que rege a marcha da histria e, portanto, o Esprito quem modificar a sociedade e no os chamados "modos de produo", como dizia Karl Marx. Eis porque consideramos que o Espiritismo ser mais bem conhecido se se avocar o estudo 3

dos fenmenos sociais e histricos, vale dizer, se penetrar na essncia viva do que determina esse violento espetculo social chamado "luta de classes". E este trabalho do Dr. Jacob Holzmann Netto tende a isso, pois deixar confundidos a quantos hajam suposto que o Espiritismo era uma manifestao do demnio e, entre os esotricos, o produto fenomenolgico de larvas e casces astrais. Sustentamos, portanto, que o Espiritismo, na hora atual da humanidade, se afirma r triunfalmente, diramos mais pelo estudo dos problemas sociais que pela anlise exclusivamente cientfica, j repetida at o cansao, dos fenmenos medinicos. E ele nos explica que o processo histrico se acelerar, por lei de evoluo, mais pela interpretao espiritual do homem e de seu verdadeiro sentido existencial, o que nos demonstra que a Lei de Sociedade se cumprir amplamente para desembocar na Lei de Igualdade assentada na Lei de Justia, Amor e Caridade. Se o Espiritismo, como movimento histrico, se distanciasse dos fenmenos sociais por consider-los de natureza poltica, renunciaria misso transcendente que lhe compete cumprir: restabelecer os valores do Cristianismo luz da filosofia palingensica. De modo que tudo quanto se faa para que o Espiritismo penetre no processo histrico da humanidade no ser seno cumprir com as diretrizes traadas por Kardec, quando falou da ao que o movimento esprita desenvolveria no que ele chamou de perodo social. O Espiritismo realizar na sociedade o que j est realizando no religioso. Sua viso, com efeito, revolucionou o conceito cls4

sico de religio; elaborou outra cincia religiosa, ultrapassando assim o estreito espao dos dogmas e atingiu as profundezas do Esprito, at demonstrar que o autenticamente religioso est na essncia divina do indivduo. Deste modo, diz-nos o saber esprita, se d execuo ao desenvolvimento da Lei de Adorao. Do mesmo modo ele atingir a essncia dos fenmenos sociais e produzir com suas luzes uma revoluo social sem necessidade dessa fora catastrfica que determina a luta de classes, visto que a gerara por uma absoro pacfica dos fenmenos contraditrios da sociedade, mediante a aplicao da Lei de Justia, Amor e Caridade, mostrando-se assim como feliz conseqncia os benefcios da Lei de Igualdade. Por outro lado, sumamente importante a interpretao que o Dr. Jacob Holzmann Netto faz da ideologia de Gustavo Geley, esse insigne codificador da filosofia cientifica do Espiritismo, a qual se parece tanto, no social,com a de Jos Ingenieros, o talentoso pensador argentino e mestre da juventude latino-americana. O pensamento de Geley pode proclamar-se como a Filosofia Esprita da Universidade Moderna, j que possui elementos filosficos adequados juventude contempornea. Cremos, por isso, que Kardec o codificador esprita no universal, enquanto Geley representa a expresso da Cincia do Ser para a cultura universitria moderna. Mas tanto Kardec quanto Geley se consubstanciam entre si pelas grandes razes de uma mesma verdade. Louvvel, portanto, que Holzmann Netto haja penetrado no pensamento geleyano, j que o grande sbio francs se encontrava olvidado entre os estudiosos espritas, at mesmo na Frana, de cuja situao s podemos excluir Andr Dumas, o inteligente autor de "A Cincia da 5

Alma". E uma obra como a de Gustavo Geley no merece to ingrato esquecimento de parte do Velho Mundo; mas ns outros confiamos em que os intelectuais espritas, especialmente a juventude latino-americana, sabero reivindicar uma tarefa filosfica to importante como a do autor dessa fonte inesgotvel da filosofia palingensica, como o do livro "Do Inconsciente ao Consciente", cuja solidez metafsica capaz de resistir, como continuao que da codificao kardeciana, s mais pujantes crticas do marxismo feitas concepo idealista do homem e da histria. O Espiritismo a nica Cincia do Esprito que possui realmente duas naturezas para estabelecer um autntico conhecimento do Ser e da Sociedade, j que participa em sua elaborao cientfica, filosfica e religiosa do objetivo e do subjetivo, vale dizer, do visvel e do invisvel. Da que s sua doutrina, dentro da cultura moderna, poder dar ao Idealismo uma verdadeira base espiritual, o qual foi rechaado como fator reacionrio pela filosofia marxista. Sem embargo, luz do pensamento esprita a viso idealista do homem e da sociedade uma realidade assentada sobre os fatos medinicos, especialmente nos de ideoplastia, to bem estudados por Geley. por isso que o marxismo perde vigor e validez cientfico-filosfica quando faz da Idia um reflexo determinado pela realidade material na mente do indivduo. De tal modo, o marxismo se limita antropologicamente ao reduzir o homem a um sujeito destinado morte e ao nada. Coloca-se, assim, ao nvel dos demais sistemas cujas aspiraes ticas deixam-se apresar nas garras de um niilismo desolador e anti-humano. Se bem que no seja uma religio, o 6

marxismo, no obstante, em suas concepes dialticas, abarca toda a vida do Ser e do Universo, pelo que toca nos maiores problemas metafsicos e religiosos. Por isso, ante a morte, o marxismo uma cincia inerme e s se limita a apoiar-se em raciocnios naturalistas que em nada diferem dos que nos d o materialismo mecanicista e vulgar. A morte soberana frente ao marxismo, razo por que toda sua cincia social fica reduzida ao silncio. O filsofo marxista sabe que seu mestre Karl Marx se perdeu para sempre nas sombras do nada e que seu Ser j no participa do desenvolvimento de sua ideologia no mundo. Mas a nova conscincia da humanidade pede algo mais que a existncia de um homem mortal: pede aos gritos um novo Ser, uma nova viso do Esprito e da Histria, uma nova forma de existir que o vincule ao passado, ao presente e ao futuro atravs de um Ser eterno e atuante, nascendo, morrendo e renascendo para dar forma a uma nova imagem da realidade histrica em cujo desenvolvimento seja ele um ativo e dinmico protagonista. Contudo, o marxismo, apesar do vigor social que o caracteriza, somente uma idia na mente do homem, chamada, por lei de destruio, a se extinguir e se perder entre as brumas da morte. Da que o autntico Socialismo est na Idia e no Esprito; vive em estado latente na natureza profunda dos seres e na realidade divina e criadora da palavra do Nazareno. Pois no haver autntico Socialismo sem a concepo esprita do homem e da sociedade, nem se aplacar a luta de classes enquanto a filosofia da histria no souber que a criatura humana, como todo o existente, evolui do menos ao mais por meio de uma palingenesia dinmica e criadora 7

que aproxima o homem a Deus, at transfigur-lo totalmente como Esprito encarnado e desencarnado. Esta a razo pela qual o Espiritismo a nica base para o estabelecimento na Terra do Socialismo, tal como ressuma do Evangelho de Jesus. O marxismo cumprir, sem dvida sua misso histrica, mas ser o kardecismo que completar sua obra no que respeita Justia Social, para cuja tarefa aplicar no todo o pensamento do Galileu, fonte inesgotvel do mais puro e real dos sistemas socialistas. O presente trabalho merece ser estudado luz da situao histrica do nosso tempo, pois (repetimos) a penetrao do Espiritismo na cultura e nas massas se dar mais facilmente por meio do Humanismo Esprita que pelos fenmenos medinicos observados de um ponto de vista exclusivamente cientfico. Porque ento os gabinetes e laboratrios tambm abriro suas portas aos deserdados, recordando que Jesus no ficou inativo entre as penumbras da Sinagoga, seno que se mesclou com o povo em meio ao qual realizou sua divina obra de redeno humana. O filsofo esprita dever proceder da mesma maneira e o Dr. Jacob Holzmann Netto, destacado intelectual brasileiro, assim o entendeu ao se defrontar com o vigor cientfico do marxismo contemporneo.

Humberto Mariotti
Buenos Aires, novembro de 1969.

Do apstolo Paulo ao discpulo Timteo na memorvel epstola: "Ningum despreze a tua mocidade; mas s o exemplo dos fiis na palavra, no trato, na caridade, no esprito, na f, na pureza. Persiste em ler, exortar e ensinar, at que eu v. No desprezes o dom que h em ti, o qual te foi dado por profecia, com a imposio das mos do presbitrio. Medita estas coisas: ocupa-te nelas, para que o teu aproveitamento seja manifesto a todos. Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina: persevera nestas coisas; porque, fazendo isto, te salvars, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem".

Carssimos Irmos em Cristo Jesus: Que a Paz do Mestre Divino a todos nos envolva!

1. O IDEALISMO FILOSFICO DE GELEY a) Geley e Kardec


Ren Sudre, o clebre psiquista que os espritas to bem conhecemos pela irredutibilidade em sua no-admisso da sobrevivncia individual e cujos conceitos Ernesto Bozzano refutou com maestria na primorosa obra "Metapsquica Humana", editada em portugus pela Federao Esprita Brasileira, teve ocasio de escrever referindo-se ao Dr. Gustavo Geley e fazendo perfunctria apreciao da filosofia geleyana, como um tributo de admirao memria do eminente Diretor do Instituto de Metapsquica Internacional, que acabava de morrer em conseqncia de um estpido acidente Ren Sudre, dizamos, teve ocasio de escrever que, "se a filosofia de Allan Kardec pode ser considerada como o ensino introdutrio do Espiritismo, a filosofia de Geley o ensino superior". A afirmao de Ren Sudre, se entendida no no sentido de que Geley haja superado e aposentado Kardec, mas no de que Geley desenvolveu e aprofundou as teses de Rivail luz dos conhecimentos novos e novas descobertas da cincia do primeiro quarto deste sculo, far justia a um e outro, porquanto, em que pese seu escrpulo alis, compreensvel e legtimo, quando se atenta para sua posio de diretor de um instituto cientfico de no se pronunciar abertamente sobre um tema que sabia lhe carrearia o repdio da opinio oficial da cincia, o Dr. Gustavo Geley foi um espiritista convicto, aceitando do Espiritismo as trs verdades fundamentais (a imortalidade da alma, a reencarnao e a comunicao com os mortos),e, tanto quanto Kardec, que declarara ser de inteira vantagem a quem quer que se queira tornar esp10

rita o estudo prvio da teoria, asseverando, embora sem menosprezo dos fatos, que se poderia abstrair das manifestaes medinicas sem que a doutrina deixasse de subsistir ("O Livro dos Mdiuns", I parte, captulo III, item 32), Geley afirmou que a sobrevivncia individual no tanto demonstrada diretamente pelos fatos metapsquicos quanto o indiretamente pela "sntese filosfica racional" da evoluo e do indivduo. No obstante separados por uma gerao, Kardec e Geley sustentaram, pois, o mesmo ponto de vista; e quem quer que conhea a obra de um e de outro h de reconhecer que o maior mrito do Dr. Gustavo Geley dilatando, no h negar, a magnfica exposio metdica que o apstolo lions teve a audcia de propor numa poca de encoscorado materialismo, onde o cepticismo era uma questo de moda e de bom-tom foi o de ter legado posteridade seu esboo de uma filosofia racional palingensica, que, corroborando as assertivas de Kardec, promove autntica revoluo nos postulados assim da Fisiologia como da Psicologia, da Filosofia e das Cincias Naturais, da Religio e da Moral, explicando o at ento inexplicvel, solucionando o angustiante problema do mal (pedra de toque de todas as teologias), revelando ao indivduo a razo de seus sofrimentos, fundamentando a legitimidade de suas esperanas de justia e fraternidade, e afirmando a realizao da conscincia eterna no desenvolvimento infinito.

b) O Dinamopsiquismo de Geley
O idealismo filosfico de Geley, eminentemente dialtico e ainda mais cientifico do que o sistema proposto por Oliver Lodge em "A Formao do Homem", ele o expe em seu livro 11

"Do Inconsciente ao Consciente", que tivemos a oportunidade de ler na edio argentina de "Constancia", e repousa sobre dois postulados capitais: 1) O que h de essencial no Universo e no indivduo um dinamopsiquismo nico, primitivamente inconsciente, mas que contm em si todas as potencialidades de suas futuras metamorfoses: as aparncias diversas e inumerveis das coisas no so mais do que meras representaes daquele princpio; e 2) O dinamopsiquismo essencial e criador passa pela evoluo, do inconsciente primitivo ao consciente realizador. O Dr. Geley penetrou, assim, o conhecimento da teoria da unidade substancial, ao concluir que "a forma no seno uma iluso temporal", o que corresponde plenamente aos avanos da Fsica moderna, que hoje fala de materializao e desmaterializao da energia, como a Metapsquica nos diz de materializao e desmaterializao de foras psquicas supranormais. Em termos filosficos geleyanos, portanto, o organismo no o indivduo; pelo contrrio, no mais do que a representao desse indivduo: "o complexo orgnico se nos oferece no como o indivduo completo, seno como um produto ideoplstico do que h de essencial no indivduo um dinamopsiquismo superior, que o prprio indivduo em sua essncia". Considerando o eu como um dinamopsiquismo essencial, Geley destruiu as j frgeis noes da Psicologia clssica, que o tomam como a soma de estados de conscincia, e conceituou, sempre assentando suas concluses sobre os fatos, que o dinamopsiquismo inconsciente ou 12

subconsciente tende, pela evoluo, a converter-se em dinamopsiquismo consciente. Segundo sua concepo, o progresso espiritual e psicolgico no outra coisa que no a converso dos conhecimentos em faculdades, as quais se adquirem por experincias, atravs das vidas sucessivas, na evoluo palingensica do ser. Da mesma forma, a evoluo , para Geley, "a passagem do inconsciente ao consciente no Universo": "quanto o indivduo, tambm o Universo deve conceber-se como representao temporal e como dinamopsiquismo essencial e real; assim como o organismo nao seno um produto ideoplstico de um dinamopsiquismo essencial, o Universo no se apresenta seno como a formidvel materializao da potencialidade criadora". De acordo com esse principio, a evoluo se resume a um processo de aquisio da conscincia, tanto no microcsmico quanto no macrocsmico, o que explica muito melhor as faculdades evolutivas do que capaz o transformismo clssico e faz compreender como o mais pode sair racionalmente do menos, posto que a imanncia criadora, que est na essncia mesma das coisas, possui todas as capacidades potenciais de realizao. "O indivduo, o ser aparente, submetido ao nascimento e morte, limitado em suas capacidades, efmera em sua durao proclama Geley no o ser real, mas to s uma representao ilusria, atenuada e fragmentria: o ser real, aprendendo pouco a pouco a conhecer-se e a conhecer o Universo, a chispa divina no caminho de realizar sua divindade, infinita em suas potencialidades, criadora, eterna. Tambm no Universo manifestado, as diferentes aparncias das coisas so meramente a representao ilusria, atenuada e fragmentria da unidade

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divina,a realizar-se majestosamente numa evoluo sem fim. A constituio dos mundos e dos indivduos no seno a realizao constante e ininterrupta da conscincia eterna, por via da multiplicidade progressiva de criaes temporais e de objetivaes sucessivas no tempo e no espao". E ento que o gnio de Geley ope seu idealismo filosfico estreiteza concepcional do existencialismo ateu, que nos arrasta, irresistivelmente, pela perspectiva inaltervel da morte e do caos, ao mais negro pessimismo: "existes efemeramente, constris sem esperana e sem objetivo, lutas sem sentido nem direo, vives para morrer!" Contra to cru e amargo pessimismo filosfico, s o ensino e a idia da doutrina palingensica podem subsistir, devolvendo ao homem seu amanh e substituindo a viso do nada pela da imortalidade e progresso. Assim, afianava Geley, "tudo se esclarece: as tumbas deixam de ser tumbas; so asilos passa geiros para o fim da jornada das iluses. E assim como se desvanece, pela idia palingensica, o carter fnebre da morte, tambm assim se derri o monumento de injustia edificado pelo evolucionismo clssico. J no h na evoluo sacrificados nem privilegiados. Todos os esforos individuais e coletivos, todos os sofrimentos e amarguras desembocaro na realizao da justia e na preparao do bem; mas o bem e a justia para todos, porque todos teremos contribudo para a justia e o bem." "O objetivo da evoluo conclua Geley a aquisio da conscincia, a passagem indefinida do inconsciente ao consciente; e por meio dessa passagem que se desenvolvem todas as potencialidades imanentes, configurando a realizao coletiva, na evoluo, da soberana Inteligncia, da soberana Justia e do soberano Bem!"(1) 14

2. O MARXISMO COMO DIALTICA E COMO MATERIALISMO


No nos teramos aventurado a esta breve e imperfeita incurso nas teorias do Dr. Geley cuja obra, para a melhor compreenso do que vos dissemos, recomendaramos procursseis conhecer em apoio de vossa erudio e conhecimento do Espiritismo em seu aspecto filosfico seno como introduo necessria nossa tentativa de demonstrar ser o Espiritismo a nica doutrina, de quantas se rotulam de espiritualistas, capaz de fazer frente ao materialismo dialtico, cujas conquistas no campo social, de irresistvel poder persuasivo, avanam e se sobrepem civilizao pseudocrist, mas que s o Espiritismo poder completar validamente, deslocando-as na consecuo de objetivos infinitamente mais amplos. Ora, nos dias que correm, o materialismo dialtico atinge suas culminncias , e as atinge porque a experincia tem evidenciado que seu mtodo de conhecimento se apresenta, ao menos at aqui , como o nico que pode determinar uma transformao social que propicie a ereo de um novo tipo de sociedade, apto a realizar um maior ndice de justia social pela propriedade coletiva dos meios de produo. Todavia, segundo seus princpios, o homem no mais uma entidade que conduz a marcha dos fenmenos sociais: uma simples mquina manobrada pelas foras exteriores. a matria que tem proeminncia sobre o esprito. "A matria disse Lnin a natureza, o ser, o fsico, o primrio; e o esprito, a conscincia, a sensao, o psquico, o secundrio". Toda a dialtica materialista parte desse pretendido predomnio da matria sobre o esprito, ficando este condicionado quela. 15

Ao contrrio, na dialtica de Hegel, o grande filsofo idealista alemo dos princpios do sculo XIX, os fenmenos materiais outra coisa no so que objetivaes da Idia, e o mundo subjetivo se desenvolve por uma lei de contradies que se opera atravs de uma tese, de uma anttese e de uma sntese. Em princpio, a filosofia hegeliana corresponde ao mesmo processo da filosofia palingensica do Espiritismo, conforme o prprio Geley admitiu expressamente. Com efeito, para Geley o Absoluto de Hegel chama-se dinamopsiquismo, o qual evolve do inconsciente ao consciente, de modo que o esprito absoluto do filsofo alemo e o dinamopsiquismo essencial do metapsiquista francs definem uma mesma entidade, e as trs fases da dialtica hegeliana (tese, anttese e sntese) correspondem, respectivamente, trilogia esprita do nascer, morrer e renascer. Sabe-se, por outro lado, que Karl Marx, seguido por Friedrich Engels, inverteu o sentido original da dialtica hegeliana, crendo com isso demonstrar que o mundo material que determina e condiciona a realidade espiritual. O marxismo ou antes, o materialismo dialtico comporta, pois, um duplo estudo: 1) como dialtica; e 2) como materialismo Estudado como dialtica, aproxima-se extraordinariamente do Espiritismo, em sua feio dialtica proposta por Geley, que conserva daquela os quatro grandes princpios fundamentais: 1) ao recproca e 2) da transformao incessante"; tudo se relaciona, ou "lei da da conexo universal"; tudo se transforma, ou "lei universal e do desenvolvimento 16

3) a mudana qualitativa; e 4) a luta dos contrrios,como fundamento e mvel de toda evoluo. Todavia, estudado como materialismo, j o marxismo se distancia erroneamente do Espiritismo dialtico, por isso que vem definido por duas caractersticas que repugna a este: 1) a materialidade do mundo; e 2) a matria anterior conscincia. Partindo da, pretende o marxismo formular uma concepo cientfica do mundo; mais ainda, a nica cientfica, isto , a nica que est conforme ao que ensinam as cincias. E, por conforme ao que ensinam as cincias, apresenta-se como uma viso total do homem e do mundo. Mas essa viso do mundo e do homem, em que pese a pretenso dos tericos do marxismo, est muito longe de ser total, e nisso consiste sua maior falha; est longe de ser total porque desconhece, ou finge ignorar, os progressos da Parapsicologia e, ipso facto, a realidade metapsquica do homem, que hoje no mais comporta dvidas. Efetivamente, ainda que os parapsiclogos modernos no reputem suficientemente provada a sobrevivncia individual, reconhecem que a mente transcende a matria, ou seja, transcende as limitaes do tempo e do espao, o que vale por um desmentido cabal da clssica afirmao de Engels, um dos filsofos do materialismo dialtico, de que "as formas essenciais de todo ser so o espao e o tempo, e um ser fora do tempo um absurdo to grande quanto um ser fora do espao". As mais recentes constataes da Parapsicologia rechaam, portanto, a concepo materialista do universo e revalidam a posio do Espiritismo, que encontra naquela sua sano

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perante a cincia de nossos dias.

a) Os Dogmas do Materialismo Dialtico


Um estudo despretensioso, qual o a que vimos procedendo, no comporta uma refutao completa dos dogmas do materialismo dialtico, que j se tornam insustentveis em face do avano da cincia metapsquica; e dissemos dogmas mas propositadamente, embora isso muito escandalize aos tericos do marxismo, porque afirmar, como questo de f, a materialidade do mundo, quando a Parapsicologia faz essa afirmao resultar assaz discutvel, uma atitude to dogmtica quanto a do Espiritualismo religioso clssico, que parte de verdades reveladas e estabelecidas a priori, s quais os fatos deveriam adaptar-se a posteriori . Vemo-nos assim forados a fugir, pela exigidade de tempo, atraente tarefa de refutao dos dogmas do materialismo dialtico, preferindo antes remeter-vos leitura de duas obras que executam essa tarefa de maneira completa e brilhante: "Espiritismo Dialtico", de Manuel S. Porteiro, e "Parapsicologa y Materialismo Histrico", de Humberto Mariotti, ambas publicadas por "Editorial Victor Hugo", de Buenos Aires.(2) Digamos apenas que os tericos do marxismo erram ao basear seu sistema na descontinuidade biopsquica, esquecidos de que a descontinuidade morfolgica no importa necessariamente a descontinuidade da vida. Em todo ser vivente (e pelo simples fato de ser tal), h um elemento substancial psicodinmico, que transcende a matria e as limitaes do espao e do tempo, como o demonstram as pesquisas parapsicolgicas; h um elemento substancial psicodinmico, que permanece essencialmente idntico a si 18

mesmo, apesar de sofrer modificaes e estar sujeito lei de evoluo e perfectibilidade. A evoluo no tem o poder de mudar a essencialidade das coisas; supe, ao contrrio, uma causalidade essencial, sem a qual no se concebe nenhum desenvolvimento progressivo. O movimento e o tempo no podem criar, por si ss, o que no existe: s evolve o que tem existncia potencialmente ou em desenvolvimento. No se passa do no-ser ao ser, nem da quantidade qualidade, seno em virtude de uma existncia e uma qualidade anlogas anteriores, de uma causalidade substancial que as compreende, desenvolve e modifica. No se pode conceber nenhuma transformao, nenhuma mudana morfolgica fundamental, sem uma causa essencial persistente, sem continuidade biopsquica, sem um elemento organizador e diretor da matria, que leve em si mesmo, potencialmente, as possibilidades de suas futuras metamorfoses. "Como pergunta o Dr. Geley o rptil, antepassado da ave, teria podido adaptar-se a um meio que no era o seu, nem poderia s-lo seno depois da passagem da forma-rptil forma-pssaro?" Sem dvida, tal mudana fundamental de forma no pode efetuar-se em funo da necessidade, porque o rptil no tinha necessidade de voar nem por acaso; porque o acaso no lograria operar o milagre de transformar um rptil em ave, nem muito menos porque a matria tivesse desejos de criar asas e voar. Esse fato reclama uma causa essencial, um poder psicodinmico que obre de acordo com um fim, uma continuidade biopsquica que condicione o organismo, ainda que fora de tentativas e erros, a nova forma de vida. " concepo da evoluo to somente pela ao dos fatores externos, o testemunho do inseto diz o Dr. Geley ope suas transformaes, suas metamorfoses formidveis

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e, por assim dizer, espontneas, dentro de uma crislida fechada, subtrada em grande parte ao dos fatores exteriores. concepo da evoluo contnua e ininterrupta por assimilao funcional, o testemunho do inseto ope suas alteraes progressivas e regressivas durante sua vida larval e ope, sobretudo na crislida, o incrvel fenmeno da histlise, reduzindo a maior parte de seus rgos a uma papa amorfa, antes das transformaes iminentes". O resultado desses fatos (e de muitos outros anlogos) que tais metamorfoses, necessrias morfologia do inseto perfeito, reclamam um princpio diretor, inaltervel e imanente, ou seja, a continuidade biopsquica, atravs das formas e qualidades passageiras. A causa essencial da evoluo no est, pois, na influncia do meio exterior, nem nas reaes da matria orgnica em presena dessa influncia, mesmo que o meio atue como fator secundrio ou como causa da transformao, mas num dinamismo psquico biocntrico, independente, superior e diretor da matria orgnica o princpio essencial da vida, que Leibnitz entreviu na concepo da "mnada" e Claude Bernard configurou na "idia diretriz": em ltima anlise, o princpio anmico, o elemento Esprito, que evolve indefinidamente do inconsciente ao consciente. A continuidade biopsquica no implica a continuidade morfolgica: as formas passam e desaparecem, mas a vida psquica permanece essencialmente a mesma; ela que se aperfeioa e evoluciona, dando progresso e perfeio relativos s formas que cria e desenvolve, e, quando estas chegam ao mximo de seu desenvolvimento, desaparecem ou se fundem em outras sob a ao psicodinmica do ser vivente, que as trabalha 20

para a realizao de um fim especfico ou que transcende o limite da espcie. As espcies, tanto quanto os indivduos, podem desaparecer e deixar nos fsseis os vestgios de sua existncia, mas a vida psquica que as animava persiste em outras espcies prximas, em outras individualidades, sem deixar de ser a mesma vida, o mesmo dinamopsiquismo, a mesma essncia. De maneira que, semelhana do materialismo dialtico, tambm o Espiritismo considera toda forma material em estado de movimento: na evoluo, tudo trnsito para lograr formas e qualidades novas, tudo est em perptuo vir a ser, sem ser nunca coisa perfeita, definitivamente acabada. Todavia, ao contrrio daquele, o Espiritismo dialtico supe o Universo material e todas as formas dos seres objetivos, animados de um dinamismo biopsquico que no se altera em sua essncia. O que muda e se transforma continuamente so as formas e qualidades, no a essncia ntima das coisas. Como? perguntar o materialista, para quem o esprito e seus atributos outra coisa no so alm do resultado da fisiologia cerebral. Como? Pode existir alma, esprito, conscincia e t c . , sem sujeito, isto , sem crebro? Os espritas afirmamos que sim, e os fatos nos do razo. So numerosos, nos anais mdicos, os casos de indivduos que viveram e pensaram, por longo tempo, com o crebro feito papa, seccionado no bulbo ou convertido em tumor ou gua, fatos que desmentem a mitologia das localizaes cerebrais absolutas. O crebro, portanto, no cria coisa alguma; mero instrumento de manifestao de um princpio que o dirige e ultrapassa. A matria, em suas mltiplas e variadas formas vitais, no criao, porm manifestao de vida. E a vida psquica insufla todos os seres viventes e se manifesta de diversos modos 21

e em diferentes graus de desenvolvimento. Nada , pois, absolutamente descontnuo na evoluo da vida em si: s a aparncia das formas materiais transitrias pode sugerir tal descontinuidade. Ao contrrio, tudo se encadeia e tende para a unidade, numa aspirao teleolgica constantemente renovada pelo poder psicodinmico do esprito, que evolve infinitamente.

b) A Economia como Fator Essencial do Determinismo Histrico


O materialismo dialtico, negando a continuidade biopsquica, nega conseqentemente a finalidade da vida e incide no mesmo erro do existencialismo ateu: o homem resulta um ser criado para a morte e o nada, conseqncia lgica de suas premissas e que muito lhe amesquinha a pretendida viso total do homem e do mundo. Mas onde essa viso se torna claramente insuficiente quando se pe a examinar a histria, cuja fora motriz o marxismo concentra exclusivamente no fator econmico. Para Marx e Engels, a histria da humanidade a histria da luta de classes, a qual repousa na base econmica da sociedade e no na conscincia dos indivduos, como se, suprimindo-se a conscincia dos indivduos, pudesse haver luta de classes... De acordo com esse conceito, a humanidade no se move essencialmente seno por necessidades materiais, dependendo destas as necessidades de ordem espiritual, e no persegue nenhuma finalidade: o fator essencial da evoluo humana no radica no homem, em nenhum princpio de justia inerente a sua natureza psquica, no est na causalidade eficiente e teleolgica (o esprito), que leva em si mesma o poder virtual de modificar 22

sua existncia e aperfeio-la, condicionando os meios a seus fins, a suas necessidades materiais e espirituais, ou adaptando-se s condies naturais e do meio social j estabelecidas, com a tendncia ou predisposiopara melhor-las. Na conceituao marxista, o fator essencial do determinismo histrico a economia: o modo de produo material de uma poca determina o modo de pensar dessa mesma poca. A economia e a infra-estrutura de toda sociedade: cincia, filosofia, religio, moral, ideologia so a super-estrutura, o reflexo da economia, seus epifenmenos, seus derivados. Segundo esse determinismo materialista da histria, o material condiciona e determina o espiritual, a sociedade determina e condiciona o indivduo, e este no mais do que um produto da sociedade, como o esprito um mero produto da matria. O materialismo histrico se apresenta, assim, ainda que a isso reajam os tericos do marxismo, como um determinismo fatalista, cuja fora motriz o fator econmico: nele, o cego (a matria) comanda o que v (o esprito); o acaso supre a conscincia e a inteligncia, o poder psicodinmico teleolgico das foras revolucionrias individuais e coletivas. E determinismo fatalista porque os prprios tericos do marxismo o fazem ressaltar inconscientemente como tal, seja Lafargue, quando diz que as foras econmicas da produo capitalista arrastam fatalmente a sociedade ao socialismo; seja Marx, quando sustenta que, no conflito dos interesses sociais, as vontades e os propsitos pessoais se entrechocam e se anulam, e o que resulta aquilo que ningum quis nem desejou; seja finalmente Engels, quando coloca a causa essencial e determinante do progresso "atrs" e fora do homem, impulsionando-o ao acaso. Determinismo fatalista, sim, porque obedece cega 23

necessidade, a qual, por ser cega (como o acaso), to anticientfica quanto este e no sabe para onde vai nem porque vai; determinismo fatalista, em contraposio s aspiraes teleolgicas do Espiritualismo religioso clssico, que tambm, por lgica, determinista e que diga-se de passagem embora irracional, tem ao menos a vantagem de saber aonde vai e o que quer...

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3. O CONCEITO DINAMOGENTICO DA HISTRIA SEGUNDO O ESPIRITISMO DIALTICO


O marxismo ou antes, o materialismo histrico queiram ou no seus tericos, oferece-nos uma viso apenas parcial e insuficiente da histria. Bem mais amplo , entretanto, o conceito dinamogentico da histria que nos prope o Espiritismo dialtico: tanto quanto no Universo, tambm na histria tudo se move e se transforma em constante renovao, nada permanente e igual a si mesmo em dois momentos histricos diversos, mas tudo vem a ser, mudando perpetuamente de lugar e de tempo, de quantidade e de qualidade; a histria no se repete e no se detm, nem h nela dois fatos idnticos ou que possam ser transplantados a diferentes meios e pocas com idnticos resultados; tudo se modifica sem cessar, sob a ao da lei dos contrrios (fundamento, mvel e razo de ser de toda evolu o), pois que, sem a luta de dois princpios aparentemente antagnicos, mas que se complementam e se solidarizam na consecuo de um nico objetivo, no se pode conceber a evoluo, seno a inrcia, o eterno repouso. Tudo, pois, se renova continuamente, tanto nos indivduos como nos povos, no material e no espiritual, elevando-se de umas formas a outras mais perfeitas, de um progresso a outro progresso maior, que resume os progressos anteriores, e de uma civilizao a outra mais pujante, que representa a sntese de dois regimes antagnicos a se fundirem num terceiro, distinto de ambos e que marca um novo ciclo na histria da humanidade. Todavia, esse movimento progressivo incessante no se realiza mecanicamente, nem tao s em funo dos fatores materiais, que so causas concorrentes, mas no a causa essencial da evoluo. O homem no um veculo que a necessidade empurre por detrs e ao acaso, como 25

pretendem os mestres do materialismo histrico, porm leva em si mesmo a fora motriz e diretora de suas decises, capaz de dominar as foras materiais da histria, de reagir contra o meio, contra a estrutura econmico-social, e traar novos rumos sociedade. De modo que, tanto quanto o materialismo histrico, o Espiritismo considera os fenmenos histricos em seu movimento causal, encadeando-se harmonicamente uns aos outros; contudo, por motivos de ordem cientfica e filosfica, evidenciados nos fenmenos biolgicos e psquicos, repele a causalidade cega a impulsionar a evoluo ao acaso. Se h progresso no desenvolvimento da humanidade, esse progresso deve obedecer necessariamente a uma lei lei de ordem forosamente intelectual em virtude da qual os fenmenos histricos se encaminham a um fim cada vez mais elevado; e esse fim, indefinido, reclama tambm necessariamente uma direo. Pois, se no existira progresso nem finalidade, nem conseqentemente direo, o mecanicismo, o fatalismo histrico se imporia iniludivelmente, e os tericos do marxismo no negam o progresso, antes o desejam e o apontam na construo do comunismo. Ora, porque o progresso evidente, a sociedade no um simples mecanismo, nem os homens so meras engrenagens que se movem, cegamente, ao impulso de foras exteriores. Ao contrrio, a sociedade tambm um dinamopsiquismo, que pe em movimento os elementos da vida material e ao qual cada indivduo vem somar sua cota de esforo ao progresso adquirido, com a contribuio de sua vontade e sua inteligncia, com suas idias, seus sentimentos e aes. No h, certo, na sociedade humana, uma finalidade de conjunto, nem poder haver 26

enquanto os interesses e as aspiraes no sejam comuns. que a direo da sociedade no depende da prpria sociedade em seu todo, mas dos indivduos e coletividades cujas ideologias revolucionrias marcham na vanguarda do progresso moral e social, terminando por impor-se conscincia dos povos. So as tendncias particulares individuais e, por afinidade, tambm coletivas as que, triunfando das tendncias gerais e, por isso mesmo, conservadoras, traam direo sociedade; e quando essas tendncias particulares se generalizam e vencem as contradies do processo social, tornando-se por sua vez conservadoras, outras tendncias intrpretes de novas necessidades tanto materiais quanto espirituais e com uma viso mais avanada do progresso nascem em seu seio e imprimem novo rumo sociedade. E assim, de ciclo em ciclo, a humanidade se eleva de umas formas a outras cada vez mais perfeitas, de um progresso a outro maior, de uma civilizao a outra civilizao. Na marcha da humanidade, desde seu alvorecer at o presente, houve relaes, encadeamentos, influncias e determinismo, porm no houve coordenao universal de propsitos para atingir um fim social comum, conscientemente deliberado pela totalidade de seus membros. A viso desse fim individual e, por afinidade ideolgica, coletiva e se deve aos indivduos moral e intelectualmente mais capacitados, cujo poder de intuio f-los superar os horizontes alcanados pela maioria. Portanto, se h um determinismo histrico e os espritas o reconhecemos desde Allan Kardec (leia-se o captulo final de "A Gnese") esse determinismo no vai ao ponto de anular o livre-arbtrio, nem sequer est absolutamente condicionado ao fator econmico, que apenas um dos muitos fatores, 27

de natureza material e espiritual, que intervm no processo da histria (especial e essencialmente, o fator-homem, sem o qual no h economia social), cabendo aos indivduos que persigam ideais de emancipao econmica e social, conseguintemente, confiar mais em suas foras espirituais, em seu valor moral, em suas idias, do que no cego determinismo econmico que, por isso mesmo que cego, reclama direo e finalidade . O marxismo, encarando a histria do ponto de vista objetivo e o Universo por via das cincias empricas e experimentais, alm de alhear-se s concluses da Parapsicologia, que o sucedeu no desenvolvimento cientfico da humanidade, no descobre seno fatos, causas fenomenolgicas e relaes causais, mas a lei geral e complexa, a causalidade essencial do Universo e da histria lhe escapa. O mundo fenomenal no se explica por si mesmo. Para ter conhecimento cabal das coisas em particular e do Universo em geral, h que remontar do fenmeno ao princpio substancial, do visvel ao invisvel, da forma idia, da matria ao esprito, desentranhando a lei que rege e unifica o verdadeiro conceito gnoseolgico tanto da histria como do Universo. Quando considerem a histria da humanidade como a continuidade de um processo biolgico e histrico, evolvendo atravs de formas de vida e de sociedade enlaadas em suas relaes causais e transmudando em formas superiores e cada vez mais perfeitas, e ao mesmo tempo como um processo espiritual, atravs de sucessivas existncias encarnadas nas formas biolgicas, mas encadeada a causalidade esprita dessas existncias no determinismo histrico, ento os historiadores tero principiado a conhecer as verdadeiras razes da histria.

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a) A Interpretao Homem-Sociedade
Se, para o materialismo econmico, as geraes que se sucedem no desenvolvimento histrico so estranhas e desvinculadas umas das outras, vindo do p para ao p retornar, j o Espiritismo afirma, com base nos fenmenos metapsquicos, que o homem no somente um produto fisiolgico a desenvolver-se em determinado meio geogrfico e social, limitada sua trajetria ao curto perodo que separa o bero da tumba, mas sobretudo um esprito imortal, que transcende os limites da existncia terrena; preexiste ao nascimento do corpo e sobrevive a sua destruio. A evoluo do esprito se processa infinitamente, em existncias sucessivas, atravs do tempo e do espao, do que resulta que cada esprito humano, no conceito reencarnacionista, tenha seu determinismo prprio, sua causalidade psquica e moral, seu prprio processo evolutivo; porm todos esses processos individuais se encadeiam uns aos outros e se renovam sem cessar, seguindo ao mesmo tempo o determinismo da histria. Assim, nessa incessante renovao da humanidade e de seus valores morais e intelectuais, cada ser que volta ao mundo engrena sua prpria causalidade no determinismo histrico; e do conjunto de todas as sries causais se forma um determinismo mais amplo, que solidariza o mundo espiritual com a humanidade corprea em perptua e reconfortante interpenetrao. Matria e esprito, sociedade e indivduo, meio e homem reagem reciprocamente um sobre o outro, complementando-se na consecuo de um nico objetivo: a evoluo universal. Tanto o meio age sobre o indivduo quanto este age sobre aquele: uma vez no plano terrestre, o esprito fica no 29

apenas vinculado matria e sujeito a suas leis e necessidades, como ainda ao determinismo da histria, dentro do qual deve evoluir e desenvolver o curso de sua existncia; todavia, o determinismo histrico depende, por sua vez, da direo que lhe tracem as novas influncias individuais, que sero tanto mais benfazejas humanidade quanto mais evolvidos intelectual e moralmente sejam os indivduos e mais empreendedora a atividade que exercitem nessa direo. Em sntese, o Espiritismo dialtico conclui que, se a estrutura poltico-econmica da sociedade, o meio social, a educao etc. exercem poderosa influncia sobre os seres que se engrenam no desenvolvimento histrico, com vistas a um fim inconscientemente previsto e desejado, mas s gradativamente cognoscvel e realizvel, esses mesmos seres, por sua vez, com sua influncia pessoal e tambm coletiva, transformam, constantemente ou de sbito, a estrutura poltico-econmica da sociedade, o meio e a educao, e dirigem o determinismo histrico quele fim, sempre perfectvel, por meios cada vez mais justos e elevados. E assim que, conciliando o determinismo histrico com a lei de causalidade esprita (karma), o Espiritismo define sua ideologia prpria, que se distancia a um s tempo do individualismo histrico de Emerson e do fatalismo histrico de Santo Agostinho, que no nem o puro idealismo de Hegel, com o qual se identifica parcialmente, nem o materialismo absoluto de Marx e Engels, cujas verdades parciais lhe aproveitam, mas configura a sntese maior do conhecimento humano, lanando nova luz sobre a grande questo do nosso sculo: o avano irrefragvel do socialismo, com uma escatologia fascinante e de forte apelo humanista, que ameaa destruir o imobilismo espiritualista.

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4. A FALNCIA DO ESPIRITUALISMO RELIGIOSO CLSSICO


Por divorciada da realidade social de nossos dias, sente-se o esvaziamento progressivo e alarmante da f religiosa, o que bem reflete a insuficincia dos credos tradicionais para responder s nsias libertrias do homem hodierno. Por isso mesmo, tericos religiosos das mais variadas confisses eclesisticas combatem ferrenhamente o marxismo, fazendo-o todavia mais no interesse de um "partidismo de igreja", como diz o Dr. Humberto Mariotti, do que no interesse universal da humanidade. Os credos da atualidade, misonestas quando no retrgrados, lutam pela manuteno do status quo e na defesa de seus privilgios milenares, mas esto inabilitados a enfrentar o marxismo numa discusso filosfico-cientfica, porquanto se baseiam em verdades reveladas, impostas pela f cega e que no admitem qualquer discusso. Atacar sistemas partidariamente, fugindo discusso e apenas por temer a morte numa tentativa desenfreada de sobrevivncia s realidades novas, atitude irracional e anticientfica. Ora, o espiritualismo religioso clssico sustenta a existncia do esprito, mas no a prova nem a pode provar, a menos que se disponha a aceitar a cincia esprita como base de suas afirmaes, coisa que dificilmente far, por intransigente na salvaguarda de seus dogmas; mas, se a existncia do esprito uma irrealidade, todo o sistema religioso dominante resulta comprometido e carunchado, garantindo a vitria do materialismo e, conseqentemente, do marxismo. Enquanto isso, a ideologia marxista se fundamenta na cincia experimental, de que faz 31

derivar suas concluses materialistas, referentes origem da vida, e unicamente uma contraprova cientfica poderia obrig-la a mudar de orientao. Sim, porque, se o marxismo repele a espiritualidade do mundo e da histria, no o faz por dio a essa idia, mas simplesmente porque nem a Igreja nem o idealismo lhe fornecem a prova experimental da realidade espiritual do homem e tambm, foroso reconhecer, porque identificou, com boa dose de razo, a ideologia espiritualista submisso econmica e social do homem aos regimes reacionrios e conservadores, dos quais ela tem sido o sustentculo, mantendo a conscincia social imersa na ignorncia e na superstio, no fanatismo, e jamais favorecendo a liberdade e o direito das classes desprotegidas. Em verdade, s o Espiritismo capaz de forjar um realismo espiritual que suplante o realismo marxista, opondo fatos a fatos e demonstrando, atravs dos fatos, que o metafsico existe e uma realidade. E, quando a pugna se resume a uma luta entre o esprito e a matria, o Espiritismo no pode nem deve calar-se: cabe-lhe intervir na discusso e provar a insuficincia do marxismo como viso total do homem e do mundo.

a) A Razo de Ser do Homem de Marx

Entretanto, lembra com propriedade o Dr. Humberto Mariotti, o homem de Marx, embora concebido como um mero composto fsico-qumico, como um organismo material governado e conduzido pelos modos de produo, revela-se j melhor do que o "homem velho", dependente da explorao 32

capitalista e forado a vender sua fora de trabalho como mercadoria. O homem de Marx, teoricamente, um ser liberado da explorao econmica, mas cumpre se lhe aditem as virtudes de que ainda carece: um homem insuficiente, porque sem perspectivas metafsicas e amesquinhado em suas dimenses espirituais, incapaz de satisfazer o anelo de imortalidade que o esprito humano alimenta em suas entranhas. Marx exigiu mais desse homem do que lhe podia ofertar: esqueceu que um homem chamado a promover a transformao do velho mundo e convulsionar a sociedade decadente, a construir o mundo do futuro, no devia morrer. O homem de Marx, que termina na morte e no nada depois de se haver sacrificado pela ereo de uma civilizao mais humana e mais justa, no tem quaisquer vinculaes palingensicas com o processo histrico: nasce e morre desconhecendo o sentido da luta e a finalidade de sua existncia. O desejo de emancipar o homem da escravido econmica, a fim de al-lo condio de cidado livre e enobrecido pela nova tica do trabalho, levou Marx a bosquejar um homem sem implicaes com o espiritual e o eterno. Crendo que o esprito representava um entrave para o advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filsofo idealista quanto o religioso sufocavam as reivindicaes dos oprimidos ao falar-lhes de uma hipottica felicidade ultraterrena, com o que legitimavam a indiferena e o egosmo dos opressores, o autor de "O Capital" preferiu matar o homem espiritual e suas poticas esperanas de recompensa no mais alm, atendo-se to somente realidade das coisas objetivas, e concebeu um homem material, cujo destino no ultrapassa sua morte fsica. Marx acreditava que a verdade jamais submete o homem, antes o eleva e melhora suas condies de vida social, e sentiu que o tipo de verdade espiritual que pregavam os tericos do cristianismo, pelo menos at meados do 33

sculo XIX, era o que convinha exaltao dos potentados sobre as agruras dos humildes. Rechaou, portanto, essa verdade espiritual sancionada pela estrutura social vigente e chegou concluso de que a nica realidade se encontra no mundo fsico e na vida material do homem, sustentando que a cincia e a verdade libertam o indivduo e que toda idia religiosa, tendente a sujeit-lo com vs promessas ps-mortais, uma falsa verdade, ou um argumento das foras reacionrias para deter o advento da justia social e da democracia. Todavia, se o homem de Marx assim justificado um erro em seu aspecto espiritual, no obstante uma verdade em sua face social: o gnio de Marx demonstrou a inteligncia humana que o socialismo, ou o regime da propriedade coletiva dos meios de produo, o que melhor atende aos anseios de liberdade e justia da nova humanidade.

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5. A CONCILIAO DO SOCIALISMO COM A REALIDADE ESPIRITUAL a) Materialismo e Socialismo


Karl Marx, ao erigir o socialismo que ele classificou de cientfico em contraposio ao socialismo utpico de seus precursores, julgou ser irreconcilivel o socialismo com a realidade espiritual do homem; contudo, ao contrrio do que ele sups, o materialismo no de modo algum essencial nem ao socialismo e nem cincia, e mesmo uma lstima que a palavra socialismo esteja hoje comprometida com a ideologia marxista como um todo, pois que a comunidade de bens, ou propriedade coletiva, antes que ao marxismo pertence, como sistema social, ao primitivo cristianismo. Marx e Engels criaram o socialismo cientfico sobre os alicerces da cincia de sua poca; por isso, suas teorias assumiram uma forma necessariamente materialista. Aplicando-se unicamente considerao do mundo material, que apenas um dos aspectos da realidade, a cincia do sculo XIX foi materialista e, alm de materialista, foi tambm dogmtica, como dogmtico o marxismo. Hoje, porm, a cincia enfrenta problemas e enigmas antes insuspeitados e que a foram a abandonar sua crena acentuadamente materialista: a tcnica moderna ps o homem em contacto com aspectos novos da realidade e, em face da Fsica quntica e da teoria da relatividade, at o conceito clssico de matria perde seu sentido e sua razo de ser; a Medicina agora psicossomtica; tanto a Biologia quanto a Psicologia tiveram de se defrontar com a realidade da psique, que se expressa alm da conduta e dos processos fisiolgicos; e a Parapsicologia, provando que a mente transcende 35

a matria e independe de suas leis, est a um passo de admitir, por decorrncia lgica de suas premissas, a sobrevivncia do psquico ao material. Despojada assim do dogma do materialismo absoluto, a cincia moderna deslegitima o marxismo como base nica e indiscutvel para o socialismo. Falar hoje em socialismo correr o risco de ser apressadamente rotulado de comunista e ateu; mas lentamente se esboa a possibilidade de conceber-se uma soluo socialista diversa da proposta por Karl Marx. Albert Einstein, que nunca deixou de ser profundamente desta e espiritualista, admitiu expressamente essa possibilidade e reconheceu como inevitvel a marcha da humanidade para o socialismo, em sua busca incansvel de justia e eqidade para todos.(3) De Einstein para c, o que se tem observado a adeso entusistica das elites intelectuais de todo o mundo aos fins preconizados pelo socialismo, e j deixa de ser temeridade que nos afirmemos tambm socialista. Somos, sim, socialista, como socialistas tm sido Leo Tolsti, Madame Curie, Gabriela Mistral, Albert Einstein e Helen Keller; somos, sim, socialista, mas estamos procurando conceituar o socialismo sobre bases nitidamente espritas, seguindo as pegadas pioneiras de Porteiro e Mariotti.

b) Socialismo e Espiritismo
Ora, se a prpria Igreja tem agora sua doutrina social, fundamentada em dois de seus maiores papas Leo XIII e Joo XXIII, homens de aprecivel viso e invejvel equilbrio por que no a teria o Espiritismo? Se Frei Carlos Josaphat, semelhana de um Abb Pierre 36

e de um Padre Lebret, no se acovarda ante a questo social e a encara objetivamente em seu livro "Evangelho e Revoluo Social", encarnando o prprio ideal da revoluo no seio do povo brasileiro, no vos parece estranho que os espritas nos omitamos e permaneamos alheios a ela? No sentis que o Espiritismo, longe de ser o "pio do povo", deve assumir a defesa e a vanguarda dos ideais de justia e renovao? No percebestes que o Espiritismo, dialeticamente considerado, no apenas supera o marxismo, seno ainda se insinua como a base natural de um socialismo mais autntico? que s o Espiritismo nos d uma viso total do homem e do mundo? que, se o homem de Marx uma verdade parcial, o homem de Kardec pode ser uma realidade integral, afirmando-se progressivamente em sua face espiritual e em seu aspecto social? que o homem de Marx tem uma s perna e o de Kardec bpede e completo? No vos parece que, aferrando-nos os espritas manuteno do "status quo" e de todo um sistema poltico-econmico condenado extino por suas prprias contradies internas e pela injustia que o caracteriza, estaremos tambm condenando o Espiritismo a morrer em meio a derrocada do carunchoso arcabouo da civilizao do dinheiro, da concorrncia inqua, da desigualdade econmica, da corrupo e do esprito possessivo? No vos escandaliza constatar que o materialismo encampa os reclamos dos pobres e deserdados, prometendo-lhes a paz e a justia, enquanto os espritas nos opomos ao progresso social, marcha natural da histria e tememos denunciar os males de um regime inteiramente assentado na exacerbao do egosmo? No paradoxal que os espritas que pregamos a evoluo como medida comum dos indivduos e dos povos, dos mundos e das constelaes nos 37

cheguemos nau que j quase aderna, sob o pretexto de que tudo est bem e deve permanecer como est, porque tal a vontade de Deus, esquecidos de que Deus nos criou para o perptuo evolver e chamou-nos a compartir a construo geral do progresso? No paradoxal nossa reao fora evolutiva da histria? Lembremo-nos de que o Espiritismo no mais um subproduto da sociedade materialista e burguesa, nem se concebe que lhe assuma a inglria defesa; antes a condenao cabal do materialismo burgus e religioso, que corrompe e avilta, amesquinha e insensibiliza o homem, tornando-o mais egosta e mais voraz na nsia da posse e na ambio sem limites. Debalde se objetara que a desigualdade social e econmica inarredvel porque a lei de causalidade esprita prescreva que haja para sempre ricos e pobres, pois, se assim fora, teramos de sustentar que tambm haver para sempre bons e maus na humanidade, concluso que repugna ao evolucionismo esprita; tanto mais que a histria nos ensina que as classes favorecidas foram sempre minoria perante as multides esfaimadas e oprimidas, sendo de perguntar onde haveria tanto esprito de mau rico para animar tanto corpo desnutrido e pobreto... A reencarnao ou lei palingensica no justificar jamais, por si s, os desnveis sociais, porquanto a lei de causalidade esprita no determina as formas de sociedade; ao destino individual falta fora histrica para estabelecer um regime social baseado no sistema de propriedade privada. As condies sociais e econmicas so meramente circunstanciais para o esprito e de modo algum indispensveis a sua evoluo moral, num grau superior dessa mesma evoluo. A lei de renascimentos origina destinos individuais, mas no pode, sozinha, engendrar regimes scio-polticos; 38

tivesse ela esse poder, seramos forados a aceitar a perpetuidade do sistema capitalista de vida, o que desfaz toda possibilidade de progresso e encarcera a humanidade toda num crculo vicioso, em que o plebeu de ontem o nobre de anteontem e o proletrio de hoje o capitalista de ontem, e assim indefinidamente. Nem vlido objetar que o Espiritismo no pode ocupar-se de assuntos poltico-sociais por no ser deste mundo o Reino do Cristo. Demonstraria fraco entendimento da filosofia crist quem nela pretendesse ver um instrumento de acomodao e conformismo, quando configurando um caminho para a paz e a construo do Reino de Deus entre os homens ela, acima de tudo, um brado de libertao e de luta, pois que no haver paz enquanto houver injustia. A interpretao individualista do Evangelho atitude que agrada e convm aos credos tradicionalistas, porm no ao Espiritismo, que lhe ressalta a dimenso social, afirmando que o Evangelho deve ser o patrimnio comum do povo. E, depois, ai de ns espritas se no nos decidirmos por fundamentar uma sociologia de inspirao esprita sobre os fenmenos da coletividade! Seremos ento relegados margem do progresso social, como uma esdrxula religio de alienados e fanticos, sem contedo filosfico nem estruturao cientfica... O Espiritismo tem de ser tambm sociolgico, sob pena de desfigurar-se e fugir ao prprio pensamento kardecista, que lhe constitui o ncleo (4). Se fordes ao captulo final de "A Gnese" ("So Chegados os Tempos"), l encontrareis dezenas de afirmaes que bem assinalam o papel reservado ao Espiritismo na construo de uma nova humanidade. Seria bom e proveitoso que os espritas nos compenetrssemos da grandeza desse papel, principiando por aceitar 39

o socialismo como uma aspirao tica, cientfica e filosfica, enraizada na conscincia das almas evolvidas que clamam por justia e fraternidade, e no como um fenmeno exclusivamente poltico, se bem que seu advento pela ao meramente poltica e social, liberando o homem da moral capitalista, resulte uma etapa til para o progresso do gnero humano, porquanto a revoluo social do socialismo dever ser complementada pela revoluo espiritual e definitiva do Espiritismo. E o socialismo, enfim espiritualizado pelo ideal esprita, ser a grande fora histrica que nos h de levar realizao individual e coletiva dos postulados cristos. O cristianismo, como Frei Carlos Josaphat admite e propala, a negao peremptria do sistema capitalista; e no s deparareis, no Evangelho, numerosos versculos que legitimam o regime de propriedade coletiva, como ainda ficareis sabedores, nos Atos dos Apstolos, de que os primitivos cristos viviam em comunidade de bens. Tambm no podereis alegar que a Doutrina dos Espritos repele o instituto da propriedade coletiva dos meios de produo, pois, se certo que Allan Kardec, em comentrio pergunta n 882 de "O Livro dos Espritos", assevera que a propriedade um direito natural, to sagrado quanto o de trabalhar e de viver, tem o cuidado de esclarecer que se trata da propriedade que resulta do trabalho, e os Espritos, em resposta questo n 884, que deve ser cotejada com a de nmero 808, definem que "propriedade legtima s a que foi adquirida sem prejuzo de outrem", o que dificilmente acontece num regime em que os meios de produo so suscetveis de apropriao particular. E ainda mais enftica a resposta dos Espritos pergunta n 885: " fora de dvida que tudo o que legitimamente se adquire constitui uma propriedade. 40

Mas, como havemos dito, a legislao dos homens, porque imperfeita, consagra muitos direitos convencionais, que a lei de justia reprova. Essa a razo por que eles reformam suas leis, medida que o progresso se efetua e que melhor compreendem a justia. O que num sculo parece perfeito afigura-se brbaro no sculo seguinte". Da mesma forma, infundada a alegao de que a igualdade entre os homens impossvel e que, por isso, o socialismo impraticvel. Desconhece absolutamente o socialismo quem o suponha igualitarista: o socialismo no apenas reconhece a desigualdade, como ainda no pretende eliminar ou ignorar as disparidades que so da natureza humana, ou diramos ns que so inerentes ao grau evolutivo e necessidade crmica de cada um; a desigualdade que ele se prope corrigir aquela criada pelo regime social, sobreposta e acrescentada desigualdade natural e biolgica, quando no psquica e espiritual. Como ltimo argumento, recorremos autoridade do prprio Cristo, servindo-nos da narrativa do Evangelho Segundo So Mateus (captulo 19, versculos 21 e 22): "E disse o Mestre" ao moo rico que quisera saber como possuir a vida eterna: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e d-o aos pobres e ters um tesouro nos cus; e vem e segue-me. E o mancebo rico, ouvindo essas palavras, retirou-se triste, porque possua muitas propriedades".

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6. PELA VIVNCIA SOCIAL DA DOUTRINA ESPRITA

Com tudo o que dissemos, pudemos ofertar-vos farto material para estudo e cremos haver estimulado vossa nsia de saber. Meditai no que ouvistes e no vos furteis ao dever da pesquisa. Lde, estai informados: no vos acomodeis nem receeis conhecer e cotejar as diversas solues sociais que se desenham no mundo, erigindo novas sociedades na sia, na frica e na Amrica Latina. Encarai as conquistas do materialismo histrico no campo social como realidade que se no mais pode negar: dispondes de imensa bibliografia, apta a vos esclarecer o que verdadeiramente acontece nos atuais pases socialistas. No temais constatar at que ponto aquelas comunidades ho resolvido a problemtica social e onde tero falhado: a negao a priori atitude adversa ao estudioso esprita, que tem de ser livre para estudar, discutir e comparar, ou no saber julgar com preciso e honestidade. Entretanto, convm submetais ao crivo da razo as coordenadas que vos trouxemos; no vos disponhais a acat-las sem antes bem ponderar nossos argumentos. Nossa doutrina desconhece chefes espirituais, e no sereis espritas se nos tomsseis conta de condutor. No queremos conduzir nem comandar; ao contrrio, muito nos doeria saber-vos a apoiar nossas idias pelo simples fato de provirem de um suposto poder, pois que, tanto quanto vs , apenas buscamos aprender e corrigir-nos, conhecer e aprimorar-nos. Conclamamo-vos , isto sim, a que estudeis conosco e juntos construamos a doutrina social dos espritas: o "socialismo com Jesus", segundo

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a feliz expresso de Emmanuel na obra que leva seu nome; enfim, o socialismo cristo, que h de florescer no Brasil. E isso acontecer, no porque o Brasil seja efetivamente "Corao do Mundo e Ptria do Evangelho", na potica imagem de Humberto de Campos; a prpria observao da marcha dos acontecimentos que nos induz a intui-lo. Ora, se em nenhuma outra nao o Espiritismo fez to grande nmero de adeptos e em parte alguma os espritas realizamos tanto quanto aqui, por que no imprimiramos ao rumo da histria, a partir do Brasil, um cunho novo e autenticamente esprita? Nossa opinio macia e nossa constante identificao com o bem no pesaro porventura sobre a direo dos fatos? Se tal no se der, porque no teremos sido fiis depositrios da Terceira Revelao, ou no a teremos sabido mobilizar a servio de nossa reforma interior e da renovao do meio em que vivemos.

Lde "A Nova Gerao" de Kardec, em "A Gnese", e compreendereis que no vos pregamos diatribes, fantasias ou imposturas. A renovao social iminente, e ns somos ou podemos ser co-instrumentos dessa renovao; ns somos ou devramos ser a nova gerao. Como, porm, intentar uma transformao eficaz no campo fecundo das relaes humanas, se ainda no aprendemos a renovar-nos a ns prprios ou a renovar o meio esprita que tibiamente integramos? Como construir a paz e a fraternidade no mundo, ou o Reino de Deus entre os homens, se ainda no conseguimos entender-nos dentro de nossas fronteiras ideolgicas? Como pretender a semeao da unio e da concrdia universais, se a ciznia e a discrdia minam nossa fortaleza e nos fazem desconfiar uns dos outros? H mister atendamos, primeiro que tudo, ao 43

imperativo da unio. Por que no procuramos estimular os laos que nos unem e destruir os motivos que nos separam? Por que no nos unimos num objetivo nico, j que temos aderido mesma filosofia de vida? Quando lanamos nosso controvertido artigo "Palavra aos Jovens Espritas do Brasil" pelas colunas de "Mundo Esprita", no aspirvamos a outra coisa que no unir: no fomos l muito feliz em nosso intento e demos origem a um escndalo ainda maior. Choveram pedras e apupos sobre ns, mas tambm certo que muitos foram capazes de perceber a sinceridade de nossa exortao. De qualquer modo, penitenciamo-nos do mal que tenhamos causado, porm reafirmamos que nosso propsito maior a unio dos espritas: unio real, fraterna, objetiva e eficiente. E nosso apelo se dirige principalmente aos jovens, no porque pretendamos um movimento de separao ou rebeldia contra os menos jovens, de cuja experincia no podemos nem devemos prescindir, seno porque nossos maiores, aureolados pelo cumprimento do dever, j se avizinham do termo da jornada e so os jovens que, dentro em breve, assumiro a responsabilidade de nortear os destinos da Doutrina Esprita neste pas. Para ns, jovens, as desinteligncias e os dissdios, as divergncias doutrinrias e os velhos antagonismos, que por mais de uma vez tm abalado nossa cidadela e comprometido nossa unidade, no nos dizem coisa alguma: no lhes demos causa nem queremos herd-los, seno superar todas as antigas divergncias, a ver se no repetimos o mesmo erro de quem nos precedeu. Unamo-nos, pois, estudando juntos e conservando o Espiritismo sempre uno e harmnico, sem lhe diminuir qualquer dos aspectos. Mantenhamo-lo indene da superstio e do fanatismo,

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do misticismo e da fantasia, por via do estudo metdico e progressivo, mas tambm a pretexto de preserv-lo contra as deturpaes que a ignorncia lhe aporta a todo instante, no nos cristalizemos na intransigncia e no misonesmo, nem muito menos convertamos nossa doutrina numa torre de Babel, sustentando pontos de vista meramente pessoais ou negando-nos a uma coordenao de propsitos. Sufoquemos o personalismo, que nos divide e incompatibiliza; exaltemos a solidariedade, que nos aproxima e reconforta.(5) Somos todos moos. Mas que ningum despreze nossa mocidade: queremos servir a Deus, ao homem, vida e sociedade. Sirvamos, portanto, que nosso estandarte foi desfraldado h mais de um sculo e outro no h que o substitua: "Fora da caridade no h salvao". Sirvamos e trabalhemos, imprimindo caridade esprita seu sentido real, o do amor posto a servio do bem comum, e roubando-lhe o carter aviltante de institucionalizao da esmola: promovamos a caridade-trabalho, a caridade-escola, a caridade-soerguimento, a caridade-respeito, a caridade-compreenso, a caridade-perdo, a caridade-amor (6). Aprendamos a descer ao charco para elevar plancie os que vtimas da opresso, do egosmo coletivo e da injustia social chafurdam na ignorncia, relegados margem da faina competitiva em que nos consumimos, desumanizados e indiferentes fome e misria que nos circundam a privilegiada existncia; atendamos aos analfabetos, aos famintos, aos mseros, aos nus, aos prias e aos deserdados, respirando-lhes o convvio nos prprios redutos do infortnio, amando-os intensamente e alevantando-os dignidade da condio humana, enquanto justificamos, no amor, nossa prpria condio de homens.

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Eduquemos. Construamos. Antecipemos o amanh, como vanguardeiros de uma nova civilizao, mais justa e mais equnime. Nossas armas nessa batalha gigantesca, que no de destruio dos fundamentos, seno de revitalizao das bases genuinamente humanas da sociedade terrestre, sero o esclarecimento, a renncia e sobretudo o exemplo (7). Pela fora do exemplo, Buda, Tolstoi e Gandhi assinalaram a histria e revolucionaram o mundo. E o maior exemplo foi e ser sempre o de Jesus, que desceu ao povo para faz-lo ascender. Desamos ento s massas, elevando-as pelo poder do amor, em vez de nos elevarmos delas pelo poder da ambio. Exemplifiquemos: multipliquemos os exemplos de renncia, de abnegao e desprendimento! A Comunho Esprita Crist de Curitiba, que fundamos e dirigimos em nossa cidade, pretende ser um desses exemplos. Ao contrrio do que insinuam nossos detratores, no um agrupamento de rebeldes ou um foco de subverso, nem tampouco um quisto religioso ou um movimento separatista a ameaar a ortodoxia espiritista: um centro esprita como outro qualquer, mas em que a mera rotulagem cedeu lugar vivncia e em que as palavras se fizeram atos, corporificadas em tarefas eficazes de educao, de trabalho, de promoo humana, de recuperao, de servio social e amor cristo; uma sociedade de jovens espritas, conscientes de sua misso de construtores do futuro; uma clula dinmica de Espiritismo social a servio do povo. Quanto fizemos l, dinamizemos todos os nossos ncleos de trabalho e nos estreitemos as mos: sejamos um s corao, uma s alma, um s pensamento, para servir, amar e construir! Que ento Deus nos abenoe. E, em Ele nos abenoando, dir-Lhe-emos assim: 46

"Senhor Deus, pai dos que choram, Dos tristes, dos oprimidos, Fortaleza dos vencidos, Consolo de toda dor, Embora a misria amarga Dos prantos de nosso erro, Deste mundo de desterro Clamamos por vosso amor. Nas aflies do caminho, Na noite mais tormentosa, Vossa fonte generosa o bem que no secar... Sois, em tudo, a luz eterna Da alegria e da bonana, Nossa porta de esperana Que nunca se fechar. Quando tudo nos despreza No mundo da iniqidade, Quando vem a tempestade Sobre as flores da iluso, Oh, Pai! sois a luz divina, O cntico da certeza, Vencendo toda aspereza, Vencendo toda aflio. No dia de nossa morte, No abandono ou no tormento, Trazei-nos o esquecimento Da sombra, da dor, do mal... Que nos ltimos instantes Sintamos a luz da vida, Renovada e redimida, Na paz ditosa e imortal! o . o . o

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NOTA EXPLICATIVA
A palestra que voc acabou de ler, meu jovem amigo, foi proferida h questo de cinco anos; gravaram-na em Lins e, vertida para o papel, aqui ressurge sem maiores retoques. Se hoje tivesse de reescrev-la, por certo eu alteraria muita coisa (sobretudo as concluses, que me pareceram fracas ante o arrojo das premissas), porquanto o pensamento progride sempre e ningum estaciona em sua procura da verdade, quando possudo de autenticidade e do desejo de saber e ser. Mesmo assim, autorizei-lhe a publicao guisa de apoio substancial cruzada esclarecedora de A Fagulha e, notadamente, em forma de homenagem ao Armando Oliveira Lima e ao Adalberto Paranhos, dois moos que reagem bravamente melanclica igrejificao daquilo que h cem anos era um ideal de liberdade e universalismo: a Doutrina dos Espritos, ora reduzida por seus prprios profitentes a uma teorizao dogmtica e sectria sobre fatos imperfeitamente estudados. O caminho que aqueles dois vm trilhando, malgrado a santa clera de seus confrades, que tressuam intransigncia em nome da divisa do trabalho, solidariedade e tolerncia, irreversvel e de certo modo constitui o prosseguimento da jornada que eu iniciei, sozinho e desassistido, justo na poca da produo da conferncia acima transcrita. Da porque tanto me identifico ao que eles dizem e realizam, pois o que realizam e dizem a reafirmao dos ideais e princpios que ainda mantenho vivos dentro de mim. Frustrem-se, assim, quantos hajam identificado meu silncio de mais de dois anos a um recuo nas idias ou a uma desero na luta: meramente encerrei um captulo de minha vida, em que insisti at o limite

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da convenincia, e quem almeja crescer sempre, a fim de realizar o infinito de suas potencialidades, no pode deter-se em etapas j superadas de sua marcha ascensional. Liberto de preconceitos e limitaes mais fortemente condicionantes, vivo agora nova fase: freqento um curso superior de Psicologia, onde colho farto material para as empreitadas de amanh; procedo a uma reviso completa de meus artigos de f esprita, para constatar at que ponto o em que creio individualmente pode objetivar-se em termos de comunicao cientfica; enfim, recuso-me a parar no tempo e repisar, em total alheamento cincia de nossos dias, conceitos ultrapassados e discutveis, dado que as pesquisas espritas morreram com os Crookes, os Geleys e os Bozzanos, e preciso que se descubra uma linguagem que melhor corresponda s exigncias do presente sculo. A f raciocinada, que o Espiritismo ontem facultava, cada vez mais f e menos razo. Se isso lhe basta, o problema seu... Quanto a mim, seguirei adiante em minha busca permanente de mais largos horizontes e se, ao cabo de algum tempo, descobrir algo de novo para ofertar-lhe, que no seja a repetio enfadonha daquilo que voc encontra na melflua literatura esprita contempornea, voltarei a seu convvio e outra vez lhe falarei. Mas falarei de coisas que no sirvam apenas a voc, que se acomodou a uma grei religiosa onde lhe no permitem pensar livremente, seno a todos os homens, espritas ou no, catlicos ou judeus, muulmanos ou budistas, agnsticos ou ateus. At l, fica com voc a amizade e o sincero abrao do Jacob Holzmann Netto Curitiba, 10/10/1969

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NOTAS DA EQUIPE A FAGULHA

(1) Aos que tomarem gosto ao estudo das questes de cunho filosfico e cientfico desenvolvidas neste captulo, remetmo-los leitura da obra de Humberto Mariotti, "O Homem e a Sociedade numa Nova Civilizao", e, mais especificamente, aos seus captulos IV e V, em que o filsofo argentino se pe a analisar, respectivamente, "A Filosofia Cientfica de Gustavo Geley" e "O Significado Esprita do Materialismo Dialtico".

(2) Vertida para o portugus, vindo a lume pela EDICEL, o livro intitulado originalmente "Parapsicologa y Materialismo Histrico" recebeu o nome de "O Homem e a Sociedade numa Nova Civilizao",sendo-lhe dado, ademais, o subttulo de "Do Materialismo Histrico a uma Dialtica do Esprito".

(3) Todos quantos se interessarem em se cientificar das expresses de Albert Einstein, ao efetuar uma anlise acurada do tema "Por que o Socialismo?", devero se enderear s pginas 167 a 173 de "O Homem e a Sociedade numa Nova Civilizao", que transcreve artigo inserido na revista "Gauche Europene", de Paris.

(4) Em assim pensando, os jovens integrantes do Movimento Universitrio Esprita (MUE) 50

de Campinas houveram por bem se cometer a obrigao de esboar um trabalho de natureza cientfica nesse sentido. Nele examinaro as implicaes entre a Sociologia e o Espiritismo, conferindo nfase especial s contribuies que uma ao outro se podem prestar mutuamente. Semelhante estudo, frise-se, far parte da tese que, em forma de anteprojeto, ser apresentada em Sorocaba-SP , dias 5 ,6 e 7 de setembro de 1970, quando da efetivao da III Concentrao dos MUEs do Estado de So Paulo, a qual, ulteriormente, vir a pblico em mais uma edio de A FAGULHA. (5) Reconhecendo que a busca da unidade na diversidade deve preocupar todos os espritas, jovens e adultos, considerados em p de igualdade, o MUE de Campinas, juntamente com o Departamento de Mocidades do 39 CRE da USE-SP, deu a conhecer sua proposta "Novos Rumos ao Movimento de Unificao", que se encontra em vias de ser submetida apreciao do Conselho Deliberativo Estadual da Unio das Sociedades Espritas do Estado de So Paulo. Procuramos assim, os moos, delinear uma nova vivncia entre os espritas em geral, na qual a co-participao e a co-responsabilidade lhes propiciem tornar comuns os problemas com que se deparam, tendo por fim traar uma ao conjunta, sob o halo da fraternidade, rumo ao cumprimento de seus encargos especficos. A esse respeito, alis, foi dedicada toda uma edio de A FAGULHA, precisamente a de n 8, correspondente a julho de 1969.

(6) A prtica do Servio Social, luz dos princpios espiritistas, aqui preconizada, j constitui, de algum tempo a esta parte, motivo de preocupao dos universitrios espritas paulistas. Assim que, quando da efetivao 51

da II Concentrao dos MUEs do Estado, levada a efeito nesta cidade, a 19, 20 e 21 de abril de 1969, procedeu-se ao estudo das correlaes existentes entre o Espiritismo e aquela tcnica que, sob a gide doutrinria, se fada a se tornar um meio de promoo social e espiritual do homem. Demais, naquela oportunidade, resultou aprovada, com algumas alteraes, uma tese elaborada pelo Departamento de Servio Social do Movimento Universitrio Esprita de So Paulo, a qual est prestes a ser divulgada aos borbotes. Importa salientar tambm, que, aliando a teoria prtica, assistentes sociais vinculados ao MUE da capital paulista desenvolvem presentemente um trabalho com foros de servio social junto Casa Transitria Fabiano de Cristo, instituio mantida pela Federao Esprita do Estado de So Paulo. (7) Ciente de que nada guarda to preponderante poder de transformao como o exemplo, que pronunciado na linguagem concreta dos fatos e das realizaes, o MUE de Campinas comeando por exemplificar o ideal de renncia instituiu, por sugestes de todos os seus componentes, o dzimo, tributo pelo qual como o prprio nome o indica cada um dos que o integram recolhe aos cofres da entidade soma correspondente a 10% de seus proventos. Porm, acima de tudo, cumpre notar que eles intentaro dar contornos de realidade a uma experincia comunitria, na qual o trabalho associativo identificar todas as relaes humanas. Juntaro, tambm nesse ponto, a teoria prtica, em sua campanha de esclarecimento que promovem em favor da libertao social e espiritual do homem. Para tanto, numa primeira fase dessa vivncia comunitria, cuidaro de oferecer aos 52

que a seu lado trabalharem possivelmente num empreendimento grfico uma vigorosa orientao scio-espiritual. Numa palavra, poro cobro explorao do homem pelo homem, que fere os princpios da isonomia divina. Isso porque entendem os rapazes do MUE de Campinas que a autoridade racional constitui condio para ajudar a pessoa que, temporariamente, se encontra em posio inferior. E parte superior, por exercer uma autoridade fundada em princpios de amor e solidariedade, toca se empenhar mais e mais no af de elevar a parte subordinada, para que cada vez menor seja a diferena que as separa. Dessa maneira, afinando-se por um diapaso inovador, em tal experincia comunitria os universitrios espritas campineiros abdicaro depois de convenientemente preparados, espiritual e culturalmente, os empregados dos seus direitos e prerrogativas de proprietrios. Todos quantos nela trabalharem viro, ento, a ser guindados condio de scios, banindo-se, por conseguinte, a distino entre patres e empregados. Por outro lado, de bom alvitre acentuar que semelhante grfica no ter outro objetivo fundamental que no o de proclamar o advento de uma nova era de compreenso entre os homens!

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NOTA PARTE

J conhecia seu termo o trabalho de confeco desta obra, quando, mediante gestes empreendidas junto ao diretor da EDICEL, ficou concertado que o MUE de Campinas avocara a si a obrigao de, para tal editora, traduzir o livro Espiritismo Dialectico, de Manuel S. Porteiro E f-lo-emos para gudio de todos os espritas conscientes, aos quais o estudo se incorporou a sua rotina de vivncia doutrinria. Dessa forma, no move aos universitrios espritas paulistas seno a vontade de colaborar, ainda mais, para que o Espiritismo seja levado a partilhar o convvio dos mais altos planos da cultura contempornea.

Edio digital: PENSE - Pensamento Social Esprita www.viasantos.com/pense Santos, maio de 2008 - Brasil. Produo e Reviso: Eugenio Lara. Reviso Final: Jos Rodrigues. 1/2 edio: 1970.

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