Livro - o Sapateiro
Livro - o Sapateiro
Livro - o Sapateiro
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1931 S71
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Li vr os de Flor a Rhe ta Sc hr e i be r
THE SHOEMAKER
SYBIL
FLORARHETASCHREIBER
S41 1 s
85-0497
Schreiber, Flora Rheta
OSapateiro: a anatomia de umpsictico / Flora
Rheta Schreiber: traduo de Vera Ribeiro J
Rio de Janeiro: Imago, 1 985.
(Coleo Romance e pslcanllsei
Traduo de: The shoemaker
1 . Kallinger, Joseph, 1 930 2. Crimes e crimino-
sos Estados Unidos Biografia 3. Criminosos
loucos Estados Unidos Biografia I. Ribeiro,
Vera II. Titulo III. Srie
o
SAPATEIRO
AAnatomia de umPsictico
Coleo Romance e Psicanlise
Direo de JAYME SALOMO
CDD384.1 5230924
IMAGOEDITORALTDA.
Rio de Janeiro
- humana, brilhantemente ebserVadd e pesquisada, sens vel e pOtiCa,
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coMpassiva, infinitamente triste e4sempre comoverdene
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A ANATOMIA DE UM PSICO
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H menos de uma dcada, os habitantes dos Estados e Pen rie
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silvnia, Maryland e Nova Jrsei ficaramestarrecidos comu a s
de crimes emque um
lin-
ger; a Doris C. Guetherman, do Departamento de Sursis do Condado
de Camden; e, por suas muitas gentilezas cotidianas, ao diretor subs-
tituto do Presdio, Eugene Salerno.
No Condado de Dauphin, na Pensilvnia, cabe-me agradecer por
muitas horas de entrevistas intensivas ao juiz John C
rm
. Do e
wling,
p
ao
o-
juiz WilliamW. Lipsitt, ao promotor LeRoy Zimmean ao r
motor substituto Richard Guide.
Na Instituio Correcional do Estado emHuntingdon, Pensil-
vnia, desejo agradecer ao superintendente Lowitt;
ao diretor de
Tratamento, Dennis Erhard; ao Dr. Frederick Warwrose, psiquiatra;
ao oficial Dell, e ao diretor de Educao, Stephen Polte.
OHospital Estadual de Farview, emWaymart, na Pensilvnia,
forneceu-me uma cooperao maravilhosa durante mais de quatro
anos,
e desejo
expressar minha gratido
aos superintendentes Ro-
bert
J. Hammel, Toei H. Hersh, Dele E. Newhart e David W.
Jay
;
;
ao diretor dos
Auxiliares Psiquitricos de Segurana, John Baldno
is secretrias dos superintendentes, Sandra Thorpe e Barbara
Kel-
logg; aos terapeutas
Dr. Ralph Davis, Dra. Marcella Shields, Dr. Ro-
nald
Refine e Thomas Brennan; aos Drs.
Norman Wenger,
Anthony
Falvo, Gerald Stanvich, Thomas Warnson e John e Joan Gorei,
bemcomo a Jerry Lewis, superintendente adjunto; e a uma multi-
plicidade
de supervisores e auxiliares psiquitricos de segurana.
Foramcruciais para
este livro as descobertas de psiquiatras como
o
falecido Dr. Silvano Arieti e o Dr. Lewis Robbins,mencionados
nestas pginas, e tambmdo Dr.
Dominick Barbara, que analisou
alguns dos sonhos de Joe Kallinger. Igualmente cruciais foramos
exames do neurologista Dr. Howard Hurtig e do Dr. Edward Bird,
especialista emcoria de Huntington.
Uma dvida especial de gratido a que tenho para como Sr.
Arthur L. Gutkin, por
seu hercleo esforo detetivesco de encontrar
a me e a meio-irm de Joe, assimcomo descobrir fatos relacionados
como nascimento de Joe e sua criao adotiva.
observaes
Este livro adquire maior significado graas s
aes de
vizinhos
que
conheceramJoe na infncia e durante seu primeiro e
segundo casamentos. Importantes contribuies foramtambmtra-
ririas por Carol Dwyer, professora de Joseph Jr.; Richard Kimmel,
empregado de Joseph Kallinger; Edward P. Aleszczyk, pel0s regis-
tros dos incndios (o incndio do reboque e tambmos proWocados
por Kallinger); pelos pais adotivos de Michael; por Judith
IRenner,
me de Joe, e por Mudei Gotshalk, sua meio-irm.
Pelas longas entrevistas comigo, desejo agradecer a Joan te Harry
Carty, Helen e Henry
Bogin, Ethel Fisher Cohen e AnnapearhFranks
-
ton, cujas experincias so recontadas nestas pginas.
Agradeo ao reverendo Erick Hayden por seu trabalho sobre o
cntico do Kristorah; a Frank Reichl, irmo de Anna Kallin er (e a
seu filho), que mora no Canad; ao j falecido Stuart Long; , Emma
Long; ao professor Ben Termine; a Lucy Freeman; a Bernice e Irving
Statman; a Helen e John Vogel; ao falecido John Schreiber; a vrios
advogados; a Deborah Glass, uma promotora assistente no Itilgamen-
to de Kallinger por maus-tratos aos filhos; ao advogado-absistente
Federal de Defesa David Ruhnke; a Charles Swigart; a Phillib Kahn;
e a Steven Maury Greenberg, da agncia Morrill Cole, emRochelle
Park, Nova Jrsei; ao juiz Glancey, do Tribunal Municipal da Fila-
dlfia; e aos jornalistas Thomas Gibbons (na poca pertenc-nte ao
Philadelphia Bullctin, e agora trabalhando no Philaelp
dhia lnq
tes do
uirer),
Ken Shuttleworth (do Camden Courier-Post), Ron Avery (an
Camden Courier-Post e agora trabalhando como freelance),{ e Steve
Jackson (antes pertencente ao Huntingdon Daily News).
Omrito pela publicao deste livro cabe a minha agente, Pa-
tricia S. Myrer, da McIntosh and Otis, e o mrito por mant-lo em
circulao cabe a Michael Korda e John Ilerman, da Sinion and
Schuster, e a Catherine Shaw, ex-funcionria da Simon and Schuster.
Mas h que render homenagema minha prpria equipe. John
Shapiro no apenas datilografou o manuscrito como tambm, en-
quanto
leitor, foi umcritico incisivo e imaginativo e umauxiliar lite-
rrio
indispensvel. James McLain fez o primeiro contato co
e
mHilda
Bishop Kallinger, a primeira mulher de Joe, e realizou a squa
jornalstica sobre JosCollazo. Curtiss Sayblack
representou
-tbe numa
importante consulta ao
juiz Dalton. Ofalecido Brian Kiernan com-
plementou meu trabalho comos pais adotivos de Michael. Paul Guz-
man ampanhou-me rularmente a Camden e Farviewe esteve
presente
co
a uma
important
eg
e entrevista como vizinho
que descreveu o
incidente
do zoolgico
e
outras brutalidades infligidas
a Joe, quando
criana. Linda Frenchessetti no apenas esteve presente nessa entre-
vista, como tambm
.
a providenciou. Flossie Simmons foi gerente do
escritrio e auxiliar de Joe Kallinger.
9
8
Afamilia Kallinger Elizabetbi Mary Jo; Stephen, 'Bonnie e
James trouxe uma ajuda indispensvel, Ao relatar conversas que
teve comurna vizinha, James forneceu-me a primeira pista do fato
de que seu pai fora uma criana submetida a maus-trats. Emes;
pecial, quero agradecer ao prprio Jue, no 5 por sua ajuda -factual
na
localizao de pessoas e por
-
seus esforos ho'sentido de garantir
meu acesso a ele emCamden, porm, mais 'ainda, por muitos milha
,
res de bons de profunda e dolorosa' revelao.
AJohn Shapiro, meu alter ego nesta
obscura odissia.
MUDANADE NOMES
Usei nomes reais nestas pginas sempre que tais nomes apareceram
nos meios de comunicao jornais, revistas, rdio e televiso
ou durante algumjulgamento e, posteriormente, nos registros do
testemunho. Assimsendo, os seguintes nomes diferemdo que so na
realidade: Judith Renner Scurti, ; ames Scurti, Muriti Gotshalk,
Deve Gotshalk, Tony Patelli, Lillian Rogers, Hilda Bishop
Kallin-
ger, Hilda Bishop (Srta.), Hans Ibler, Freddy Prime, Thomas Bleck,
Bobby Vane, e johnny, Willie c Susan Strong, Medir: Slocum, Da'
vid, Irving e Sarah Renner, e Willie (o menino do riodi
acho
fi ). Coma
finalidade de dificultar ainda mais a identificao, mquei
bmnomes de lugares: Masher Street no foi nem
de faera
to a Pelethorpe
rua onde
moraramJoe Kallinger e sua primeira esposa,
Street o lugar Hilda morava antes de casar-se comToe.
Sumrio
Prlogo
1 7
Livro UmInfncia
1 ODemnio do Passarinho
2 ACriana Descartada
23
3 Dois Contra Um
31
4 ACriana Enraivecida
42
51
Livro Dois OSonho da Famlia
5 OMundo Secreto
6 Amor, Minha Hora e Minha Vez
7
SemSada
Livro Trs ADescida ao Inferno
8 OCastelo do Sapateiro
9 OMotimno Castelo
1 35
1 0 ORei Despido
1 50
1 1 Os Deuses Totais
1 74
1 2 AProva da Fora
1 93
1 3 Altima Cano
21 3
1 4 Caso Nmero 4003-74
223
1 5 Beco semSada
251
1 6 Retaliao
259
269
Livro Quatro OMassacre da Humanidade
1 7 UmPresente para Bonnie
1 8 Reunies Domsticas
1 9 AFaca de Caa
281
299
31 4
71
1 00
1 1 7
Lino Cinco Fora do Mundo Para Sempre
339
20 OSenhor umHomemRuim
21 SemLiberdade para Morrer
352
22 ODefensor Algemado
364
23
Prisioneiro
K-271 9
376
24 As Colinas Interminveis
3934
Apndice 1 Poemas de Joseph Kallinger
41
Apndice 2
Notas da
Autora
426
Indice Geral
433
439
Indico Psicolgico
Prlogo
Ao escrever Sybil, fiz uma surpreendente viagemcomuma mulher
possuda por dezesseis personalidades separadas. Aos trs anos e
meio, ela deixara de ser uma pessoa; aos quarenta e dois, voltou a
s-lo. Isso s ocorreu aps onze anos de psicanliseacoVr
. "
dar
oc
de
nu
ma-
nca
saber", disse-me a Sybil integrada, "o que significa
nh e saber que dispe de umdia inteiro como voc mesma!"
.
ComJoseph Kallinger, objeto deste livro, fiz outra viagerrn psi-
colgica uma viagemde seis anos para o interior de sua vida, sua
mente e seus crimes. Embora no sendo uma personalidade mtipla,
tambmele estava possudo.
Quando Kallinger, umsapateiro de 38 anos em
da Filadlfia, t seu
filho Michael, ento com1 3 anos, forampresos
1 7 de emelt() de
1 975, houve choque e consternao diante da sociedade paigilho.
Houve tambmterror diante do fato de que, emsete semanas, a
contar de 22 de novembro de 1 974, a dupla invadiu cinco casas de
bairros elegantes da Pensilvnia, Nova Jrsei e Maryland; e houve
ainda horror pelo que aconteceu na ltima invaso.
Nessa invaso final, numa pequenina cidade de Nova Jrsei, pai
e filho mantiveramoito pessoas como refns e Kallinger assassinou
uma mulher. Oassassinato foi pavoroso, brutal e sanguinrio, Mas
no foi cometido, como se acreditou emgeral, por ter-se a vtim ente
a
recusado a manter relaes sexuais comKallinger. Oque realm
aconteceu ser narrado nestas pginas. homicdio d
As manchetes durante o julgamento pelo
iziam:
1 7
t .
Kallinger descrito como esquisito; Kallinger legalmente so, atestam
dois psiquiatras; dois psiquiatras dizemao Jri do homicdio
que
Kallinger louco; promotor designa Kallinger como assassino que
finge insanidade; Kallinger era obcecado pelo sexo, diz psiquiatra;
Kallinger tenta suicdio; Kallinger culpado de assassinato; Kallinger
na priso at2021 .
Encontrei Kallinger pela primeira vez em1 9 de julho de 1 976.
Ele estava na Cadeia do Condado de Bergen aguardando julgamento
por homicdio. Ali, durante 84 horas de visitas de contato, ouvi o
murmdrio de fantasmas invisveis e obtive minhas primeiras pistas
quanto natureza de sua possesso. Em1 4 de outubro de 1 976, ele
loi condenado priso perptua pelo assassinato e, emseguida, trans-
ferido para 9 Cadeia do Condado de Camden para aguardar julga-
mento pela primeira das invases domiciliares conhecidas. Numa
carta que me escreveu de Camden em1 7 de abril de 1 977, ele voltou
a chamar-me a ateno para umterror que j me havia expressado
emBergen. Estava aterrorizado porque perdia e recuperava o contato
coma realizade; aps o perodo de irrealidade, tinha conscincia de
que algo assustador lhe havia acontecido. Sua carta, endereada a
mimna Faculdade de Justia Criminal John Jay Cidade de Nova
Iorque' dizia:
"Por favor, venha ajudar-me aqui na Cadeia do Condado
de Camden. Preciso de ajuda para encontrar a mimmesmo e
s me sinto vontade quando converso comvoc frente a
frente, como fizemos durante tanto tempo na Cadeia do Con-
dado de 1 3ergen. Confio emvoc e sempre me sinto melhor
depois de nossas conversas.
Se pudermos esclarecer meus pensamentos, posso discri-
minar as vises e a vida vivida, logo, isso importante no s
para mim, mas muito importante para eu dizer ao tribu-
nal aqui.
Aconfiana importante para mim. E preciso saber a
verdade, seno a vida no vale a pena, e s6 confio emvoc.
Sei que voc no mdica, mas tema experincia de uma
vida inteira trabalhando coma vida e fazendo pesquisas em
muitos campos de textos psiquitricos.
Assim, se voc puder vir todas as semanas, por vrias ho-
EmJohn Jay, almde professora, sou diretora de Relaes lzhiblIcas e
assistente do presidente.
1 8
ras de cada vez, cara a cara, tenho certeza de que vou conse-
guir lembrar-me commais clareza e sinto que
e sse julgamento
do Condado de Camden ser justo e correto".
EmCamden, onde, dois meses depois de receber a carta, co-
mecei a manter longas conversaes dirias comKallinger, os mur-
mrios desdobraram-se numa torrente de recordaes. Ali, nosso
relacionamento cresceu e sua confiana aprofundou-se. Ele comeou a
lembrar o que atento estivera enterrado emseu subconsciente; e,
relembrando, fez-me terrveis revelaes. Essas revelaes tambm
sero encontradas neste livro.
Kallinger fascinou-me. Era falante e analtico, encantador, inte-
ligente e potico. Extraordinariamente sensvel, era tambmumassas-
sino incapaz de saber a diferena entre suas vises e a realidade,
entre os fantasmas que o assombravame as pessoas que pensava es-
taremtentando destru-lo. Era repleto de paradoxos.
medida que fui vasculhando a mente de Joe, percebi estar
percorrendo parte do mesmo terreno por onde viajara comSybil. Com
Joe, tal como comSybil, eu estava explorando a psicologia normal
e umpadro de
desenvolvimento extraordinrio. Ambos eramvti-
mas de maus-tratos infantis e de atitudes parentais destrutivas em
relao a eles. Aambos fora negado o direito da criana' auto-rea-
lizao. Sybil defendeu-se desses problemas transformando-se numa
personalidade mltipla, comcada umde seus eus a proteg-la de
umtrauma especfico. Umdesses eus, Peggy Lou, lidava coma raiva
de Sybil. Joe no teve tal tipo de mecanismo de defesa. Seu dio in-
flamou-se, e depois explodiu. Tornou-se louco, e o dio era umdos
elementos de onde proveio a loucura.
Este livro versa sobre o crime, mas essencialmente uma ex-
plorao da loucura.. E o primeiro olhar interior isto , interno
para umassassino psictico; umhomemcuja .psicose o leva a matar.
assassiliopsictico_ -
_muito diferente de umassassino sico-
pata. Este ltimo mata por dinheiro ou pelo
. prazer.de malar, enquan-
to O
primeiro o faz por causa de * sun psicose. Joseph Kallinger nunca
se teria transformado nummatador semsua psicose. Com
ela, no lhe
restou alternativa. Isso no significa que todos os psicticos sejam
assassinos, mas simque o assassinato foi o efeito inevitvel da psi-
cose de Kallinger.
Rastreei comKallinger, ao longo de muitos milhares de horas
de conversa durante umperodo de seis anos, a origeme o desen-
volvimento de sua psicose e de seus crimes. Esse rastreamento, essa
1 9
r
Livro Um
reconstruo, foi .adicionalmente interpretada por umpsiquiatra de
renome mundial, que examinou Kallinger como paciente particular.
Almdisso, houve tambm, claro, muitas outras vias de pesquisa.
Aspa
inas que se seguemcontem_uma histria e investigama
loucura. Mas fornecemtambmuma explicao documentada do com-
portamento criminal de umhomem. Ocaso de Joseph Kallinger j
se transformou nummarco na psiquiatria. Por essa razo, a Acarte-
-
mia Norte-Americana de Psicanlise, emsua conferncia de maio de
1 982 emToronto, convidou-me a apresentar umtrabalho sobre
Otrabalho foi surpreendente e de excepcional interesse cientfico
Kallinger.
porque, nele, estreei a gnese do assassinato aos maus-tratos infli-
gidos na infncia, a partir de umincidente infantil especfico, que
se converteu na origemtanto de uma psicose quanto dos crimes
que
eramInseparveis dela. Os crimes foramto claram
sintoma
ente
sintomticos
da psicose quanto uma dada erupo cutnea
de
ou umtipo especial de tosse sintoma de coqueluche. Do
vass e
os crimes decorreramda psicose, trs pessoas estariamvivas se tive
havido uma interveno psiquitrica no momento adeq o uado.
havia trans-
Oprprio Joe desafiou-me a buscar aquilo que
formado numassassino. E o fez numa noite abrasadoramente quente
de agos de 977. Estvamos sntados frente a frente, separados por
uma pequena
1
mesa de
madeira
e
na enfermaria deserta da Cadeia do
Condado de Camden. Transpirvamos profusamente. Ele me olhou
"Flora, o que que faz umhomem? Essa a pergunta a fazer.
comintensidade e disse:
Bom, aparentemente, alguma coisa dentro de mimperguntou e fico
imaginando: atque ponto sou sadio? Sim. Sim. Falo como sadio,
s vezes, mas, semnenhumaviso, alguma outra coisa emerge como
uma
, s ue mais escondida e mortfera. Qual o gatilho? E,
a pergunta
sombra
essa,
q
Flora; descubra essa resposta, e voc
ter apanhado
o homem, e vai poder faz-lo caminhar no papel desde o sapateiro
amistoso da vizinhana ata bomba
-
relgio viva
ma
,
is
to mortalmente
es-
condida que nemo dispositivo de deteco
sofisticado conse-
gue
no caso de Sybil, encontrei o gatilho na infncia. Foi uma
gue descobrir".
infncia de extrema privao emocional; e, desde os primrdios, hou-
ve destruio. Flora Rheta Schreiber
Cidade de Nova Iorque
4 de julho de 1 982
Infncia
20
'SR
1
ODemonio do Passarinfio
1 de setembro de 1 943. Freiras emtrajes negros e irms enfermeiras
percorriamo corredor do hospital. Tinhamrostos plidos e sorrisos
gentis. Observando-as, Joe, que contava seis anos e nove meses,
mantinha-se de pna entrada aberta de seu quarto de hospital e, em
sua memria, ouvia as vozes de seus pais adotivos:
"Dummkopf! Vamos mand-lo de volta!" dissera sua me ado-
tiva, Anna Kallinger. Seu pai adotivo, Stephen Kallinger, umsapa-
teiro, ergueu os olhos de seu trabalho. Segurando numa das mos a
faca de cabo verde, assentiu coma cabea e murmurou, "Ja, Joseph!"
Tal como seu quarto e suas roupas e os odores da comida de
sua
me adotiva, a ameaa de envi-lo de volta ao orfanato era uma
parte regular da vida de Joe comos Kallingers. Arma e Stephen o ha-
viamlevado para sua casa, haviam-no adotado sim! haviam-no
resgatado, como freqentemente diziam; mas, comigual freqncia,
ii-
meaahmmand-lo de volta.
Dejr-
na "Irligh do quarto do hospital, Joe pensou no orfa-
nato. Por sobre os lados de seu bero, olhos o haviamespiado
atravs dos capuzes negros das freiras ou sob chapus engraados
comflores e fitas. Como numvago sonho, Joe recordava-se dos n-
gremes e altos degraus que conduziams portas de vaivme, por trs
delas, aos longos e ensombrecidos sagues onde as freiras, como
deslizantes pssaros escuros, andavamsilenciosamente de umlado
para outro. Umdia, Stephen Kallinger e sua .esposa, Anna, haviam-se
debruado sobre o bero e o haviamescolhido para que lhes per-
tencesse.
N. T. Cabea dura!
23
,1 /4).
1
ODemonio do Passarinho
1 * de setembro de 1 943. Freiras emtrajes negros e irms enfermeiras
f
percorriamo corredor do hospital. Tinhamrostos plidos e sorrisos
gentis. Observando-as, Joe, que contava seis anos e nove meses,
mantinha-se de pna entrada aberta de seu quarto de hospital e, em
sua memria, ouvia as vozes de seus pais adotivos;
"Dummkopf! * Vamos mand-lo de volta!" dissera sua me ado-
tiva, Anna Kallinger. Seu pai adotivo, Stephen Kallinger, umsapa-
teiro, ergueu os olhos de seu trabalho. Segurando numa das mos a
faca de cabo verde, assentiu coma cabea e murmurou, Ia, Joseph!"
Tal como seu quarto e suas roupas e os odores da comida de
sua me adotiva, a ameaa de envi-lo de volta ao orfanato era uma
parte regular da vida de Joe comos Kallingers. Anna e Stephen o ha-
viamlevado para sua casa, haviam-no adotado sim! haviam-no
reastgado, como freqentemente diziam; mas, comigual freqncia,
ameaa ammand-lo de volta.
- Depr -E fitia-
do quarto do hospital, Joe pensou no orfa-
nato. Por sobre os lados de seu bero, olhos o haviamespiado
atravs dos capuzes negros das freiras ou sob chapus engraados
comflores e fitas. Como numvago sonho, Joe recordava-se dos n-
gremes e altos degraus que conduziams portas de vaivdme, por trs
delas, aos longos e ensombrecidos sagues onde as freiras, como
deslizantes pssaros escuros, andavamsilenciosamente de umlado
para outro. Umdia, Stephen Kallinger e sua esposa, Anna, haviam-se
debruado sobre o bero e o haviamescolhido para que lhes per-
tencesse.
N. T. Cabea dura!
\lu
23
t
i.
1
umpde sapato e uma faca de ponta recurvada nas mos muscu-
losas e manchadas. Essa era a faca de cabo verde que havia apa-
recido nas lembranas de Joe no hospital. Tanto o cabo quanto a
lmina tinham1 0 centmetros de comprimento. Almina, que era
usada para cortar saltos e solas, tinha uma curva na extremidade,
comformato semelhante a umlbio humano.
Embora tivesse apenas 1 .58 mde altura e fosse atarracado
(Anna era 2,5 cmmais alta), seus movimentos eramgeis e vigo-
rosos. Sob os cabelos negros, seus olhos eramcinzentos, e os lbios,
grandes, finos e secos.
Anna fez uma careta para Joe e piscou para o marido.
"Ento agora que vamos faz-lo", disse Stephen. Balanou a
faca na direo deles numgesto nervoso e disse, "Vou entrar num
minuto".
Stephen olhou para Joe enquanto Anna, apertando-o pelo bra-
o comuma das mos e segurando sua maleta coma outra, condu-
ziu-o pela porta que levava sala de estar. Orosto de Stephen tor-
nou-se rgido, inflexvel, Tinha de ser feito hoje agora!
Joe franziu o cenho, procurando livrar-se de Anna, que abria a
porta envidraada protegida por uma tela. Ela prosseguiu semJoe,
indo diretamente para a sala de estar e os aposentos dos Kallingers,
que Anna e Stephen chamavam"l atrs".
Stephen estava cortando solas de sapatos coma faca de cabo
verde. Joe olhava para a lmina enquanto Stephen a movia com
agilidade atravs do couro. "Voc quer cortar solas como papai
est fazendo, Joseph?" perguntou Stephen. "Logo vou comear a
ensinar-lhe. Se voc for umbommenino e, depois, umbomhomem,
aprender. Se no, ..." Olhou fixamente para Joe por sobre os
aros dos culos e voltou-se novamente para sua bancada, rindo so-
zinho suavemente. Joe observava os fragmentos de couro caremda
lmina cortante at'o cho. Imaginou se sua pele teria cado daquela
maneira quando o Dr. Daly fez o longo corte emseu corpo. Na loja,
a faca do pai adotivo era to ameaadora, na realidade, quanto o
fora no hospital, na fantasia. Gente grande usava facas, percebeu Joe
pela primeira vez, no s6 para cortar couro, mas tambmpara cor-
tar a carne dos meninos.
"Venha para dentro, Joseph! Selma!"
Joe dirigiu-se, encurvado, para a sala de estar. Anna retirou-
lhe rapidamente a jaqueta e o suter. Joe correu para a escada,
N. T. Depressa!
26
mas foi detido por Anna. "Fique aqui embaixo", ordenou ela. "Seu
pai e eu temos uma coisa que queremos dizer-lhe". E acrescentou,
"Voc no deve correr. Vai abrir sua operao, e a ter que ir para
o hospital outra vez. Achl Was ein Kindl""
Ao pda escada, Joe se deteve ao lado de reprodues de
pinturas de Jesus e da VirgemMaria, penduradas lado a lado na
parede. Anna passou por ele comumleve esbarro. Ele observou-
lhe o forte corpo reto no vestido estampado que ia atos tornozelos,
enquanto ela subia atseu quarto como suter, a jaqueta e a mala
de Joe. Suas pernas grossas moviam-se comenergia, os ps nos sa-
patos pretos e baixos batendo ruidosamente nos degraus.
Ouvindo outros passos atrs de si, compassados, Joe voltou-se e
viu seu pai adotivo caminhar emsua direo Stephen tinha deixa-
do umempregado, Caesar, cuidando da loja. Mastigando umcharuto
Philly, Stephen carregava uma cadeirinha de criana feita de ma-
deira. Oque ele est fazendo comminha cadeira? perguntou-se Joe.
Stephen gritou para o alto da escada, "Ahnie! Estou aqui. Voc vai
descer?"
"la. J vou". Ela apareceu no topo da escada. Descendo lepi-
damente, soltou umrisinho curto e duro que assustou Joe.
Stephen Kallinger pressionou uminterruptor e o candelabro se
acendeu. Bemembaixo dele, colocou a cadeirinha de Joe. "Sente-se,
Joseph", disse.
Joe sentou-se emsua cadeirinha e ergueu os olhos temerosos
para seus pais adotivos. Anna e Stephen erguiam-se sobre ele, olhan-
do-o fixamente atravs das lentes imaculadas de seus culos.
"Joseph, voc precisa escutar-nos", disse Stephen. "Temos algo
importante para lhe dizer".
Anna disse, "ODr. Daly fez uma coisa comvoc no hospital,
ele..."
"Ele consertou sua hrnia", interrompeu Stephen, "mas tam-
bmconsertou..." Fez uma pausa. Inclinando-se, disse emvoz bai-
xa, coma boca junto orelha de Joe, " ... seu passarinho".
Na casa dos Kallingers, "passarinho" era o eufemismo de pnis.
"Oque h de errado commeu passarinho?" perguntou Joe.
"Havia umdemnio que morava emseu passarinho antes de o
Dr. Daly consert-lo", retrucou Anna.
"Oque umdemnio?"
N. T. Ohl Que Maneai
27
"Umespirito maligno", disse Stephen.
"Ele trabalha para o Diabo, e no para Jesus", disse Anna
emtomsombrio.
"E estava no meu passarinho? Oque ele estava fazendo ali?"
Joe ps a mo entre as pernas, mas Anna a afastou comum
tapa.
"0 demnio faz comque seu passarinho fique duro", explicou
Stephen. "Faz comque ele fique duro e espichado para fora, e a
voc temque fazer coisas ruins comele. E a sua alma vai para o
Diabo quando voc morrer".
"Opr. Daly expulsou o demnio, Joseph", acrescentou Anna.
"Ele consertou seu passarinho, de modo que ele nunca vai crescer,
Os demnios no conseguemviver nos passarinhos que no cres-
cem, de modo que seu passarinho no vai ficar duro, voc entende?"
"Mas... que foi que o Dr. Daly fez commeu passarinho?"
"Isso segredo, Joseph", respondeu Stephen, sorrindo. Pegou
alguns fios do cabelo de Joe e puxou-os.
"Jal" exclamou Anna. "E segredo Mas voc no vai ter ne-
nhumdemnio no seu passarinho, porque seu passarinho ser sem-
pre pequeno, pequeno, pequeno, pequeno, pequenol"
Para acalm-la, Stephen colocou a mo levemente sobre seu
ombro. Ela respirava pesadamente e seus olhos estavamvitrificados.
Joe achou que ela estava doente, talvez fosse morrer. Indagou-se se
a alma dela iria para o Diabo.
"Os passarinhos de vocs no cresceram?" perguntou Joe.
Stephen zangou-se. "Perguntas! Sempre as perguntas!" E pros-
seguiu numtombaixo e duro, "Agora, escute aqui! L no velho
pas, o padre libertou sua me e eu do domnio. Mas neste pas
ja, neste pas", repetiu comdesdm, "tivemos que pedir ao Dr. Daly
para fazer isso comvoc. ODr. Daly libertou-o do mal".
"Me, o seu passarinho se parece como do Papai?"
Erguendo os olhos, Joe voltou a ver nas lentes imaculde
adasluzdoe
s
culos de Anna duas pequeninas poas d'gua reluzindo
raiva, as pupilas como discos de gelo a trancafi-lo no medo.
"Os passarinhos das meninas so diferentes dos dos meninos",
rosnou. Ps-se de ccoras e aproximou o rosto do de Joe. "Preste
ateno", disse. "Seu passarinho no fai ficar duro porque o deuk-
nio foi embora. Voc vai ser sempre mole a. E assim, vai ser u
b
menino, umbomhomem. Nunca se meter emcomplicae
Nun
om
ca vai criar nenhumproblema para moa nenhuma. Nemagora
28
1.
1.
L.
t._
nemquando for homem". Anna sentou-se no sof e recostou Es-
Stephen voltou-se para a mulher e disse, "No vamos t ne-
tava transpirando.
nhumproblema comele agora. No como os
J
quee a ou
acresce
tras' pes-
soas tmcomos filhos delas. E assim,no ,
"
ntou
Stephen, virando-se abruptamente para Joe.
"Posso ir agora?" Joe perguntou.
"Pode", respondeu Anna. Secando levemente o rosto comum
lencinho, ela se levantou do sof e andou lentamente para a coiinha.
"V para seu quarto, Joseph", disse Stephen. "Voc est do-
ente. Temque ter cuidado agora, por algumtempo. Sua me chama
quando o almoo estiver pronto".
i
Subindo a escadaria, Joe parou diante do espelho retaugular
que pendia da parede acima da escada. Como sempre fazia, correu /
as pontas dos dedos sobre o vidro frio e imaginou como pcklia a '
9
mo no espelho seguir sua mo, mexer-se quando ele a mexia, p
ara
r Pt"
1
quando ele parava. Era o outro mundo, silencioso e claro, e p nsou: '.
Posso entrar no espelho e eles nunca vo me encontrar. Assu lado, .
I quis correr, porm, atnito, recuou ato corrimo. Flutuano no
mslo_da-sala-de-estar. refletida no espelho, ele viu uma enorme faca /
' demponta emforma de lbio, coma lmina
- e o cabo em
pOsio
virdes' e; pendendo da curva na extremidade da lmina, seu lpnis.
\
Aterro-azado, levou a mo braguilha e a imagemno espet de-
sapareceu. Uma pontada dolorosa na rea da inciso troux -o de
volta da fantasiaipara
-
a realidade presente.
I
EmseUquarto, sentout-selmVl na cama. Queria ser umbor-
boleta e poder voar para longe, para sua famlia de borbole as no
campo. Embora fosse cedo, ajoelhou-se ao lado da cama e entoo
fazer suas preces emalemo, como fora ensinado a fazer por nna e
Stephen. Mas as oraes haviamdesaparecido. Ele no conlseguia
recordar uma s6 palavra. Foi como se tivesse rejeitado am
a lnque
gua
nativa de seus pais adotivos, emvista das palavras sem
dr
eles haviam
acabado de pronunciar emingls na sala de itstar.
V-lo novamente emsua casa os deixara zanga tos; eles l
m
he I d
ara
isse-
ramcoisas estranhas sobre seu "passarinho" e o mandara Po
quarto. Joe olhou pela janela
c tornou a pensar
nas borbolems.
Nos anos que se seguiram, Ice lembrou-se de apenas cinCo pa-
lavras do vocabulrio que lhe fora ensinado por Stephen Anna
Kallinger. Duas delas eramo neutro Danke schoen. * Aterceira era
N. T.
Muito obrigado!
29
Coloffel, uma palavra particular de Anna para designar uma gran-
de colher de pau, umdos instrumentos de punio. Aquarta pala-
vra era Quatsch, que significava porcaria, tolice, besteira. Aquinta
era Wanderlust, que expressava o desejo de Joe de voar para longe.
r
Stephen e Anna sabiam, claro, que o Dr. Daly no tinha
feito nada como pnis de Joe. Mas, tendo reagido exageradamente
1 . curiosidade sexual normal que ele manifestara aos cinco anos e a
umoutro episdio, duas semanas antes da operao, que eles ha-
viamerroneamente interpretado como sexual, queriamque ele crer- /
cesse impotente. Para chegar a esse fim, tinhamfabricado sua his-
tria grotesca. As conseqncias da cena que representaramviriam
a ser sombrias, hediondas e trgicas.
30
2
A. Criana Descartada
No dia emque Joe voltou do Hospital St, Mary's, seus pais
adotivos, atravs de uma castrao simblica, destruramsua_cana-
da_sl
lmente. Falando freqentemente damJoe,
durante...sua p e dade ado c nela sobre o demnio e sobre
-Inmates
lithoce
os Kallingers continuarama
distoree-r-lhe.
o instinto_sexuaLeinbora _na o extirpassem, comq
haviamesperado,. Acena do "passarinho
"nriaTi
de estar e o in-
terminvel jilu___
itxc.joais sexualidade de Joe
"foramas origens
de
sua loucura posterior.
E raro poder-se apontar umepisdio isolado do qual resulte
uma psicose. No caso de Joe Kallinger, porm, esse episdio foi
claramente sua castrao simblica na sala de estar, fortalecida pelo
processo de destruio que a havia precedido e que se seguiu a ela.
Oprocesso que tornou Joe mais vulnervel ao que os Kallingers lhe
fizeramcomeou quanoo ele ainda estava no tero.
Ame natural de Joe, Judith Renner, nascera emMontreal, no
Canad. Seus pais eramjudeus de classe mdia de origemaustraca
e inglesa. Em1 91 8, quando tinha trs anos, ela fora trazida para
ot Estados Unidos.
Durante a epidemia de plio de 1 91 6, Judith adoeceu comuma
poliomielite anterior. Adeficincia de uma queda ntida emseu p
esquerdo no foi suficientemente grave para que ela usasse muletas,
mas ela mancava ligeiramente ao andar. Enquanto ainda pequena,
seus pais se divorciarame ela e os irmos foramcolocados numa
31
casa de criao. Aos doze anos, ela fugiu da famlia de criao
para umhospital, para que seu pfosse corrigido. Sendo menor de
idade, no pde assinar os papis para sua admisso, de modo que
da
telefonou para a me, que foi atl e assinou por ela. Depois
operao, tendo-se recusado a voltar para a casa de criao, passou
a morar coma me. Mas a recordao de su a fuga infantil no
estava
a
impediu de buscar uma famlia de criao para a criana
emseu ventre.
Ruiva, com1 .60 mde altura e atraente, apesar de gordinha,
Judith Renner Scurti sentiu vergonha porque seu filho, era mbooraano
foss
de
e
fruto do amor, era ilegtimo. As atitudes da poca e
1 936 perante os filhos ilegtimos e as mes que os traziam luz
eramesnobes e cheias de censura. Ela sentia medo, tambm, pelo
fato de ser
casada, mas no como pai de seu filho por nascer, cujo
nome era Tony Patelli.
judia,
ainda no completara 1 9 anos quando, emagosto de
1 934, casou-se comJames Scurti. Por le
ser tr elba
e catlico rom
o
an
e
o
Judith,
e ela,
judia,
casaram-se
numjuiz de paz. Ealhava pouc
como membro do Sindicato Internacional de
O
operadora
perrios da indstria
de Roupas Femininas
,
tinha umemprego de
de
de costura numa fbrica, Afilha dos Scurtis, Mudei, nasceu em
setembro de 1 935. Trs meses depois, aps ter vivido comSaur
por apenas 1 6
m
ese
s.
Judith o deixou.
Judith e Muel moravamcoma me de ludith, Sarah Renner,
e comos irmos de ludith, David e Irving, quando ela conheceu
Tony Patelli. Tal. como James Scurti, Tony era catlico romano, nas-
cido nos EstadoS Unidos, filho deitaliano
ias. Diversamente de Scurti,
Tony era algumcomquemJudith
Grande e-
presso, mas estavamemalta em1 938. Otremelevadoade Frankfor
Dd,
inaugurado em1 921 , e o surgimento do automvel tinhamcontri-
budo para umslido crescimento.
Avizinhana era limpa e bemcuidada. Quase no havia po-
breza e quase nenhuma violncia oos cries
udeus,
nas ru
o
as. Em-
bora houvesse alguns protestantes e uns
u outr poucos
m
j
Catoli-
cismo era a religio dominante. Os moradores, principalmente imi-
grantes
alemes, italianos e irlandeses, ou norde
te-ame
pequ
ricanospor
de
te p ou
ri-
meira gerao, tinhamseus prprios negcios
eno
trabalhavamnas fbricas e moinhos da regio. Emcerta poca,
Kensington fora uma das reas mais ricas do mundo e o centro
industrial da Filadlfia.
Amaioria dos
moradores
orgulh va-se em
ser de Kensington.
Os Kallingers, que
eramemigrantes de lngua alem e catli-
cos,
sentiam-
se emcasa. Como lojistas altamente respeita
os, avam
eram
mais prsperos do que aqueles dentre seus vizinhos que tr talh
nas fbricas. Stephen e Anna poderiamter arcado comuma mu-
dana para uma rea mais elegante da Filadlfia, ou par: umdos
bairros afastados. No entanto, Kensington era o lugar .nde Ste-
phen, umsapateiro de mo cheia que havia recebido pr mios por
seu trabalho, consitura seu negcio e tinha decidido per anecer.
Acasa de tijolos vermelhos que os Kallingers possuame onde
tinhamsua loja de conserto de calados era umlugar . olitrio e
austero. Nenhuma criana vivera ali antes de Joseph; dep is da che-
gada dele, nenhuma criana jamais teve permisso para entrar e
brincar como menino. De segunda-feira pela manh a
deixr s
tsb
a
ado
noite, muitas pessoas
patos
ou busc-los, mas ningumjamais entrou nos aposento resid
l
er
era-
ciais, nemmesmo aos domingos. Anna, Stephen e o
p
ela
eq
s sempre
ueno oa
viviam
retirados
mundo, com
as psianas das jan
abaixadas e a porta dos aposentos domsticos sempre fechada.
Desde seu nascimento no
Hospital
Northern Libertis, Joe havia
passado trs semanas comsua me natural, ludith Ren r Scurti,
na casa de uma amiga dela; dois meses e nove dias nu a creche
particular, e 1 9 meses emSt. Vincent's. Fora retirado d orfanato
pelos Kallingers aos 22 meses e 1 4 dias de idade. Ago , atravs
dos aposentos de sua quarta moradia desde a sada do hos ital onde
nascera, Joe perambulava dia aps dia, explorando seu q arto e, l
embaixo, a sala de estar e a cozinha.
Na parede junto escada havia umespelho retangular de trs
faces. Joe divertia-se, muitas vezes, olhando para ele. Achava que
o menino a quemvia no espelho tinha vindo brincar, pois ho sabia,
atficar mais velho, que o que via era seu prprio reflexo Freqen-
temente, fingia trocar de lugar comseu companheiro de ibrincadei-
ras refletido e acreditava estar ele no espelho, enquanto lo amigui-
ri
nho estava de pdiante dele. Esse foi o mesmo espelho e que Joe,
aos seis anos e nove meses, depois de ser informado de ue o Dr.
Daly
havia "consertado"
seu "passarinho", teve sua primeira ex-
perincia
alucinatria, ao
ver seu pnis flutuando em
stcu,
preso a uma faca com
ponta emforma de lbio. Quando Joe che-
t
37
36
f
gou originalmente casa dos Kallingers, porm, o espelho era ape-
nas parte ck, sua vida de fantasia emrica evoluo. Anecessidade
da fantasia era ainda mais forte emvista da falta de companhia, e
a tenso e as incertezas dos primeiros 22 meses de vida j haviam
levado Joe a retrair-se.
No entanto, Joe continuou a dar a impresso, como acontecera
no St. Vincent's, de que tudo ia bememseu pequeno mundo. Uma
assistente social foi enviada pela Agncia Catlica de Crianas
casa dos Kallingers. "Joseph", escreveu ela numrelatrio de 20 de
janeiro de 1 939, "umbelo menino moreno, de cabelos encaraco-
lados e brilhantes olhos castanhos. Engordou umpouco e parece
muito feliz e satisfeito nessa casa. OSr. e a Sra. Kallinger gostam
muito de Joseph. Deram-lhe muitos brinquedos bonitos e armaram
tambmpara ele uma adorvel rvore de Natal. Forambemrecom-
pensados quando Joseph desceu na manh do dia de Natal... pelo
lindo olhar de felicidade emseu rostinho. Isso os deixou muito con-
tentes". Aassistente social registrou tambmque Joe tinha seu
prprio quarto e umseguro de mil dlares.
Tendo sido aprovados comboas notas no perodo condicional,
es Kallingers quiseramadotar Joseph emdefinitivo. Aaudincia de
adoo foi marcada para 1 9 de dezembro de 1 939 no Tribunal Mu-
nicipal, mas no se deu naquele dia.
Na vspera, Stephen e Anna estavamtrabalhando na loja. Joe,
comtrs anos, sentado emsua cadeirinha de madeira, brincava com
uma caixa de charutos Philly. Otelefone tocou e Gerald A. Gleeson,
advogado dos Kallingers, disse a Stephen que Judith Renner, a me
natural de Joseph, estava a caminho da loja de Kallinger. Oadvo-
gado disse rue Judith Renner estava pronta a concordar coma
adoo, mas, primeiramente, queria ver a casa onde seu filho seria
colocado. Gleeson tinha dado a Judith Renner o endereo e o n-
mero de telefone dos Kallingers.
Furioso, Stephen desligou. Numesforo de impedir a visita
de Judith Renner, telefonou para a Agncia Catlica de Crianas.
Foi informado de que, j que seu prprio advogado fornecera a
Judith o endereo, no havia nada a fazer
Judith chegou e apresentou-se a Anna, que estava no balco
da loja. Stephen no ergueu os olhos de sua bancada de trabalho.
As duas muTheres, uma na casa dos 20 anos, outra na dos 40, eram
umverdadeiro estudo sobre contrastes. Judith era vibrante, sen-
sual e, apesar de suas dificuldades, alegre. Anna tinha umcorpo
atarracado e feies corriqueiras. Era desprovida de alegria e rigi-
38
damente dedicada ao trabalho rduo e abnegao
pessoal. Ju-
dith era instvel e cheia de joie de vivre. Anna era disciplinada e
morosa.
Joseph no estava na loja. Quando soube que Judith estava
a caminho, Anna o levara "l para trs". Mas falou comJudith so-
bre ele. Omenino tinha que usar sapatos ortopdicos, disse Anna.
E disse tambm"Ele malicioso!" Amalcia normal de urna cri-
ana de trs anos levara Anna a essa concluso.
Judith pediu para v-lo. Anna o trouxe de volta loja. Joseph
no conhecia a moa de cabelos castanho-avermelhados, nemli-
gou-a, claro, ao seio, aos sussurros e ao toque de que Judith o
havia privado quando ele tinha trs semanas.
Quando ela o beijou e afagou-lhe o cabelo, Stephen gritou,
"Ahnie, agora chega".
Depois de apresentar-se, Stephen indagou abruptamente, "Para
que que a Sra. est aqui, Sra. ... ou ser Srta. Renner7"
Judith enrubesceu, mas no deu nenhuma resposta. Emsegui-
da, disse, "Quero ver a casa onde meu filho ir morar".
"Voc no temdireito de estar aqui", disse Anna. "Mas, j
que est, vou mostr-la. melhor do que a que voc pode dar a
ele".
Fizeramuma inspeo da casa. Joseph foi comelas, e Anna
segurava-lhe a mo comfirmeza. Quando voltaram loja, Judith
disse, "umlugar agradvel. Vou deixar que vocs fiquemcomJo-
seph, se vocs me deremquinhentos dlares".
"Chantagem!", bradou Stephen. "Saia da minha loja!"
Ignorando a observao, Judith perguntou, "OSr. se importa
se eu usar seu telefone?" Stephen no respondeu. Judith telefonou
para a Agncia Catlica de Crianas. Disse a umfuncionrio da
agncia, "Eu mesma quero levar Joseph".
Quando ela desligou o telefone, Stephen ligou para Gerald
Gleeson, seu advogado. Disse-lhe, "No queremos prosseguir com
a adoo". Emseguida, voltando-se para Judith, disse- lhe novamen-
te que sasse.
"Quero levar Joseph hoje", insistiu Judith. "OSr. quer ter a
bondade de empacotar as coisas dele?"
Otelefone soou. Era uma representante da Agncia de Crianas.
Disse que Gerald Gleeson acabara de inform-la de que, emvista
do acontecido, iria conseguir do tribunal umadiamento da audin-
cia de adoo para uma data posterior.
39
"No vamos prosseguir coma adoo", retrucou Stephen. "Ju-
dith Renner ainda est aqui. Ela quer levar Joseph hoje".
Stephen foi informado de que sob nenhuma hiptese deveria
deixar que Judith levasse Joseph. O menino estava sob os cuidados
da Agncia de Crianas e, se Judith o queria, s6 poderia t-lo atra-
vs da agncia.
"Vamos ficar comJoseph", concordou Stephen, "atdepois
das festas de Natal. Mas, depois disso, vamos devolv-lo a vocs.
Mesmo que Judith Renner mude de idia e consinta na adoo,
agora que ela sabe onde moramos, poder sempre voltar e incomo-
dar-nos. Poderia acabar levando Joseph. Minha mulher e eu acha-
mos muito melhor para todos desistirmos de Joseph".
Stephen explicou a Judith por que no podia deix-la levar
Joseph naquele dia, e ela se foi. Dez dias depois, passados os fe-
riados de Natal, os Kallingers como tinhamdito que fariam
levaramJoseph ao escritrio da
Agncia de Crianas. Mas no para
devolv-lo. Estavaml para dizer que ainda queriamadot-lo.
Judith havia prometido aos Kallingers que, se eles adotassem
Joseph, ela se afastaria da vida dele e deles. "Nunca mais voltarei a
incomod-los", disse muito solenemente numa conversa telefnica
aps sua visita. Fora mais uma reprise de seu comportamento cho-
ve-no-molha enquanto Joseph estava no St. Vincent's, ou mesmo
quando era beb, no Hospital Northern Liberties.
Os Kallingers no gostaramde Judith. Diriama Joseph, quan-
do ficou alguns anos mais velho, que ela havia tentado chantage-
los para que pagassemquinhentos dlares por ele. Assinalaramque,
na poca, Joseph nemsequer lhe pertencia legalmente "para que
ela o vendesse". Apesar disso, querendo conservar seu futuro sapa-
teiro, os Kallingers acreditaramemJudith quando ela disse que os
deixaria empaz. E ela os deixoul
Aaudincia de adoo ocorreu no Tribunal Municipal, do Con-
dado da Filadlfia em9 de janeiro de 1 940. Os Kallingers, tendo
sido instruidos a levar "o menor emquesto, Joseph
Renner Scurti",
traziam-no comeles. Contando agora trs anos e umms de idade,
ele entrou numtribunal pela primeira vez.
Judith no estava presente, mas tinha assinado umformulrio
de cesso, afirmando que no (lucila Joseph como seu filho e que o
cedia para fins de adoo. Havia assinado o documento como Sra.
Judith Renner. Depois, riscara comtrs traos o Sra.
O
juiz Joseph G. Tumolillo assinalou que a criana, segundo
sua certido de nascimento,
era
Joseph Scurti, mas que outros do-
,
40
cumentos, inclusive o formulrio de cesso, afirmavamque ele era
Joseph Renner. Assim, a petio de adoo foi emendada, pass ndo
a dizer, "Adoo de Joseph Scurti, tambmconhecido por Joseph
Ojuiz,
emsuas constata
fato", declarou
Kque "a c ian- _ Renner".
a, Joseph Scurti, tambmconhecido por Joseph Renner, ilho
ilegtimo, nascido fora dos laos do matrimnio de Judith
Re ner
Scurti e umsuposto pai desconhecido". Omeritssimo juiz
pr ss
suo-
e-
guiu: "O
nome do suposto pai ignorado e seu paradeiro d
nhecido; da mesma forma, no se sabe se ele reco.Theceu a cria a".
Foi uma audincia fechada. No saguo do lado de fora um
homemde estatura mediana, moreno, de maneirass gentisaudi
, ele ante
e bemtrajado, aguardava. Ele havia tentado e
cia.
mas no o conseguira. No
interior
do tribunal, dizia-se que o
ara-
doiro do suposto pai de Joseph era ignorado. Mas o homem
que
aguardava do lado de fora era_to Patellb esse pai. Ele queri dar
uma espiada no menino a quem
-ha
prodiado.
Chegou o momento do trmino da audincia. Joseph,
Joseph Michael Kallinger, caminhava entre Stephen e Anna KSin-
ger. Eles haviamconservado o
nome Joseph,
mas deram-lhe
u: se-
gundo nome emmemria do pai de Anna, Michael Reichl.
Tony Patelli manteve o olhar emJoseph atperder o
In nino
de vista. "Umgarotinho maravilhoso", disse depois a Judit . A
seguir, Tony caminhou emdireo h rua e chegou l bema
t rapo
de ver Joseph e seus pais adotivos afastarem-se no carro. Est vara
indo emdireo a casa de tijolos vermelhos que foi a priso e u
seph
na infncia, a mesma que, na idade adulta, ele transfor aria
numa priso para sua famlia, e da qual, em
1 7 de janeiro
de
975,
seria levado para a priso, para nunca mais voltar.
41
gora
3
Dois Contra Um
Os Kallingers tinhamumchalde dois cmodos emNeshaminy, no
Condado de Bucks, na Pensilvnia, que usavamnos fins de semana.
Era feito de ripas pintadas de branco e sustentado por blocos de
concreto. No havia gua encanada, mas apenas umpequeno ba-
nheiro anexo.
Ochalficava a duas milhas de distncia da estao acro-
naval de Willowgrove. Auns cinqenta metros dele havia uma
casinhola construda sobre uma fonte, recoberta de galhos quebrados
e capim, que poderia passar despercebida se o passante no sou-
besse de siri existncia.
Omenino Joe sabia. Acasinhola do campo, tal como o espe-
lho na cidade, fazia parte de seu mundo secreto, Deitado na relva
ao lado dela, Joe, aos trs, quatro, cinco e atseis anos, brincava
comos galhos e o capim. Tecia fantasias sobre os espritos que havia
criado para si mesmo e cuja casa, segundo imaginava, ficava no
poo; e tambmsobre as borboletas que o fascinavame deleita-
vam, esvoaando a seu redor emmeio grama alta.
S comsuas fantasias, Joe raramente olhava para a frente da
casa, onde seus pais adotivos cochilavamemsuas cadeiras de praia
de madeira. Umduplo hiato de geraes (eles quase poderiamser
seus avs) os separava. E havia tambma poderosa separao do
temperamento.
Joe era imaginativo e voltil. Seus pais adotivos eramglidos,
depressivos, e s exibiamemoo quando se zangavam. As diferen-
as de temperamento transpareciamnos rostos de Stephen e Joe.
Ambos tinhamcabelos pretos, o que havia constitudo uma das ra-
zoes de Stephen querer adotar Joe. Os cabelos, no entanto, erama
nica semelhana. Orosto de Stephen era quadrado, comossos sa-
lientes e disciplinado; o de Joe estava cheio de sentimentos e tinha
uma estrutura ssea delicada.
Joe queria esquecer que as pessoas nas cadeiras de praia es-
tavamali. Chamava-as Mame e Papai, mas no se sentia filho de-
las. Ento no diziama ele e a todas as outras pessoas que ele era
adotado, que o haviamresgatado de umorfanato e lhe tinhamdado
umlar? No diziamque Joe era a boa ao deles, e no estavam
sempre a lembrar-lhe o que estavamfazendo por ele e como ele
teria de retribuir?
Os Kallingers pareciamto inseparveis a Joe como se fossem
colados. Eramuma equipe, pensava, e ele era o forasteiro. "Faltava-
me o sentimento", ele iria dizer-me mais tarde, "de ser parte de qual-
quer pessoa, ou de que qualquer pessoa fosse parte de mim!"
.Para os Kallingers, porm, Joe era algum"de dentro". Para a
realizao de suas prprias necessidades e objetivos, estavamvincu-
lando essa criana a eles mesmos. Avinculao nada tinha a ver
comas necessidades do menino (e, mais tarde, comsuas potencialida-
, cies). Nada tinha a ver comafeto ou proximidade emocional. Os
Kallingers no beijavamJoe, nemo afagavam, mimavamou brin-
cavamcomele. Tocavam-no apenas para bater nele ou para pegar-
lhe a mo a caminho do jardim-de-infncia. (Atos 1 3 anos de
idade, Anna o levava e buscava na escola). Mesmo quando crianci-
nha, eles o mantinhamna loja a maior parte do tempo. Sentado em
sua cadeirinha de madeira, ele freqentemente recolhia dinheiro para
I os bnus de guerra. Colocava o dinheiro numa das caixas de cha-
ruto Philly pertencentes a Stephen. Sempre que havia 1 8 dlares e
cinqenta centavos na caixa, os Kallingers compravamumbnus
/ de guerra no nome de Joe. Estavamensinando a Joe o valor da pou-
pana e tambmdizendo o quanto faziampor ele.
Alguns vizinhos o chamavamJoey, mas, para os Kallingers, ele
era sempre Joseph. S passarama trat-lo por Joe na idade adulta.
Quando o menino os aborrecia, chamavam-no Dummkopf. Ele no
podia deixar de pensar que Dummkopf era seu nico apelido cari-
nhoso.
"Seremos rigorosos comele", disse Anna s pessoas quando
Joe chegou. "Como no nosso antigo pas. Ele ser umbommenino,
Vai respeitar minha casa limpa, nada de jogar as coisas dele por ar.
"Ja, ele vai ser umcavalheiro!" dizia Stephen aos vizinhos.
"Cedo vai aprender os negcios. Nada de ficar toa. Nada de brin-
42
43
car comoutras crianas e meter-se emconfuses. Vou fazer dele
umsapateiro de mo cheia, como eu, seu pai".
Como me disse Joe muitos anos depois, "No havia como co-
municar-me comminha me. Ela simplesmente no entendia os sen-
timentos. Stephen tambmno. Salvo quando ficavam comraiva,
eramcomo dois pedaos de gelo".
Joe no se sentia prximo dos Kallingers mesmo quando os
ajudava a varrer, juntos, as folhas mortas de outono. Contudo,
excitava-se como que acontecia. Observava Stephen ajoelhar-se di-
ante da grande e frouxa pilha de folhas e atear-lhe fogo, cuidadosa-
mente, comumfsforo ao redor da base. Como numtranse, Joe
observava as chamas crescereme se espalharem, enrolando as bor-
das das folhas, retorcendo-as emformas queimadas e frgeis, comas
centelhas quentes e vermelhas a se alaremna fumaa. Osomcre-
pitante das chamas amarelas, coruscando e saltitando ao vento, ara-
lha encantador. Ofogo tornou-se part de seu mundo secreto, onde
ele vivia comvises, sons e objetos
e
, todos tomando o lugar das
pessoas.
Na casinhola da fonte e nos bosques ao redor, Joe encontrou
minhocas na terra. Nos fundos da casa do stio, margemde um
riacho onde seu pai adotivo o levava para pescar, Joe observava
Stephen enfiar umgancho no corpo contorcido das minhocas. Joe
recusava-se a colocar minhocas conto isca emseu anzol, pois acredi-
tava que as minhocas eramespritos de pessoas mortas. Imaginava
que, se fizesse uma minhoca sofrer, uma pessoa morta, seguracabo
ndo
commo ossuda a faca de Stephen componta de lbio
ge ra ndo
verde, sairia de sua sepultura para mat-lo.
Quando menino, aos quatro, cinco ou seis anos, Joe no queria
ser destrudo. Afora de vida era intensa nele, e ele no sabia que
sombrias foras de destruio trabalhavama seu redor; que, em1 6
de setembro de 1 943, dia de sua alta do Hospital St. Mary's, elas
se agitariamainda mais implacavelmente para subjug-lo.
Temendo ser destrudo pelas minhocas, Joe s pescava carpas
midas, que conseguia apanhar comuma rede e, s vezes, comas
mos; ou ento colocava no anzol uma bolinha de mingau de aveia
misturado commiolo de po e aguardava, sentado junto ao riacho,
coma n
liha na mo, emgeral durantemas s vzes noite,
enquanto os peixes beliscavama isca crua,
a
ou ent
o,
e
nadando ao
largo, ignoravam-na.
J adulto, Joe tornou idlicas suas recordaes do riacho, dan-
do voz sensibilidade potica que j tinha quando criana:
flash back
the waiting darkness holds things:
the occasional tinkering of a cowbell,
little yellowwindows that are like eyes
peering into the depths of a darkness;
insect sounds all around,
and fromthe distante the ~uniu' sounds
of baying hounds; the sound of running
water, and memories flashing back
to childhood days in the country,
with the shallowcrick in the back
of the old bungalow, the cagar thrill
of fishing in the night by the glow
of a lantern as I sat quiet In the darkness
waiting for a bite and my first fish by night."
Joe pensava nos espritos da casinhola da fonte como b nsrn
u
es-
a
pritos, que o
protegeriamda maneira como seu anjo da gu
le.
ard
figura feminina de seios pequenos e com
duas pi
asas, velava
e
o
E, comunicando-se comeles, Joe
conhecia
a.
cas
assustavam, porque eramos espritos dos
mortos. Mas ele er m
feli
an-
z,
v ivendo emfantasia comas borboletas. Elas
se pareciamc
jos,
pensava, pois, semelhana deles, tinhamduas
asas.
Recos-
tando-se indolentemente na casinhola da fonte, atravessando
a gra-
ma
alta ou pescando no riacho, ele decidiu que as cois
s mais
belas da vida eramas borboletas e, sentindo que ser
pert ncer a
algum, via-se como pertencendo a elas.
"Todo o mundo temgente, no
?"
recordou-me
Jo . "Eu
costumava pensar, quando criana, que as borboletas eram
eu ra
min
uns
ha
gente. No sabia onde elas moravam, mas pensava
Retrospectiva / Aescurido da espera contmcoisas: / o tilin ar oca-
sional de urna sineta dc gado, / janelinhas amarelas que so co o olhos
/ espreitando nas profundezas da escurido; / sons de Ins tos por
pu
Tendo abandonado sua fantasi
a
a de que os Kallin-
o de que, no tendo nascido dos Kallingers, morava comeles de
favor, corno se tivesse entrado emsuas vidas como uma criana
trocada e. feia, e tivesse de suportar a dor e os sofrimentos de uma
criana trocada.
S duas semanas antes da operao de hrnia, porm, que
a fantasia de Joe de ter sido especialmente feito para os Kallingers
morreu realmente. Joe abriu parcialmente a porta da loja de Kallin-
ger e se deteve, congelado pelo medo.
sonho
fora uma representao da dor psquica. Expressara sua con cincia
de sua exc
luso da intimidade dos Kallingers na prpria casa deles,
qual, por no ter qualquer outra, ele chamava lar. Os e remeci-
mentos e cises dos telhados fundidos expressavama ince tcza da
criana sobre sua identidade. De uma forma bastante lit ral, ele
.
no sabia quemera, pois a
nacionalidade,
i etnica
de seus pais naturais lhe eramdesconhecidas. Isso o inco odava,
pois ele e todas as outras pessoas sabiamque ele fora adot do.
"Oquarto vazio" do sonho representara sua nsia de t r o que
lhe era negado na vida de viglia. Aparede elo armrio que desapa-
recia representara seu desejo de romper as paredes aprision ntes da
casa dos Kallingers. As barras da janela emforma de meias luas, ali
onde antes houvera uma parede, relacionavam-se coma me natural
de Joe e comos Kallingers. Aforma, representando o prfil dos
seios de uma mulher, expressava a separao da
~ccrian
a.
a de sua
risiona-
me real. Emsi mesmas, as barras eramsim
mento na residncia dos Kallingers. Os telhados fundidos
as pes-
soas que ali estavamrepresentavamseu desejo de liberdade
inclu-
so, seu desejo de ter amigos e ser como todas as outras p- ssoas.
Ohomemgrande e peludo talvez fosse uma transformo on-
rica de seus pais adotivos numa figura que representava senti-
mentos ambivalentes de Joe emrelao a eles. Muito e bora ti-
vesse implorado ao homemcabeludo para no saltar, o edo e o
dio que Joe sentia pelos Kallingers haviamtambmfeito
homen
desaparecer. Entretanto, a casa a que Joe tentava retornar .ertencia
a seus pais adotivos, e era o nico lar que ele tinha. Port nto, pre-
cisava advertir os Kallingers sobre o perigo, embora os tiv sse des-
trudo, simbolicamente, no desaparecimento do homemp udo, re-
presentao transformada deles.
Duas semanas depois, o menino Joe, comoito anos, sara para
fazer umservio para os Kallingers. Antes de voltar
a, pa
numterreno na esquina das ruas B e Cambria, a quatro q arteires
rou
da casa dos Kallingers. No terreno, havia trs grandes tanq es redon-
dos de petrleo abandonados, que erampara ice, na cidad , o equi-
valente da casinhola da fonte no campo. Ele ia freqente ente aos
tanques, a que chamava buracos, quando o mandavamsai para fa-
zer algumservio. Para ele, os "buracos" representavama fuga e a
segurana.
57
Bens de ida e volta do chalemNeshaminy, quando Joe queria
sentar-se na frente comeles. Deitado emsua cama, ele se perguntou
o que eles fariaml, que coisas mgicas aconteceriamdurante a
noite, que eles no queriamque ele visse.
E ento Joe adormeceu. Sonhou que havia entrado no quarto
dos Kallingers. Eles estavamdeitados emsuas camas, comos rostos
voltados na direo oposta a ele, de culos. Eles o castigariamse
o achassemali. Atravs das lentes imaculadas de seus culos viria a
chispa quente de raiva para queim-lo.
Joe estava descalo. Saindo silenciosamente do quarto, desceu
pelo longo corredor ata porta que abria para o que os Kallin-
gers chamavam"o quarto vazio", porque ningumdormia nele.
Oquarto estava repleto, no entanto, dos materiais de consertos de
sapatos de Stephen e dos potes de conservas de frutas e legumes de
Anna. Joe soltou a presilha do trinco e a porta se abriu. Visto
que "o quarto vazio" estivera sempre fora dos limites permitidos a
Joe, ele entrou como umintruso triunfante.
Abriu a porta do armrio. Ali onde estivera a parede, havia
uma janela comgrades que tinhamo formato de meias-luas. Ele
se voltou para colocar-se de frente para a porta do armrio, que
se fechara depois de sua entrada. Empurrou a porta como corpo,
mas "o quarto vazio" tinha desaparecido. Emseu lugar havia um
telhado banhado de sol. Otelhado fundia-se comos telhados vizi-
nhos, formando umnico e amplo terrao.
Nesse amplo terrao havia pessoas empiscinas e emgrupos,
conversando e 'rindo luz do sol. Pela primeira vez emoito anos,
Joe fez amizades, mas sabia que nunca poderia lev-los casa de
seus pais adotivos.
De repente, o sol desapareceu. Os telhados fundidos comea-
rama vergar-se e oscilar, surgindo rachaduras na superfcie. Ten-
tando passar por uma janela da casa dos Kallingers havia umho-
memgrande e cabeludo.
No pule! gritou Joe. No pule!
Mas o homemgrande e peludo saltou pela janela aberta e foi
dando cambalhotas repetidas no ar, ficando cada vez menor, at
desaparecer.
E ento as pessoas, os novos amigos de Joe, desapareceram.
Joe ficou desolado. Os telhados fundidos se sacudiame partiam-se
violentamente. Ele tentou entrar novamente emcasa para avisar
a seus pais adotivos que o mundo se estava despedaando. Nesse
momento, Joe acordou.
56
Ele ..ubia uma escada vertical de 75 metros ato alto do tan-
que, passando ento para outra escada vertical que descia ato
fundo. Sentado no piso do tanque, olhava para o cu e observava
o movimento das nuvens, ou acompanhava algumpassarinho su-
bindo e descendo nas correntes de ar, voando ato limite da viso
de Joe, que era marcado pelo topo do tanque. Ele conversava com
os espritos que acreditava moraremno tanque, e sentia-se empaz.
Nessa tarde de vero de 1 944, enquanto o mundo estava em
guerra, a paz do santurio do tanque tambmchegou ao fim. A
medida que o menino de oito anos desceu da escada para o piso
do tanque. descobriu que no estava sozinho. Havia deparado com
trs meninos a quemconhecia de vista, mas no pelo nome. Eram
bemmais velhos do que ele, o que o fez sentir-se fraco e peque-
nino. Joe queria que os meninos fossemembora, pois sentia que sua
privacidade fora violada e que os espritos se ressentiriamda in-
tromisso dos estranhos.
Eles estavamfazendo movimentos estranhos comos corpos,
movimeldos que Joe nunca vira ningumfazer antes. Semter ja-
mais tido qualquer experincia sexual e nada sabendo a esse res-
peito, ele no sabia que umdos rapazes estava praticando falao
e que o terceiro, que os observava, estava-se masturbando. Joe
observou que o menino cuja mo ia rapidamente para a frente e
para trs na frente de suas calas abertas estava sorrindo estranha-
mente; que o menino de pemfrente de seu companheiro ajoelha-
do movimentava a parte inferior do corpo emmovimentos lentos
de impulso. Sua camiseta estava enrolada acima do alto das calas.
Orapazola que se masturbava voltou a cabea na direo de
Joe e, subitamente, parou. Ei, disse ele, olha af aquele garoto
dc sapateiro, ali emp. Ogaroto ajoelhado recuou a cabea, enxu-
gou a boca como dorso da mo e virou-se, agachado, para olhar o
menininho de pjunto escada, do outro lado do tanque. Ase-
guir, levantou-se, correu atJoe e agarrou-o pela camisa. Arrastou
Joe pelo tanque atjunto de seus amigos.
Omenino que se tinha estado masturbando retirou do bolso
uma faca fina. Agarrou o cabelo de Joe coma outra mo e encos-
tou a parte plana da lamina na garganta de Joe. Disse: No grite,
seno voc se corta, entendeu? Pressionando a lmina commais
fora na carne de Joe, prosseguiu, N6s vamos tirar as suas cal-
as e esse cara aqui vai lhe dar uma chupada. Se fizer algumba-
rulho, voc est morto, sacou? Puxaramas calas de Joe para baixo
e empurraram-no para o cho do tanque, onde ficou deitado de
58
costas. Ento, o rapazola que arrastara Joe pelo tanque ajoelhou-se
ao lado dele e cobriu-lhe o pnis coma boca. Seus dois amigos fi-
caramde p, cada qual comuma faca numa das mos, masturban-
do-se coma outra enquanto observavam.
* * *
Do tanque, Joe foi para a loja de conserto de sapatos. Enquanto
arrancava saltos dos sapatos e enchia cestos de palmilhas para sal-
tos, sentia-se sujo e enjoado por causa do que lhe fora feito no
tanque. Mas tambmficou pensando no que tinha visto os rapa-
zes do tanque fazeremuns comos outros. Ficou imaginando se o
que as mes e pais faziamuns comos outros se parecia comaquilo.
Joe nunca recebera nenhuma instruo sexual almde ser in-
formado de que o sexo era ruim, sujo e pecaminoso! Osexo, disse-
ram-lhe, estava ligado a umdemnio, e quando se faz comque o de-
mnio v embora, ningumjamais se mete emconfuso. Joe estava
muito confuso.
Osexo uma encrenca, ponderou. Meti-me numa encrenca no
tanque. Mas o Dr. Daly fez o demnio sair do meu passarinho. J
que o demnio foi-se embora, no possvel que eu me meta em
encrencas. Mas me meti. Tudo isso muito misterioso. As mes e
o. pais fazemalguma coisa uns comos outros. Ser que isso en-
crenca?
No tanque, Joe fora, pela primeira vez, uma testemunha silen-
ciosa da experincia sexual de outrem, e foi no tanque que, com
uma faca encostada na garganta, ele prprio foi iniciado no sexo.
Naquela noite, semsaber o que esperar, ele trepou numa ca-
deira e espiou o quarto dos pais adotivos pela janelinha acima da
porta. No ouviu nada, mas pde ver os Kallingers, cada umsozi-
nho emsua cama. Estavamdeitados emsilncio e ele no soube
dizer se estariamdormindo.
Quando olhou pela janelinha alguns dias depois, novamente
viu os Kallingers emsuas prprias camas. Dessa vez, porm, estavam
conversando sobre os negcios do dia que acabara e do que ainda
no havia comeado. Depois, comearama falar sobre todo o di-
nheiro que estavamgastando comele e de como esperavamque
esse dinheiro no fosse desperdiado. Joe no gostou de que pen-
59
sassemnele como umdesperdcio de dinheiro. Voltou para seu
quarto e para a cama.
Qualquer criana ou qualquer adulto ficaria aterrorizada
sc lhe fosse encostada uma faca na garganta. Para Joe, o terror nor-
mal foi
complicado pelas facas de seu passado: a faca de cabo
verde na loja Kallinger, que cortava couro; a faca que o Dr. Daly
tinha usado para cortar a carne de umgarotinho e, supostamente,
para expulsar o demnio do "passarinho"; a faca como pnis de
Joe no espelho, depois da castrao simblica na sala de estar. Mas
enquanto essas facas faziamparte da vida de fantasia de Joe, a
faca encostada emsua garganta no tanque fora uma realidade hor-
renda. Era uma realidade que iria fazer parte de sua vida de fan-
tasia,
e as realidades posteriores seriaminfluenciadas pela fantasia.
Tal como a castrao simblica na sala de estar, a cena do
tanque foi fundamental no desenvolvimento de Joe. Os rapazolas
do tanque, assimcomo
o Dr. Daly, eramos gigantes que o
contro-
lavam. Por conseguinte, ele vinculou o sexo coma violncia, espe-
cialmente comas facas, e ligou sexo e violncia ao poder.
Outras crianas tiveramexperincias similares semsofrerem
graves danos psicolgicos. No caso de Joe, o estupro oral no tan-
que foi complicado pelas experincias passadas. Na poca, ele j
havia sofrido o violento trauma subjacente que decorrera de sua
castrao simblica e que se tornou a matriz de sua psicose adulta.
Ao episdio do tanque e ao trauma violento Joe associou sua
preocupao comas facas que vira na loja de conserto de sapatos
dos Kallingers, sua alienao forada das pessoas e o senso oscilante
de sua prpria identidade, tal como revelado pelo sonho emque o
terrao era sacudido. Associou tambma esterilidade emocional e
cultural de sua infncia na casa dos Kallingers, bemcomo o sen-
timento de vergonha ligado ao sexo que, parte as exorcizaes
repetidas do demnio do "passarinho", os Kallingers haviamins-
tilado.
Tera-feira, i 1
de dezembro de 1 945, foi o
nono anivers-
rio de Joe. Sendo alto para sua idade e esguio, ele era umbonito
menino. J no tinha o rosto redondo e rechonchudo, e simum
rosto longo e estreito. Os olhos eramtristes, e o rosto, s ,
petulante ou carrancudo.
Naquela manh, andando comAnna para a Igreja e Escola St.
Boniface, Joe cantarolava baixinho, "Feliz aniversrio para mim,
feliz aniversrio, querido Joe".
Eu a tirei de
l, mas se voc continuar assim, vou queim-la
Ande, venha! Comporte-se!
o ilu-
minada que levava ata porta do moinho. Sobre eles, nad
alm
do cu. Joe tornou Hilda nos braos e abraou-a estreitame te. Ela
tirou a calcinha e ele abriu a braguilha.
Acariciaram-se
e o 'passa-
rinho" ficou duro. Tiveramrelaes completas, ambos chega do ao
orgasmo, e Joe deleitou-se comos seios minsculos de Hilda.
No houve sangue, e Joe ficou contente. Aviso
de sangue
de
sua determin o de
9
90
Joe tinha duas noites livres por semana, que passava comHil-
da. Freqentemente, iam passagemdo moinho da Avenida Lehigh.
Depois que Joe ingressou no Ginsio Northeast, porm, fizeram
do ptio da escola o local de seus encontros. Geralmente, sentavam-
se numbanco, apenas para conversas. Depois, iamatos fundos do
ptio, onde ficavamestacionados os carros usados durante o dia pe-
los alunos que cursavammecnica de automveis. Por trs das fi-
leiras de carros e escondidos de quemquer que entrasse no ptio,
Joe continuou a ser o amante terno e apaixonado de Hilda. E seu
afrodisaco continuou a constituir-se dos pensamentos selvagens, to
diferentes de seu comportamento, que estimulavamsua potncia.
Para restituir a si mesmo a potncia que a faca do Dr. Daly
supostamente retirara, Joe tinha de visualizar-se cortando comuma
faca, tal como o cirurgio supostamente o cortara durante a operao.
Os "maus pensamentos", como ele os chamava, excitavamJoe,
mas no diziamrespeito Hilda. Ele no queria feri-la e ela no
aparecia nas fantasias. No entanto, quando ele as impedia de sur-
gir, como s vezes tentava fazer, seu pnis permanecia mole e
semvida. Para ser apaixonado e potente, ele precisava reacender as
fantasias de restituio.
Aos 1 5 anos poca do sucesso de Joe na loja e comHilda
havia novos terrores. Ele comeou a associar OSombra, seu
programa favorito de rdio, como que lhe estava de fato aconte-
cendo. No programa, OSombra desaparecia e reaparecia, e Joe
tinha a impresso de que o Joe Kallinger a quemconhecia tambm
estava desaparecendo, pois via no espelho que sua aparncia e suas
expresses faciais j no eramas mesmas.
Outra coisa importante estava acontecendo. Na idade adulta, ele
seria atormentado por contores e volteios do corpo emmovimentos
ondulantes. Esses movimentos estavamagora ocorrendo pela primei-
ra vez. Ocasionalmente, sua cabea se agitava de umlado para outro,
especialmente quando ria. E havia tambmumoutro riso, completa-
mente diferente daquele que reconhecia como seu.
Esse outro riso vibrava, rugia e sibilava. Jorrava semprovoca-
o externa e era acompanhado de sensaes convulsivas no est-
mago. Quando esse riso tomava conta dele, Joe sentia uni amplo sor-
riso dominando sua expresso facial e espalhando-se por seu rosto.
As vezes, quando se olhava no espelho, via o sorriso transformar-se
numesgar. E o silvo do riso parecia irromper do esgar.
Joe tentava desligar essa gargalhada, mas o riso cavernoso que
vinha de suas profundezas continuava a rugir. Ele tentava parar o
92
riso colocando a mo na boca, mas o riso continuava. Essa risada,
Joe percebeu, tinha vontade e personalidade prprias. Assim como
se havia considerado a marionete do "demnio" numa das viagens
de nibus e sob a ponte Silver, era agora a marionete da risada.
Ficava a imaginar se o riso seria parte do "demnio" e se o "de-
mnio" estaria transformando a ele, Joseph Kallinger, numa outra
pessoa. Se assimfosse, ser que o "eu" que ele pensava conhecer, tal
como o Sombra no programa de rdio, reapareceria?
Oque restava de slido era o trabalho de consertos de sapatos.
Joe era umperfeccionista, e os fregueses procuravampor ele, pois
o acabamento que dava tais sapatos ..:almente durava. Aos 1 5 anos,
era tAmbm umespecial .!a emtrnbalhos ortopdicos.
Certa tarde, de pemsua bancada de trabalho, Joe ergueu os
Olhos e viu uma luz brilhante. No centro da luz havia uma grande
figura, que o fez sentir riestava na presena de Deus. Ouviu
uma voz de comando prol ...da e ressonante:
Joe Kallinger, vet.,: uma pessoa especial e deve cumprir
uma misso especial. Comseu trabalho ortopdico, voc j vemdi-
minuindo as dores nos ps.- pe-sSOtambma chave do crebro. ,
Sua misso controlar o crebro atravs dos ps. E isso o que eu,
o Deusab" Universo, lhe ordeno que faa. Voc isar esse mtodo
para curar a si mesmo e para curar a humanidade. Voc deve curar e
salvar!
Aluz clara desapareceu e, comela. a figura que era de Deus,
mas o sentimento de elao que se apossara de Joe na presena de
Deus persistiu mesmo depois de ele ter voltado a consertar sapatos
Joe ficou perturbado coma ordemde curar a si mesmo. Estava
perturbado por aqueles movimentos estranhos e pelo riso estranho,
mas no gostava de admitir que houvesse algo errado nele que de-
vesse corrigir. No obstante, a ordemde corrigir-se era umdesafio.
Talvez, pensou ele, pudesse fazer comque os movimentos e a risada
desaparecessem. Joe no sabia que estava mentalmente enfermo.
Igualmente tocante era a ordemde salvar a humanidade. Ele
comearia pelos norte-americanos, mas acabaria por curar todos
os homens, mulheres e crianas da Terra. "1 -1 uni destino que mol-
da nossos propsitos", recordou de sua leitura de Hamlet. Depois,
pensou comironia, mas no comamargura: nunca fui parte de
ningum. Mas agora, vou salvar todo o mundo.
Sob o encanto desses delrios e da alucinao de ter visto Deus,
Joe passou :mediatamente a trabalhar no primeiro dos mais de
93
40.000 experimentos ortopdicos que iria fazer entre 1 951 e 1 972,
dos 1 5 aos 36 anos.
Emseus primeiros experimentos, Joe usava uma faca pontiagu-
da ou de ponta recurvada para modelar calos para saltos emcouro
ou borracha. Os calos iamde 1 /1 6 a 1 /4 de polegada de altura.
Usando a si prprio como cobaia, ele colocava os calos sobre o
salto dentro do sapato. Apesar de alto no lado externo do salto, o
calo se reduzia a quase nada na parte interna. Erguendo o lado
externo, ele conseguia inclinar o ppara dentro. Ao faz+lo, tinha
uma sensao de relaxamento nas pernas e na coluna. Apartir dis-
so, desenvolveu sua teoria de que o calo podia modificar ti posio
do corpo; de que as mudanas no corpo produziamalteraes qumi-
cas no crebro; de que essas alteraes qumicas levariam cura
mental e emocional que Deus o havia instrudo a realizar.
Joe trabalhava nos experimentos emseus horrios livres na loja
e, por vezes, antes de ela abrir e depois de fechar. Mas no falava
comningumsobre eles. Colocou-os emseu mundo secreto, para
substituir Tommy e as borboletas.
Oque ocorria no mundo secreto, contudo, no silenciava o ru-
gido do riso ventral de Joe. Com
medo do riso, Joe temia tambma
si mesmo. Os Kallingers tambmtinhamobservado as expresses;
faciais de Joe, as contores e volteios de seu corpo, e os trejeitosii
de sua cabea. Tinhamouvido seu riso ventral e viramtambmou-,
tros sinais novos e inquietantes emJoe. Havia ainda nele uma frie-
za que o fazia diferente do que fora antes.
Certa noite, no corredor superior da casa dos Kallingers, Joe
descobriu que eles haviaminstalado uma tranca Yale de tamanho
padro na porta do quarto. Atranca s podia ser controlada do in-
terior da quarto.
Os Kallingers, pensou Joe a princpio, haviamcolocado a tran-
ca para afastar os ladres. Ficou menos seguro sobre os ladres ao
observar que eles s a usavamquando estavamdentro do quarto.
Quando, atravs da porta aberta, Joe viu que eles agora mantinham
umtaco de beisebol junto dela, sentiu gotas de suor na testa, pois
soube que a tranca e o taco de beisebol estavamali porque seus
pais adotivos estavamcommedo dele!
Joe no sabia por qu. Nunca batera neles, nemsequer chegara
a levantar a mo contra eles, mesmo quando o espancavamou quei-
mavamnemmesmo quando ficava louco de raiva. Eles no
tinhamnenhumconhecimento das viagens de nibus nemdo que
acontecera embaixo da ponte. Nemsequer tinhamconhecimento do
campo de tiro no Acampamento Downington. E, de qualquer modo,
tudo
isso era passado. Ser que
sabiamdas idias de cortar
e ele
tinha durante as relaes sexuais? No poderiamsaber. J.e no
conseguia entender por que os Kallingers estavamcommedo Nele.
Quando lhes perguntou por que haviamerguido uma ba ricada
contra ele, os Kallingers s6 lhe disseramo que ele mesmo j
tinha
observado.
Eu no queria mago-lo.
Os velhos Kallingers lhe tinhamdito
que seu pnis no cresce-
ria.
Agora, Hilda estava dizendo que no tinha crescido. No
nvel
racional, Joe achou que a zombaria dela sobre seu pnis pequeno,
pela primeira vez, aps todos esses anos, era absurda. Mas,
no nvel
emocional, acreditou nela e sentiu que ela sempre achara seu
pnis
pequeno demais, pormno lhe dissera isso. Hilda havia despertado
os medos que o mito sobre "o passarinho" tinha gerado.
Mais uma
vez,
Joe caia na armadilha da iluso de que lhe faltava potncia
sexual. Sentia-se tambmimprestvel. Aescurido
do passado come-
ava
a mesclar-se coma nova escurido do presente.
1 05
encontrar voc numa ruela escura quando estivesse relampejando".
Hilda apanhou seu travesseiro e
umcobertor e saiu do quarto. joe
no tentou det-la.
Em1 2 de janeiro de 1 956, no Hospital St.
Mary's, Hilda deu
luz umfilho.
Chamaram-no
Stephen, emhomenagemao pai dotivo
do mag
icamente, como fizera ao ter a not cia da
Todas as noites, quando ia para a cama, Joe esperava no ser
castigado por ter umpnis pequeno. Ao zombar de seu pnis, Hilda
vestira a mscara e tornara-se a persona de Anna Kallinger, que lhe
dissera que seu pnis no cresceria e que freqentemente lhe infligira
muitos
castigos humilhantes e fisicamente dolorosos. Joe tinha sen-
tido medo de sua me adotiva; agora, tinha medo de sua mulher, no
papel de me punitiva. Embora Hilda no se transformasse emAnna
no mundo delirante de Joe, ele quase chegava a esperar, nos momen-
tos de ansiedade, que ela falasse ingls comumsotaque alemo e
que terminasse (ou comeasse) suas degradaes por Dummkopfl
Emsetembro de 1 955, o casamento que Joe pensava ter sido
preparado no paraso passou a ser proliferado no inferno, Sempre
que Hilda lhe dizia, "V se foder, Joe", ele imaginava estar-se de-
batendo e urrando na montanha dos amaldioados, como corpo re-
torcido de angstia e horror.
Eu tinha certeza de ter derrotado o passado, de te-lo derruba-
do no cho, disse-me Joe. Mas, quando meu casamento comeou
o se deteriorar, passei a ouvir, de vez emquando, o riso vindo da
barriga, e a sentir meu corpo mexendo-se como uma cobra. Tentei es-
conder essas coisas de Hilda, mas no sei se consegui. Havia tam-
bmuma outra coisa: passei no s a duvidar de minha potncia
sexual, como tambmcomecei a ver o corpo nu de Hilda da mesma
maneira que havia olhado para as fotografias de mulheres nuas,
quando costumava masturbar-me no buraco da parede de meu quar-
to, na casa de meus pais adotivos. Na verdade, no queria machucar
Hilda, e certamente no nosso filho por nascer, Mas, felizmente, as
coisas que eu
imaginava desapareciamquase to depressa quanto
apareciam. E eu estava atento aos sinais ruins emmim. Na loja,
continuava a trabalhar emmeus
experimentos ortopdicos minha
misso de salvar a humanidade. E trabalhava tambm, agora, nos
experimentos para corrigir a mim mesmo.
Joe comeou a dar ordens a Hilda para que se aprimorasse
como me e dona-de-casa. Ela respondia rindo-se dele. Disse-lhe para
onde ele poderia ir
e o que podia fazer consigo mesmo e comseu p-
nis
pequeno. Almdisso, ele era maluco, no tinha nada que ser
pai, e ela simplesmente no estava disposta a receber ordens dele!
Certa noite, eles estavamna cama, aps uma discusso aos
gritos, quando Hilda levantou-se de repente e disse a Joe que no
podia suportar dormir perto dele. Disse que ele se parecia comal-
guma coisa que ela vira numfilme de terror, comseu rosto "ama-
lucado e desfigurado". Portanto, fada-se, Joe. Eu no gostaria de
1 06
ue loa.rcubAu
gravidez de
Hilda, Joe fantasiou que o
beb que ela nao quis ra
restituir a felicidade do casamento. Joe s havia conhecido felici-
dade duas vezes: quando desempenhou o papel de Scrooge e no pri-
meiro ano de casamento comHilda.
Anna Kallinger ia casa de Joe e Hilda de vez emquando,
para ver seus dois netos. Contava a Joe que Hilda freqentemente
dormia atmeio-dia, deixando os bebs semcomida e comas fral-
das
encharcadas. Os
vizinhos tambmtinhamreparado nas fraldas
encharcadas e na falta de alimento. Segundo Joe, Anna tambmlhe
disse que Hilda s dava s crianas emendoime soda gaso a. No
havia leite emcasa, nemquaisquer outros alimentos oacriti os.
Joe chegou emcasa, na noite
seguinte conversa comAnna, ar-
doara travar uma batalha comsua mu. Eles gritar
raramobjetos, embebedaram-se e gritaramumpouco
m, ati-
Explo-
diramumcomo outro emmuitas outras noites. Avida de a bos se
transformara numacesso de raiva mtuo. Muitos dos vizi hos da
Rua Masher lamentavampelos bebs Kallinger, mas a maio ia deles
tinha pouca simpatia por Hilda e Joe.
Joe acreditava ter-se tornado igual a todo o mundo, ma os ho-
mens da Rua Masher no gostavamdele, porque "ele no se dava
comningum". Consideravam-no "umsujeito
fechado e es
uisi to".
As mulheres da Rua Masher no suportavamHilda, porque os be-
bs dela eram
"sujos e malcuidados"
e ela era "namoradeira". As
sobrancelhas se
erguiame as lnguas eramespichadas quan
do Hil-
da ia a uma fbrica prxima, como freqentemente faz a, para
flertar comos operrios que almoavamdo lado de
fora.
Numa noite do final de setembro
de 1 956, joe chego do tra-
balho
e encontrou a pequena Annie,de dois anos,
brincando sozinha
com
seus cubos
de armar na sala, e Stevie, de oito meses, o andar
superior, no quarto das crianas, agachado no bero, des ssistido.
Salvo pelo barulho dos cubos de Annie, a casa estava emsilncio.
Joe
percorreu todos os cmodos, mas Hilda se fora.
Por alguns minutos, Joe ficou na frente da casa, chama do pela
esposa. Nenhumsinal dela. Tornou a entrar. Quemsabe pensou
comamargura, ela foi ao armazmcomprar mais soda e a endoim.
1 07
Anoite foi passando. Andando de umlado para outro emseu
quarto, perguntando-se por quanto tempo ainda teria de esperar por
Hilda, Joe lembrou-se tambmdas muitas noites emque, s duas ou
trs horas da manh, ouvira umcarro parar emfrente a casa e a
porta do carro bater. Depois, como disse Joe, "Hilda entrava caiu-
baleante, fechando a porta da frente comestrondo, comas roupas
amarfanhadas, semnemsequer tentar ficar umpouco mais sbria
para dar uma olhada nas crianas".
Estava ficando tarde, e Hilda no tinha voltado. Joe no tinha
curteza do que fazer. Foi ato armazm, comprou leite, po fresco
e queijo, e correu para casa. Alimentou Annie e Stevie e colocou-os
na cama. Ainda no havia nenhumsinal de Hilda.
Pela manh, visto que Hilda ainda no tinha voltado, Joe falou
comalguns de seus vizinhos. Depois de se queixaremda barulheira
que ele e a mulher constantemente faziam, os vizinhos lhe disseram
que, na tarde anterior, Hilda havia partido comumhomem. Joe
agradeceu-lhes e, cheio de auto-recriminao, voltou para casa. "Eu
tinha razo para me ressentir do modo como minha mulher fazia as
coisas", disse-me Joe mais de vinte anos depois, "mas no se podem
olhar as coisas de umlado s. Minha mulher deixou de me amar e
creio que isso se deveu, principalmente, ao fato de ter encontrado
algumcommais potncia sexual do que eu podia oferecer".
Dois dias depois da partida de Hilda, Joe observou que a bar-
riga de Stevie estava inchada e que seu peito parecia afundado. O m-
dico disse que ele estava sofrendo de desnutrio. Joe nunca ouvira
essa palavra, mas percebeu, aps a explicao do mdico, que isso
acontecera porque Stevie fora alimentado comsoda, emvez de leite.
Omdico receitou uma frmula, deu injees emStevie e ia v-lo
periodicamente.
Na noite emque Joe descobriu que Hilda se fora, planejou au-
sentar-se do trabalho por alguns dias e ficar emcasa, atdecidir o
que fazer comas crianas. Uma vizinha, porm, ofereceu-se para
cuidar delas enquanto ele estivesse trabalhando. Cerca de uma se-
mana aps a partida de Hilda, Joe colocou Annie e Stevie comunia
famlia que hospedava crianas nos subrbios, perto de Norristown,
na Pensilvnia. Da adorvel casa colonial emque estavammorando,
Joe levava Annie e Stevie para casa nos fins de samena, cuidava de-
les e dava continuidade ao tratamento mdico de Stevie. Hilda no
tinha voltado, e Joe decidiu tentar encontr-la.
Soube pelos amigos dela que Hilda estava comumnamorado,
Hans Ibler, e que os dois estavamvivendo juntos no carro de Ibler.
Todos os dias, depois do trabalho, tendo obtido o nmero da placa,
Joe vasculhava a cidade de Filadlfia procura do carro emque
Hilda c Ibler supostamente estariammorando. Ficava pensando que
talvez os amigos de Hilda se estivessemsimplesmente divertindo a
obscrv-lo, sabendo que ele estava percorrendo a cidade embusca
de umcarro emque ningummorava .
Aps duas semanas de busca exaustiva, loe finalrnente encon-
trou o carro de Ibler. Estava estacionado numlugar afastado, perto
de umcemitrio. Joe olhou para as placas de pedra e as sepulturas
por sobre o muro, e depois voltou os olhos novamente para o carro
de Ibler. No conseguia compreender. Assegurou a si mesmo que
no poderia ter sido to mau marido e pai a ponto de sua mulher
desert-lo e abandonar os filhos por umhomemsemcasa, que nada
tinha de melhor a oferecer a Hilda do que a vida numautomvel.
Espalhados emvolta do carro e largados pela grama alta esta-
vampratos de papel, garrafas de cerveja, fragmentos de comida, uten-
slios de plstico e outros sinais da administrao domstica de Hil-
da. Olhando para o lixo, loe viu que ela no mudara nemumpouco
.
Silenciosamente, andou ato carro e olhou pela janela lateral tra-
seira, que estava fechada. Hilda estava estirada no banco de trs.
Usava uma saia estampada e uma blusa que Joe se lembrava de ter
lhe comprado. O
banco da frente estava vazio. Ibler no estava ali.
Hilda, numsusto, sentou-se.
Deus do cu, Joe, gritou pela
janela fechada, saia daqui! Cai fora! Como que voc soube crida
eu estava? Pela janela fechada, Joe respondeu, tambmgritando, que
Annie chorava pedindo sua me e
que Stevie estava doente. Prome-
teu a ela que no haveria mais brigas. Tudo, garantiu-lhe, seria to
perfeito quanto fora quando ele lhe deu o ramo de Beldades
Ameri-
canas. Hilda sacudiu a cabea. Disse em' voz alta:
Nunca volta-
rei para voc, entendeu, Joe? No amo voc. Voc Lhe assusta, porque
maluco. Agora, v embora!
Joe s tinha
uma explicao para o fracasso de seu casamento:
Hilda o abandonara por ter encontrado umhomemcommais po-
tncia sexual do que ele tinha a oferecer. No tinha nenhuma idia,
claro, da potncia sexual de Ibler. Mas a zombaria de Hilda sobre
seu "passarinho" e o fato de ela ter ido embora despertaramo del-
rio do pnis
pequeno de Joe, e ele estava repleto de sentimentos do-
lorosos de desvalia e baixa
auto-estima. Vinte anos depois de Hilda
hav-lo rejeitado no carro, naquela noite de outono, ele disse ao Dr.
1 08
1 09
cia regularmente missa e se confessava, solicitou o divorcia
tribunal civil. Otribunal informou-o de que, embora ficasse
custdia de Anna e Stephen, Hilda Kallinger tinha c dir
J
eito
oe
d
.
e t
a um
coma
ver os
azia as
ele os
Robert Sadoff, umdos psiquiatras que depuseramemsua defesa:
"Minha operao de hrnia provavelmente levou, de fato, perda de
minha mulher". Esse delrio, tal como comprovado pelos atos agres-
sivos da infncia de Joe, seria tambma matriz de seus crimes.
Por ora, Joe era umhomemabatido, humilde o bastante para
ter esperanas de salvar seu sonho da famlia, conseguindo ainda
convencer Hilda a voltar para ele.
No carro, Hilda o havia rejeitado de modo hostil e definitivo. J
que ela se fora definitivamente, Joe achou que sua esperana de ter
uma famlia grande fora feita empedaos, pois no conseguia ver-se
enfrentando novamente ummundo que tinha tantas mulheres do-
minadoras, de seios grandes, e to poucas mulheres dceis de seios
pequenos. Tinha que ter Hilda a seu lado, embora no soubesse
como traz-la de volta. Semela, seu sonho da famlia estaria perdido
para sempre.
Certa manh, Hilda veio porta de Joe. Ele tinha certeza de
que ela voltara para casa, mas ela lhe disse que era melhor achar
outra coisa. Viera apenas buscar Annie e Stevie. As crianas estavam
na casa onde eramhospedadas, mas Joe fingiu que estavaml dentro.
"No vou deixar que voc se aproxime delas", disse, fechando a
porta sua mulher,
Do interior da casa, Joe observou-a quebrar as janelinhas da por-
ta. Estava tentando entrar, mas no conseguiu. Oque de fato con-
seguiu, semsaber que o fazia, claro, foi estilhaar as esperanas de
reunio de Toe.
Fihda a esperana, Joe cedeu prontamente ao desejo dos Kal-
lingers de vender a casa da rua Masher. Eles o fizeramrapidamente
e ordenarama Joe que se mudasse outra vez para a casa deles. Com
o sonho da famlia despedaado e o esprito abatido, ele obedeceu do-
cilmente ordeme voltou para a casa que fora sua priso na infn-
cia, e da qual tinha escapado para ficar comHilda.
Joe estava de volta ao quarto onde havia cavado o buraco na
parede, que seu pai adotivo no se dera o trabalho de emassar des-
de sua partida aos 1 5 anos. No sentiu nenhuma tentao de us-lo,
mas apenas unia recordao das fantasias de retalhar que haviam
acompanhado sua masturbao no buraco e que tinhamcomeado ali.
Aquelas eramas fantasias que Toc levara consigo para o casamento
comHilda e que nunca o haviamabandonado.
Joe tentou concentrar o pensamento emquestes prticas, tais
como fazer comque a Igreja anulasse seu casamento comHilda. De-
pois que isso lhe foi recusado pela Igreja da Visitao, onde compare-
1 1 0
dois filhos duas vezes por semana. Isso stg
crianas dos subrbios perto de Norristown para passar co
fins de semana, e ia busc-las emdois dias, todas as semana
l
s, para ,
Joe era frio nos breves encontros comHilda, quando levava as
que vissema me.
crianas para v-la. No continuou frio, no entanto, quando soube
pela pequena Annie que, durante as visitas, Hilda ensinava acrian-
fn
as a chamar Hans Ibler de "Papai". Hilda e Ibler estava com-
prometidos e estava claro para Joe que ela iria tentar obter cust-
dia dos filhos a quemhavia abandonado.
Profundamente agitado Joe no conseguia dormir, perde .
o ape-
tite e parou de fumar. Ainda no chegara a seu vigsimo primeiro
aniversrio, mas sentia-se to depauperado quanto umvelho Sentia
intensas dores
nas tmporas, especialmente quando estava trabalhando.
Aprincpio, a medicao surtiu efeito, porem, emagosto de 957, os
remdios revelaram-se inteis, mes?ho quando administrados emdo-
ses mais altas. Omdico o mesmo Dr. Daly que havia fetuado
a operao de hrnia de Joe suspeitou de uma leso ce ebral e
hospitalizou-o no St. Mary's, em4 de setembro de 1 957.
Ohospital eliminou a hiptese de leso cerebral como c usa das
dores de cabea e, passados onze dias, deu alta a Toe, commdiag-
nstico de "distrbio nervoso psicopatolgico e estado de ans edade".
Segundo o Manual Diagnstico e Estatstico de Distrbios Mentais
da Associao Norte-Americana de Psiquiatria, os distrbi s psico-
patalgicos so "distrbios fsicos de origempresumivelmate ps-
quica". Isso significa que as dores de cabea de Joe eramintomas
fsicos resultantes de causas emocionais, e que os mdico do St.
Mary's considerarama angstia psicolgica de Toe como efei o direto
de sua crise familiar e da perda da mulher.
Na ocasio, era impossvel aos mdicos preveremos feitos a
longo prazo da perda da mulher para Toe. Essa perda, contudo, mes-
clada aos abandonos que ele sofrera no passado, intensifi ou seus
delrios e tornou-se umfator psicolgico importante no deSenvolvi-
mento de sua psicose: a esquizofrenia.
Umpsiquiatra do Hospital St. Mary's explicou a Joe que ele
precisava reduzir as tenses de sua vida e que, portanto, e a-lhe es-
sencial parar de arcar coma responsabilidade integral pelo dois fi-
lhos. Joe admitiu que ser pai sozinho era difcil, mas quetiia deses-
1 1 1
peradamente manter Annie e Stevie a seu lado. Entretanto, o psi-
quiatra deixou claro que isso seria umconvite a problemas psicol-
gicos adicionais. Temendo que, se perdesse o controle, Hilda conse-
guisse obter a custdia, Joe continuou a hesitar, No queria confiar
seus filhos a Hilda, que os havia abandonado, nema lbler, que fu-
gira coma mulher de outro homem. Joe se considerava o genitor mais
competente, porque, salvo pelas viagens de nibus e pela ponte no
passado, tinha levado uma vida limpa.
Aadvertncia do psiquiatra, no entanto, convenceu-o de que,
mesmo preservando seus filhos, tinha que fazer algumas mudanas
emprol de sua sade. Tentou reduzir a sobrecarga emsi mesmo co-
locando Annie e Stevie aos cuidados da Agncia Catlica de Crian-
as. Nesse novo arranjo, as crianas foramcolocadas numinternato
particular selecionado pela agncia. Os custos foramreduzidos, pois
Joe tinha que pagar apenas pela metade da internao, cabendo
organizao pagar a outra metade. Aresponsabilidade tambmdi-
minuiu, pois Joe no tinha permisso de levar as crianas para casa
nos fins de semana ou de lev-las para visitar a me.
As antigas tenses tinhamsido eliminadas, mas havia outras
a
tomar-lhes o lugar. Joe no conseguia suportar a solido aflitiva de
no ter os filhos a seu lado nos fins de semana e o vazio de no ter
nada que fazer emsuas horas de folga. J no se sentia como todas
as outras pessoas e no tinha nenhuma inteno de sair ou se-
quer de aproximar-se das mulheres de seios grandes, que o ater-
rorizavame a quemele via como dominando o mundo. Emseu es-
tado delirante, tinha certeza de que elas o-destruidMtQnmseus-seios
esmagadores, de que o sufocariame afundariamemcamada aps ca-
mada de carne, atque ele ficasse aprisionado imobilizado como
uminseto no mbar. Ao trmino de seus pesadelos, gritando e agi-
tando os braos, Joe emergia de umemaranhado de lenis que, no
sonho, eramexrcitos de mulheres parecidas comMae West; elas
atacavamseu corpo nu e prostrado, comos seios como
bastes imen-
sos a pulveriz-lo e os mamilos a cortar-lhe a carne.
As mulheres de seios pequenos eramdemasiadamente pouco nu-
merosas, no mundo delirante de Joe, para fazer comque valesse a
pena o esforo de sair comelas. Almdisso, ele ainda tinha espe-
ranas de que, de algummodo, conseguiria trazer Hilda de volta.
Joe dissera ao psiquiatra do Hospital St. Mary's que fora "quei-
mado" de modo to doloroso que no mais olharia para as mulhe-
res. Cedo, para preencher as longas horas vazias, comeou a passar
pelo menos umdia, e freqentemente dois, emcada fimde semana,
1 1 2
comAnnie e Stevie emsua nova casa e
emcada uma das casas
para onde a Agncia Catlica de Crianas os transferia.
No conse-
guia
suportar separar-se deles, pois eramextenses de si prprio e a
nica parte remanescente de seu sonho perdido de ter uma famlia
grande.
Odivrcio de Joe e Hilda tornou-se definitivo em
3 de janeiro
de 1 958. Algumtempo depois, numa manh de domingo, ele ficou
deitado emsua cama, no quarto da infncia e da adolescncia, revi-
vendo os infortnios que o haviamatingido. Seus pais adotivos es-
tavamna igreja, mas Joe se recusara a ir com
eles: o Vaticano o ha-
via
excomungado por causa do divrcio civil. Ningum, claro,
im-
pediria Joe de entrar na igreja de sua parquia, mas ele se manteve
afastado, enraivecido pela excomunho. Ela o atingira como impac-
to de umquarto abandono: primeiro, sua me natural, e depois a me
adotiva, haviam-no feito sentir-se imprestvel e desamado; depois,
Hilda, sua mulh, que se transformara nua me punitiva
emsuas
fantasias; e agora,
er
a Igreja Catlica. Joe sentia-se
ntia-se desolado.
Deitado na cama, virou
-se
para o lado e olhou pela janela. Os
domingos emKensington eramsilenciosos
e melanclicos. Joe pen-
sou emElizabeth (Betty) Baumgard, a quemconhecera na estao
de tremde Norristown, na rua Dekalb, numa tarde de sexta-feira de
junho
de 1 957, quando ele e as crianas
esperavampelo trem
de
Filadlfia que os levaria para o fimde semana emcasa, saindo da
casa de criao particular onde ele as havia colocado depois da parti-
da de Hilda. Estava sentado numbanco, e as crianas, emfrente a
ele, brincavamcomuma grande bola vermelha. Annie jogou a bola
para Betty, uma mulher alta, vestindo calas de brime
uma blusa,
que estava sentada comsua irm, Patsy, numbanco emfrente a Joe.
Betty jogou a bola de volta para Annie. Joe sorriu e disse "Obrigado".
Stevie pegou a bola
de Annie e jogou
- a
para Betty. Ela
tornou a de-
volv-
la. Joe sorriu e disse, "Obrigado, novamente". Ambos riram
e
comearama conversar.
No trem, Joe
sentou-se atrs
de Betty
e sua irm. Annie e Stevic
corriam
pelo corredor, para cima e para
baixo. Ento, agarrando a
bola, Annie subiu no colo de Betty e Joe ouviu-a dizer, "Voc
uma
moa boazinha. Vou deixar que segure
minha bola". Joe obser-
vou Betty, que segurava a bola comuma das mos e Annie coma
outra.
Essa moa, refletiu Joe, seria uma boa me. Mas, esquea, Joe.
Voc j se queimou uma vez.
Quase a mesma cena se repetiu emmuitos outros fins de sema-
1 1 3
na. Durante o tempo emque os filhos de Joe moraramperto de Nor-
ristown, ele se encontrava comBetty na estao de tremtodas as
tardes de sexta-feira. Ela ia de sua casa, emRoyersford, para Manay-
unk, sua cidade natal, passar os fins de semana na casa de uma tia.
Da estao de Norristown atManayunk a corrida durava apenas 1 5
minutos, mas, durante a semana, Joe descobriu-se esperando por aque-
les 1 5 minutos. E, quando levava as crianas de volta para Norris-
town aos domingos, ficava muito feliz quando, emManayunk, Betty
s vezes entrava no treme ele passava mais 1 5 minutos comela.
Numa tarde de sexta-feira na estao de trem, percebendo que
nunca tinha estado a ss comBetty, Joe pediu irm dela que lhe
fizesse o favor de levar as crianas ao toalete. Sozinha comJoe pela
primeira vez, Betty perguntou-lhe sobre a me de Annie e Stevie.
Semquerer entrar emdetalhes sobre o fracasso de seu casamento e
sobre o divrcio pendente. Joe respondeu de estalo, "Ela morreu".
Perturbada pelo fato de aquelas crianas to pequenas teremperdido
a me, Betty comeou a chorar. Mas, naquela ocasio, Joe no modi-
ficou sua histria.
Joe lembrou-se dolorosamente de como as viagens de tremcom
Betty haviamcessado depois que Annie e Stevie saramde Norris-
town para morar numinternato sob os auspcios da Agncia Cat-
lica de Crianas. Numa carta a Betty, explicou que as circunstncias'
no mais os aproximariam, mas disse ter esperanas de que conti-
nuassema ver-se. Depois de Betty responder que ficaria contente se
ele a visitasse na casa da tia, emManayunk, Joe comeou a ir l fre-
qentemente. Ele e Betty tambmse correspondiam. As cartas de
Betty eramescritas por sua irm Patsy, pois esta escrevia cartas me-
lhor do que Betty, e Betty queria mandar a Joe as melhores cartas
possveis.
Inconscientemente, possvel que Joe estivesse cortejando Betty
desde a primeira vez emque ficou a ss comela e, no querendo
causar m impresso coma histria de seu casamento fracassado,
disse-lhe que a me das crianas estava morta. Joe sentia haver algo
de proftico no modo como a bola de uma criana o havia aproxi-
mado de Betty. Mais urna vez, comeou a ver-se numa casa nos bair-
ros afastados, rodeado por uma esposa, por Annie e Stevie, e por
muitas outras crianas.
Joe percebeu tambmque nunca aceitara a idia de viver se-
parado de Annie e Stevie como algo parmanente. Pouco depois de
Hilda ir bater em. sua porta para tirar as crianas dele, Joe tinha-se
candidato a ingressar no Exrcito como especialista emortopedia, no
posto de capito. Ooficial do servio de pessoal do Exrcito disse-
lhe que ele estava habilitado para o posto e que seria aceito, sob a
condio de permitir que seus filhos fossemadotados e de no mais
responsabilizar-se por eles. Isso, ele se recusou a fazer. stava inten-
samente investido emcriar umlar para Annie e Stevie.
Agora que o divrcio de Joe era definitivo, ele se se tia contente
pelo fato de, numa das visitas a Manayunk, j ter con ado a Betty
que a me de seus filhos no estava morta. Ficou sati feito porque
Betty, emvez de zangar-se comele por ter-lhe mentid , expressou
sua admirao pelo tempo e dinheiro que ele gastava c mas crian-
as. Agora, quando disse a ela que era umhomemdivo ciado e que
queria namor-la, Betty exultou de alegria.
No primeiro encontro, foramver umespetculo de atinao no
gelo e, a partir da, saramjuntos quase todas as noites Entretanto,
cinco semanas se passaramantes que ele chegasse sequ r a beij-la
no rosto. Mas, quando a pediu emcasamento, ela resp ndeu pron-
tamente que sim. Joe deu-lhe um"anel da amizade" de diamante,
que custou 80 dlares, e depois deu-lhe umanel de noivado mais
caro.
Joe estava apaixonado por Betty e sabia que ela estava apaixo-
nada por ele. Ficavamjuntos sempre que ele no estava na loja ou
comos filhos. Mas, parte os beijos, no havia sexo. Joe sentia-se
fortemente atrado por essa mulher, que tinha 1 .83mde altura e
era maior do que ele. Era magra, angulosa e de seios pequenos. Ele
admirava suas pernas magnficas e sentia-se feliz por la ter seios
pequenos.
Tivesse ela seios fartos, Joe a teria temido. Aps a experincia
comHilda, porm, ele achava que algumas mulheres de busto chato
eramms e outras, boas. Ainda tinha dvidas quanto a ua 'potncia
sexual, mas, acreditando, atravs de seu pensamento m ico caracte-
rstico, que a perspectiva de renovar o sonho da fana lhe devol-
veria a potncia, queria manter relaes sexuais. Quayado, porm,
Betty recusou-se recatadamente a ter sexo antes do casamento, ele
respeitou-lhe os desejos.
Em20 de abril de 1 958 trs meses depois do ivrcio de-
finitivo de Joe Betty e ele casaram-se emElkton, Mryland. Ele
ficou embaraado quando foi solicitado a declarar sua idade, pois
Betty era dois anos mais velha e ele lhe tinha dito que a bos tinham
a mesma idade. Betty, disse, v ali para trs enquanto eu dou essa
informao. Betty no se mexeu e ouviu que Joe era doi- anos mais
moo que ela. Eu sabia, explicou-lhe Joe ao sarem'o tribunal,
1 1 4
1 1 5
que voc no gostava de pessoas mais jovens que voc, por isso fiquei
mais velho. Estava ento com21 anos e quatro meses.
Dessa vez, Joe no fez nenhuma tentativa no sentido de que
o casamento civil fosse acompanhado de uma cerimnia religiosa.
Betty era protestante e ele fora excomungado da Igreja Catlica. No
segundo casamento de Joe, tal como no primeiro, houve desaprova-
o parental de ambas as famlias. Os pais de Betty fizeramobjeo
ao fato de ela comear comuma famlia j feita. Os Kallingers de-
saprovaramporque, tendo levado Joe de volta para casa e pago por
seu divrcio, haviamesperado poder finalmente conserv-lo para
eles prprios. Seu exorcismo do demnio do "passarinho" havia fa-
lhado. Mas eles tinhamtido esperanas de que, como homemsol-
teiro, Joe cuidasse deles na velhice, o que tinha sido uma das finali-
dades de adot-lo.
Otribunal, convencido de que Joe podia proporcionar umlar
a seus filhos, entregou Annie e Stevie a Joe e Betty. Osonho da fa-
mlia fora restaurado para Joe, pois, comBetty, ele planejava ter mui-
tos filhos. Mas os traumas do primeiro casamento tornaram-lhe im-
possvel reviver a iluso de sade que tivera nos primeiros dias do
primeiro casamento. Emtermos psicolgicos, ele partiu para o segun-
do casamento externamente sereno e otimista, mas internamente con-
turbado e apreensivo.
7 SemSada
Joe estava desolado e atormentado. Ele e Betty tinhamacabado de ca-
sar-se. Estavamno nibus, voltando para Filadlfia, quando dois ma-
rinheiros sensuais e "maches" sorrirampara Betty. Ela retribuiu o
sorriso e emseguida olhou para Joe, que estava sentado junto
janela. Do outro lado do nibus, os olhos duros e masculinos dos ma-
rinheiros o desafiavam. Ele desviou o olhar e ps-se a observar o ce-
nrio que corria enquanto o nibus se aproximava de Filadlfia. As
lembranas ruins foramdespertadas: a humilhao e a tortura de 1 6
anos nas mos dos pais adotivos, cujos olhos, como os dos mari-
nheiros, zombavamde sua desvalia. Oprimeiro casamento e o so-
nho da famlia haviamrudo. Agora, Joe sentia dvidas emrelao
a Betty: ser que ela lhe seria fiel ou iria embora comoutro? E tinha
dvidas quanto a seu sonho familiar poder renovar-se no segundo
casamento.
As dvidas a respeito de si mesmo acumulavam-se emJoe. Ele
no tinha mantido relaes sexuais desde que Hilda sara do quarto
do casal na casa da rua Masher. Na casa vazia, deitado sozinho na
cama larga, Joe tivera erees provocadas por suas fantasias de re-
talhar e cortar. As erees, produzidas pelas fantasias, tinham-no
convencido h muito tempo bemantes do casamento comHilda
de que o demnio havia permanecido emseu "passarinho". Mas,
indagava Joe, poderia ainda esse demnio que lhe dera as fantasias,
e comelas as erees, quando ele estava s na cama da casa da rua
Masher, torn-lo potente comuma mulher deitada a seu lado? Po-
1 1 6
1 1 7
1 1 8
deria ainda trazer-lhe as fantasias semas quais ele no conseguia
ter uma ereo? Joe no sabia.
Do nibus, ele e Betty foramdiretamente para a casa que ha-
viamalugado na rua Janney, emKensington. Ela preparou umbom
jantar, sorriu e contou piadas. Joe comeu fartamente, elogiou o tem-
pero de Betty e falou sobre poltica e amor. Eles se abraarame
beijaram. Depois, Betty lavou a loua e limpou a mesa da cozinha.
Quando subirampara o quarto, Joe certificou-se de que o canivete
ainda estava emseu bolso.
Desde a
poca da masturbao no buraco aberto na parede de
seu quarto,
Joe havia descoberto a ligao entre as fantasias que o
demnio lhe dava e as facas. Precisava das fantasias para poder ter
uma ereo. Mas, quando segurava uma faca na mo esquerda, des-
cobriu que esta prolongava as fantasias que sustentavamo desejo.
Alegremente, descobriu tambmque as fantasias prolongadas davam-
lhe mltiplas erees. E quando seu demnio o epteto dado por
seus pais adotivos energia sexual abominvel se cansava, de-
pois de Joe ter tido mltiplos orgasmos, as fantasias cessavame
ele experimentava a detumescncia, seguida pela serenidade ps-cot-
tal ou ps-masturbatria.
Enquanto Betty estava no banheiro, Joe colocou o canivete numa
pequena estante de portas corredias embutida na cabeceira da cama.
Mais tarde, deitado sobre o lado esquerdo junto a Betty, ele a acari-
ciou coma mo direita, enquanto mexia a mo esquerda acima da
cabea da esposa. Com
muita delicadeza, abriu a porta corredia
alguns centmetros e, semretir-lo da estante, apertou o canivete
fechado.
As fantasias vierame, quando no desapareceramaps seu pri-
meiro orgasmo, Joe soube que a faca e o demnio haviamexercido
seu poder mgico. Uma faca pequena, fosse ela umcanivete ou uma
faca comum, estaria sempre na estante da cabeceira quando Joe e
Betty fizessemamor.. Ela nunca
saberia de sua existncia,
pois feri-la
ou assust-la no era o objetivo de Joe.
Os temores de Joe desapareceram. Tanto na cama quanto fora
dela, era caloroso e amoroso comBetty, o mesmo acontecendo com
ela emrelao a ele. Betty orgulhava-se emser esposa de umho-
mema quemconsiderava umsapateiro bonito e inteligente, que lhe
dava tudo o que ela' queria. Gostava de preparar-lhe boas refeies,
mantendo a casa emordeme sendo me para Annie e Stevie, que
forammorar na rua Janney depois do casamento.
Joe era tambmummarido excntrico e exigente. Preci ava da
sensao de poder no apenas durante as relaes sexuais, as tam-
bmemoutros momentos. Vira a si mesmo como umrei n
incio
do 'melro casamento, mas Hilda o dominara e destronara. ua fuga
comoutro homemtambmhavia acentuado o trauma da a olescn-
cia de Joe sobre sua inferioridade emrelao aos "maches", e Betty
despertara suas suspeitas ao retribuir o sorriso dos marinh iros no '
nibus. Ele jurou que no deixaria Betty afastar-se dele. Nesse se-
gundo casamento, pretendia ser ummonarca absoluto cuja
esposa
no fugiria. Via a si prprio como umregente que governaria seu
pequeno reino combenevolncia e firmeza.
Betty teria tudo aquilo de que precisasse e que deseja
se, mas
Joe a
encerraria dentro das paredes de casa e no lhe p rmitiria
sair sozinha. Assim, no permitia que ela fosse a parte a g ma sem
ele, exceto a seu trabalho numa fbrica de suteres, antes
' nas-
cimento das crianas, ou loja. Quando Betty precisava ir '
,a algum
lugar, ele ia junto. Joe no sabia danar, de modo que ela
arou de rf
danar. Quanto ao carro que ela possua antes de casar- e, ele o
vendeu. No podia permitir que ela dirigisse porque ele o
sabia
dirigire,
como acontecia coma dana, no conseguia apre der. Joe
tinha medo -
de que, enquanto estava trabalhando, Betty aisse de
carro e nunca mais voltasse. E mais uma vez, Annie e Stevie
esta-
riam
esperando por ele numa casa deserta.
Joe tinha uma imagemgrandiosa de si mesmo. Porn
as mes-
mas
suspeitas que o levavama querer ser ummonarca abs luto tor-
navam-no tambm
freqentemente,
tmido e retrado. Isso se tor-
nava particularmente visvel quando ele, as crianas e Betty iam
visitar os pais dela nos fins de semana. Joe raramente saa do
quarto
e chegava ata recusar-se a faz-lo nas grandes
=Mares.
Durante uma reunio, gritou para Betty do alto de uma das janelas,
"Por que voc no sobe para ficar comigo?" Quando ela
su
m
biu, Joe
no
iper
ch&o.
LDisse-me Joe: "Uma figura
comummanto negro e u
de feiticeira, tambmnegro e recoberto de meias-luas e es
tr
chapu
las bran-
1 1 9
lhe agradeceu, pois seu chamado nao ora
vo, e simo de ummenino assustado pelo abandono.
Joe no tinha tido nenhuma alucinao desde os
1 5 aros, quan-
do
uma figura que ele
tomou por Deus apareceu
de e e orde-
nou-lhe que realizasse suas experincias ortopdicas para orrigir a
si mesmo e ao mundo.
Agora, aos 22 anos e meio, quando as coisas
corriambem, pelo menos externamente, ele teve uma se4inda alu-
cas, apareceu diante de mimquando eu estava de pjunto a minha
bancada de trabalho. Apontou para outras figuras a seu lado e me
disse que as observasse cuidadosamente.
'E eu as observei. Para minha surpresa, essas outras figuras
eramde meus pais adotivos e de mimmesmo quando garoto. Est-
vamos emNeshaminy. Eu estava ajudando os dois a reunir comas
vassouras as folhas secas do outono. Meu pai acendeu ummonte de
folhas pela base, comumfsforo. As chamas crescerame se espalha- '
ram. Centelhas quentes e vermelhas subiramna fumaa. Ao obser- j
var aquelas chamas de que me recordava dos tempos da infncia,
senti uma excitao.RtaP1 ,0
"Acabou-se a cena. Surgiu outra. Asegunda era na cozinha de
nossa casa de Front Street. Meu pai eu era menino estava de
pbematrs de mim. Agarrou meus pulsos e colocou as pontas dos
dedos de minha mo direita sobre o queimador do fogo, empurran-
do-os para dentro da chama. Gritei, e meu pai disse, 'Isso vai quei-
mar o demnio-ladro e expuls-lo dos dedos que roubam'.
"Como adulto, senti-me zangado por meu pai estar-me quei-
mando enquanto garoto. Mas a chama, emsi, alegrou meu corao.
"E ento, Flora, a segunda cena sumiu to depressa como havia
chegado. Fiquei sozinho coma criatura de negro, que tinha cha-
mas saindo de sua boca. No conseguia determinar se ela era o de-
mnio ou umdos espritos do demnio. Talvez fosse, pensei, o
demnio que morava emmeu 'passarinho', ou ento o demnio que
meu pai disse, ao queimar meus dedos, estar expulsando de minha
mo. No sei. Eu nunca tinha visto demnios, nemo que morava em
meu 'passarinho', nemo da minha mo, que me fizera roubar os tu-
bos de moedas do armrio dos meus pais quando garoto.
"Antes que a figura de preto desaparecesse, fosse ela quem
fosse, disse-me uma coisa muito estranha e, tenho que admitir, Flo-
ra, tambmmuito emocionante e excitante. -Ela me disse que fosse
para casa na hora do almoo e incendiasse minha casa da rua
Janney".
"Obedeci. No sei por qu. Queimar minha prpria casa! Coi-
sa de louco! Mas, como eu disse, era emocionante, e as chamas me
davammuita alegria. Ofogo me dava o mesmo tipo de sensao
sexual que eu tinha ao segurar uma faca na mo esquerda".
"Ah, que xtase, Floral" prosseguiu ele, "traz a meu corpo atear
fogo! Que poder eu sinto ao pensar no fogo todos os meus te-
souros emcompleta runa! Ah, que imagens mentais o fogo traz!
Ah, que prazer, que prazer paradisaco!" (Nesse ponto, a expresso
do rosto de Joe era beatfica; seus olhos me olhavamcomo se ele
estivesse vivendo uma experincia transcendental). "Eu vejo as cha-
mas, e o fogo j no mais s umdevaneio. E a realidade do para-
so na terral Adoro a excitao do poder que o fogo me d, de quei-
mar tudo o que tenho. Essa imagemmental maior do que o sexo.
Ah, Flora, que alvio, que bno, que amor, que...!" (Nesse mo-
mento, de p, Joe teve umorgasmo; umrubor tingiu-lhe o rosto e
ele se sentou numa cadeira, transpirando e coma respirao arfante).
Aps alguns momentos de silncio, Joe suspirou e sorriu, como
uma criana que, na sua inocncia, apanhada fazendo alguma coi-
sa "feia" e ainda quer ser amada, apesar de sua "maldade". Joe
prosseguiu numtomsuave: "Fui para casa na hora do almoo. A
casa estava vazia, muito silenciosa. Nenhumrudo, exceto pelo fato
de eu poder ouvir meu corao batendo de expectativa e excitao.
Betty estava no trabalho. Annie e Stevie estavamno centro diurno
onde os deixvamos enquanto Betty e eu amos trabalhar. Ela os apa-
nhava ao voltar do trabalho.
"Sozinho na casa, vi novamente a figura de negro. As chamas
de sua boca eramlindas e realmente me excitavam. Outro demnio
estava emminha mo, mas no aquele de que meu pai falou quando
queimou meus dedos. Esse demnio queria queimar, destruir minha
casa, como uma criana numacesso de raiva. Ele no dava a me-
nor importncia a nada.
"Andei atnosso galpo, que era ligado aos fundos da casa. No
galpo, costumvamos guardar roupas pertencentes a todos os mem-
bros da famlia. Tnhamos malas, instrumentos, latas de tinta e de
solvente. Tirei uma caixa de fsforos do bolso, acendi a caixa inteira
e atirei-a na lata de solvente, que eu havia aberto. Pu! As chamas
subiram. Adorei-as e fiquei l olhando para elas, deixando-me ficar
excitado, voc sabe. Mas sabia que no podia ficar uli, de modo que
sa correndo da casa.
"Parei numa cabina de alarma de incndio e comuniquei o fogo.
Depois, voltei para a loja.
"Ogalpo queimou completamente. Acasa foi parcialmente
destruda, embora no chegasse a queimar atruir. Algumas roupas
e mveis foramdestrudos. Naquela noite e durante diversas sema-
nas, ficamos Betty, as crianas e eu na e.2sa da av de Betty
emManayunk. Depois disso, mudamo-nos para uma casa alugada
na
rua Opal, emKensington.
"Oincndio da rua Janney foi meu primeiro incndio. Recebi
mil e novecentos dlares do seguro, porque ningum, nemmesmo
1 20
Betty, soube como o fogo comeou. O dinheiro no pde pagar pela
angstia que senti depois do incndio. No sou mais Joe Kallinger",
disse-me ele numa expresso distorcida, mas pattica. "Sou um piro-
manaco. Mas tenho de admitir que amo o fogo! Mas fiz isso porque
fui ordenado a faz-lo por uma fora talvez o diabo fora de
mim mesmo".
A casa n 2039 de East Fletcher Street, em Kensington, ainda
no era a casa dos sonhos de Toe nos subrbios elegantes. Mas, ao
mudar-se para l, deixando a casa da rua Opal, ao final do primeiro
ano do casamento, ele achou que essa casa de dois andares, de
tijolos vermelhos, aproximava-se do sonho. Era a casa mais atraente
em que j havia morado. Tinha seis aposentos, um poro, um quin-
tal, um ptio e um jardim.
Os velhos Kallingers haviam-na comprado e mantido em seu
nome, como fizeram com a casa do primeiro casamento de Joe. Ele
fazia os pagamentos mensais aos pais adotivos. No entanto, agora,
como naquela poca, sentia que a casa era dele.
Tendo progredido do trabalho na Loja de Consertos de Cal-
ados Frank Grandee, passando depois pela Lavanderia e Restau-
radora de Calados Kent, em Feasterville, um subrbio de Fila-
dlfia, Joe trabalhava, nessa poca, numa das melhores lojas de
consertos de calados da cidade de Filadlfia. Nessa loja, que per-
tencia a
James Mahoney e era dirigida por ele, na galeria subterrnea
de Center City, Joe era um dos sapateiros mais bem remunerados da
Filadlfia e havia recebido prmios por seu trabalho. Chegara to
longe quanto era possvel, salvo por no ter ainda sua prpria loja e
cadeia de lojas.
A noite, quando voltava da galeria subterrnea para casa, brin-
cava com Annie e Stevie antes de eles irem dormir. Aos sbados e
domingos, ao v-los no jardim de sua nova casa, experimentava um
sentimento de jbilo pelo fato de a famlia destruda ter sido res-
taurada., Esse sentimento de restaurao tornou-se ainda mais forte
depois que Betty, que
estava
grvida quando eles se mudaram para
East Fletcher Street, deu luz uma menina no Hospital St. Mary's
em 16 de maro de 1959. Chamaram-na Mary Jo Mary em ho-
menagem av materna, e Jo em homenagem a Joe.
Joe estava com Betty quando uma enfermeira trouxe o beb para
ela. Ela to feia! exclamou Betty ao ver a filha.
Vou contar a ela quais foramas primeiras palavra
S que
vieram cabea
da me dela,
brincou Joe. E, quando Mary Jo
i tinha
seis anos e era uma bela menina, ele fez exatamente isso, num Al-
ma de brincadeira. Ao olhar para essa filha, o primeiro fruto
de seu
segundo casamento, Joe teve a mesma sensao ocenica que havia
experimentado no nascimento de Annie. Brincou com Man )o e
afagou-a. Como se recordaria ela um dia, "Papai me mimava a ponto
de me estragar quando eu era pequena".
Joe tentou empurrar o
passado para longe. Apesar do incndio
que havia provocado na rua
Janney, achou que tudo estava c ronha
bem.
1
bem. Entretanto, em 25 de julho de 1959, quando Mary J
1
quatro meses, a iluso da sade cessou, Mais uma vez, Joe se tiu as
dores intensas nas tmporas que o tinham levado a hospitalizar-se
no
St. Mary's 22 meses antes. Disse a Betty que iria consultar o
Dr.
Daly, mas nunca chegou a faz-lo.
1
Em vez disso, acabou aparecendo em Hazleton, Pensilvnia,
que i,
fica setenta milhas a noroeste de Filadlfia, sem saber que
estava
l ou
como chegara at l.
---)
Tonto e com a cabea vaga, perdido e desorganizado, Joe
parou
nos
degraus da Igreja de So
Gabriel, na rua W.
oming
1 21 , em
Hazleton. Tentou afastar sua confuso, mas a igreja, as casas
da
rua e as pessoas que passavam em frente aos degraus da igreja
tor-
na
-se figuras que se fundiam de modo incompreensvel.
L-
Joe encolheu-se nos degraus da imponente igreja gtica
los castanho-avermelhados, com uma roscea flamejante acima
'tas frontais. Sentindo-se um,
estranho para si mesmo, bem co
outrem, viu
os trilsaffif
-4Ue o
olliaWiffebfii 'indiferena, co
n
olha-
delas oblquas:mu
se-
definhar Momentaneamente para e
ao Hospital Estadual de Hazleton, que ficava a poucas qu dras
da u
igreja. As 22:20 hs. de 25 de julho de 1959, o hospital o aditiu
sem rts
nenhum nome nos registros. O diagnstico presumvel
era mnsia.
No hospital,
os mdicos e enfermeiras chamavam-no
nonima-
mente de johnny. Certa noite, porm, durante o sono, depo s
de ter
estado
no pavilho psiquitrico por vrios dias, ele murm
rou um
nmero de
telefone. Uma enfermeira ligou para aquele
!I ' rrNPrei e
falou com Stephen Kallinger, que disse
ser pai do
paciente. Stephen
disse
enfermeira que iria buscar seu filho no dia da alta h spitalar.
Antes de ocorrer essa alta,
porm,
noite em que
Toe,
j fora do estado amnsico, levantou-se da cama, subiu uma escadaria
e encontrou um armrio embutido num andar no utilizado. Tran-
1 23
er. Um
couro.
Todasasoutraspeasque entram numalojade consertar sapatos
esto ali.
"Poisbem, voc estcom esse equipamento nasuasal de es-
tar.Subitamente, eu destru voc, Betty estou chamando voc de
127
nou para o policial, que morava mais adiante na mesma rua. Quando
ele desceu ao poro, estava preparado para prender o intruso que
estava roubando a casa dos Kallingers.
Essa cena tornou-se uma fbula da famlia, que Joe e Betty
gostavamde contar. No entanto, a cena tinha algumas graves cor-
rentes subjacentes que provinhamda infncia de Joe. Tendo-lhe sido
negadas as brincadeiras na infncia, Joe pregava agora uma pea
emsua esposa, jocosamente e de modo travesso. Trazendo emsi a
frustrao e o dio da infncia, dava vazo a esses sentimentos ati-
rando o carvo no teto. Mas houve tambmnessa cena umtoque do
crescente sadismo de Joe, que o levaria a comprazer-se ematerrorizar
sua mulher.
Joe entregou-se cada vez mais ao que, retrospectivamente, cha-
mava "minha destrutividade da Rua Fletcher". Na cozinha, cavou
umburaco a ser supostamente usado como abrigo antiareo, mas
onde passou a armazenar o excesso de sucata. Para escavar o buraco,
arrancou toda uma parede do cozinha que ligava o cmodo comas
fundaes da casa. Oburaco tinha 2,5 mde circunferncia e es-
tendia-se por 2,5 mpara almde onde estivera a parede. "Enquan-
to arrebentava a parede", disse-me ele, "eu me sentia como se esti-
vesse rasgando a terra inteira. Quando a gente fica ligado, no con-
segue desligar. Depois que acaba, a gente sente vontade de dormir".
Asensao era semelhante ocasionalmente experimentada aps a
relao sexual.
No final de abril de 1 963, Joe tornou a ver cenas da alucinao
que tivera no dia emque provocou o incndio da rua Janney. As
duas cenas da infncia lhe apareciamfreqentemente: o pai adotivo
acendendo ummonte de folhas emNeshaminy e, na outra cena, colo-
cando os dedos do pequeno Joe na chama do queimador do fogo.
Mas a figura comuni chapu de bruxa adornado por meias-luas e
estrelas brancas, usando ummanto negro, no aparecia.
Ardendo no espao, contudo, havia chamas semelhantes s
que
tinhamemergido da boca do personagemde negro quatro anos antes.
Havia tambmuma voz. Por vezes, ela
estava apenas na mente de
Joe; emoutros momentos, ele achava que ela provinha de fora. A
voz emitia umnico comando: "Incendeie sua casa" a mesma
ordemque lhe fora dada pela figura de capa negra.
Betty. Destru seu senso interno de beleza. A, voc se queixa umpou-
quinho comigo, de modo que eu lhe compro cortinas e coisas assim.
E deixo apenas espao suficiente para uma passagem, de modo que,
entrando pela porta da frente, voc possa continuar a andar ata
cozinha. Mas, Betty, l est voc comesse grande e monstruoso equi-
pamento no meio de sua sala. Todas as noites, ao chegar emcasa, j
no fico comvoc. Vou diretamente para essa pequena oficina e
desenvolvo meu trabalho de ajuste de saltos ortopdicos. No acho
justo fazer isso enquanto estou trabalhando para o Mahoney. Mas,
voltando a voc no papel de Betty, voc est de ps e mos atados.
Sua linda casa! Ela sua, e bonita atmesmo comtodos os
meus trastes dentro. E agora, seu marido a est destruindo. Sempre
que eu tinha uma casa normal, eu a destrua. De algummodo, Flora,
as coisas que so normais para todas as outras pessoas so anor-
mais para mim".
Fiquei comovida coma cena que ele havia pintado, como retrato
que fizera da mulher e dele prprio, cercados pela sucata absurda
numa casa atraente e bemmobiliada. Senti-me momentaneamente
como se estivesse no lugar de Betty. Meus dedos estavamcomcibra
e os lados de meus ps doamde tanto dar topadas nos refugos de
Joe ao tentar locomover-me em"minha" casa, tal como a imaginava
ao escut-lo. Mas pus-me tambmno lugar de Joe, sentindo a fora
de sua compaixo por Betty, incapaz de agir normalmente para pr
essa compaixo emao. Senti os paradoxos de sua natureza, a ciso
de sua personalidade, que colocava o sonho da famlia numa gaveta e
o sentimento de ser imprestvel e jogado fora emoutra, semnenhum
vnculo que as ligasse.
Mais tarde, fiquei sabendo, de alguma forma, de uma cena
absurda que Joe efetivamente representara. Voltara da loja de Maho-
ney mais cedo do que de hbito. Betty no o vira entrar. e ele
re-
solveu fazer uma brincadeira comela, Desceu ato poro, apanhou
alguns pedaos grandes de carvo e atirou-os no teto, umpor uni.
Continuou a fazer isso atouvir passos na escada e a voz de algum
dizendo, Ponha as mos para cima. Voc est preso.
da noite, umhomemsubterrneo.
rtou.
"Flora", disse-me, "No havia medo no poo, no burco que
constru para mim, pois o medo no tinha nenhumsenti 4o para
mim. Opresente se transformava emnada, o mundo, emn da. Eu
s vivia emmeu poo".
Muito embora gostasse da escurido, tinha levado uma vela com
ele. Retirou-a do bolso, fincou-a na parede de lama entre duas ripas
de conteno e acendeu-a. Afrgil chama ergueu-se oscilante, es-
treitando-se atsua fina ponta. Ofogo o excitava agora como sem-
pre fizera. Joe sabia que ele tambmpoderia destru-lo. OIar fan-
tasmagrico que se infiltrava pela clarabia fez comque ele se vol-
tasse, cheio de repulsa, para o interior do buraco.
Subitamente, uma torrente de palavras reverberou a seu redor;
desconhecidas e insondveis, soavam-lhe como umcntico:
KRTSTORAH, KYRIASTORAHKYRIE MARIAKREll
KRASTORAHMARIAKRIASTOHKRIASTO
MA-
RIAKRTHESTOHKYRTAHKYRIEHALAMARIARIEH
KYRIASTORAHMARIAKYRIESTOHKYRTAS ORAH
MARIAKYRIEHALAMARIAKYRIEHKRIAS ORAR
MARIAKYRIASTORKYRIASTOHALAMARIAKY-
RIEHALAMARIAAIIKAB KAHMARIAKAHKYRAS-
TORIAH.
---e
Vez aps vez as mesmas palavras se repetiam, pormemca-
dncias diferentes e cominflexes variveis. Para Joe, eramum
1 47
enunciado semqualquer ligao comqualquer coisa que tivesse
ouvido antes.
Avoz
estava muito perto de Joe. Ele girou o corpo de um
lado
para outro, olhou para cima e
para baixo, tentou descobrir-lhe a fon-
te na parede de lama que o
encerrava, no solo abaixo, talvez
l
embaixo, onde seus filhos no tinhamcavado. Poderia facilmente ter
subido a escada e sado dali. Permaneceu no buraco, porm, por
fascnio, pavor e umcurioso sentimento de indagao acerca dos
sons que haviampenetrado to estranhamente cmsua solido.
Girando o corpo de umlado para outro, bateu na escada e
apercebeu-se pela primeira vez de que seus braos estavamerguidos
para o alto, como uma splica. Atnito, olhou fixamente para os bra-
os erguidos, indagando a si mesmo se seriamos seus, e deixou-os
pender junto ao corpo. Colocou o indicador da mo direita junto
garganta e sentiu uma vibrao enquanto o cntico prosseguia. Per-
cebeu tambmque sua boca estava aberta e que seus lbios
se mo-
viam. Soube, afinal, que os sons estranhos no provinhamdas pa-
redes enlameadas do buraco, nemde algumlugar misterioso sob a
ripa de madeira emque se mantinha de p, mas simdo interior
r..dele mesmo.
KYRIEHKYRIASTORAHKYRYAHKRIASTOHALAMA-
LRIAKYRYEE KYR1 ASTORAH
KYRYAHKYRIEHKRIAS-
TORAH: Ocntico se elevava numcrescendo de intensidade. Em-
bora o significado das palavras permanecesse ainda insondvel,
Joe
pde perceber pela entonao
que a voz emseu interior se zangara.
Imaginou se a voz estaria zangada comele! Parecia-lhe que a voz
o estava repreendendo como a uma criana que tivesse feito algo
errado. Depois, a voz pareceu
acus-lo, mas no por aes que
ti-
vesse praticado. Avoz o
acusava elas aes a que os "pensamentos
indesejados" poderiamconduzir.
Vez aps outra Joe escutou o nlouquecedor e repetitivo
cn-
tico: KRIASTORAHALAMARIA
KRIASTOH. E ento, final-
mente, a voz parou. Uma sufocante quietude pairou sobre o poo da
escurido. Avela tremeluziu. Joe estava tremendo.
De
quemseria aquela voz? perguntou a si mesmo. Essa era unia
pergunta para a qual pensava j saber
a resposta. Joe estava
con-
vencido de que, embora a voz tivesse falado comsua lngua e sado
do interior de seu corpo, no era a voz de Joe Kallinger!
Algo est falando atravs de voc, disse Joe a si mesmo, tal
como, emoutras ocasies, uma fora estranha controla suas mos
e seus ps. Lembrou-se dos espritos comquementrara emcomunho
quando criana, na casinhola da fonte emNeshaminy e nos tanques
de Kensington. Estariamos espritos falando
com ele, mas dessa vez
atravs de seu corpo, emvez de externamente a ele? Ou estaria o
demnio do "passarinho" tentando dizer-lhe algo? Talvez
o diabo
estivesse falando comJoe atravs dos ossos, nervos e msculos do
prprio Joe. Oque significariamaquelas palavras? Ele
achou que se
pareciamcomtrs palavras que ouvira na igreja quando criana:
Maria, Kristos e Kyrios. O tom de raiva, no entanto, fora claro.
Mas quemestava COM
raiva de quem? Joe soube instintivamente que
voltaria a ouvir aquelas palavras e que quemquer que as houvesse
proferido no cntico os espritos, o demnio ou o diabo tinha
de ser malfico, pois os "pensrimentos indesejados" haviamchegado
Mary lo, disse ele, voc vai ser uma bela mulher.
E as queimaduras e os espancamentos?
Por favor, diga-me por que o senhor considera sua filha uma
mentirosa. Com
umpouco mais de detalhes, por favor.
o delirava de te
ror a respeito do urso. Aqui eles tmtudo que se pode imagina'
observou
Joe. Toda sorte de birutas, como esse tomemque v ui
urso. Todos os tipos de criminosos. Tambmt massassinos agi
Esse "cara" que v o urso atirou seu beb pela anela. Seu prpri
filho! Quem iria
imaginar que Joe Kallinger iria er despejado jun
com assassinos?
Oambien
te fsico tambmdeprimia Joe. le precisava ajo
lhar-se para se lavar sob uma torneira na pared
da cela, em
te,
ba
lc
i
da qual havia um balde
no cho. Para consegu
i
r gua quen
1 "
tinha que andar desde sua cela ato chuveiro. Uma prateleira de
madeira numa das paredes da cela fervilhava de baratas.
As baratas compartilhavamatmesmo a comida dos prisio-
neiro. Joe, que sempre gostara de uma disputa legal, quis processar
a instituio. Soube, porm, que outros internos haviaminstaurado
umprocesso contra Holmesburg no ano anterior e que o caso es-
tava pendente.
Ele se indagou tambmo que poderia fazer acerca do homem
que via o urso e que quase fez comque Joe e o outro companheiro
de! cela o vissemtambm. Denunciar o sujeito? Mas, aqui, espera-se
que os homens sejambirutas. E por isso que esto emobservao.
Joe pensou amargamente que ele tambmera tido como "biru-
ta". Por isso estava aqui. Mas no pensava emsi mesmo como biruta
e no ligava suas alucinaes s do homemque via o urso.
Amaior parte do tempo, Joe queria estar fora desse lugar, onde
\u
' os homens apanhavame eramacorrentados, e ficar livre; mas ha-
via ocasies emque o impulso suicida tambmera forte, ocasies
emque ele tinha sonhos e fantasias sombrias sobre os filhos que o
haviamaprisionado.
Joe soube por Thomas A. White que o exame da Prefeitura fora
prejudicial, isto , prejudicial para a volta de Joe para sua casa.
Mas White, que era tambmadvogado de Harry Comer, disse igual-
mente que ele e Comer tinhamesperana de que as constataes da
Prefeitura fossemderrotadas emHolmesburg.
Aavaliao de Joe emHolmesburg, no tocante ao processo es-
quizofrnico, periculosidade e competncia para ir a julgamento,
coube ao Dr. Norman C. Jablon, chefe da unidade forense de diag-
nstico. Desde 1 965 ele vinha avaliando prisioneiros emtermos de
sua competncia para irema julgamento e de sua classificao com
respeito aos distrbios psiquitricos reconhecidos: neurose, psicose
ou distrbios de personalidade.
Ao fazer a avaliao final de Joe, o Dr. Jablon referiu-se ao dos-
si que os psiclogos da equipe haviampreparado sobre Joe, sua
mulher e seus filhos. Omdico dispunha tambmdos relatrios das
investigaes policiais, de registros das varas de famlia e do dos-
sie mdico de Joe, inclusive as constataes de Hoffman, Von Schlich-
ten e Levitt. Pode-se presumir que l estivesse tambmo registro
da tentativa de suicdio de Joe na Casa de Deteno de Filadlfia.
Combase emseus prprios exames de Joe e nos relatrios so-
bre a famlia, o Dr. Jablon concluiu que havia umprognstico pre-
;
1 84
cario de que Kallinger pudesse funcionar como umpai e marido emo-
cionalmente sadio. Kallinger no era capaz de lidar comseu meio
ambiente ou comseus filhos e, de acordo comumlaudo de Char-
les Gallun, umorientador da instituio, tampouco a Sra. Kallinger
podia faz-lo. "Ajulgar por todas as aparncias", escrevera Gallun
no relatrio para o Dr. Jablon, "a Sra. Kallinger parece vir sendo -
uma me bastante insatisfatria. Relata-se que totalmente subser-
viente ao Sr. Kallinger e no assume nenhuma responsabilidade pela
famlia". Os relatrios do pessoal da escola, bemcomo de psiclo-
gos e psiquiatras,haviamindicado claramente que, tal como Gallun
os resumira, "a me uma pessoa extremamente fraca, que abdica
de suas responsabilidades e da tomada de decises emfavor do
marido".
"Ao que parece", escreveu o Dr. Jablon emseu relatrio de 9
de maio de 1 972, "seria muito importante incluir o Sr. Kallinger
numa terapia de famlia, caso ele seja libertado do crcere. Parece
tambmimperativo que, combase no que soubemos sobre a situao
familiar, todos os membros da famlia devemser includos na tera-
pia. Espera-se que o tribunal possa fornecer os meios para que
esses planos sejampostos emprtica".
ODr. Jablon tambmobservou,emseu relatrio, que o Sr. Kal-
linger estava sofrendo de atitudes paranoides, envolvimento esqw-
zoide, "pelo menos os prinirdi6s de umdistrbio do pensamento",
- pensamentos no-realistas e umestado que sugeria psicopatologia. O
Dr. Jablon escreveu ainda que as reaes emocionais de Joe no se
relacionavamcoma situao emque ele se encontrava, que ele dava
risinhos inapropriados, que havia algo de evasivo nele, e que pro-
jetava a culpa nos outros.
Aps observar esses sintomas, que esto relacionados coma
psicose, o Dr. Jablon diagnosticou Joe como no-psictico como
sofrendo de uma "personalidade inadequada", que uma das sub-
divises dos "distrbios da personalidade:I. Apes.'r dos sintomas, o
Dr. Jablori Info-Thin a-o tribunal: "No' h razo para esperar que
Joseph Kallinger precise de institucionalizao ou de tratamento hos-
pitalar no momento atual". Omdico tambmdeclarou Kallinger
competente para ir a julgamento.
Do ponto de vista do diagnstico, explicou o Dr. Jablon, o
Sr. Kallinger no apresenta umquadro bemdefinido, Omdico ra-
ciocinou, conforme seu testemunho- posterior no' tribunal, que o Dr.
Hoffman e o Dr. Von Schlichten tambmno tinhamtido certeza.
Se a tivessem, sustentou o Dr. Jablon, poderiamter submetido o
1 85
1 86
laudo final de que Kallinger no era competente para ir a julgamen-
to, e poderiamter recomendado que ele fosse encaminhado a um
hospital estadual para fins de tratamento. Emvez disso, tinhamen-
caminhado Kallinger para uma avaliao diagnstica.
ODr. Jablon explicou tambmao tribunal, no julgamento, que
seu diagnstico fora menos grave que o dos Drs. Hoffman e Von
Schlichten. "Emgeral", disse o Dr. Jablon, "a avaliao feita na
Prefeitura mais grave do que a de Holmesburg". Explicou ainda
que a razo disso "que o exame da Prefeitura efetuado mais
perto da data da deteno do prisioneiro, quando as tenses e
presses so maiores". Passou despercebido o fato de que os sinto-
mas que so mascarados emoutras ocasies podemvir
tona nos
estados de tenso e presso. Tambmdespercebido passou o fato de
que, emoutubro de 1 972, sete meses depois de examinaremJoe pela
primeira vez e cinco meses aps a avaliao de Jablon, os Drs. Hoff-
man e Von Schlichten efetuaramumsegundo exame. Sua nova con-
cluso foi: "Continuamos a considerar que Joseph Kallinger sofre
de uma grave doena mental".
Eles recomendaramque Kallinger fosse internado no Hospital
Estadual de Filadlfia, para evitar uma repetio do comportamento
que tinha levado s acusaes de maus-tratos a crianas.
O"distrbio da personalidade" umdos diagnsticos psi-
quitricos reconhecidos. Embora menos grave, pode ter muitos dos
1 traos de uma psicose. No caso de Joe, era incorreto, no apenas em
termos de seus sintomas, como tambmde seu comportamento co-
tidiano. Muito embora fosse psictico, ele tomava as decises na
famlia, era o genitor mais forte e era altamente eficiente emseu
trabalho de sapateiro. Na verdade, era o que os terapeutas de fam-
lia chamam"superajustado", dominador e onipotente emsua esfe-
ra especial umrei, tanto na ao quanto na fantasia. No foi
uma inadequao o que o fez queimar a coxa de Mary Jo ou o
que, na Casa de Deteno de Filadlfia, levou-o a tentar matar-se.
Esses atos decorreramdo que Hoffman, Von Schlichten e Levitt
haviamcaracterizado como a instalao de uma grave doena men-
tal e da psicose que o
Dr. Arieti diagnosticou como
francamente ex-
pressa entre 1 969 e 1 972.
Joe, ainda lutando contra a possibilidade dos quarenta anos por
trs das grades, dissera ao Dr. Jablon, "Quero voltar ao meu traba-
lho". Omdico lhe respondeu. "Esse o esprito certo". Joe achou
que o Dr. Jablon estava do seu lado e sentiu-se triunfante pelo fato
de as constataes de Holmesburg teremposto
de lado as dos exa-
minadores da Prefeitura.
Os mdicos da Prefeitura inhamenca-
minhado
Joe diviso do Dr. Jablon para umdiagnstico baseado
em estudos mais
pormenorizados.
Eu tinha certas garantias de que no
seria mandado para a
priso, disse-me Joe. OJuiz Robert Williams fora o juiz original,
mas meus amigos conseguiramfazer comque o caso fosse julgado
pelo juiz Edward J. Bradley. "Sei como trabalhar comBradley", dis-
se-me meu advogado. Eu sabia que o advogado saberi como traba-
lhar como juiz Bradley, porque
Harry Comer poderia rabalhar
com
Michael Bradley, umpoderoso lder distrital do Partido
Democrata,
que era pai do juiz. Meu advogado veio visitar-me no Bloco F uma
semana antes do relatrio de Jablon de 9 de maio de 1 972. Ele
disse que haveria umatraso na ida ao
t ribunal, mas q e
esse atraso
funcionaria a meu favor.
Garantiu-me que eu estaria de volta em
minha loja antes que as aulas recomeassem, para pega o servio da
volta escola.
O
que de fato aconteceu no muito claro. Con udo, Deborah
Glass, uma promotora pblica assistente do caso,
ntou-me que
fora avisada de que o caso era "urna espcie de batata quente, e
que
o Juiz Bradley estava
predisposto a libertar aquele h mem(Kallin-
ger)
sob fiana". OJuiz Bradley recusou
-se a ser
entr vistado sobre
esse assunto, e a administrao do tribunal impedi
-me de entre-
vistar os
Drs. Alex von Schlichten e Albert Levitt.
(Eles tinham
feito parte da equipe que diagnosticou Joseph Kalli ger como
so-
frendo de uma grave doena mental e que recomendo
que ele fosse
hospitalizado). Depois de o Dr. Von Schlichten
ter combinado
a
entrevista comigo, umfuncionrio de relaes pblic s do
tribunal
telefonou-me cancelando a entrevista. ODr. Von Schl chten
e Albert
Levitt, que estavam
ansiosos
por falar comigo, no t
veramalterna-
tiva
seno obedecer
deciso administrativa.
Se Harry Comer deu
-
se ao trabalho de fazer alga
por Joe,
podemos presumir que tenha sido por causa de sua onga amizade.
Oescritrio legislativo de Comer ficava emfrente
loja e casa
de Joe, e Comer o conhecia desde a poca emque Ana Kallinger o
levou para casa pela primeira vez, trazendo-o do St. Vincent's. Co-
mer testemunhara
sobre o carter de Joe no process por incndio
culposo de que Joe foi absolvido. Pendurando cart
zes de Comer
emsua loja de consertos de calados, Kallinger bat a
na tecla do
candidato comos fregueses e, emgeral, auxiliava nas campanhas elei-
torais de Comer. Os dois homens se ajudavammutamente.
1 87
Na manh de tera-feira, 6 de junho de 1 972, Joe sentou-se
numa balinha do sexto andar da Prefeitura, esperando pelo incio
de seu julgamento. Atravs do antiquado corredor, comseu teto alto,
pde ver trs figuras, uma atrs da outra. Aprimeira era emproada
e arrogante, a segunda, bemcontornada e graciosa, e a terceira, flex-
vel e de movimentos geis. Joe reconheceu Joey, Mary Jo e Mike.
Al uns minutos depois, seus filhos reapareceramdiante da por-
ta abar a e espiarampara dentro do aposento. Joe lhes sorriu, mas
eles 'l/ retriburamo sorriso. Estavamcochichando entre si e dando
risinhos, e pareceu a Joe que, olhando para suas algemas, estavam-se
regozijando. Por trs vezes, voltarampara olhar e regozijar-se diante
do rei a quemhaviamdestronado.
Senti que eu no era prisioneiro do Estado, e simdas crian-
as, diste-me Joe. Eu tinha passado a v-los como deuses, deu-
ses tota s. Eles tinhampoder sobre mim. Eu os temia.
Detz minutos depois de Joe ver os filhos, comeou seu julga-
mento.
Joe alegou inocncia e dispensou o julgamento por umjri. O
Juiz Bradley relembrou-lhe seu direito a tal julgamento e disse que
ele ainda poderia t-lo. Mas Joe retrucou, "Meritssimo, eu gostaria
de colocar-me emsuas mos".
Odeputado Harry Comer, testemunha do carter de Joe, tes.
temunhOu sobre sua "excelente reputao" e sobre o fato de que os
filhos d Kallinger mantinhama vizinhana em"permanente tumul-
to". LeMbrou que havia aconselhado Kallinger diversas vezes a tirar
a loja de casa, "por causa das interrupes contnuas das crianas e
de outras pessoas do lugar".
Como testemunhas pelo Estado da Pensilvnia, Mary Jo, Jo-
seph Jr e Michael Kallinger lidaramcomos acontecimentos j des-
critos.
Ojuiz decretou que, comrespeito a Mary Jo, Kallinger era
culpado, de crueldade para comuma criana e de agresso comagra-
vantes; no era culpado, porm, de agresso cominteno de mu-
tilar. No caso de Joseph Jr., Kallinger era culpado de crueldade, e
no de crueldade comagravantes, e de agresso simples, e no de
agresso comagravantes e cominteno de mutilar, como fora acu-
sado. Macusaes de Michael Kallinger foramrejeitadas.
Jofora considerado culpado da maioria das acusaes. Mas o
Juiz Br dley explicou: "Neste ponto, a questo no tomar medi-
das neg tivas. Trata-se de buscar a melhor soluo possvel".
1 88
OJuiz queria dizer que no estava preocupado empunir Kal-
ii-iger, e que o problema real estava emfazer o que fosse melhor
para todos os membros da famlia Kallinger.
OJuiz assinalou que Kallinger no havia ameaado ningum
exceto sua famlia, e que "toda a relao familiar" era mais impor-
tante do que saber se Kallinger deveria ou no estar na priso. O
juiz disse tambmque se sentiria mais esperanoso acerca de man.
ch.r Kallinger para casa se Joseph Jr. e Michael no estivesseml.
(Mary Jo estava morando comos avs maternos). Entretanto, antes
de tomar uma deciso sobre reduzir a fiana de Kallinger ou senten-
ci-lo, o juiz ordenou que o Escritrio da Promotoria efetuasse, atra-
vs do Departamento de Bem-Estar Pblico, uma investigao minu-
ciosa da famlia Kallinger.
Afiana estipulada no dia da priso de Joe fora de 75.000
dlares por todas as acusaes. Na verdade, na Pensilvnia, umru
pode sair sob fiana pagando 1 0%do total estabelecido. Contudo,
sempossibilidade de levantar 7.500 dlares, Joe fora levado para
a Casa de Deteno de Filadlfia. Agora, voltava para a Priso de
Holmesburg para aguardar "a melhor soluo possvel".
Aaudincia sobre a fiana ocorreu em24 de agosto de 1 972.
Ainvestigao ordenada pelo Juiz Bradley no havia produzido ne-
nhumresultado: a notificao fora para o rgo errado, e as pes-
soas erradas tinhamsido intimadas. Emvez de ser encaminhado para
a Cidade de Filadlfia combase na assistncia criana, o caso de
Kallinger fora posto nas mos do Estado da Pensilvnia como uma
questo de assistncia social.
Thomas White, o advogado de Joe, insistiu emque a confu-
so fora uma tentativa deliberada por parte do promotor, Arlen
Specter, de manter Kallinger na priso.
Se a confuso foi deliberada ou no, a priso era onde a pro-
motoria queria que Joe permanecesse. Tal como os velhos Kallingers,
promotoria no pensava emToe como "doente", e simcomo "ruim".
No julgamento (6 de junho de 1 972), quando o Juiz Bradley
disse que Kallinger tinha sido perigoso apenas para sua famlia, Ja-
mes Bryant, umpromotor assistente, discordara. Citara umcaso de
crueldade contra a criana envolvendo Pasquale Munio. Omenino ti-
nha jogado cascas de laranjas na loja de consertos de sapatos de
Callinger. Joe tinha corrido atrs de Pasquale comumrevlver. O
mso, que deveria ter sido levado emmaio de 1 971 ao Juiz Glan-
1 89
1 LF
cLc)
cey, do Tribunal Municipal de Filadlfia, fora arquivado porque
Kathryn Munio, a me de Pasquale, que havia apresentado a queixa,
no compareceu audincia.
OJuiz
Bradley no dispunha dos dados de que considerava
precisar para tomar uma deciso bemfundamentada sobre estipular
uma fiana ou sentenciar Joe. Adiou a sentena, mas disse que toma-
ria uma deciso sobre a fiana nessa audincia. Deborah Glass, a
promotora assistente que chamou Joe de "
el6gio andante",
ops-se reduo da fiana. O
juiz perguntou a Betty altinger se ela
gostaria de que a fiana fosse reduzida para que seu marido pudesse
voltar para casa. Depois que ela respondeu afirmativamente, o Juiz
Bradley reduziu a fiana por todas as acusaes para 5.000 dla-
res. Uma condio imposta foi a de que o Departamento de Sus-
penso Condicional da Pena do tribunal supervisionasse Joe enquan-
to ele estivesse solto sob fiana.
Em1 7 de janeiro de 1 973, depois de estar emcasa sob fiana
h cinco meses, Joe compareceu ao tribunal para ouvir a sentena.
Teve a sentena suspensa comrelao a Joseph Jr. Quanto quei-
madura feita na coxa de KarLjo, foi sentenciado a quatro anos
comsursis para tratamento psiquitrico. Foi solicitado a cralSte-
cer ao Centro Comunitrio de Sade Mental do Hospital Episcopal.
Aps uma entrevista que durou cinco minutos, o entrevistador disse
a Joe que nada havia de errado comele. Joe comunicou isso ao fun-
cionrio encarregado de fiscaliz-lo, que escreveu uma carta ao Cen-
tro Comunitrio de Sade Mental e obteve a mesma resposta. Esse
foi o trmino da orientao psiquitrica para Joe, mas ele conti-
nuou emliberdade condicional)
A"melhor sano possvel"
teria sido que Joe, que era psic-
tico e perigoso por causa da psicose, fosse colocado numhospital
psiquitrico para tratamento. Os Drs. Hoffman e Von Schlichten, ao
fazeremumexame de Toe antecedente sentena, quando ele estava
sob fiana, haviamreafirmado suas observaes originais. Essas ob-
servaes nunca foramenviadas ao Centro Comunitrio de Sade
Mental. Os dois psiquiatras haviamsugerido especificamente que
Joe fosse enviado ao Hospital Psiquitrico Estadual de Filadlfia. O
Juiz
Bradley poderia ter agido combase no no diagnstico do Dr.
Jablon de que Joe no era psictico, e smno segundo laudo de
Hoffman- Von Schlichten de que ele o era. Contudo, na poca da sen-
tena, enquanto Deborah
Glass defendia a tese do encarceramento
ou da colocao de Kallinger numhospital _psiquia_tri
Juiz Brad-
lexiesistitkk
argumentao deli:
Disse o
Juiz Bradley: "... salvo por episdi s do tipo pelo
qual o Sr. Kallinger est agora indo a julgamento, as rianas saem-se
melhor quando ele est emcasa do que suando no est,
emtermos do fato de que ele realmente prov ummeio de subsis-
tncia e tambmemtermos do fato de que ele >fetivamente ofe-
rece alguma forma de orientao, que, de outra for a, estaria com-
pletamente ausente. Apergunta , deve a prescri legal ser a de
afastar o Sr. Kallinger ou permitir-lhe que permane a emcasa? Co-
mo disse, no estou de modo algumconvencido e que afast-lo
traga alguni beneficio para as crianas ou a situao domstica geral.
No h dvida de que ele , emtermos econmicos umbomprove-
dor emcasa. De outra forma, as crianas, a me
toda a famlia
no teriamqualquer apoio e, aparentemente, as crianas recebe-
riammenos orientao do que recebemquando e est emcasa.
Sou levado a concluir que a prescrio deve ser d tal ordemque
permita ao Sr. Kallinger permanecer emcasa, pro ando o sustento
e o apoio de sua famlia".
Acada momento crtico da vida de Joe emq e a interveno
psiquitrica teria sido possvel, ela no ocorreu. Q ando tinha quin-
ze an
os e deu as primeiras mostras de movimentos erpenteantes, de
umriso brbaro que provinha da barriga e de ouros sintomas de
doena mental, Anna Kallinger, emvcz de lev-lo a umpsiquiatra
deu entrada numa queixa de incorrigibilidade. A s 22 anos, Joe
fora hospitalizado no pavilho psiquitrico do Ho pitai St. Mary's
mas os psiquiatras de l no viramnenhumsinal e doena mental
grave.
No Hospital Estadual de Hazleton, onde Toe
de amnsia e tentou o suicdio, os mdicos realme
um -
alOinpanhamerit6, Mis
-
nenhuma medida foi t
prio Joe ou por qualquer outra pessoa prxima
mdicos da Prefeitura diagnosticarampela segunda
da psicose de Toe e recomendarama hospitalizao
o no ocorreu.
Em1 972 e 1 973, Joe tinha uma probabilida
boa de melhorar o
e da t rapa.
elo menos, de controlar sua
in
tu-,-43
ediOrt
rapa.
Essa oportunidade lhe foi
Juiz kadley ignor kt
,
c:1 segundo laudo de Hoffman-
1 9.
t.
esteve emestado
te recomendaram
macia pelo pr
ele. Quando os
vez a gravidade.
essa hospitaliza
e razoavelmentL
sicose atravs da
negada porque o
on Schlichten-Le
1 90
vitu recomendando a hospitalizao e, emvez disso, baseou-se' no
laudo do Dr. Jablon, que afirmava que "No h razo, entretanto,
par esperar que (Joseph Kallinger) precise de institucionalizao ou
detratamento hospitalar no momento atual por motivos psiquitri-
cos
' ,
. ODr. Jablon efetivamente recomendou que, se Kallinger fosse ; ;
libertado da priso, ele e a famlia deveriamfazer terapia familiar.
As conseqncias das concluses do Dr. Jablon contra a hospi-
talilao ou o tratamento hospitalar foramainda mais lastimveis na
medida emque ele prprio havia assinalado, emseu relatrio de 9
de maio de 1 972, alguns dos sintomas de psicopatologia grave, e
tinha escrito que, "Do ponto de vista do diagnstico, o Sr. Kallinger
no apresenta um_quadro bea_definldo"."Ad
fitierlidffro t stico
dr'rpersonalidade inadecdida", o Dr. jablon citou sintomas que
erarri psicticos ou, pelo menos, prpsidtkos. Entre esses sintomas
estata-51 5thsamento digressivo e semelhante ao autista.
'Anexa ao prprio diagnstico estava a observao de que "A
tendncia dele (Joseph Kallinger) ao retraimento e sua incapacidade
de edcpressar hostilidade, mesmo quanfoIsso--seriamproglido, su-
gereMumcomprometimento esquizide. Su * evisivarerageradas
e-sua- desconfiana si:gere:1 i algifiria's atitudes paranides". E o Dr.
Jabln escrevera: "E precrio o prognstico de que esse paciente
seja capaz de funcionar como umpai e marido emocionalmente
sadid".
Odiagnstico de Jablon de que Joe no era psictico e estava
sofrendo de umdistrbio de personalidade iria estabelecer umpa-
dro de diagnstico para o qual muitos psiquiatras posteriores con-
correrame que, mais tarde, os promotores usaramemseu benefcio.
Em1 976 e 1 977, o prprio Dr. Jablon iria repetir e defender publi-
camente seu diagnstico original de que Joe era sociopata.
'Flora", disse-me Joe ao olhar-me comtristeza por sobre a mesa
de madeira cheia de marcas na enfermaria da Cadeia do Condado de
Camden, "emHolmesburg, alguma coisa realmente profunda estava
acon ecendo dentro de mim. Na poca, eu no tinha realmente cons-
cindia do que era. No sabia quo longe aquilo iria."
1 1 Os Deuses Totais
"Oguarda caminhou a meu lado na sada da priso, emdireo ao
porto principal, onde Betty estava esperando. Osol estava quente
e brilhante, mais quente e mais brilhante do que eu me lembrava.
No sou exatamente maluco por sol, Flora, brilho demais para um
homemsubterrneo como eu; mas as luzes no interior da priso so
fracas, e a luz do dia no penetra muito pelas estreitas janelas co-
bertas de grades; depois, h tambmaquela escurido interior com
que umprisioneiro convive, quase como se sua alma tivesse sido
armazenada junto comsuas roupas e outros pertences pessoais.
"Naquela manh, em26 de agosto de 1 972, Betty fora ata
Prefeitura pagar os 1 0%dos 5 mil dlares para os quais o juiz
Bradley tinha reduzido minha fiana de 75.000 dlares. Tudo o que
Betty precisou fazer foi pagar 500 dlares. Agora, na parte da tarde,
ela iria levar-me para casa.
"Oporto se abriu. Apertei a mo do guarda, que me desejou
boa sorte. Ele sorriu e, de repente, pareceu humano, no mais como
umguarda; foi a primeira vez, acho, emque vi algumsorrir emseis
meses e vinte e seis dias.
"Minhas prprias roupas pareciamestranhas emmimquando
Betty e eu nos abraamos. Eu tinha esquecido como era o contato das
roupas de uma mulher emminhas mos, e como suave e limpa a
pele de uma mulher para o tato. Minhas mos tinhamestado matando
baratas a tapas, girando torneiras sujas das bicas d'gua, puxando
cobertores speros sobre meu corpo no colcho duro no h
nada de doce e feminino no xadrez.
1 92
1 93
"Betty e eu entramos no nibus para ir para casa. Os assentos
macios e o movimento para longe da priso eramagradveis. Aper-
tei a mo de minha mulher. Estava de volta ' rua'. Estava livre!
"Mas ser que eu estava livre? Amedida que fomos rodando,
observei as pessoas andando, entrando e saindo das lojas, simples-
mente cuidando da vida delas. Aquilo era agradvel. Mas a, co-
mecei a pensar sobre minhas coisas minha loja de consertos de
calados e o prazer se congelou emmedo. Eu s estava solto
sob fiana. Meu sonho tinha sido sair do tribunal do Juiz Bradley
inocentado das acusaes, mas isso no acontecera. Os jornais ti-
nhamimprimido que eu fora considerado culpado da maioria das
acusaes. Eu era umcriminoso!
"Eu mal podia acreditar. Eu, umcriminoso? Eu tinha 36 anos.
Nunca fora preso antes. No era como os homens que tinha encon-
trado na priso. Avida deles estava repleta de crimes. No, o cri-
me era a vida deles!
"Tinha que pensar emalguma coisa que modificasse o veredito
de culpa, seno os fregueses permaneceriamafastados e meu neg-
cio ficaria arruinado. Ningumquer fazer negcios comumcri-
minoso. E, embora ainda faltassemcinco meses para a data da mi-
nha sentena, eu poderia ser mandado de volta para o xadrez a
qualquer momento se no ficasse limpo, ou se meus garotos fizessem
outra queixa contra mim.
"Betty voltou para a casa dos pais dela no dia emque me le-
vou para casa, como tinha dito ao Juiz Bradley que faria. Era l
que Mary Jo estava morando; e Joey, Mike e Jimmy tambmiriam
ficar por l atque as aulas recomeassem. Eu estava furioso porque
iria ficar sozinho durante a primeira semana e meia depois de voltar
para casa. Mas no havia nada que pudesse fazer.
"Sentei-me emminha loja e pensei muito sobre como fazer meu
negcio tomar impulso. E voltei a familiarizar-me comtodas as mi-
nhas ferramentas e mquinas. No tinha esquecido como us-las, a
velha habilidade ainda estava emmeus dedos, e senti prazer emto-
- car minhas ferramentas como se fossemvelhos amigos, emvoltar a
saber tudo sobre elas. Liguei o acabador, voltei a sentar-me e fi-
quei simplesmente ouvindo sua msica, uma msica que eu no
ouvira emseis meses e vinte e seis dias: o gemido do motor el-
trico, o silvo da correia de transmisso, o eixo girando emseus ro-
lamentos. Amsica da priso no se parece comnenhuma outra coi-
sa do mundo: so os sons do Caos e da Noite Imemorial guardas
dando ordens speras, resmungos e pesadelos gritados, sons de arras-
tar e estalar nas frias paredes de pedra, o baque surdo de punhos nos
corpos dos prisioneiros, portes que se fechamcomestrondo.
"Tudo emminha loja estava exatamente como eu havia dei-
xado, exceto que no havia sapatos de fregueses. S meles, minha
loja era como uma boca semdentes. Na priso, eu ti ha escrito uma
carta promocional sobre umservio de consertos d
- calados com
recolhimento e entrega a domicilio. Mandei quinhe tas cpias mi-
meografadas de minha carta aos escritrios de adv gados, juizes e
servios legais de toda a cidade. Acarta dizia que o Servio Rpido
Kallinger de Consertos de Calados comRecolhime to e Entrega a
Domiclio apanharia e entregaria os sapatos nos esc itrios no mes-
mo dia.
"Quando voltei para casa, alguns pedidos j h: iampingado e
eu estava esperanoso. No incio, Betty teria que
idar dos reco-
lhimentos e entregas; depois, eu pretendia arranjar umcaminho e
umentregador. Mas pensei muito sobre o trabalho, porque umpin-
ga-pinga no a mesma coisa que uma avalancha d- pedidos. ',em-
-
bre-se, Flora, de que eu era umcriminoso, e portan o pensei muito
emcomo retirar esse estigma.
Joe decidiu que, para conseguir isso, precisav
, I
P poderoso, Oplano teria boa probabilidade de xit
Joe sentiu-se destronado ao sentar-se sozinho n
depois que Betty foi embora para a casa dos pais.
Joey e Mike, tal como eles sentiriammedo dele q
remcomBetty, entrassemtemerosos na casa, and
dos ps. Com
Joey, o pai estava tambmzangado,
Holmesburg cartas annimas que diziamcomo Joey
do o depsito de East Hagert Street.
Joe viu entrar sua me adotiva, agora com7
ele assumiu o negcio de consertos de calados e a
das ruas East Sterner e North Front, Anna e Ste
'
para a casa que possuamao lado, no n" 1 02 da Ea
Ocontato que Joe mantinha comos velhos Ka
cera intenso; quanto influncia que exerciamso
geral, ela se enfraquecera. Eles o haviamadotado
negcio e cuidar deles na velhice. Ambos os pro
realizado. Onegcio era de Joe e depois de apos
1 95
de uni plano
se envolvesse
Joey, Michael e Mary Jo, a quemele chamava "os de ses totais", por-
que haviamsuperado o rei do castelo ao mand-lo ara a cadeia.
sala do castelo
Tinha medo de'
ando, ao volta-
ndo nas pontas
ois recebera em
estava saquean-
anos. Quando
casa da esquina
hen mudaram-se
t Sterner Street.
lingers permane-
ce ele, de modo
para herdar seu
sitos tinham-se
ntar-se, Stephen
1 9=1
freqen emente o ajudava no trabalho de consertar sapatos. Joe e
Betty cuidavamdos velhos Kallingers quando eles adoeciame eram-
lhes prestativos tambmemoutros aspectos. Stephen falecera em
1 971 e, no instante de sua morte, Joe estava friccionando os ps
dele pata prolongar-lhe a vida.
Sernpre que Joe e Betty discutiam, Anna tomava o partido de
1 Joe e Stephen, o de Betty. Quando Joe e Betty levaramMary Jo,
aos qua ro meses de idade, a umhospital de Boston para fazer um
tratame to ligado a umproblema auditivo, Anna cuidou de Annie e
Stevie, as filhos do primeiro casamento de Joe. Ao saber que Joe
estava pensando emestabelecer-se emBoston, Anna desmaiou. De-
pois de keanim-la, Stephen telefonou para Joe dizendo-lhe que viesse
para casa, Joe assimfez, e a segunda finalidade da adoo continuou
a ser atendida.
Os filhos do primeiro casamento de Joe tinhamrecebido seus
nomes erni homenagemaos avs Kallinger e, por essa razo, Anna
era louca por eles. Comos filhos de Joe e Betty, porm, era mais
fria. Conversando comJoe no dia emque ele voltou de Holmesburg,
Anna balanou negativamente a cabea, estalou a lngua e declarou ser
uma grande vergonha que umpai j nemsequer pudesse castigar seus
filhos nesse mundo maluco semser mandado para a cadeia por isso.
Emsua velha terra, prosseguiu, agitando umdedo no ar, isso jamais
aconteceria. L os pais eramrespeitados e temidos; mas aqui, nesse
pas gottverlassen, ' as crianas fazemo que bementendem.
Nurna visita a sua casa, vindo da residncia dos avs maternos
enquantq Joe estava na cadeia, Mary Jo mostrara a Anna Kallinger a
cicatriz. Anna dissera neta emtomraivoso, "Oral Isso no na-
dal Umminscula ruguinha emsua pele, e por causa disso voc
manda s u pai embora, no ? Suponho que agora esteja commedo
de que os rapazes no gostemde voc porque temessa dro-
guinha d Puptzich, no ? Seu pai devia ter queimado a outra perna
tambm! Voc muito m emfazer isso comseu pai, que a amou
e deu muito duro por voc. Ia, meine Enkelin! Est entendendo,
sua imptestvel, que s pensa emhomem?
OServio Rpido Kallinger de Consertos de Calados com
Recolhimento e Entrega a Domiclio estava comeando a crescer,
coma entrada de alguns pedidos pequenos a cada semana, mas
no muitos dos antigos fregueses de Joe haviamvoltado. Por me-
N.E. Abandonado por Deus.
" N.E., Sim, minha neta!
1 96
lhor sapateiro que fosse, ele era tambmum criminoso, e isso es-
tava retardando a recuperao dos negcios. Joe olhou para as pra-
teleiras onde empilhava os sapatos a seremconsertados, Estavam
quase vazias, exceto por umpar de sapatos de umjuiz e outro de
umadvogado de Center City. Oplano tinha de ser posto emprtica
agora!
Depois do jantar, chamou Mike e Joey loja.
Sentem-se, meninos, disse-lhes convidativamente, comum
amplo sorriso.
Joey olhou de esguelha para o pai. Mike resmungou alguma
coisa ininteligvel. Joey era mais magro e mais baixo do que o ir-
mo e seu cabelo era mais escuro que o de Mike, Mike era dentuo,
porm, no mais, parecia-se bastante comJoey; apesar disso, Joey
era muito mais parecido como pai do que Mike, embora ambos ti-
vessemcabelos alourados, enquanto os de Joe eramnegros como
azeviche.
- Joe observou que ambos haviamemagrecido. Muitos jantares
prontos baratos, pensou consigo mesmo. Observou tambmque as
roupas deles estavamvelhas e gastas, e os tnis, pudos e sujos.
Na era pr-Holmesburg, Joe dava uma ordeme os garotos saam
correndo para execut-la. Desde o motimno castelo, porm, ele
havia perdido sua autoridade de pai. Sabia que tinha de acalmar
esses "deuses totais", tinha de persuadi-los a trabalhar para ele,
e no contra ele. Sabia que eles poderiammand-lo de volta.
Qual o "papo"? perguntou Joey.
E, qual o "papo"? ecoou Mike.
Estamos ocupados. Vamos l, "cara", ordenou Joey.
E, vamos l, exigiu Mike.
No iria ser fcil, pensou Joe, olhando para se..s dois filhos,
nus ele precisava tentar. De outra forma, o futuro seria umdesastre.
Olhemaqui, meninos...
Estamos olhando, disseramJoey e Mike emunssono, fim
girado olhar atentamente para umponto da camisa de Joe.
Joe os olhou e riu. No, rapazes, no estou dizendo para
olharempara minha camisa. Oque eu quero dizer que, bem,
aconteceu muita coisa entre ns, certo?
Certo! retrucou Joey. Ps-se a soprar anis de fumaa. Mikc
sacudiu afirmativamente a cabea comar de entendido e ps-se a
chupar seus dentes protuberantes.
Mas o meu lema, prosseguiu Joe cominsistncia, perdoar
1 97
e esquecer. Sei que vocs amamo papai... Joe esperou por alguma
resposta, mas Joey e Mike permaneceramemsilncio.
H uma coisa que eu quero pedir, uma coisa que quero que
vocs dois faam, vocs e sua irm Mary Jo tambm. E para o bem
da famlia Kallinger.
Joey, que era habitualmente irrequieto, levantou-se da cadeira.
Andou de umlado para outro da loja, olhando para o pai.
ike me desafiou
foi como se meu corao parasse. Eu nunca ti ha entrado ilega
mente numa casa. Mike estava vivendo nummuno de diamantes
e
trs quilates. Eu sabiaque_os_roubo_s_erams ummeio de me aproe,
tar para o massacre. mundial. Tinha medo deear a entear n
cassrNfilMike tinha dito que, de agora emd ante, eu teria qu
,
entrar comele. No falou que eu teria de entrar comele naque
dia. Fiquei na esperana de que no houvesse ou ra ordemde Deu
de que Deus no continuasse a desafiar-me a dest uir a humanidad,,
Aprimeira invaso de Joe foi numa pequ na cidade da Pe
silvnia. Ele achou que tinha de aprender o que ike i sabia. Mike
era a fora e a coragemde Joe. Os dois andarampor terras cul,
vades, entraramna casa de umfazendeiro, e Mike comeou a saque
-
, os quartos. Joe o acompanhou, sentindo-se co o se estivesse ru.,
. sonho que tivera quando criana, comgrades em rma de meias-lui
telhados que se fundiam, e gente nos telhados ue se tornava SI' -
amiga. No sonho, Joe tinha tentado entrar nova nte na casa e sei.
tira-se umintruso.
Joe seguiu Mike e, depois, comeou a ajuda o. apanharam
grande coleo de moedas e saram. Andando omMike por un
trilha, Joe sentiu-se tonto, comdor de cabea e v ndo luzes. Ao ci.
as as ferramenti,
no chegavamato ponto emque deveriamtoca . Joe tinha perdi,
a coordenao.
Depois da primeira entrada ilegal de Joe, e e Mike foram
muitas cidades de Jrsei de que ele depois se esqueceu, e que
beira da estrada'
2"
1
se na batalha de Joey contra a Escola e Hospital Estadual do Leste.
Joe comeou a agir combase emseu delrio grotesco e hediondo dej
massacrar a humanidade, gerado pelas alucinaes de Deus.
Naquele inverno de 1 973-1 974, seguindo ordens que acredita-
va proviremde Deus, Joe estava decidido a destruir a humanidade,
a matar comumfaco de aougueiro todos os homens, mulheres, cri-
anas e bebs sobre a face da Terra. Para atingir esse objetivo, es-
tabeleceu uma sociedade criminosa comseu filho Michacl, umdos
"trs deuses totais", Joey 'fora o representante de * Joe emKensington,
executando os desejos no-expressos do pai. Joe pensava cmMichacl
como seu representante nos bairros elegantes para o mesmo fim.
Joey safa sozinho, mas, comMichaei, costumava ir junto.
ComMichael, Joe tinha o que denominava de "uma represen-
tao de camaradagem". Sempre que chegava uma ordemdas aluci-
naes de Deus, Joe e Michael pegavamnibus que se dirigiama
outras reas da Pensilvnia e de Nova Jrsei, onde desciamao acaso
emcidades estranhas cujos nomes no conheciam. Isso acontecia
aproximadamente duas vezes por semana. Michael invadia as casas
enquanto Joe esperava por ele no ponto de nibus, seguia adiante
ou sentava-se numbanco. Enquanto Joe aguardava do lado de fora,
Michael cometeu duas dzias de furtos, desde o inverno de 1 973 at
junho de 1 974.
Numbelo dia de junho em1 974, Joe e Mike andaramatuma
velha estrada rural emNova Jrsei. Enquanto Joe permaneceu sen-
tado numa pedra junto a umriacho, Mike desceu a estrada e inva-
diu uma casa. Joe desviou os olhos da gua reluzente do riacho e
voltou-se para a estrada poeirenta. Aestrada estava deserta.
Oriacho fez Joe lembrar-se do que havia perto do velho ban-
gal emNeshaminy, onde, na infncia, ele tivera fantasias alegres
sobre as borboletas. Ochalagora lhe pertencia, mas as fantasias ale-
gres que o haviamcercado j no existiam. Ali, sentado junto gua
cintilante emNova Jrsei, ele se recordou do menino que tinha le-
vado ato riacho perto de Neshaminy para castrar. Aquilo no se
concretizara. Agora, ao fazer essas incurses exploratrias nos su-
brbios elegantes sob o que alucinava ser ordens provenientes de
Deus, os pensamentos de Joe eramtambmsobre castrar e des-
truir. Ele no havia falado comMike sobre "a ordemde Deus" ou o
massacre do mundo, mas sabia que chegaria o momento emque ele
prprio teria de agir, embora ainda no estivesse pronto.
21 0
Mas lembrou-se efetivamente de ele e o filho tereminvadido e pene-
trado emcasas das cidades de Lansdale, Norristown, Conshohocken,
Bryn Mawr, Ardmore, Upper Darby, Broomall, Wayne, King of
Prussip, Swarthmore, Media, WillowGrove, Hatboro e Doylestown,
na Pehsilvnia.
Sempre que voltava de uma incurso pelos subrbios, Joe es-
perava! no sair novamente. Mas, quando voltava a ordemalucina-
nada de Deus para que sasse comMichael, Joe dizia a seu filho,
"Vamos!"
Quando a ordemrecebida por Joe era muito forte, ele e Mi-
chael s vezes saamde casa antes das seis horas da manh. Quan-
do era menos urgente, porm, Michael ia escola e se encontrava
comJoe numlugar predeterminado. Nesses casos, Joe telefonava
para a escola e dizia, "Precisamos de Michael".
Havia ocasies emque Michael telefonava para Joe para per-
guntar "Ns vamos?" Se a ordemno tinha vindo, Joe respondia,
"Hoje no". Se tinha, ele dizia, "Encontre-me na esquina de Bridge
e Pratt". Era ali que pegavamo tremelevado ato terminal dos
nibus.
Ao sentar-me comJoe na enfermaria da Cadeia do Condado
de Carnden, ele me disse tristemente: Michael no precisava ir
comigo. Poderia ter ido polcia. J tinha feito isso antes. Se tivesse
medo de ir sozinho, poderia ter chamado Joey, ou ento uni amigo
ou umprofessor para ir comele. Ou poderia ter telefonado para o
fundo rio encarregado da minha condicional.
No digo que 'Mi-
chael .enha comeado isso, mas, se ele tivesse dito "no",
tudo ter-
minar
a ali. Ele era minha fora, minha coragem, o corao
da ope-
rao
inteira. Flora, Flora, repetiu Joe emtomsplice, por que, por
que 1 Vichael me colocou emperigo?
1 2 AProva da Fora
Domingo, 4 horas da tarde, 7 de julho de 1 974. Aloja estava
fechada, comas cortinas cerradas, mas Joe estava emsua bancada
de trabalho, comMichael de pa seu lado, observando. Joe segu-
rava uma fresa manual, uminstrumento ento recmpatenteado para
cortar materiais pesados, na mo esquerda. Apertou as alas e a l-
mina fina cortou o salto de umsapato de mulher. Como urna cabea
decepada numa execuo, o salto caiu na minscula "mesa" de
metal afixada fresa. Isso excitou Michael e ele disse ao pai,
"Vamosl"
Joe colocou a fresa e umrolo de fita gomada preta numpeque-
no saco plstico. Colocou o saco no bolso. Pai e filho saramda loja.
Odia estava ensolarado e a temperatura, por volta dos 30C
.
Durante nove meses, Joe e Michael haviampercorrido semdestino
muitas milhas de subrbios, mas hoje iriamficar na cidade. Esse
passeio seria diferente: antes que terminasse, a primeira vtima de-
les jazeria morta numa fbrica abandonada.
Emminha visita a Joe em1 7 de junho de 1 977, na enferma
ria deserta da Priso do Condado de Camden, ele me disse:
"Mike disse 'Vamos!' porque estvamos inteiramente sintoni-
zados. Ele era umim para meus pensamentos, Flora: captava-os e
agarrava-se a eles exatamente como umm atrai e segura a limalha
de ferro. Aquilo fazia comque me sentisse seguro ::omMichael, pois
21 3
21 2
eu estava caindo num mundo louco, mais louco ainda do que aque-
le em que eu tinha vivido antes de meu encarceramento na Priso
de Holmesburg.
"Naquele vero de 1974, eu sabia que tinha que destruir o
mundo, matar todos os homens, mulheres e crianas deles. Essa
era a ordem de Deus para mim. Quase todos os dias eu ouvia a voz
d'Ele: "Voc deve destruir aquilo que no pde salvar com seus ex-
perimentos Ortopdicos". Algumas vezes, Deus me relembrava os
hamsters e Mary Jo. Costumava dizer, "A destruio dos hamsters foi
o comeo. Voc continuou ao queimar a coxa de Mary Jo, s6 que
ia enfiar a esptula quente na vagina e nas tripas dela, mas se acovar-
dou e queimou apenas a carne macia perto da vagina. Agora che-
gou a hora, com a ajuda de Michael, de voc matar trs bilhes de
pessoas". Eu ouvia muitas coisas desse tipo, ditas pelo Senhor, no
vero de 1974.
"Matar trs bilhes de pessoas! Era uma grande ordem de Deus,
Flora, uma grande ordem! E tinha de ser executadal Mas, como eu
iria comear? Minha mente, desde que eu tinha doze anos, estivera
cheia de quadros de corte de rgos sexuais masculinos e femininos.
Usei esses pensamentos ao longo dos anos, na maioria das vezes,
para conseguir ser potente, primeiro com Hilda, depois com Betty.
Mas agora percebo que aquilo tinha outra finalidade: sem as ima-
gens, que me provocavam erees, eu no poderia obedecer s or-
dens de Deus. Com elas, podia.
"Mas eu no sabia matar. No sabia como matar. Salvo pelos
hamsters, nunca tinha matado nenhuma pessoa ou animal. Aquilo
era a guerra, a guerra de Deus. Eu era o general d'Ele e Michael
era meu oficial imediato, os dois contra o mundo, em nome de Deus!
"Flora, nunca estive numa guerra. Eu era um garotinho na
poca da II Guerra Mundial. Depois, a Coria e o Vietn eram
apenas nomes e fotografias nos jornais para mim.
"Eu tinha sido um menino medroso. Agora, era um adulto me-
droso. Mas Michael no tinha medo de nada, no tinha nenhum dos
medos que eu sentira na idade dele. No vero de 1974, ele tinha doze
anos e meio. Eu precisava de algum que fosse frio e destemido para
me ajudar a matar trs bilhes de pessoas. E precisava de algum a
quem amasse e em quem confiasse. Essa pessoa era Michael: ele
no tinha um s nervo no corpo e era meu filho amado. Alm
disso, eu sabia que meu pnis no era to grande quanto o dele, de
modo que ele teria o poder que eu no Unha. Michael tomou-se
minha fora e minha coragem.
"Eu no poderia
fazer aquilo semele, de modo q e, em26 de
junho, fiz-lhe um pedido direto:
Mike, tenho umesc
. intenso
de matar a
, e voc suemva
e a u arc ael no
esperou nem um segundo.
is gelados do
ue em outras ocasies.
Talvez, Mike, retruquei.
Por que talvez? Vamo-nos livrar dele hoje!
"Pensei comigo mesmo, imagine dizer uma coisa dessas sobre
o prprio irmo. E to antinatural. Eu no disse nada a mim
mesmo sobre matar
o
prprio filho. Isso teria sido cruel demais.
Peruo nisso agora, mas no pensei naquela poca.
'' Por que talvez? tornou a perguntar Mike.
"Flora, no sei por que eu tinha dito 'talvez'. Talvez fosse por-
que, de acordo com os pensamentos que costumava ter, eu quisesse
mutilas meu filho sexualmente, em vez de atir-lo de
uni
rochedo.
Lembrese de que foi assim que planejei matar trs bilhes
d. pes-
soas atravs da destruio
de seus rgos sexuais,
Ou alva
fosse
porque eu amava Joey e no queria fazer o que a Voz tinha orde-
nado. Bem, disse a Mike,
vamos ver. Quemsabe o que o dia pode
trazer?"
Depois do caf
da manh, Joe entrou na loja, o de Michael,
Jimmy e joey o aguardavam. toe retirou
a cmara Bro nie de uma
prateleira de vidro e
apanhou cUtheiro na caixa
registr
dora. Deu a
cada um dos meninos dois
dlares e guardou o
resto
n bolso.
Ento, meninos,
prontos para sair. perguntou.
Porra, claro!
respondeu loey, acendendo u cigarro.
--
Se a gente no sair agora,
alguma coisa vai achatar s montanhas
e elas vo ficar
parecendo panquecas.
Demorou
umboc do para voc
Toe observou Toey encostar-se
insolentemente na porta da rua
se
vestir!
que dava para a loja. O
cigarro balanava numcanto de sua boca.
Toe tornou
ar da ele enquanto
seu corpo saltava uma ou duas vezes antes de cair
p sadamente
em
repouso, cona os
b os retorcidos e o rosto
asar'
alhado,
como
mu
.ou:
ele viu o
uma boneca de trapos ensangentada. O qu
adro
corpo
modo
e retorcido de Toey deitado entre os q e
compunham
a grande montanha dos malditos, to alta que podia ser vista acima
da linha do horizonte. Os demnios invisveis, que v avam em eter-
na patrulha ao redor da montanha, estavam cortan o o pnis e os
te
de
Toey comsuas
facas flamejantes.
Por que
que voc est parado a, papai?
que
que est
olhando?
Vamos embora! gritou Joey em voz esgani da.
Escute,
Toey... comeou
Toe.
Vamos
embora, papai, disse Michael. N'
o d ouvidos a
ele, pelo
menos no agora. Vamos!
Toe observou
Ioey
ando avidamente adi nte de limmy e
Mike,
que corriam em crculos e fingiam ser avio
- s e
pssaros.
Sou
um
grande
pssaro voando sobre uma mont nba, disse
Ivhke,
descrevendo umcirculo e
um mergulhe com os b aos
abertos em
Cruz.
.-
, disse
Ice, vamos ficar juntos
esse
ora, e tratemcl-
no
sair corren
bem
do e se perder. Vamos nos divert r mais com Est
negcio se
ficarmos todos juntos. Certo?
22,
226
Joey continuava frente, no entanto, caminhando lpido com
seu coxear, e cantava baixinho para si mesmo: We had Joy, we
had fon, we had seasons in the suniBut the bilis that we climb
are just seasons out of time. * Joey ia pensando em seu pai bom
o "papai das diverses e brincadeiras". Parou de andar na estao
da Linha Elevada Frankford para esperar pelo pai e pelos irmos.
H- Quanto tempo vai demorar a viagem de nibus? perguntou
Jimmy! enquanto os quatro subiam os degraus at a plataforma ele-
vada ra esquina da avenida Kensington com a rua A.
Duas ou trs horas, acho, respondeu Joe.
A gente vai escalar muito?
HL No sei, Jimmy, talvez, disse Joe.
Esnbora Jimmy fizesse algumas restries s escaladas, os trs
meninos estavam excitados com a idia de sarem numa expedio
explordtria.
Ut garoto rechonchudo com uma basta cabeleira loura, que aca-
bara de chegar plataforma do elevado, caminhou em direo a eles.
Onde que voc vai, Marty? perguntou Mike.
Vou a um almoo de domingo na casa da vov, respondeu
Martin Slocum, um dos garotos em quem Mike vivia "pendurado".
- P, isso no nada! disse Joey. N6s vamos escalar uma
montanha alta. Aposto que a montanha mais alta de toda a Pen-
silvni.
Onde que fica? perguntou Martin Slocum com admirao.
Grande Canyon, respondeu Joey. A dez milhas de uni
lugar Ohamado Wellsboro. Agente vai de nibus.
r
Voc sortudo, Joey! Queria que meu pai me levasse a
lugares corno o Grande Canyon. Mas ele .no me leva alugar ne-
nhum.
r Ei! Est chegando o trem! gritou Mike.
/cie dirigiu-se com ar carrancudo at a bilheteria do terminal de
nibus na esquina das ruas Treze e Arch. Queria voltar; sentia o
pnico revolvendo no estmago e tinha dificuldade de respirar, como
se houvesse um torno apertando seu peito. Mas, agora, no podia
parar.
Tivemos alegria, tivemos diverso, passamos temporadas no sol/Mas
as montanhas que escalamos so apenas temporadas no tempo (trad.
livrC de uma cano popular norte-americana). ( N. da T.)
228
Quatro bilhetes de ida e volta para Wellsboro, disse ao bi-
lheteiro. A que horas sai o nibus?
Dentro de oito minutos, respondeu o bilheteiro.
Joe afastou-se lentamente da bilheteria. Os meninos quiseram
ir ao toalete e Joe foi comeles ao que ficava no lado do terminal
que dava para o rua Arch, na extremidade oposta bilheteria.
Demoraram-se demais no toalete c perderam o nibus. Sabendo
que no poderia matar Joey a menos que chegasse no Grande Canyon,
Joe sentiu-se aliviado; mas sentia tambm um grande anseio de ma-
tar o filho, o que alucinava ter sido uma ordem de Deus.
Ainda sentindo o intenso anseio de matar Joey, voltou bilhe-
teria, onde foi informado de que poderia esperar at s 1 3 horas
pelo nibus seguinte para Wellsboro, ou ento ir atHazleton, onde
poderia fazer uma baldeao para o Grande Canyon.
Aps uma breve conversa comos meninos, Joe comprou 1 , .
lhetes para Hazleton.
Na estao de Hazleton, Joe perguntou a umbilheteiro sobe:
conexo de Hazleton para o Grande Canyon, mas o homem !ui !I.
mou-lhe que, aos domingos, no havia nenhumnibus que fizesse
aquele trajeto.
Os meninos ficaramdecepcionados. Joe disse: Bem,tal
visitarmos as minas? Sabia que poderia matar Joey com a mesma
facilidade atirando-o no poo de uma mina ou empurrando-o do topo
do Grande Canyon. Disse ainda, Iremos ao Grande (Thoyen II.1
semana que vem,
Que maravilha, disse Joey com sarcasmo. S3 que eu
queria ver o Grande Canyon hoje! Droga, papai! Voei: linha que
esmerdalhar tudo? Quem que quer visitar minas velha, quando a
gente podia ficar no alto do Grande Canyon?
Joey rolou o cigarro com o lngua desde o canto esquerdo da
boca at o direito. Inalou uma grande quantidade do fumaa e so-
prou-a com uma baforada no rosto de Mike.
Voc quer parar de fumar um minuto, por favor? Suas
guimbas esto me matando de tosse. Voc um 'saco', Joey, sabia?
E voc uma velhinha beata, Mike Kal !Inger. Voc no
vale uma trepada. Joey cerrou o punho direito e esticou o dedo m-
dio para Mike.
Joey, fique quieto, ordenou Joe. Jimmy temalgo a dizer.
os fundi-
-lo a.
pedra e ob-
subida, alas-
apail Espere
z e o estalar
o tempo, loe
melhor ele se
fumaa no ar.
lcanar vocs,
rido quiser an-
srio:
Nin-
ase dos dirios
ueirn-lo numa
prio, j adulto
,
deitado de cos-
seu corpo, loey
ndendo comum
o a pele de ice
os msculos quei
cho. Ametade
de pele chamus
penas seus olhe
sua caveira exi-
ira de praia oro.
cigarro pendia-lb-
"
Olhando para o filho, Joe lembrou-se de uma f
"querido papai" de Joey:
"Quero afogar meu pai,
grande fogueira".
7"
estava reclinado. Seus olhos estavamalegres. Um
escavou'
bia umesgar. joey o observa
do canto da boca. E ele cantarolava baixinho, c nsigo mesmo,
had
had fun..
...
..
......
. . _.._.
"Assim, fui ato lugar onde estavamJoey e Mike. Este, olhan-
do para baixo, estava dizendo Eu no tenho medo de pular.
"Pareceu-me que Mike estava desafiando loey a fazer exata-
mente isso. Assim, eu disse, Venha, loey. Saia dessa borda. l
hora de irmos embora, de qualquer maneira.
They fez o que eu mandei. Emseguida, descemos o cone. No '
caminho, ouvi Joey dizer a Mike, Que que voc estava tentando
"No gostei de ouvir aquilo. Era prximo
pode-
ria ter acontecido. E eu estava contente Por joey ter dito aquilo a
Mike, e no a mim.
"Eu queria matar Joey quando sa de casa naquela manh. O
Senhor me havia dito que, logo no incio de meu massacre doco
mu
mo
nd
um
o,
eu teria de matar ummembro de minha prpria fa,
sacrifcio. Eu tinha de provar que minha famlia no
era
as '
elh
cenas
or
do que a famlia de ningum. Naquela manh, quando vi m
le Joey caindo, soube que ele era a pessoa a ser sacrificada. Minha de
'.aa estava repleta do desejo de mat-lo; a taa estava cheia
sangue.
os sentimentos de ump
taa. Amesma coisa acontecera quando eu unha
e planejei cortar o pnis de outro menino. No consegui faz-lo, em-
bora o menino estivesse de pbemna minha frente e despido da
cintura para baixo. Sa correndo. Mas, naquela poca, e no estava
sob o comando do Senhor. E
agora,
estava!
"Eu no sabia se o Senhor tinha conhecimento de que eu esta-
va recuando. Provavelmente, tinha. OSenhor sabe to as as coisas.
Estavo commedo de que Ele pensasse que eu era mtraidor e
me castigasse. Eu estava assustado. Mas a idia de
loja. No en-
controu nenhuma causa da exploso e nenhumsinal de avaria. Al-
guns Clares vacilantes do alvorecer penetravam
ia janclz. Nn
rua, apenas umcarro de policia, passando lenta e sil ciosamente.
AVoz de Senhor se tez ouvir e Joe saiu da jane a, aterrorizado
.
Desde Hazleton, nemuma s vez a Voz lhe tinha r velado o Todo-
Poderoso. Omedo da ira de Deus, da punio divi a, percorreu
-lhe
E bera estivesse assustado, pde ouvir nitid mente as Pala"
todo
o corpo.
vras do Senhor: Voc g' emHazleton, dis e o Senhor.
Mas no vai fugir agora. Aexploso que ouviu foi dethro de voc.
Foi umsinal de que voc est ficando pronto para explodir algo. A
'Joe no sabia o que era o "algo' , mas pensou
estacionamento
Voz silenciou.
de Niehaus, onde grandes reboques interestaduais e e tines containers
ficavamlado a lado. Ps-se a pensar nos reboque
si seus interiores
escuros, suas dimenses espaosas como seri- fcil destru-to:
pelo fogo ou atravs de uma exploso! Achama de umfsforo acen-
23"
234
dando umlquido inflamvel atearia fogo a umreboque. E isso po-
deria ser feito antes que qualquer pessoa comeasse a trabalhar no
estacionamento.
Descalo e de pijama, Joe subiu ao quarto de Michael para di-
zer-lhe, "Vamos!"
Dez minutos depois, Joe estava de pna parte da loja reser-
vada aos fregueses. Mike, atento, fitava-o de frente.
r O
que ns tentamos fazer na pilha de ardsia no funcio-
nou, no foi? perguntou Joe.
--i Foi, papai.
i No final, no alto daquele monte emHazleton, explicou Joe,
ci
eu no queria que nada acontecesse a Joey. Ontemvoc me disse
que g taria que o tivssemos matado naquele morro. Prometi-lhe
uma o tra oportunidade. Bem, vou manter minha promessa hoje.
Formidvel, pai I
HPortanto, olhe, Mike, prosseguiu Joe. Vamos dar a Joey um
pouco e gasolina e fazer comque ele entre numdos reboques do
estacionamento Niehaus, na esquina de Mascher e West Lehigh. Ele
vai comear a fumar umcigarro e certo que derrame alguma ga-
solina enquanto estiver fumando. Joey bemboboca comcoisas
desse t po. Agasolina pegar fogo, o reboque ficar emchamas e
o mesmo acontecer a Joey. Que tal, hein?
Brbaro! disse Mike.
Mike subiu para acordar Joey.
Joe teve uma alucinao: os membros de Joey arrancados de seu
corpo, seus rgos internos atrofiados pelo calor, sua pele emcha-
mas, sua cabea como uma bola ardente de carne, ossos e cabelos,
emitindo gritos de agonia...
Os' lbios de Joe abriram-se numsorriso manaco. De seu
estmago veio uma gargalhada retumbante, tonitruante o riso
ventral que irrompera pela primeira vez de seu interior quando ele
tinha quinze anos. Agora, como naquela poca, o riso tinha vontade
prpria., Da boca de Joe vinhamribombos de gargalhada, como
uma imensa e reluzente cobra que se desenrolasse rapidamente, vol-
ta aps volta, do interior de sua cova.
De repente, o riso cessou.
Joe levantou-se e reuniu os adereos para a encenao da brin-
cadeira no reboque: uma lata de cinco gales de gasolina que ha-
via comprado para levar para Neshaminy, que seria usada no cor-
236
tador de grama do pequeno chal, uma lanterna, fsforo, trs garrafas
de vidro vazias de meio galo, usadas para borrifar gua, e duas sa-
colas de supermercado tamanho gigante. Encheu as garrafas de gaso-
lina e deixou-as destampadas. Numa das sacolas de compras colocou
duas das garrafas de gasolina e, na outra, a terceira garrafa de gaso-
lina, a lanterna, os cigarros e os fsforos. As duas sacolas estavam
sobre o balco quando Mike e Joey entraramna loja.
'Cara', isso hilariante! gritou Joey, aproximando-se de Joe
e encostando-se no balco. Pai, essa idia genial! Agente vai
atos reboques agora?
Vai, respondeu Joe, entregando a Joey a sacola com as duas
garrafas de gasolina. Voc e Mike vo agora. Vou esperar aqui.
Mike voltar para me buscar. Joey acendeu umcigarro.
Apague esse cigarro, Joey. E melhor voc no fumar tendo
gasolina por perto.
Joey amassou o cigarro numcinzeiro do balco. Comeou a
sacudir a sacola.
Pare comisso, ordenou Joe. As garrafas no esto tam-
padas. Voc quer derramar gasolina pela rua toda?
Vejo voc mais tarde, jacar, disse Joey ao pai ao sair para
a rua.
Eu alcano voc, Joey, disse Mike.
-Joe entregou a Mike a sacola comos fsforos, a tatuei na, os ci
garros e a terceira garrafa de gasolina.
No quero que Joey acenda nenhumfsforo a caminho de
l, explicou. No vamos querer que acontea nada na rua.
Joe subiu ao segundo andar e colocou-se na janela do quarto do
meio. Era o quarto emque, quando menino, ele cavara um buraco
na parede e tivera suas primeiras fantasias de destruio.
Joey no voltar mais, pensou ao observar Mike e Joey andan-
do emdireo ao estacionamento. Aperspectiva da destruio de
Joey por umincendio,nund. reb,oqu, disse-me Joe em9 dc agosto dc
1 977, durante uma de' nossas ltimas conversas na Cadeia do Con-
dado de Camden, "deu:me um sentimento de excitao, umextase,
uma ereo. Era o mesmo tipo de excitao que eu iria experimentar,
mais tarde, ao usar uma Jaca para torturar. Mas no senti nenhum
desejo de me masturbar enquanto observava Joey caminhar para sua
morte. Quando a ereo passou, sa da janela, vesti-me e desci para
a loja, para esperar por Mike".
Para Joe, a ereo j no tinha mais nada a ver comprazer
ertico a ereo convertera-se na expresso do prazer do assassi-
237
'1
nato. Desde que elaborara o plano do massacre global, o assassinato
atravs dos rgos sexuais substitura a mutilao fantasiada dos
rgos genitais como estmulo da potncia.
Mais tarde, Mike contou a Joe a histria do que acontecera no
reboque e Joe relatou-a a mim.
"Joey e Mike escolheramumreboque perto de uma parede. No
reboque havia umcontainer. Caso voc no saiba, Flora, a carga
colocada no contalner e este descarregado do reboque nas do-
cas, nas ferrovias e nos ancoradouros.
"Joey subiu no container pela porta dos fundos. Logo que. en-
trou, retirou as garrafas de gasolina de sua sacola e colocou-as na
parte frontal do container. Quando voltou para a porta dos fundos,
Mike deu-lhe a sacola comos cigarros e os fsforos. Mike disse a
Joey que viria buscar-me e que ambos voltaramos para ajud-lo na
brincadeira. Mike fechou a porta, mas no conseguiu tranc-la. Era
baixo demais. Assim, imprensou uma caixa vazia de ao comcapa-
cidade para 1 2 garrafas pequenas de leite entre o reboque e a
parede. Encontrara a caixa no estacionamento. Seja como for, quan-
do Mike me disse isso, comentei, 'O.K., o que quer que voc tenha
feito estava certo'.
"Subimos para o quarto do meio e olhamos pela janela. Mike
apontou-me o reboque. Ficamos a observ-lo, semconversar, sim-
plesmente esperando.
"Passado algumtempo, vimos fumaa. Era muito espessa e ne-
gra e vinha do reboque de Joey.
"'Bom', disse Mike, 'ele est morto'.
" 'E, acho que sim', disse eu.
"Parecia ser isso, Flora. Mas no tive nenhumxtase, nenhu-
ma ereo. Naquele momento, eu j no queria que Joey estivesse
morto. Foi como emHazleton, no final. Como na pilha de ardsia,
a taa estava vazia.
"EmHazleton, porm, eu conseguira salvar Joey de mim. Ago-
ra, no poderia fazer nada se Joey estivesse morto. Delegara a Joey
a tarefa de matar-se. E aquela fumaa me fez pensar gire essa tinha
sido minha ltima delegao a Joey.
"Mike e eu descemos ata loja para aguardar notcias".
Joe e Mike sentaram-se, tensos, nas cabinas de espera dos fre-
gueses. Ouviramsirenas do corpo de bombeiros, porque, s 6:38 hs.
da manh, os bombeiros locais haviamrecebido umtelefonema co-
municando o incndio no estacionamento Niehaus. Dois minutos de-
238
pois, a Companhia 31 , Peloto A, Batalho 06 do Dpartimento de
Incndios de Filadlfia chegou ao local.
No silncio que se seguiu ao lamento das sirenas, Joe ouviu
passos, comseu ritmo desigual e conhecido, emireo loja.
Intrigado, levantou-se e esperou que a sineta tocasse; emvez disso,
porm, a porta foi escancarada,
Acho que aquele incndio comeou meio c do, disse joey,
emoldurado pela porta de entrada. Eu estava esperando que vo-
cs chegassem.
Joey cruzou
a porta mancando e
entrou na loja, passando pelo
pai. Parou diante de Mike.
Voc est bem? perguntou Joe.
Semresponder, Joey deu impulso nas
mos, su pendeu o corpo
e sentou-se no balco. Pai, sente-se na cabina a' lado de Mike
que eu lhe conto tudo.
Joey contou o que acontecera depois que Mike o deixou no re-
boque. Ele havia fumado incessantemente e atirado cigarros acesos
nas garrafas de gasolina. Depois, espalhara gasolina pelo cho e ati
rara pontas de cigarro. Quando as chamas chamus aramos fundi-
lhos de suas calas, ele se atirara na porta comtod: a sua fora. A
porta do reboque se abrira, jogando para o lado
caixa vazia de
leite que Mike havia imprensado contra ela. Fora o
reboque, Joey
Feito isso, fora
As trs horas da tarde de domingo, 28 de julh de
1 974, a Voz
despertou Joe de umsono profundo. Mais cedo, naquela manh,
tinha comeado a dirigir-se comMike e Joey para o Grande Canyon,
mas, no tremque levava ao terminal de nibus, t nha mudado de
idias sobre o Grande Canyon. AVoz do Senho o levara a um
prdio emconstruo como sendo o lugar para ma ar Joey.
Apretexto de tirar fotografias, Joe e Mike fiz ramJoey deitar-
se de bruos numandaime uns trinta centmetro acima de suas
cabeas. EscoraramJoey
entre uma escada e algu as tbuas, exa-
tamente
na posio certa para
cortar-lhe o pnis.as toe no con-
seguiu
faz-lo. Ataa tinha-se esvaziado.
Joe havia recolocado o canivete no
bolso. E
e Michael reti-
raram
as tbuas das costas
de joey e mandaramque ele descesse do
andaime.
239
rolara no cho para apagar o fogo de suas calas.
ata Lanchonete do Sam, de onde telefonara pana os bombeiros,
comunicando o
incndio no reboque. Depois disso, voltara para casa
.
Joe dissera ento aos filhos que agora iriamato terminal de
nibils fazer reservas para o nibus vespertino de Wellsboro, que ia
at Grande Canyon. Depois de compraremos bilhetes, tinhamvol-
tadol para casa.
'Mas Joe tinha adormecido no sof-cama e perdera o horrio
do nibus.
Ainda vestindo as calas e a camisa que usara pela manh,
sentou-se no sof-cama e ouviu a Voz que o despertara.
Matar Joey certo, disse o Senhor. Esta manh, voc
falhiu porque pensou que seria errado. Deveria ter cortado o pnis
dele enquanto ele estava naquele andaime. Portanto, pense novamente,
Joe, e prepare-se para a luta como umhomem.
Joe deixou pender a cabea. No respondeu. Pela manh, no
andaime, tinha lutado contra a Voz, e lutara novamente contra ela
tarde, ao adormecer; embora tivesse feito reservas, no levara Joey
e Mike ao Grande Canyon.
Encontre umburaco. Mate Joey dentro dele. Joey um
demnio, est repleto do mal. E 'bicha'; seu corpo est sujo de
/ tanto se esfregar emoutros rapazes, de colocar os pnis gotejantes
deles na boca, de tomar no rabo. Arghl
Vai acontecer esta tarde, respondeu Joe.
Ei, gritou Joey, por que voc jogou fora minhas flores?
e, e su dissociao do
assassinato de Joey, tal coma do de Jostr-ollazo,
parte to inte-
grante de sua psicose quanto os priios assassinatos. ODr. Arieti
e eu concordamos emque Joe estava dizendo a erdade quando
afirmou que no se lembrava dos assassinatos. Tamb mconcordamos
emque as longas horas de conversa comigo haviamretirado o lacre
das lembranas, trazendo-as do subconsciente de 1 e, onde haviam
permanecido latentes, para sua conscincia.
trio, disse-me
n. Agente
que a priso.
Rosenstein fez
amuscadas no
prprio corpo.
as calas en-
:is ter visto as
me levou para
255
ca as
o necrotrio, eu no me lembrava de nada sobre a orce de Joey
.
Contei isso a voc uns trs dias atrs. Mas, atimdiatamente an-
tes daquele dia, eu no me lembrava de nada. Flor , de
nada!
Joe no conseguiu compreender por que, sendo pai do falecido,
foi levado do necrotrio para o Prdio da Administrao Policial
a Casa !Redonda, como era chamado.
Tarnpouco pde compreender por que no teve permisso de te-
lefonara sua mulher sobre a identificao das roupas do filho e por
que, na' Casa Redonda, o Detetive O'Brien formulou-lhe as mesmas
perguntas que ele j havia respondido integralmente aos policiais
encarregados da investigao.
Naquela noite, numa entrevista telefnica, Joe disse a Thomas J.
GibbonS, da equipe do Philadelphin Bulletin: "Acabei de voltar do
necrotenio e identifiquei as roupas de Joe (Joey). As calas que eles
me mostrarameramexatamente as mesmas, inclusive a marca de
queimadura" (da brincadeira no reboque). Joe tambmdisse a Gib-
bons que os funcionrios do necrotrio informaram que o corpo
apresentava ossos quebrados numdos ps. "Joey tinha isso", ex-
plicou Jbe. "Foi o resultado de quando ele saltou de umtelhado em
janeiro. Ainda mancava por causa disso".
Oiirtigo de primeira pgina do Bulletin, assinado por Gibbons
e Naedgqle, saiu no dia 1 3 de agosto e assinalou que Joe Kallinger
nada diSsera sobre o que tinha levado Joey a fugir no dia 28 de julho.
"Urna das mais felizes que passamos", foi como Joe descreveu a
ltima sbmana de Joey a WilliamStorm, do Bulletin. "Levei Joey e
meu filho Michael a uma excurso pelas montanhas da Pensilvnin.
Pegamo um nibus para Hazleton, acampamos e fizemos uma ca-
minhada. Vimos pedreiras e minas de carvo e desfrutamos da com-
panhia ns dos outros".
Joe; havia esquecido no apenas o prprio assassinato, como
tambm; as tentativas de que o precederam.
Kensington acreditava que Joey tivesse sido assassinado por
agresso; homossexual. Havia rumores de que ele se afastara com
umhomemnumcarro esporte vermelho. Outro boato era que um
homemque lhe prometera emprego numa firma lavadora de auto-
mveis q tinha levado para longe numsed verde ltimo tipo. Algu-
mas pesSoas afirmavamque umhomemde 23 anos havia matado
Joey; outras, que Bobby Vane umamigo de Joey que tinha mo-
rado na, casa de East Hagert Street enquanto Joe estava emHol-
mesburg era o assassino.
De' fato, Joey havia conversado comBobby pouco antes de ir
encontrar-se comJoe no Restaurante OK. Entre os "suspeitos" de
256
Kensington,
Bobby Vane era o nico tambmconsiderado suspeito
pela polcia. Apolcia o deteve, mas ele foi submetido a um
teste no
detector de mentiras e foi considerado inocente.
Apenas a policia de Filadlfia suspeitou de Joe Kallinger. Essas
suspeitas forama razo pela qual eles o levaramdo necrotrio para
a Casa Redonda no dia 1 2 de agosto. Mas a polcia
no o informou
de que ele era umpossvel suspeito no caso de desaparecimento e
morte de Joey.
Nema polcia, nemqualquer outra pessoa suspeitava de Mi-
chael Kallinger.
* **
Sexta-feira, 1 6 de agosto de 1 974. Com
o rosto petrificado e
rigidamente calmo, Joe estava sentado na primeira ui1 de umam-
plo salo na Funerria C. J. O'Neill. Nos assentos sua direita es-
tavamAnna Kallinger, Mary Jo, Stevie, Jimmy e Michael. Michael
tinha querido ficar emcasa, mas Joe insistira emque ele compare-
cesse ao funeral de seu irmo.
Oassento de Betty, esquerda de Joe, estava vazio. Ela estava
de pao lado do caixo do filho e olhava para o lugar onde o rosto
de Joey seria visvel, caso o caixo estivesse aberto. Incrdula, olha-
va para as flores de ambos os lados do caixo e para a coroa ao
centro.
Murmurou para si mesma: Como posso
saber se Joey?
No sei o que eles puseram a.
Joe levantou-se de
sua cadeira e foi ter comela.
No
vou acreditar enquanto no o
vir. Qualquer umpode-
ria estar af, Toe, qualquer um.
No vou, s isso!
Meu Deus, disse, foi por isso que voc me trouxe aqui?
27
sapateiros), mas Joe sabia que, pelo fato de os ossos seremproveni-
entes de umser humano, despertariam suspeita nos policiais.
O Superdomingo j havia terminado e as ruas estavam de-
sertas quando Joe, Mike e Jimmy chegaram alameda, s 7:15hs da
noite. Mike e Jimmy vasculharam com os ps tufos de algodo-doce
e bales de ar furados. Depois, Mike foi at um telefone pblico e
fez umchamado annimo para o 6 Distrito Policial. Comunicou
que um homem carregando uma sacola com drogas estava andando
com duas crianas na alameda Independncia.
As 7:30hs da noite, sete carros de polcia pararamjunto ao
meio-fio. Quinze policiais stfram dos automveis. Lembrem-se do
que eu disse, recomendou Joe aos filhos. Quando forem presos,
no digam uma s6 palavra, nem mesmo seus nomes. Joe adiantou-
se aos filhos. Queria que a sacola com os ossos ficasse em evidncia.
Um oficial de polcia arrancou a sacola da mo de Joe, abriu-a
e procurou a droga. Em vez disso, encontrou os ossos. Apanhou-os,
sacudiu-os de leve na mo e depois segurou-os entre o polegar e o
indicador, como se fossem um cacho de uvas. Todos os policiais lan-
aram olhares severos aos ossos balouantes. Depois que o policial
que os estava segurando recolocou-os lentamente n, sacola, ele olhou
para Jimmy, depois para Mike e perguntou: Onde est a me de
vocs?
Os meninos no responderam. O rosto do policial estava tenso,
mas Joe estava-se divertindo. Continuou a divertir-se ao ser colocado
num camburo, seus filhos em outro, sendo todos levados para a
delegacia do 6 Distrito.
Quando Joe tentou telefonar para Gutkin, um policial o arran-
cou do telefone e o algemou. Na segunda tentativa de Joe, ele foi
submetido a uma busca corporal e colocado numa cela. Embora Joe
fosse provar que essa priso era ilegal, ela era agora to real quanto
o catre duro e frio de sua cela e as algemas que faziam inchar suas
mos, Odiou-se por ter imposto esse sofrimento a Mike e Jimmy.
Seguiu-se uma srie de acontecimentos inesperados.
Joe e seus filhos foram transferidos do 6 Distrito, que faz parte
da Diviso Central, para o Quartel-General. A transferncia foi feita
para que Joe pudesse ser novamente interrogado sobre a morte de
Joey. Ele se recusou a responder a qualquer pergunta.
s 21 :20hs, Arthur Gutkin, a quem Joe no obtivera permisso
de telefonar, chegou ao Quartel-General. Betty lhe havia telefonado
depois que a Diviso de Assistncia Juvenil do 6 Distrito lhe tele-
276
fonou para informar que seus filhos estavamdetidos. Gutkin
tirou
Joe, Mike e Jimmy de
suas celas e fez com que as algemas de Joe
fossem retiradas, Enquanto o advogado e seus clientes sentavam-se
Juntos na sala dos detetives, perguntou-se a Joe e os filhos se eles es-
tariam dispostos a submeter-se ao
teste do grfico da voz. Ares-
posta foi no.
As 22:20hs, um tenente entrou na sala. Carregava uma grande
sacola de papel com os ossos. A polcia tinha enviado os ossos a um
hospital para que fossem analisados, e o hospital informara que
eram ossos velhos. Os policiais agora acreditavam que Joe tinha
dito a verdade ao afirmar que usava aqueles ossos em seu trabalho.
O tenente entregou a sacola a Joe.
Fora da delegacia, Gutkin disse a Joe que a priso ilegal se
tornaria parte da ao de direitos civis. Omesmo aconteceria com
as brutalidades e indignidades. Gutkin no sabia que, embora as
brutalidades e indignidades
fossem reais, a priso tinha sido trama-
da por joe.
Joe sentia o
mundo escurecer-se a seu redor. Isso dizia respeito
ao mundo externo, onde os
policiais brutalizavam sua famlia e ele
prprio. Mas dizia respeito tambm ao mundo interno de Joe.
medida que os delrios e alucinaes tornavam-se
mais poderosos,
Joe se aproximava de por err elniticp seu plimildo massacre mundial.
277
Livro Quatro
OLassacre
da Humanidade
17
UmPresente para Bonnie
Pouco depois de umms aps os seis episdios de retaliao, Joe,
adormecido no sof-cama, sonhou que caminhava por umlongo cor-
redor comuma vara de condo emsua mo esquerda. Ao final do
corredor, umporto de ferro comgrades emforma de meia-lua es-
tava fechado. Joe agitou a vara e o porto se abriu.
Diante de si, ele viu uma estrada emlinha reta que atravessava
umvale de campos esmaltados. Sobre idias de flores de perfume
adocicado adejavamborboletas multicores: pssaros canoros descre-
viamcrculos e mergulhos emseu vo sobre o vale. Emambos os
lados do vale havia montanhas cobertas de neve. Osol brilhava e o
cu era azul. Longe, havia uma casa trrea rodeado por uma cerca.
Joe sabia que aquele era seu destino nesse dia 22 de novembro de
1 974.
Ele no havia caminhado muito pela estrada quando uma chuva
de cordes dourados de sapatos caiu do cume das montanhas. Do cu,
planando suavemente, desceramanjos cantores. Entoavamuma
cano:
"Joe Kallinger, sapateiro mestre e Deus do Universo. OCuran-
deiro e Destruidor, ns te cantamos louvores, Aleluia!"
Joe ergueu os olhos. Bemno alto, acima das flores, os anjos
descreviamvoltas largas e ondulaes suaves sob o sol, que emitia
raios das pontas de suas asas. Descendo, eles agitaramo ar sobre
o campo ao voar emdireo s montanhas. Depois, tomando unta
espiral ascendente, os anjos desapareceramna luz branca da neve.
Emxtase, Joe acenou coma mo. Abriu os braos emcruz.
Uma grande exploso sacudiu a terra e destruiu as flores. Aneblina
encobriu o vale. Afigura semcabea de uma mulher despida postou-
se no meio da estrada. Aneblina esvoaava ao redor dela. Umde-
281
mnio comumpnis enorme e entumescido estava agachado no
lugar onde deveria estar a cabea da mulher.
Os seios da mulher eramimensos. Dos mamilos, segurando-se
pelas mos, pendia umhomemdo tamanho de uma boneca, comasas
de morcego e cabea de sapo. Estava tentando colocar seu pnis
numa grande cavidade dentro do corpo da mulher, que expunha os
rgos internos desde o alto de seus quadris ata parte inferior da
caixa torcica.
Sentada entre as alas intestinais estava Bonnie, a filha de
quinze meses de Joe. Reluzindo comos lquidos corporais, ela batia
nas pernas do homenzinho e olhava para Joe.
Bonnie deixou-se escorregar da cavidade e saltou agilmente para
o cho. Tambmela estava nua. Seus braos, pernas e costas estavam
cobertos de manchas roxas. Ela passou a mo suavemente sobre os
machucados e olhou comtristeza para Joe. Depois, fez uma pirueta
sobre o calcanhar direito, girando cada vez mais depressa, atJoe
ver apenas umborro giratrio.
Ele disse, "Bonnie, quando voc crescer, essas manchas horr-
veis vo faz-la andar emcrculos, tal como agora. Voc no ter
amigos. Acabar falando sozinha. Mas eu vou cur-las".
No momento emque tomou essa deciso, Joe viu-se de pfora
da cerca da casa que era seu destino. Procurou umponto. No ha-
via nenhum. Tentou pular a cerca, mas ela se transformou numa pa-
rede de cobras que se contorciame sibilavam.
Joe agitou sua vara. As cobras desapareceram. Estava agora an-
dando por uma passagem. Nas paredes havia olhos: eles o fitavam
e piscavam. Apassagemdividia-se emtrs direes: para cima,
para b -ixo e emfrente. Joe no sabia qual delas tomar. Agitou a
vara novamente, mas ela se encolheu, tomando a forma de umpe-
queno pnis ressequido, comuma rosa vermelha numa haste em
r s ponta. Atirou-o fora.
Ouvindo o somde fogo, Joe deu uma espiada na passagemque
s guia emfreillEZEla- Wa a uma grande plancie. Atravs do ar
escurecido, Joe viu pessoas cujos braos eramcomo ramcs de rvo-
res. Balanando de umlado para outro, os ramos queimavamnum
.,
fogo que no
os consumia. Nos tornozelos das pessoas havia gri- ,,,'
lhes de ferro comcorrentes que se enterravamprofundamente na \J
terra. Joe ouviu gemidos agudos e lamentos, imprecaes e gritos
das bocas retorcidas: j.
Estou acorrentado e estou morrendo.
Ningumse importa!
Ei, ajude aqui, sim?
Estou queimando!
Queimandol Queimando! Queimando!
Dedos de chamas batiamna cabea
das pessoas. No cho, sa-
patos vazios danavamao som
das lamrias e gemidos, girando t
descrevendo passos de dana ao somda
msica infernal. Vez por ou
tra, umsapato chutava algumnas pernas. Os
braos ardentes en
ramos, deixando atrs de si
uma nuvemde centelhas, desciamcon
(
dar mas o sapato escapulia emsegurana para longe.
Joe olhou para a passagem que subia. Viu a cabea de Jesu
'''' finc a na ponta de um
faco de aougueiro. Osangue gotejava di
I, pescoo. Nenhumsomsaa
dos lbios mveis de Jesus. Atrs do fa
; II co e da cabea havia
cores psicodlicas que se acendiame apega
vemao longo da passagem, at
seremreunidas pela distncia nua
ponto luminoso que pulsava. J
Depois, Joe olhou para
bgxo. Pendendo do teto da passager
descendente, viu uma roscea
como rosto de Lcifer, o Rei do Ir
terno. Orosto transformou-se
lentamente, assumindo a
forma de ur
tringulo recoberto de plos
curtos, escuros e encaracolados. Uma vo
lasciva saiu do tringulo:
Sei o que poder curar Bonnie.
Diga-me, pediu Joe.
Pegue meu lquido,
misture-o comseu smen e comperft
me. Coloque o lquido nos
machucados de Bonnie.
O tringulo estava repetindo
essas instrues quando Joe acordos
O bairro de Lindenwold, no
Condado de Carnden, Nova /Use
fica a quinze milhas de Filadlfia. E
umterminal da Ferrovia Er
pressa de Filadlfia. Em
1 974, a populao de Lindenwold era d
quase 1 9.000 habitantes.
As crianas brincavath e os adultos pa.
seavampor bosques cheios de sombra e campos
abertos. Lindenwol
era uma comunidade suburbana
de nvel mdio de renda. Em1 97'
ningumdo local sofria por
pobreza. Todos consideravamsuas cosi
seguras contra as invases.
No incio da manh
de sexta-feira, 22 de novembro de 1 97.
Joe c Mike
chegarama Lindenwold pela Linha Expressa. Vaguearas
pelas ruas atchegaremao n" 4 da avenida
Carver uma casa qt
parecia promissora. Pertencia
a Wallace Peter Miller, umguar
rodovirio estadual
de Nova Jrsei, e a sua mulher, Karen.
Mike
quebrou a janelinha de vidro prxima maaneta C
porta e a
abriu. Apenas o cachorro dos
Millers estava emcasa. Ic
282
28
I
ficou decepcionado: o co era macho, mas, mesmo que tivesse sido
uma fmea, a secreo vaginal canina no teria as propriedades cura-
tivas mgicas que Joe atribua secreo vaginal humana, e no
poderia ser usada nos machucados de Bonnie.
Para mant-lo quieto, Joe e Mike deramao animal comida que
havia na geladeira. No quarto, encontraramuma grande mala azul,
onde puseramurna mquina fotogrfica, jias e algumas moedas de
centavos que retiraramde umbotijo de gua de cinco gales de
umbebedeuro. Feito isso, saram.
Pretendiamandar pelas ruas atencontrar o lugar certo: uma
i
casa onde houvesse uma mulher. Joe queria uma mulher joveme
sadia, que tivesse muita secreo vaginal e cujos rgos sexuais ff-
assembonitos quando mutilados e banhados emseu prprio sangue.
Aproximando-se da divindade, Joe sabia que tinha o poder de'
ater todas as pessoas do planeta Terra atravs da deltritio de
s us 6r aos sexuais. Amelhor iiiiiffeir-d cnegaf eklin ' -gl ai, '
acreditava oe, era .atingidas-onde.sluam, naqueles 6' os e
.em-L'
av_enturana e xtase, Como faco de aougUerrique levava numa
grande sacola marromde papel, pretendia cortar os penitu testculos.
detodos os homens e os seios, de todas as nylheres, e depois rasgar
as nnilliffrcomumcorte descendente que iria desde a carne ma-
cia 'acima de seus tringulos peludos ata parte posterior de suas
vaginas. Se tivesse havido uma mulhei- na casa de onde ele e
Mike acabavamde sair, pensou Joe, ela estaria morta agora.
Uma casa comuma mulher, s e indefesa: esse, decidiu e, se-
ria umbomcomeo no assassinato de trs bil e de pessoas. Joe
iria no-ii-penas-mati-1 1 ,-doiribTaitibm; antes de faz&o, er de for-
-la, a abrir as pernas, para que pudesse esfregar-lhe a genitlia com
umleno de papel, que ficaria embebido emsecreo vaginal. De-
pois, ele colocaria o leno embebido numa das luvas de borracha
que levava no bolso traseiro. Asecreo, misturada como smen
de Joe e algumas gotas de perfUtn. 61 sana ptiertnilificeilirl que
Joe iria curar Bonnie de suas horrveis manchas_roxas. Ele se re-
cordou' de que-
Otringulo misterioso o havia Instrudo a conse-
guir a secreo vaginal.
Amala azul era pesada e Joe estava cansado. Queria deitar-se
numa das margens .da estrada e dormir umloasono, de uns dois _falai
milhes de anosfoe sabia_que Seria' Deris um
o policial
duro que, na Casa Redonda, pouco menos de quatro meses antes,
havia jurado que pegaria Joe Kallinger.