John MonteirMONTEIRO, John Manuel. Unidade, Diversidade, e A Invenção Dos Índios: Entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo de Varnhagen. Revista de História, 149 (2 - 2003) - Pág: 109-137.
John MonteirMONTEIRO, John Manuel. Unidade, Diversidade, e A Invenção Dos Índios: Entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo de Varnhagen. Revista de História, 149 (2 - 2003) - Pág: 109-137.
John MonteirMONTEIRO, John Manuel. Unidade, Diversidade, e A Invenção Dos Índios: Entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo de Varnhagen. Revista de História, 149 (2 - 2003) - Pág: 109-137.
Resumo
Este artigo analisa a descrio dos ndios feita por Gabriel Soares de Sousa em dois
contextos distintos: o do perodo no qual foi escrito (dcada de 1580) e o do perodo
em que foi editado integralmente pela primeira vez por F. A. Varnhagen (meados do
sc.XIX). O texto procura mostrar a maneira pela qual as descries detalhadas e as
classificaes esquematizadas do autor quinhentista foram incorporadas enquanto
fatos etnogrficos pelas primeiras geraes de historiadores nacionais.
Abstract
This article analizes Gabriel Soares de Sousas description of Indians in two
distinct contexts: that of the period in which he wrote his work (1580s) and that
of the period in which the first complete edition was published by F. A. Varnhagen
(mid-nineteenth century). The author seeks to show how Sousas detailed
descriptions and schematic classifications became incorporated as ethnographic
facts by the first generation of historians in Brazil after it became a nation.
Palavras-Chave
Gabriel Soares de Sousa Francisco Adolfo de Varnhagen ndios Tupinambs
Keywords
Gabriel Soares de Sousa Francisco Adolfo de Varnhagen Tupinamb Indians
*
Uma verso anterior deste texto foi publicada na Hispanic American Historical Review, 80:4, nov. 2000,
pp. 697-719, com o ttulo The Heathen Castes of Sixteenth-Century Portuguese America: Unity, Diversity,
and the Invention of the Brazilian Indians. Trechos da primeira parte foram publicadas no texto de divulgao A Descoberta dos ndios, D. O. Leitura, So Paulo, Ano 17, no. 1, maio de 1999, suplemento 500
Anos de Brasil, pp. 6-7. Agradeo a Manuela Carneiro da Cunha e Stuart Schwartz, que comentaram a verso preliminar que foi apresentada na reunio anual da American Historical Association, janeiro de 2000.
110
1
Ao que consta, Gndavo era gramtico, tendo publicado um manual de ortografia em 1574. No se
sabe muito sobre a sua estada no Brasil alguns autores duvidam que ele tenha mesmo colocado o
p na Amrica. Sua Histria da Provncia de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, impressa por Antonio Gonalves com dedicatria de Cames, foi republicado junto com um manuscrito anterior, denominado Tratado da Terra do Brasil (Gndavo 1980 [1576]).
2
A obra do padre Cardim, Tratados da Terra e da Gente do Brasil, ttulo esse atribudo no sculo
XX, na verdade compreende trs textos distintos: Do Clima e Terra do Brasil e de algumas coisas
notveis que se acham na terra como no mar (uma descrio da flora e fauna), Do Princpio e Origem dos ndios do Brasil e de seus costumes, adorao e cerimnias (descrevendo os costumes e a
diversidade dos ndios), e a Narrativa Epistolar de uma Viagem e Misso Jesutica (um registro da
prolongada viagem do visitador jesuta Cristvo de Gouveia pelo Brasil entre 1583 e 1590). Os
primeiros dois textos foram publicados em ingls por Samuel Purchas em 1625, porm a autoria foi
atribuda erroneamente a um outro jesuta. Sobre Cardim, ver a introduo e notas de Ana Maria de
Azevedo edio mais recente (Cardim 1997 [1583-90]), bem como o excelente estudo de Charlotte
de Castelnau-LEstoile (2000).
3
Uma tima discusso desta questo com respeito ao Caribe encontra-se em Sued Badillo (1995).
Veja-se, tambm, Sider (1994), Boccara (1999) e Whitehead (1993a e 1993b), todos enfocando o
contexto de transformao nas primeiras relaes entre europeus e indgenas em diferentes partes
das Amricas. Especificamente no que diz respeito ao Brasil, as novas perspectivas esto representadas em Carneiro da Cunha (1992).
111
112
rgio a seu projeto de devassar o vasto serto em busca de minas de prata. Para se
credenciar junto coroa, apresentou trs manuscritos ao Dom Cristvo de Moura,
oferecendo informaes preciosas e perspicazes sobre a terra, a gente e a histria
das colnias portuguesas que brotavam na Amrica4. O primeiro texto, intitulado
Roteiro Geral, com largas informaes de toda a costa do Brasil, proporcionou uma
descrio sucinta do litoral desde a terra dos Caribes, ao norte do rio Amazonas,
at o esturio do Prata. O segundo e seguramente o mais importante texto o
Memorial e Declarao das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua
fertilidade e das notveis partes que tem, uma descrio pormenorizada da topografia, das plantas, da fauna e das populaes nativas da Bahia, um texto to rico e
evocativo em seus detalhes que considerado por muitos como a maior obra sobre
o Brasil escrita no sculo XVI5. Finalmente, o terceiro texto constituiu-se numa
pesada invectiva contra os jesutas da Bahia, no qual se criticava os missionrios
no apenas pelas suas atividades supostamente gananciosas, mas tambm e sobretudo pela interferncia dos padres no que tocava mo-de-obra indgena. Bastante
contrastante em relao aos outros textos, este ataque aos jesutas proporciona uma
viso mais clara dos contextos histrico e poltico nos quais Gabriel Soares de Sousa
construiu as suas impresses dos Tupinamb6.
Se os relatos de Soares de Sousa tm sido amplamente utilizados desde o sculo
XIX na consolidao de uma tradio de estudos tupis no Brasil, so relativamente
poucos os estudos sobre o autor propriamente dito ou sobre as condies nas quais
ele conduziu as suas observaes. A bem da verdade, pouco se sabe da vida do autor
De acordo com Dauril Alden (1996: 87-88, 480), D. Cristvo de Moura (1538-1613) teve um papel
de relevo nesta fase inicial da Unio Ibrica, como an ignoble Portuguese quisling in Philips pay.
5
Por exemplo, Rodrigues (1979: 439) refere-se aos textos como a enciclopdia do sculo XVI, o
maior livro que se escreveu sobre o Brasil dos quinhentos.
6
Serafim Leite, S.J., o mais importante historiador jesuta do Brasil, desenterrou uma cpia deste
documentos no arquivo da ordem em Roma e a publicou sob o ttulo Captulos de Gabriel Soares
de Sousa contra os Padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil (Soares de Sousa 1940
[1587]), seguindo o conselho do historiador Srgio Buarque de Holanda. Leite, no entanto, editou
este documento um pouco a contragosto, conforme se pode inferir do prefcio, onde ele rotula o
texto como o documento mais antijesutico que se escreveu sobre o Brasil. Deve-se observar, ainda, que o exemplar do Arquivo do Jesutas no o original, sendo uma cpia alis enriquecida pelas
respostas escritas por uma comisso de padres a cada captulo e intercaladas ao texto.
alm daquilo que se encontra em seus escritos, acrescidos do testamento que ele
redigiu em 1584, posteriormente reproduzido por Francisco Adolfo de Varnhagen
em sua edio crtica do texto7. Nascido em Portugal em data ignorada pelos historiadores, Gabriel Soares de Sousa partiu para o alm-mar no incio de 1569, possivelmente com destino s cobiadas minas de Monomotapa, na frica Oriental, integrando a poderosa frota comandada por Francisco Barreto, antigo governador da
ndia, que pretendia expulsar os muulmanos daquela regio e tomar posse das
minas8. No se sabe exatamente porque resolveu desembarcar em Salvador quando
a frota fez escala, ao invs de seguir para o Estado da ndia, destino de outros escritores de talento contemporneos seus. Junto com seu irmo Joo Coelho de Sousa,
Gabriel Soares de Sousa se radicou no Brasil, estabelecendo um engenho no rio
Jiquiri, prximo a Jaguaripe, uma zona aucareira em franca expanso ao sul do
Recncavo. Depois de receber algumas cartas geogrficas junto com amostras de
pedras preciosas provenientes do serto, objetos estes legados pelo seu falecido
irmo, Gabriel Soares resolveu partir para a corte filipina em 1586 em busca de favores e mercs. Enquanto aguardava audincia, concluiu os textos sobre o Brasil, os
quais certamente ajudaram ele a atingir seu objetivo principal de assegurar
concesses para procurar e eventualmente explorar minas de prata no serto, recebendo em 1590 a nomeao de Capito-mor e Governador da Conquista e
Descobrimento do Rio So Francisco. Ao assumir este novo cargo, voltou Amrica
na urca flamenga Abrao, que buscava uma carga de acar e pau brasil. A embarcao naufragou na barra do rio Vazabarris, no Sergipe, e grande parte dos equipamentos foi perdida no desastre. Ao chegar em Salvador aps uma boa caminhada,
Soares de Sousa reorganizou a expedio graas ao patrocnio do governador D.
Francisco de Sousa e logo partiu para o serto do So Francisco. Contudo, as minas
que j haviam se mostrado to inatingveis para seu irmo e outros exploradores
Utilizo aqui a edio de 1971, com o texto estabelecido e anotado por Francisco Adolfo de Varnhagen.
Foi esta baseada na edio de 1851, considerada como a mais correta. Vale dizer que esta obra se
ressente de uma nova edio crtica, algo na linha do bom trabalho executado por Ana Maria de
Azevedo com os textos de Cardim.
8
Sobre a expedio de Barreto, ver Newitt (1995: 56-57).
113
114
12
Pode-se dizer, claro, que Gabriel Soares buscava apenas elaborar uma sequncia histrica de conquistas na qual a dominao portuguesa se encaixava de modo harmonioso. Mas a ascenso dos Tupinamb
no litoral baiano na verdade proporciona um dos eventos mais significativos da histria pr-colonial do
Brasil, ao coincidir com a emergncia de outros grupos tupis e guaranis ao longo do litoral atlntico. Sobre
a expanso ou migrao tupi, debate alis antigo na etnologia e arqueologia brasileiras, ver o artigo
de Francisco Noelli (1996), com comentrios de Eduardo Viveiros de Castro e Greg Urban.
115
116
Ao tratar dos ndios em seu texto, a primeira tarefa que enfrentava Gabriel Soares
de Sousa foi o de conferir algum sentido intrigante sociodiversidade que tornava
o litoral brasileiro to difcil para descrever13. A exemplo de vrios outros autores
quinhentistas, Soares de Sousa estabeleceu de incio uma grande diviso entre duas
categorias maiores, a de Tupi e Tapuia. Se os Tupinamb da Bahia, descritos em
detalhes por vezes saborosos, proporcionaram o modelo bsico para a discusso da
sociedade tupi, mostrava-se bem mais vaga a caracterizao dos Tapuia. Como os
tapuias so tantos e esto to divididos em bandos, costumes e linguagem, para se
poder dizer deles muito, era de propsito e devagar tomar grandes informaes de
suas divises, vida e costumes; mas, pois ao presente no possvel... (Soares de
Sousa 1971 [1587]: 338). Fiando-se basicamente naquilo que seus informantes tupis
lhes passavam, escritores coloniais como Gabriel Soares costumavam projetar os
grupos tapuias como a anttese da sociedade tupinamb, portanto descrevendo-os
quase sempre em termos negativos.
Ainda assim, em sua descrio dos Aimor no Roteiro geral, o autor introduziu
uma variante interessante, sugerindo que as diferenas bsicas na vida e nos costumes
desses ndios possuam fundamentos histricos:
Descendem estes aimors de outros gentios a que chamam tapuias, dos quais nos
tempos de atrs se ausentaram certos casais, e foram-se para umas serras mui speras, fugindo a um desbarate, em que os puseram seus contrrios, onde residiram
muitos anos sem verem outra gente; e os que destes descenderam, vieram a perder
a linguagem e fizeram outra nova que se no entende de nenhuma outra nao do
gentio de todo este Estado do Brasil (Soares de Sousa 1971 [1587]: 78-79).
Se o autor foi bem sucedido ao montar uma descrio bastante detalhada dos
costumes brbaros dos Aimor, Soares de Sousa reconhecia as limitaes de sua
apresentao, inclusive deslizando prximo classificao destes ndios como no
13
Este dilema foi compartilhado pelo Gabriel Soares de Sousa com vrios outros escritores quinhentistas, que buscavam conciliar aquilo que de fato testemunharam com as imagens dos povos do Novo
Mundo que circulavam nos textos e gravuras da poca. Veja-se a discusso em Carneiro da Cunha
(1990), oferecendo um estimulante contraste entre as vises francesa e portuguesa.
humanos, uma vez que [c]omem estes selvagens carne humana por mantimento, o
que no tem o outro gentio que a no com seno por vingana de suas brigas e
antiguidade de seus dios. Concluindo, o autor sublinhava a diferena desta casta
das demais, por serem to esquivos inimigos de todo o gnero humano (Soares
de Sousa 1971 [1587]: 79-80).
Ao estabelecer categorias bsicas para diferentes segmentos da populao indgena, Gabriel Soares buscou vrias referncias distintas. A principal abordagem
residia no contraste com as instituies europias, descrevendo as sociedades indgenas a partir daquilo que lhes faltava. Lanando mo de uma frase amplamente
disseminada pelo gramtico Pero de Magalhes Gndavo na dcada anterior, Gabriel
Soares apresentava uma variante para o ditado sem f, sem lei, sem rei. Apesar de
impressionado pela graa da lngua tupi, o autor observou que faltam-lhes trs
letras do ABC, que so F, L, R grande ou dobrado. A primeira letra, f, referia-se
f, indicando que os Tupinamb no possuam religio alguma e, pior ainda, nem
os nascidos entre os cristos e doutrinados pelos padres da Companhia tm f em
Deus Nosso Senhor. Continuando, Soares de Sousa explicou que eles no pronunciavam a letra l porque no tem lei alguma que guardar e que cada um faz lei
a seu modo e ao som da sua vontade. Finalmente, a ausncia da letra r denotava
a falta de um rei que os reja e que no obedecem a ningum, nem ao pai o filho,
nem o filho ao pai (Soares de Sousa 1971 [1587]: 302). Oscilando entre a inconstncia e a insubordinao, os ndios de Gabriel Soares de Sousa mostravam-se pouco
promissores enquanto sditos, apesar de que, paradoxalmente, era nessa condio
que a maioria dos ndios que ele conheceu vivia14.
Para alm do binmio Tupi-Tapuia, surgiram outros pares de oposio com a
funo de introduzir alguma ordem numa situao s vezes confusa e imprevisvel.
O contexto colonial produziu outras distines importantes, como a oposio entre
povoado e serto, o que representava mais do que uma referncia espacial pois, na
verdade, delimitava dois universos distintos, um ordenado pela lei e pelo governo,
o outro livre de tais constrangimentos sem f, nem lei, nem rei, enfim. Pode-se
14
Uma reinterpretao bastante criativa da inconstncia, vista como muito mais do que uma simples projeo europia, encontra-se em Viveiros de Castro (1992).
117
118
15
Veja-se, por exemplo, as declaraes do mameluco Tomacana perante o visitador do Santo Ofcio, em Vainfas (1997). O mesmo autor traz uma abordagem bastante inovadora dos mamelucos em
obra anterior (Vainfas: 1995, captulo 6).
16
Vainfas (1995) proporciona a anlise mais penetrante deste movimento, que tambm o objeto de
um artigo recente (Metcalf 1999), cujo objetivo inserir a santidade num contexto mais amplo de catolicismo folk messinico.
mente tambm conhecia outras formas de resistncia o que ele considerava uma
propriedade natural dos ndios e no algo vinculado condio colonial inclusive
as migraes em massa tais como aquela descrita por Anchieta na mesma dcada
de 1580, registrada mediante a fala de um principal:
Vamo-nos, vamo-nos antes que venham estes portugueses (...) no fugimos da
Igreja nem de tua companhia porque, se tu quiseres ir conosco, viveremos contigo no meio desse mato ou serto ... Mas estes portugueses no nos deixam estar
quietos, e se tu vs que to poucos que aqui andam entre ns tomam nossos irmos, que podemos esperar, quando os mais vierem, seno que a ns, e as mulheres e filhos faro escravos? (Carta de Anchieta apud Fernandes 1948: 36).
119
120
17
Sobre estas fontes, veja-se a obra erudita de Lach (1965) e o excelente ensaio de Curto (1997).
A origem e a variabilidade do termo casta constituem aspectos de um longo debate na antropologia e historiografia referentes a ndia. Assim como os modernos, os antigos escritores portugueses
geralmente oscilavam entre duas concepes distintas para a organizao social hindusta. O conceito de varna, estabelecido em vrios textos sagrados, divide a sociedade em quatro grandes grupos, ordenados hierarquicamente: brmanes (sacerdotes), kshatriyas (guerreiros), vaishyas (comerciantes) e shudras (trabalhadores). O conceito de jati, por outro lado, refere-se a grupos de filiao,
abrangendo um sem-nmero de castas (definidas por categorias de ofcio, de grupos tribais e tnicos, entre outras) que, com o advento dos muulmanos e dos europeus se tornaram cada vez mais
fechadas e imveis. Ver, entre outros, Bayly (1999), sobretudo captulos 1 e 3, e Perez (1997).
19
Apresento uma discusso mais detalhada destas transformaes em Monteiro (1999).
18
20
Sobre a questo da representao destes pristine contacts with unspoiled indigenes, ver Whitehead
(1995: 55). interessante observar que este tipo de representao permaneceu como tema constante
na literatura e iconografia do contato nos sculos a seguir.
21
Sobre o contexto colonial para a formao das identidades, ver o artigo instigante de Sider (1994).
121
122
22
De acordo com Varnhagen, dentre os vrios autores que utilizaram partes do relato de Gabriel Soares
para elaborar suas prprias obras, encontram-se Pedro de Mariz, Frei Vicente do Salvador, Simo de
Vasconcelos, S.J. e Frei Antnio Jaboato (Soares de Sousa 1971 [1587]: 13).
ser editada em portugus durante o sculo XVI foi a Histria da provncia de Santa
Cruz, de Pero Magalhes Gndavo, impressa em 1576. Esta ausncia de publicaes
destoava de outras situaes coloniais, como a da Amrica Espanhola ou mesmo a
dos portugueses na sia, que haviam disponibilizado aos leitores europeus uma
quantidade considervel de obras impressas, englobando narrativas de conquista e
crnicas polticas, bem como descries minuciosas dos povos e costumes do Oriente.
Relegada ao esquecimento, a obra de Soares de Sousa reapareceu nos primeiros
anos do sculo XIX, inicialmente como parte da vasta e ecltica coleo de obras
raras e inditas, organizada pelo frei Veloso e impressa na famosa casa editorial do
Arco do Cego em Lisboa. Incompleta, esta primeira edio tambm deixou de atribuir a autoria a Gabriel Soares. A primeira edio completa de uma cpia dos manuscritos existentes apareceu em 1825, publicada pela Real Academia das Cincias de
Lisboa, como parte de seu projeto ambicioso de compilar narrativas de viagem e
outros relatos numa ampla coleo sobre as posses ultramarinas portuguesas, inclusive aquela recm separada da metrpole. Adotando o ttulo de Notcias do Brasil,
a edio da Academia foi to mal feita que moveu o ento jovem historiador paulista
Francisco Adolfo de Varnhagen a escrever um longo e pioneiro exerccio de crtica
histrica, o que no apenas confirmou a autoria de Gabriel Soares como tambm
apontou para a premente necessidade de uma nova edio crtica e anotada, cotejando
criteriosamente as diferentes cpias manuscritas existentes23.
O interesse de Varnhagen pelos textos de Gabriel Soares foi muito alm desse
mero exerccio acadmico. Como membro de destaque do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, fundado em 1838, Varnhagen situava-se na linha de frente de uma
gerao de intelectuais e estadistas que enfrentava a tarefa de inaugurar uma tradio
histrica nacional. Como parte deste ambicioso projeto coletivo, a Revista Trimestral
do Instituto trazia muitos relatos coloniais inditos, com certa nfase nas descries
de populaes indgenas, sobretudo os Tupi da Costa 24.
23
Este exerccio pioneiro foi publicado pela Academia de Cincias de Lisboa em 1839 com o ttulo
de Reflexes Crticas sobre o Escrito do Sculo XIV [i.e. XVI] impresso com o ttulo de Notcias do
Brasil... Cf. Rodrigues (1979: 436).
24
Na verdade, alguns dos documentos coloniais constituram exemplos de forjicao escritos no
prprio sculo XIX, como no caso do relato supostamente elaborado por Miguel Ayres de Maldonado,
desmascarado pelo trabalho detetivesco de Jos de Souza Martins (1996).
123
124
25
Sobre as origens do Instituto e o projeto historiogrfico coletivo daquela gerao, ver o excelente
artigo de Manoel Lus Salgado Guimares (1988) e o livro de Schwarcz (1993), sobretudo pp. 91-117.
26
Sobre Varnhagen, ver Rodrigues (1988: 13-27); Odlia (1997); Reis (1997); e, sobretudo, Oliveira (2000).
27
Robert Southey (1810-19) utilizou uma cpia manuscrita do (ento) annimo Notcias do Brasil,
transcrito por um tio de um exemplar em Portugal. Sobre a obra de Southey, ver o clssico estudo de
Dias (1974); j Ferdinand Denis (1837), em sua obra geral que faz um resumo de estudos anteriores,
possivelmente lanou mo tanto da cpia manuscrita existente na Bibliothque Nationale de Paris
quanto das primeiras edies portuguesas. Sobre Denis, ver o cuidadoso estudo de Rouanet (1991).
28
Inscrito no concurso em 1843, o texto de von Martius foi publicado na Revista Trimensal em 1845
e recebeu o prmio em 1847. Uma excelente anlise da contribuio de Martius historiografia e
etnologia no Brasil encontra-se em Lisboa (1997).
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coisa devia s preferncias tericas do autor, ela pode igualmente ser atribuda
experincia pessoal de Varnhagen ou mesmo situao poltica do Imprio em meados do sculo XIX, quando vrias provncias conduziam guerras no declaradas
contra povos indgenas. provvel que Varnhagen j alimentasse sentimentos depreciativos referentes aos ndios quando empreendeu uma viagem para o sul da Provncia de So Paulo em 1840, porm aps presenciar de perto o estado de conflito
e de medo que predominava na regio, consolidou o seu ponto de vista marcadamente
negativo. Confesso, escreveu ele alguns anos mais tarde, que desde ento uma
profunda mgoa e at um certo vexame se apoderou de mim, ao considerar que apesar
de ter o Brasil um governo regular, em tantos lugares do seu territrio achavam-se
(e acham-se ainda) um grande nmero de cidados brasileiros merc de semelhantes cfilas de canibais (Varnhagen 1867: 38). De maneira bastante consciente,
Varnhagen inscreveu esta averso aos ndios em sua Histria Geral do Brasil, na
qual a sua descrio dos antigos Tupi foi capaz apenas de captar, no triste e degradante estado da anarquia selvagem, uma idia do seu estado, no podemos dizer de
civilizao, mas de barbrie e de atraso. De tais povos na infncia no h histria:
h s etnografia (Varnhagen 1981 [1854] I:30)29.
Se esta perspectiva negativa encontrou um lugar seguro na raiz dos estudos histricos brasileiros, ela no constituiu a nica perspectiva. De fato, um intenso debate
em torno dos ndios agitava os crculos intelectuais e polticos do sculo XIX, onde
vozes agressivas como a de Varnhagen encontravam a oposio de tendncias mais
filantrpicas, sobretudo aquela inspirada em Jos Bonifcio de Andrada e Silva30.
At certo ponto, desde os primrdios do perodo colonial, o conflito de interesses
entre diferentes agentes coloniais criou tenses entre as polticas que buscavam ou
assimilar ou excluir as populaes indgenas. As mudanas institucionais da dcada
de 1840, que delegaram s provncias a gesto da poltica indigenista e promoveram
o estabelecimento de novas misses capuchinhas, introduziram um novo perodo
29
Suas observaes referentes viagem para o sul aparecem em Varnhagen (1867: 36-37). Ver, tambm, Oliveira (2000: 47-48).
30
Sobre a influncia de Jos Bonifcios sobre o pensamento indigenista no Brasil, ver sobretudo
Carneiro da Cunha (1986); Boehrer (1960); e Hemming (1987).
de tenso. Fosse nos confortveis recintos das academias ou nas rudes condies
do serto, acirrava-se a disputa entre aqueles que defendiam a civilizao e
catequese dos ndios e aqueles parciais ao afastamento ou mesmo extermnio de
populaes nativas31. No restava dvida quanto posio de Varnhagen neste
conflito, posio essa que buscava sustentao nas evidncias histricas, inclusive
no relato de Gabriel Soares de Sousa.
Em suas leituras de fontes quinhentistas, uma das primeiras operaes
empreendidas pelos historiadores do Imprio foi a de reconfigurar a dicotomia TupiTapuia, acrescentando um novo eixo temporal anlise. Como vimos, este binmio
tornava o problema da diversidade lingustica e tnica mais fcil de administrar, tanto
para os escritores coloniais quanto para as autoridades da coroa. No contexto do
sculo XIX, ganhou uma nova feio. Os Tupi foram relegados a um passado remoto,
quando contriburam de maneira herica consolidao da presena portuguesa
atravs das alianas polticas e matrimoniais. Mas as geraes subsequentes cederam
o lugar para a civilizao superior, deixando algumas marcas para a posteridade,
inscritas nos topnimos, nos descendentes mestios e na persistncia da lngua geral
que, no sculo XIX, ainda vigorava entre algumas populaes regionais e era
cultivada por setores das elites imperiais como a autntica lngua nacional. Nessa
tica do Oitocentos, os Tupi do litoral pareciam ter perecido por completo desde h
muito, sendo retratados cada vez mais em tons romnticos e nostlgicos, como no
quadro emblemtico de Rodolfo Amoedo, O ltimo Tamoio, que mostra um
Tupinamb literalmente morrendo na praia e recebendo a extrema uno de um padre
capucho, antes de ser levado pelo mar para sempre32.
Os Tapuia, por seu turno, situavam-se no plo oposto, apesar das abundantes
evidncias histricas que mostravam uma realidade mais ambgua. Retratados no
mais das vezes como inimigos e no como aliados dos portugueses, bem entendido
31
Sobre este assunto, ver Monteiro (1992). O contexto geral para este debate e suas implicaes
para a poltica e legislao indigenista est minuciosamente exposto em Carneiro da Cunha (1992).
32
Exibido pela primeira vez num salon parisiense em 1883, O ltimo Tamoio faz parte da coleo permanente da Pinacoteca do Estado de So Paulo. Em sua anlise da literatura indianista, Graa (1998)
defende a idia de que os poetas e romancistas desenvolveram uma espcie de potica do extermnio.
127
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33
Sobre o contraste entre o canibalismo tupi e aimor, veja-se Carneiro da Cunha (1990: 108-109).
Foi nesse sentido que Melo Morais atribuiu, na Revista da Exposio Antropolgica de 1882, a
extino dos ndios s guerras intestinas (...) fazendo estacionar ou extinguir lentamente as raas
indgenas do Brasil (Revista: 1882, 23-24).
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fluram nos comentrios de Varnhagen, que vivamente recomendava a leitura do captulo 160, sobre algumas habilidades e costumes dos tupinambs, aos que sustentam
o pouco prstimo do nosso gentio, que por filantropia estamos deixando nos matos
tragando-se uns aos outros, e caando os nossos africanos (a que chamam de macacos
do cho s para os comer! (Soares de Sousa 1971 [1587]: 384, n. 235).
Em sua leitura de Gabriel Soares, Varnhagen tambm contribui para o processo
de classificao de grupos indgenas em entidades fixas e atemporais, inclusive elidindo as interessantes explicaes histricas oferecidas pelo autor quinhentista no
que diz respeito s diferenas entre os grupos tupis. Um bom exemplo desta discrepncia o caso Amoipira, um grupo tupi que habitava o rio So Francisco na segunda
metade do sculo XVI. Gabriel Soares descreveu esse grupo como possuidor dos
mesmos costumes e gentilidades dos Tupinamb, bem como a mesma lngua, embora
guardando algumas diferenas em alguns nomes prprios. Descendentes dos
Tupinamb, esse grupo afastou-se para o interior frente ao avano de seus inimigos e
adotou o nome por seu principal se chamar Amoipira (Soares de Sousa 1971 [1587]:
334-335). Em seu comentrio, Varnhagen discordou de Gabriel Soares, substituindo
a credibilidade desse autor com uma outra espcie de autoridade etnogrfica que se
tornou muito popular no decorrer do sculo XIX: a etimologia tupi-guarani. De acordo
com Varnhagen, ao desmembrar o termo em duas palavras constantes do Tesoro de la
lengua guarani, do jesuta seiscentista Antonio Ruz de Montoya, Amoipira teria o
significado de parentes cruis (Soares de Sousa 1971 [1587]: 387, n. 254).
Seria um erro crasso, contudo, afirmar que este historiador do sculo XIX simplesmente ignorava a dimenso histrica do panorama etnogrfico que ele traava
para o Brasil do sculo XVI. Parcial aos postulados pessimistas de von Martius,
que considerava os ndios como os descendentes degradados de alguma antiga civilizao, a leitura que Varnhagen fez da diversidade tnica entre os Tupi, embora
baseada fundamentalmente no relato de Soares de Sousa, sugeria que o fracionamento tnico no era mais do que outro indcio do declnio, desintegrao e
destruio de um grande povo anterior, processo esse desencadeado bem antes da
chegada dos portugueses. Varnhagen apenas arranhou esta hiptese em seus comentrios ao texto de Gabriel Soares, porm a desenvolveu mais plenamente na Histria
Geral e, de maneira mais contundente, num de seus ltimos estudos, Lorigine
tourainienne des amricains tupi-caribes et des ancien gyptiens, obra publicada
em Viena em 1876. Um dos pontos mais controversos certamente foi aquele que
dizia respeito s origens estrangeiras dos Tupi, o que distanciava este autor no
apenas de Gabriel Soares de Sousa, como tambm de grande parte de seus contemporneos. Para a maioria dos escritores oitocentistas, os Tupi representavam os brasileiros mais autnticos e originais, apesar da circulao de teorias sobre migraes
intercontinentais que teriam ocorrido num passado to distante quanto nebuloso.
Se Gabriel Soares mostrava-se um tanto impreciso quanto a esta questo, simplesmente afirmando que os Tupi iniciaram o seu movimento rumo ao litoral a partir de
algum lugar no remoto serto, Varnhagen buscou as origens dos Tupi fora mesmo
das Amricas, chegando a caracteriz-los como um povo invasor. Levou esta idia
a seu ponto mximo em Lorigine tourainienne. Exerccio meticuloso de filologia
e etnologia comparada, Lorigine tourainienne busca semelhanas explcitas nas
lnguas e na cultura material dos Tupi e dos antigos egpcios, os quais teriam sido
ambos influenciados por uma civilizao centro-asitico anterior35. Ao invs de procurar, conforme alguns comentaristas tm sugerido, as origens arianas dos antigos
Tupi estratgia essa compartilhada por outros escritores latino-americanos no sculo XIX Varnhagen parece ter perseguido um propsito bem diferente36. De fato,
ao invs de branquear os Tupi, Varnhagen procurou identificar uma remota civilizao no-ariana, a partir da qual os ndios brasileiros teriam iniciado o seu declnio,
num longo processo de decadncia e degenerao.
Poucos estudiosos parecem ter levado a srio a tese turaniana no Brasil, porm
a idia de Varnhagen de rebaixar e excluir os ndios da histria ptria permaneceu
firme no pensamento histrico brasileiro por geraes e geraes. Ainda assim, vozes
dissonantes surgiram to logo que saiu publicado a Histria Geral do Brasil; por
35
Oliveira (2000: 90-100) apresenta uma anlise bastante interessante desta obra. Odlia (1997: 98103) tambm fornece uma discusso estimulante da abordagem comparativa do autor, enfocando
mais especificamente sua Histria Geral.
36
Jos Vieira Couto de Magalhes, em seu captulo sobre As Lnguas Arianas da Amrica (1975
[1876]: 51-54), refere-se ao estudioso argentino Fidel Lpez, cujos estudos comparados entre snscrito
e quchua foram publicados em Paris no decorrer dos anos de 1860. Couto de Magalhes tambm
especulava sobre as possveis afinidades entre o snscrito e algumas lnguas indgenas no Brasil,
sobretudo o guaicuru. De acordo com este autor, os antepassados centro-asiticos dos povos americanos haviam se misturado com alguma raa ariana antes da migrao para o novo continente.
131
Concluso
132
Ao remodelar a descrio feita por Gabriel Soares de Sousa dos Tupinamb para
situ-la no contexto do sculo XIX, o historiador pioneiro Francisco Adolfo de Varnhagen
afastou este grupo mais ainda do contexto histrico que produziu o mesmo relato. Mais
importante, Varnhagen praticamente consolidou o abismo que iria prevalecer nos estudos
sobre as populaes indgenas at um perodo bem recente, circunscrevendo os ndios
a uma distante e nebulosa pr-histria ou ao domnio exclusivo da antropologia. Os
Tupinamb de Gabriel Soares alcanariam novamente um lugar de destaque no sculo
XX, quando o eminente americanista Alfred Mtraux os enfocou em seus estudos sobre
as migraes, os movimentos profticos e a religio tupi-guarani, juntando os antigos
relatos com registros etnogrficos modernos, sobretudo o importante estudo de Curt
Nimuendaju sobre a escatologia dos Apapocuva-Guarani37. No entanto foi Florestan
Fernandes que transformou os Tupinamb numa referncia central etnologia brasileira,
pois sua meticulosa reconstituio e anlise da organizao social e do complexo da
guerra-sacrifcio-canibalismo entre os Tupinamb compe um dos mais sofisticados
exemplos de antropologia funcionalista em qualquer lngua38. Mas os historiadores
37
Mtraux (1927 e 1979 [1928]). O estudo de Nimuendaju (1987 [1914]) apareceu inicialmente em
Berlim em 1914 na Zeitschrift fr Ethnologie, sendo finalmente publicado em portugus em 1987,
com uma introduo muito esclarecedora de Eduardo Viveiros de Castro.
38
Fernandes (1948 e 1980 [1952]). Quando elaborava seus estudos sobre os Tupinamb, Florestan
desenvolveu uma tabela complexa que classificava os dados etnogrficos extrados das fontes dos
sculos XVI e XVII. Se verdade que esse autor retirou muitas observaes pontuais de seu contex-
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to histrico mais abrangente, Florestan no ignorava o valor e as armadilhas presentes na crtica das
fontes, o que acabou sendo sacrificado em funo de sua opo metodolgica (cf. Fernandes, 1975).
39
Mesmo na notvel Histria Geral da Civilizao Brasileira, iniciada em 1960 sob a coordenao de
Srgio Buarque de Holanda, coube a Florestan Fernandes um captulo preliminar sobre os antecedentes indgenas. O captulo, no entanto, reproduziu o importante estudo sobre a reao tupi conquista
que, infelizmente, teve pouca repercusso nas discusses posteriores sobre a constituio da Colnia.
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