Othello

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Othelo

ATO I
Cena I
Veneza. Uma rua. Entram Rodrigo e Iago.
RODRIGO - Cala-te! Não me fales. Aborrece-me
demais verificar
que justamente tu, Iago, que dispunhas à vontade
de minha
bolsa, como se teus fossem seus cordões,
conhecesses isso
tudo...
IAGO - Mas escuta-me, ao menos! Se eu já sonhei
alguma vez
com isso, podes abominar-me.
RODRIGO - Dito me havias que lhe tinhas ódio.
IAGO - Despreza-me, se não for assim mesmo. Três
pessoas de
grande influência aqui vieram falar-lhe, chapéu na
mão, com
humildade, para que fizesse de mim o seu tenente.
E por minha
fé de homem, tenho plena consciência do que
valho; não
mereço posto menor do que esse. Ele, no entanto,
consultando
somente o orgulho e os próprios interesses, furtou-
se com
fraseado bombástico, recheado só de epítetos de
guerra. Em
conclusão: não entendeu aos meus
intercessores. .Pois já
escolhi meu oficial., lhes disse. E quem é ele? Ora,
por minha
fé, um matemático, um tal Micael Cássio, um
florentino, um tipo
quase pelo próprio inferno fadado a ser uma
mulher bonita, que
nunca comandou nenhum soldado um campo de
batalha e que
conhece tanto de guerra como uma fiandeira;
erudição de
livros, simplesmente, sobre o que podem dissertar
com a
mesma proficiência que a dele os nossos cônsules
togados;
palavrório sem sentido, carecente de prática: eis
sua arte. No
entanto, meu senhor, foi o escolhido; ao passo que
eu, que aos
próprios olhos dele provas cabais já dera em
Chipre e Rodes e
em muitos outros pontos habitados por cristãos e
pagãos, terei
de, agora, ficar a sota-vento e calmaria, só por
causa do devere-
haver de um simples calculista, que - oh tempos! -
vai tornarse
tenente, enquanto que eu - Deus me perdoe! -
continuarei
sendo do Mouro o alferes.
RODRIGO - Pelo céu, preferira ficar sendo carrasco
dele.
IAGO - Já não há remédio. É a maldição do ofício:
as promoções
se obtêm só por pedidos e amizades, não pelos
velhos meios
em que herdava sempre o segundo o posto do
primeiro. Ora,
senhor, ajuizai vós mesmos se razões tenho para
amar o Mouro.
RODRIGO - Assim, eu não ficara sob suas ordens.
IAGO - Ó senhor, acalmai-vos. Se me ponho sob
suas ordens é
só em proveito próprio. Mestres nem todos podem
ser, nem
todos os mestres podem ter bons servidores. Já
tereis visto por
aí bastantes sujeitos obsequiosos, de flexíveis
joelhos que,
apaixonados pela própria escravidão, o tempo todo
gastam
como o asno do amo, só pela comida; e, quando
ficam velhos:
despedidos. Chicote nessa gente muito honesta!
Outros há que
sabendo a forma externa revelar do dever, as
feições próprias, o
coração conservam sempre atentos no proveito
pessoal;
enquanto aos amos dispensam mostras de serviço,
apenas,
prosperam muito bem, e, ao mesmo tempo que os
casacos lhes
forram, a si próprios prestam boa homenagem.
Esses tipos têm
alguma alma, e entre eles eu me incluo, posso
afiançar-vos.
Pois senhor, tão certo como serdes Rodrigo, se em
verdade eu
fosse o Mouro, não queria um Iago so minhas
ordens, pois
seguindo-o, apenas sigo a mim próprio. O céu é
testemunha:
não me move o dever nem a amizade, mas, sem o
revelar, só o
interesse. Se as mostras exteriores de meus atos me
traduzissem os motivos próprios do coração em
traços
manifestos, carregaria o coração na manga, para
atirá-lo às
gralhas. Ficai certo: não sou o que sou.
RODRIGO - Que sorte a desse tipo de lábios
grossos, se puder,
realmente, levar isso até ao fim.
IAGO - Chama o pai dela; desperta-o; corre atrás do
Mouro,
põe-lhe veneno na alegria; o nome dele proclama
pelas ruas, os
parentes dela deixa excitados, e ainda que ele more
em clima
adorável, atormenta-o com praga de mosquitos.
Muito embora
sua alegria seja verdadeira, com tais
contrariedades e persegue,
que a cor a perder venha.
RODRIGO - Fica aqui mesmo a casa do pai dela;
vou chamar
em voz alta.
IAGO - Mas com vozes de medo e uivos terríveis,
como quando
por negligência, à noite, o fogo estala num burgo
populoso.
RODRIGO - Olá, Brabâncio! Senhor Brabâncio, olá!
IAGO - Ladrões! Brabâncio! Brabâncio, despertai!
Ladrões!
Ladrões!, Cuidai de vossa casa, vossa filha, de
vossos cofres!
Acordai! Ladrões!
(Brabâncio aparece na janela.) BRABÂNCIO - Qual
é o motivo
de tão grande bulha? Que aconteceu?
RODRIGO - Senhor, tendes aí dentro toda vossa
família?
IAGO - Vossos quartos estão fechados?
BRABÂNCIO - Ora, qual a causa de perguntardes
isso?
IAGO - Com mil diabos, senhor, fostes roubados;
por vergonha,
ide vestir a toga; arrebentado tendes o coração;
metade da
alma já vos foi alienada. Agora mesmo, neste
momento, um
velho bode negro etá cobrindo vossa ovelha branca.
Tocai o
sino, para que despertem os cidadãos que roncam;
do
contrário, o diabo vos fará ficar avô. Despertai! E o
que eu digo.
BRABÂNCIO - Mas que é isso! Perdestes o juízo?
RODRIGO - Venerável senhor, reconheceis-me pela
voz?
BRABÂNCIO - Não; mas quem sois?
RODRIGO - Rodrigo; assim me chamo.
BRABÂNCIO - Pior nome não podias revelar-me.
Não te proibi
de me rondar a casa? Não me ouviste dizer, com
leal franqueza,
que para ti não era minha filha? Por que me vens
agora,
transtornado pela ceia e os vapores da bebida, com
tua
tratantagem maliciosa perturbar-me o repouso?
RODRIGO - Meu senhor, senhor, senhor...
BRABÂNCIO - Mas podes ficar certo de que minha
coragem e
meu posto na república têm poder bastante para
fazer-te
amargurar por isso.
RODRIGO - Paciência, bom senhor.
BRABÂNCIO - Por que me falas em roubo? Estamos
em Veneza;
minha casa não é uma granja.
RODRIGO - Venerável senhor, vim procurar-vos
com lisura.
IAGO - Ora, senhor! Sois uma dessas pessoas que se
negariam
a servir a Deus, se fosse o diabo que lhes ordenasse.
Por que
viemos prestar-vos um serviço e nos tendes na
conta de
velhacos, quereis que vossa filha seja coberta por
um cavalo
berbere e que vossos netos relinchem atrás de vós?
Quereis ter
cordeis como primos e ginetes como parentes?
BRABÂNCIO - Quem és tu, miserável licencioso?
IAGO - Sou um homem, senhor, que vim revelar-
vos que vossa
filha e o Mouro se acham no ponto de fazer o
animal de duas
costas
BRABÂNCIO - Sois um vilão.
IAGO - E vós... um senador.
BRABÂNCIO - Vais pagar-me. Conheço-te, Rodrigo.
RODRIGO - Responderei por tudo. Mas pergunto-
vos, senhor, se
foi com vosso assentimento, vosso sábio conselho -
como quase
fico a pensar - que vossa linda filha, na calada de
noite tão
escura, saiu em companhia de um sujeito nem
melhor nem pior
do que um velhaco por qualquer alugado, num
gondoleiro, para
aos abraços torpes entregar-se de um Mouro
luxurioso; se,
realmente, sabeis de tudo e concordais com isso,
bem: nesse
caso é certo vos fazermos inominável e atrevida
ofensa. Mas se
desconheceis o que se passa, ensina-me o costume
que não
tendes razão de censurar-nos desse modo. Não
creiais que tão
falho eu me revele de cortesia, para vir agora
zombar de vossa
grande reverência. Vossa filha - de novo vos
declaro - se não
lhe destes permissão, mui grave pecado cometeu,
unindo o
espírito, a beleza, o dever e seus haveres a um
estrangeiro
andejo e desgarrado daqui e de toda parte.
Convencei-vos
neste momento: se no quarto dela fordes achá-la,
ou mesmo
em toda casa, entregai-me à justiça da república
por vos ter
enganado desse modo.
BRABÂNCIO - Acendei fogo! Olá! Dai-me uma vela!
Despertai
todo mundo. Este incidente não destoa dos sonhos
que já tive.
Só de pensar em tal, me sinto opresso. Luz, repito!
Um vela!
(Retira-se da janela.)
IAGO - Adeus; não posso ficar mais tempo aqui.
Não é prudente
- dado o meu posto - nem recomendável ser
chamado a juízo
contra o Mouro, o que aconteceria se eu ficasse.
Pois sei-o bem:
o Estado, muito embora venha a afligi-lo com
alguma crítica,
não pode dispensar-lhe os bons serviços sem correr
grande
risco. Com tão fortes razões o encarregaram da
campanha
contra os chipriotas - que ora se acha em curso -
que para a
vida assegurar de todos não encontram ninguém de
igual
calibre capaz de dirigir esse negócio. Por isso,
muito embora lhe
vote ódio com às penas do inferno, sou forçado
pelas
necessidades do presente a arvorar a bandeira da
amizade que
não passa de simples aparência. Para terdes
certeza de
encontrá-lo, encaminhai na direção do albergue do
Sagitário os
que hão de procurá-lo. Lá, como ele estarei. E
agora, adeus.
(Sai.)
(Entram Brabâncio e criados, com tochas.)
BRABÂNCIO - Minha infelicidade é mais que certa.
Fugiu
mesmo. Do tempo desprezível que me resta de vida
não espero
senão tão-só tristezas. Onde a viste, Rodrigo? - Oh!
que menina
sem juízo! - Junto com o Mouro, foi o que disseste?
- Quem
quisera ser pai! - Por quais indícios vieste a
reconhecê-la? Oh!
Iludiu-me de modo inconcebível. Que te disse? -
Olá! Trazei
mais velas! Despertai todos os meus parentes! -
Acreditas que
se tenham casado? -
RODRIGO - É o que parece, para vos ser sincero.
BRABÂNCIO - Oh céus! Que meios ela encontrou
para sair de
casa? Oh! que traição do sangue! Doravante, pais,
não confieis
no espírito das filhas só por suas ações. Não há
feitiços capazes
de alterar as qualidades das virgens inocentes?
Nunca lestes,
Rodrigo, qualquer coisa a esse respeito?
RODRIGO - Em verdade, senhor, li qualquer coisa.
BRABÂNCIO - Ide chamar o mano. - Oh! se a
tivésseis
desposado! - Cada um vá por um lado. - Sabeis onde
podemos
apanhá-la juntamente com o Mouro?
RODRIGO - Estou bem certo de poder encontrá-los,
se
quiserdes dar-me uma boa escolta e vir comigo.
BRABÂNCIO - Servi de guia. Baterei em todas as
casas; meu
poder é muito grande. - Trazei armas, olá! Fazei
que venha logo
a ronda! - Sigamos, bom Rodrigo; hei de saber vos
ser
agradecido.
(Saem.)
Cena II
Outra rua. Entram Otelo, Iago e criados com
tochas.
IAGO - Muito embora no ofício de soldado eu já
tenha matado
muita gente, assunto considero de consciência
premeditar um
crime. Muitas vezes pensei nove ou dez vezes em
furá-lo aqui,
sob a costela.
OTELO - Está melhor como está.
IAGO - Sim; porém ele palrava de tal modo e
assacava tais
vilezas contra vossa honra, que o meu pouco temor
de Deus a
custo conseguiu sofrear-me. Uma só coisa vos
pergunto,
senhor: estais realmente casado? Há segurança?
Uma certeza
podereis ter: que é muito venerado entre nós e
Magnífico,
valendo sua voz como a do doge em tudo quanto
nele toca de
perto. Se o divórcio não conseguir levar a cabo, ele
há de
causar-vos tanto incômodo e desgosto quanto o
Direito, com
sua força toda, lhe afrouxar as amarras.
OTELO - Desabafe como bem entender, porque os
serviços que
eu prestei ao Conselho, suas queixas todas
suplantarão. Eis o
momento de se saber - o que tornarei público
quando essa
ostentação constituir honra - que o ser e a vida eu
recebi de
berço de descendência real e que meus méritos
aspirar podem,
de cabeça erguida, à posição que até hoje me
alcançaram.
Porque te juro, Iago: se não fosse o amor que voto à
mui gentil
Desdêmona, eu não iria pôr a minha livre condição
de solteiro
em nenhum elo que viesse confiná-la. Não; por
todos os
tesouros do mar. Mas olha: luzes! Vêm nesta
direção.
IAGO - É o pai, decerto, com os parentes que foram
despertados. Seria mais prudente retirar-vos.
OTELO - De forma alguma! Quero que me
encontrem. Meus
serviços, meu posto, a alma tranqüila vão
demonstrar-lhes
quem eu sou, de fato. Mas são eles?
IAGO - Por Jano! Não parece.
(Entram Cássio e certos oficiais, com tochas.)
OTELO - São pessoas do doge e o meu tenente. Que
a noite vos
proteja, bons amigos. Que novidades há?
CÁSSIO - O doge manda saudar-vos, general, e vós
convida
com o máximo de pressa a aparecerdes agora
mesmo na
presença dele.
OTELO - Sabeis para que seja?
CÁSSIO - Algum assunto com relação a Chipre, é o
que
presumo; negócio muito urgente. Já mandaram das
galeras uns
doze mensageiros desde que ficou noite, um após o
outro.
Muitos dos membros do Conselho foram
despertados e estão
junto com o doge. Com bastante insistência vos
procuram, e,
como em casa não vos encontrassem, enviaram
mensageiros
por três partes diferentes, a fim de vos chamarem.
OTELO - Foi bom haver sido eu por vós achado.
Vou apenas
dizer duas palavras a esta casa; depois vos
acompanho.
(Sai.)
CÁSSIO - Alferes, que faz ele aqui?
IAGO - Ora essa!
Esta noite abordou uma caraca terrestre. Sendo a
presa
declarada legítima, realmente, ele está feito.
CÁSSIO - Não compreendo.
IAGO - Casou.
CÁSSIO - Casou com quem?
IAGO - Ora essa, com...
(Volta Otelo.)
Não vamos, capitão?
OTELO - Estou pronto.
CÁSSIO - Aí vem uma outra tropa, para vos
convocar.
IAGO - Muito cuidado, general! E Brabâncio. Ele
não vem com
boas intenções.
(Entram Brabâncio, Rodrigo e oficiais, armados e
com tochas.)
OTELO - Olá! Parai!
RODRIGO - Senhor, é o Mouro.
BRABÂNCIO - Morte a esse ladrão!
(De ambos os lados se desembainham espadas.)
IAGO - Vós, Rodrigo? Senhor, estou convosco.
OTELO - Guardai essas espadas, que o sereno vai
causar-lhes
ferrugem. Venerável senhor, maior autoridade
vossos anos
impõem que todas essas armas.
BRABÂNCIO - O infame raptor! onde escondeste
minha filha?
Infernal como és, decerto a enfeitiçaste. Apelo para
todos os
seres de sentido: se não fosse ter sido presa por
cadeias
mágicas, como uma jovem tão formosa e terna, tão
feliz, tão
avessa ao casamento que evitava a presença dos
mancebos
ricos e de cabelos anelados de nosso Estado, como
poderia,
expondo-se à irrisão de toda gente fugir de seu
guardião, para
abrigar-se no seio escuro e cheio de fuligem de uma
coisa como
és, mais feito para susto causar do que qualquer
deleite? Sirva
de testemunha o mundo inteiro de como praticaste
encantamentos com ela, abomináveis, abusaste de
sua
mocidade inexperiente com inúmeras drogas que
no espírito
atuam e o enfraquecem. Vou prová-lo. É fato
indiscutível,
evidente. Por isso te detenho e prendo como a
embusteiro
universal, que exerce arte ilegal proibida pelo
Estado. Prendei-lo
logo. Caso vos resista, usai de força, embora com
perigo de
perder ele a vida.
OTELO - As mãos detende, anto os que estão
comigo como os
outros. Se minha deixa fosse de combate,
dispensaria o ponto.
Aonde é preciso que eu vá, para vos dar cabal
resposta sobre o
de que me argüis?
BRABÂNCIO - Para a prisão, até que decorrido o
tempo certo a
uma sessão legal tu compareças, para me
responderes.
OTELO - E no caso de vos obedecer? Como há de o
doge
mostrar-se satisfeito, se ao meu lado tenho seus
emissários,
incumbidos de me levarem para onde ele se acha,
para tratar
de assuntos de república?
OFICIAIS - Muito nobre senhor, o que ele disse é
tudo
verdadeiro. O doge se acha o Conselho, e estou
certo de que
Vossa Nobreza foi chamado.
BRABÂNCIO - Como! O doge convocou o Conselho?
E em plena
noite! Levai-o! Minha causa é de importância; o
próprio doge e
os manos do governo hão de sentir a ofensa como
própria. Se
um crime tal não for bem castigado, pagãos e
escravos
mandarão no Estado.
(Saem.)
Cena III
A Câmara do Conselho. O doge e senadores,
sentados à mesa.
Oficiais de pé.
DOGE - As notícias não são de todo acordes, porque
possamos
dar-lhes muito crédito.
PRIMEIRO SENADOR - E certo; minha carta fala
em cento e
setenta galeras.
DOGE - Fala a minha só em cento e quarenta.
SEGUNDO SENADOR - Pois a minha se refere a
duzentas. Mas
embora não haja pelo acordo nesse ponto - como
sói dar-se
quando é feito o cômputo por simples conjeturas -
todas elas
concordes são em afirmar que a armada do turco
ora veleja
para Chipre.
DOGE - E quanto basta para um juízo certo. Um
erro de
minúcias não me impede de ficar apreensivo
quanto ao ponto
de maior importância.
MARINHEIRO (dentro) - Olá! Olá!
OFICIAL - Um novo mensageiro das galeras.
(Entra um marinheiro.)
DOGE - Então, que novas há?
MARINHEIRO - A armada turca veleja para Rodes,
é o recado
que ao senado mandou o signior Angelo.
DOGE - E agora que dizeis dessa mudança?
PRIMEIRO SENADOR - Não pode ser; é contra a
boa lógica. É ua
ilusão, tão-só, para obrigar-nos a olhar para o
outro lado.
Reflitamos na importância de Chipre para o turco,
muito maior
ainda que a de Rodes e como lhe será muito mais
fácil
conquistá-la, por ter poucas defesas, enquanto
Rodes está
muito armada: se em tudo isso pensarmos,
haveremos de
compreender que o turco não é tão cego que para
último deixe
o que lhe importa primacialmente, abrindo mão de
um ganho
mais do que certo e, sobretudo, fácil, para correr
um risco sem
proveito.
DOGE - Não se trata de Rodes, é certeza.
OFICIAL - Chega outra novidade.
(Entra um mensageiro.)
MENSAGEIRO - Os otomanos, reverendo e
gracioso, estão de
rota batida para Rodes, e em caminho se
reforçaram com uma
nova armada.
PRIMEIRO SENADOR - Tal qual como pensei. E
quantas velas
imaginais que sejam?
MENSAGEIRO - Trinta. E agora fazem caminho
inverso,
dirigindo, sem rodeios o curso para Chipre. É o que
o signior
Montano, vosso bravo e dedicado servidor, vos
manda
comunicar com a liberdade própria de seu dever,
pedindo inteiro
crédito para a notícia.
DOOGE - Assim, é mais que certo vão para Chipre.
E na cidade
se acha Marcos Luccico?
PRIMEIRO SENADOR - Não; está em Florença.
DOGE - Escrevei-lhe de nossa parte e urgência,
muita urgência,
inculcai-lhe.
PRIMEIRO SENADOR - Aí vem Brabâncio com o
valente Mouro.
(Entram Brabôncio, Otelo, Iago, Rodrigo e oficiais.)
DOGE - Bravo Otelo precisamos mandar-vos neste
instante
contra o inimigo comum, contra o otomano.
(A Brabâncio.)
Não vos vira, gentil senhor; bem-vindo. Vosso
conselho e ajuda
nos faltaram na reunião desta noite.
BRABÂNCIO - E a mim os vossos. Perdoe-me Vossa
Graça, mas
não foram minhas obrigações nem quaisquer novas
relativas ao
Estado que do leito me tiraram a esta hora; os
interesses gerais
me importam pouco, pois a minha mágoa
particular é de tal
modo transbordante e impetuosa que em seu curso
submerge e
absorve todas as tristezas sem se alterar em nada.
DOGE - Que foi que houve?
BRABÂNCIO - Oh! Minha filha! Minha filha!
DOGE E SENADORES - Morta?
BRABÂNCIO - Sim, para mim. Foi seduzida, foi-me
roubada,
corrompida por feitiços e drogas adquiridas de
embusteiros.
Para que se desgarre a natureza por modo tão
absurdo, sem
que seja nem defeituosa, coxa dos sentidos, nem
privada de
vista, é necessário que haja feitiçaria.
DOGE - Seja quem for que tenha usado desses
processos vis
para deixar privada vossa filha do juízo e, assim,
vós mesmo de
vossa própria filha: o sanguinário livro das leis
haveis de
interpretá-lo como vos aprouver, no mais amargo
sentido das
palavras, sim, ainda que nosso próprio filho fosse o
objeto de
tal acusação.
BRABÂNCIO - Humildemente vos agradeço. Aqui
se encontra o
homem, este Mouro, que foi, ao que parece, por
especial recado
aqui chamado para assuntos do Estado.
DOGE E SENADORES - Penaliza-nos semelhante
notícia.
DOGE (a Otelo) - E vós, que tendes sobre isso a
responder?
BRABÂNCIO - Nada; é assim mesmo.
OTELO - Muito acatados, graves e potentes
senhores; muito
nobres e aprovados mestres, em tudo justos; que eu
tivesse
raptado a filha deste senhor velho, é mais do que
verdade,
como é certo já tê-la desposado. A fronte e o cimo
de minha
ofensa vão até a esse ponto, nem mais nem menos.
Rude sou
de fala, estranho ao doce linguajar da paz, pois
desde que estes
braços alcançaram a força de sete anos, até agora,
deduzidas
algumas nove luas, tão-somente, em mais nada se
empregaram
com mais amor do que às ações dos campos
abarracados.
Sobre muito pouca coisa posso falar no vasto
mundo se não for
de batalhas e contendas. Por isso, quando exponho
assunto
próprio não saberei orná-lo com vantagens. Mas se
vossa
graciosa paciência me permitir, um pálido relato
farei, sem
digressões, de todo o curso de meu amor, que
drogas, que
feitiços, que conjuros, que mágica potente - pois
disso tudo,
agora, é que me acusam - usei para ganhar a filha
dele.
BRABÂNCIO - Uma jovem tão tímida, de espírito
tão sossegado
e calmo, que corava de seus próprios anseios! E a
despeito da
natureza, do país, da idade, do crédito, de tudo,
apaixonar-se
do que de olhar, tão-só, a apavorava! Só um juízo
coxo e falho
é que afirmara que desviar-se a saúde poderia das
leis da
natureza. E necessário que as infernais astúcias
admitamos,
quanto tal coisa ocorre. Por tudo isso, de novo
afirmo que, com
algum composto de influência sobre o sangue, ou
beberagem
enfeitiçada para tal efeito, ele sobre ela atuou.
DOGE - Somente a simples afirmação não basta
para a prova,
porque, sem testemunho mais patente, não passa
de suspeitas
e aparências sem consistência o que afirmais
contra ele.
PRIMEIRO SENADOR - Mas, Otelo, falai! Por meios
indiretos e
violentos dominastes, acaso, e envenenastes o
amor dessa
donzela? Ou deu-se tudo por meio de declarações e
ditos
sinceros, como uma alma a outra alma fala?
OTELO - Suplico-vos mandar buscar a dama no
Sagitário,
permitindo que ela diante do próprio pai relate o
caso. Se em
sua fala encontrardes algo indigno sobre minha
pessoa,
despojai-me do meu ofício, da confiança antiga que
em mim
depositáveis; mais: que vossa sentença atinja
minha própria
vida.
DOGE - Trazei aqui Desdêmona.
OTELO - Ide, alferes, buscá-la, pois sabeis onde ela
se acha.
(Saem Iago e alguns criados.)
E enquanto ela não vem, quero, com a mesma
lealdade com
que o céu confesso as faltas do meu sangue, contar
a esses
ouvidos severos como pude apaixonar-me dessa
donzela e ser
por ela amado.
DOGE - Contai-nos isso, Otelo.
OTELO - O pai dela me amava; convidou-me muitas
vezes,
fazia-me perguntas sobre a história de toda a
minha vida, ano
por ano, prélios, cercos, lances por que passara. E
narrava-lhe
tudo, desde os dias de minha infância, até o
momento em que
ele me mandara falar, enumerando-lhe situações
perigosas,
acidentes no mar e em terra, em tudo
emocionantes, como
salvei a vida por um fio, na brecha perigosa, como
fora pelo
insolente imigo aprisionado, vendido como
escravo, e de que
modo, depois, me resgatara, e dos sucessos que em
minhas
viagens a esses se seguiram, quando, então, lhe
falava de
cavernas descomunais, rochedos escabrosos, ilhas
desertas,
montes cujos picos no céu iam tocar. E assim por
diante, no
mesmo tom dos canibais falava, que uns aos outros
se comem,
de antropófagos e de homens com cabeça sob os
ombros. Para
isso ouvir, Desdêmona se achava sempre inclinada;
mas os
afazeres da casa muitas vezes a obrigavam a se
afastar, o que
ela quase sempre depressa arrematava, porque
viesse
novamente, com ávidos ouvidos, devorar meu
discurso.
Percebendo-o, da hora me aproveitei e encontrei
meios de lhe
arrancar a súplica ardorosa, para que lhe contasse
sem rodeios
as minhas aventuras, cuja história só por partes
ouvira,
desconexas. Fiz-lhe a vontade; e muitas vezes pude
roubar-lhe
algumas lágrimas, no instante de lhe narrar algum
sucesso
triste por que passara minha mocidade. Minha
história
concluída, ela me dava por tanta dor um mundo de
suspiros e
jurava em verdade, que era estranho, mais do que
estranho,
por demais tocante, muito comovedora. Desejara
jamais a ter
ouvido, mas quisera que o céu houvesse feito dela
esse homem.
Agradeceu-me e disse-me que, quando algum
amigo eu viesse
a ter, que a amasse, bastaria ensinar-lhe o modo
simples de
contar minha história, para que ele, sem falta, a
conquistasse.
Aproveitando tal insinuação, disse-lhe tudo. Ela me
amou à
vista dos perigos por que passei, e muito amor lhe
tive, por se
ter revelado compassiva. Foi essa toda a minha
bruxaria. Mas aí
vem a dama; ela que fale.
(Entram Desdêmona, Iago e pessoas do séquito.)
DOGE - Quero crer que uma história tal como essa
seduziria
minha própria filha, caro Brabâncio. Examinai por
outro prisma
o assunto que se acha mutilado. E mais vantagem
fazermos uso
de armas já partidas, do que das mãos vazias.
BRABÂNCIO - Por obséquio, permiti que ela fale.
Dizendo ela
que assim favoreceu essa conquista, caia-me a
destruição sobre
a cabeça, se novamente eu dirigir a este homem
qualquer
doesto ofensivo. Aproximai-vos, gentil menina, e
respondei-me:
acaso percebeis neste círculo seleto alguém a quem
deveis mais
obediência?
DESDÊMONA - Meu nobre pai, percebo um
dividido dever: A
vida e a educação vos devo, educação e vida que me
ensinam a
saber respeitar-vos. Sois o dono do meu dever,
sendo eu, pois,
vossa filha. Mas também aqui vejo meu marido; e
quanto
minha mãe vos foi submissa, preferindo-vos
mesmo aos
próprios pais, tanto agora pretendo revelar-me em
relação ao
Mouro, a quem pertenço.
BRABÂNCIO - Deus esteja convosco. Já acabei. Se
Vossa Graça
desejar, passemos a tratar dos negócios da
república. Antes
filha adotiva que gerada. Mouro, vem para cá. De
todo o
coração te dou aquilo que se já teu não fosse, eu
recusara de
todo o coração. Por vossa causa, minha jóia, sinto a
alma
jubilosa, por não ter outra filha; tua fuga ensinado
me houvera
a ser tirano, pondo-o no cepo. Terminei, senhor.
DOGE - Permiti-me falar como vós mesmo de certo
falaríeis,
pronunciando uma sentença que degrau e escada
vai ser para
que os dois enamorados possam vir a integrar-se
novamente no
vosso afeto. O que não tem remédio está sanado só
em ver o
perigo já passado. Chorar, depois de salvo, uma
desgraça, é
chamar outra ainda mais feia e crassa. O que nos
for tirado pela
sorte, qual perda há de ser tido não de porte. O
roubado que ri,
rouba ao ladrão; o que chora, a si rouba outra
porção.
BRABÂNCIO - Que o Turco, então, roubar-vos
Chipre venha;
vamos rir e cantar com voz roufenha. Só escuta de
bom grado
uma setença quem em proveito próprio nela pensa.
Mas fica
duplamente atribulado quem perder a paciência
ante o recado.
Conselhos, ou de açúcar ou de fel, ambíguos
sempre são como
hidromel. Palavras são palavras; pelo ouvido
jamais o coração
será atingido. Humildemente suplico a Vossa Graça
que
passemos aos assuntos do Estado.
DOGE - O Turco se dirige para Chipre com
preparativos
poderosos. Otelo, conheceis perfeitamente os
meios de defesa
daquela praça. E embora tenhamos nela um lugar-
tenente de
indiscutida competência, a opinião pública, a mais
alta soberana
do êxito, vos distingue com o seu voto. Por isso,
será forçoso
embaçardes o brilho de vossa recente fortuna com
esta
expedição por demais teimosa e barulhenta.
OTELO - A tirania do hábito, severos senadores, da
cama de aço
e pedra da guerra fez-me um leito de penugem.
Confesso que
as empresas arriscadas sempre me deixam álacre e
disposto.
Assim, aceito a direção da guerra contra esses
otomanos. Mas,
curvando-me mui respeitosamente ante vós outros,
suplico que
tomeis as convenientes disposições para que minha
esposa
alojamento venha a ter e trato condignos de seu
alto
nascimento.
DOGE - Em casa do pai dela.
BRABÂNCIO - Não concordo.
OTELO - Nem eu.
DESDÊMONA - Nem eu tampouco. Não desejo
voltar a morar lá,
porque não deixe de meu pai os sentidos
impacientes com
minha vista. Mui gracioso doge, favoráveis ouvidos
concedei
para o que vou dizer, porque na vossa palavra eu
achar possa
um privilégio para minha fraqueza.
DOGE - Que desejas,Desdêmona?
DESDÊMONA - Eu amei o Mouro, para viver junto
com ele, é o
que proclama ao mundo todo minha ação violenta.
Submeteuse-
me o coração à essência mesma de meu marido, vi
o retrato
de Otelo em seu espírito, e a suas honras e partes
valorosas,
minha sorte e a alma inteira diquei. Assim, meus
caros
senhores, se eu ficar qual parasita da paz e ele
partir para essa
guerra, privada me verei das qualidades que amá-lo
me
fizeram, sobre ser-me necessário agüentar esse
intervalo
moroso e fatigante de sua ausência. Deixai, pois,
que com ele
eu também siga.
OTELO - Dai-lhe essa permissão. Por testemunha
invoco o céu
de como fazendo esse pedido não desejo dar pábulo
ao padar
dos apetites nem acalmar o ardor da mocidade -
que já deixei
de lado - ou secundárias satisfações pessoais, mas
tão-somente
para fazer justiça a seu espírito. E não permita o
céu que em
vossos puros corações a admitir venhais que eu
possa
prejudicar negócios de tal monta, de tanta
gravidade, só porque
ela vai ficar ao meu lado. Não; se um dia o alado
devaneio de
Cupido me selar com sensual embotamento as
faculdades
especulativas e os órgãos para a ação, vindo os
prazeres a
manchar meu dever e corrompê-lo, que do meu
elmo vossas
cozinheiras façam um caldeirão, e os mais indignos
opositores
se levantem contra o apreço em que sou tido.
DOGE - Seja como vos aprouver, ou ela fique ou
siga. O assunto
exige pressa; diligente deve ser a resposta.
PRIMEIRO SENADOR - É necessário partirdes esta
noite.
OTELO - De bom grado.
DOGE - Amanhã às nove horas voltaremos a reunir-
nos aqui.
Deixai, Otelo, um oficial, para que vos transmita
nossas ordens
e o mais que diz respeito a vosso posto e às honras
inerentes.
OTELO - Se concordais, o alferes é pessoa honesta e
de
confiança. A seus cuidados confio minha esposa e
tudo quanto
Vossa Graça quiser depois mandar-me. DOGE - Que
seja assim.
Boa noite para todos.
(A Brabâncio.)
Muito nobre senhor, se de beleza a virtude não for
destituída,
mais belo é vosso genro do que preto.
PRIMEIRO SENADOR - Adeus, valente Mouro; sê
bondoso para
Desdêmona.
BRABÂNCIO - Cuidado, Mouro! Se olhos tens, abre-
os bem em
toda a parte; se o pai ela enganou, pode enganar-te.
(Saem o doge, senadores, oficiais, etc.)
OTELO - Pela sua lealdade empenho a vida!
Honesto Iago,
confio-te Desdêmona. Dá-lhe por companheira tua
esposa e,
logo que te for possível, leva-a para junto de mim.
Vamos,
Desdêmona; só disponho de uma hora para
assuntos mundanos
e ordens várias, que há de ser-te dedicada também.
E
necessário ao tempo nos mostrarmos obedientes.
(Saem Otelo e Desdêmona.)
RODRIGO - Iago!
IAGO - Que disseste, nobre coração?
RODRIGO - Que imaginas que eu vou fazer?
IAGO - Ora, deitar-te e dormir.
RODRIGO - Vou imediatamente afogar-me.
IAGO - Bem; se fizeres tal coisa, nunca mais te terei
amizade. E
por que isso, meu tolo?
RODRIGO - E tolice viver quando a vida é um
tormento,
dispondo nós da prescrição de morrer, quando a
morte é nosso
médico.
IAGO - Oh, miserável! Contemplo o mundo há
quatro vezes sete
anos, e desde que me tornei capaz de distinguir de
uma injúria
um benefício, nunca encontrei um homem que
soubesse como
amar a si mesmo. Antes de eu dizer que pretendia
afogar-me
por causa de uma galinha-d.angola, trocaria a
forma humana
pela de um bugio.
RODRIGO - Que devo fazer? Confesso que me sinto
envergonhado, por me sentir a esse ponto tomado
de paixão;
mas não encontro em minha virtude o remédio
para isso.
IAGO - Virtude? Uma figa! Depende de nós mesmos
sermos
assim ou assado. Nossos corpos são nossos jardins,
cujos
jardineiros são nossas vontades; de modo que se
quisermos
plantar urtiga e semear alface, deixar hissopo ou
arrancar
tomilho, provê-los apenas de determinada espécie
de erva ou
enchê-los de muitas variedades, esterilizá-los pela
preguiça ou
cultivá-los pelo trabalho... Ora, o poder exclusivo e
a força
reguladora de tudo reside apenas em nossa
vontade. Se a
balança de nossa vida não dispusesse de um prato
de razão
para contrabalançar o da sensualidade, o sangue e
a baixeza de
nossa natureza nos conduziriam às mais absurdas
situações.
Mas possuímos a razão para acalmar nossos
instintos furiosos,
os acúleos da carne, os desejos desenfreados. De
onde concluo
que o que denominais amor não é mais do que um
sarmento ou
uma vergôntea.
RODRIGQ - Não pode ser.
IAGO - É apenas um apetite do sangue e uma
concessão da
vontade. Vamos! Sê homem! Afogares-te? Faze isso
com gatos
e cãezinhos recém-nascidos. Declarei que sou teu
amigo e me
confesso ligado ao teu serviço por cabos de
resistência à toda
prova. Nunca te poderei ser tão útil como agora.
Põe dinheiro
na bolsa, toma parte nesta guerra, desfigura as
feições com
uma barba postiça. Repito: põe dinheiro na bolsa!
Não é
possível que Desdêmona continue apaixonada do
Mouro por
muito tempo - põe dinheiro na bolsa! - nem ele
dela. Foi um
começo muito violento, da parte dela, ao que ainda
verás
seguir-se uma separação correspondente. Põe
dinheiro na
bolsa! Esses mouros são muito inconstantes em
suas
inclinações - enche de dinheiro tua bolsa! - O prato
que para
ele, agora, é tão agradável como alfarroba dentro
de pouco lhe
será tão amargo como coloquíntida. É fatal que ela
o troque por
um moço; quando ficar saciada do corpo dele,
perceberá o erro
da escolha que fez. Terá de trocá-lo por outro: é
fatal. Por isso,
põe dinheiro na bolsa! Mas se queres
absolutamente condenarte
às penas eternas, faze-o por um processo mais
delicado do
que o afogamento. Arranja quanto dinheiro
puderes! Se a
santidade de um juramento frágil entre um
bárbaro errático e
uma veneziana arquisabida não for coisa muito
dura para minha
inteligência e para todas as tribos do inferno,
acabarás
gozando-a. Por isso, trata de arranjar dinheiro! A
peste para o
teu afogamento! Nada tem que ver com este
negócio. Farás
melhor enforcando-te depois de satisfazeres os teus
desejos do
que afogando-te sem proveito nenhum.
RODRIGO - Dispões-te a apoiar minhas esperanças,
no caso de
eu me firmar nesse propósito?
IAGO - Podes contar comigo. Vai; arranja dinheiro.
Já te disse
muitas vezes e tomo a dizê-lo pela centésima vez:
odeio o
Mouro; tenho para isso motivos arraigados no
coração. Não te
faltam, também, para isso razões igualmente
ponderosas.
Unamo-nos, portanto, para nos vingarmos dele. Se
lhe puseres
um par de chifres, para ti será um prazer, e para
mim um
divertimento. O seio do tempo encerra muitbs
acontecimentos
que terão de concretizar-se. Em frente! Marcha!
Trata de
arranjar dinheiro. Amanhã voltaremos a falar
sobre isso. Adeus.
RODRIGO - Onde nos encontraremos amanhã?
IAGO - No meu aposento
. RODRIGO - Estarei lá bem cedo.
IAGO - Vai; adeus. Compreendeste, Rodrigo?
RODRIGO - Que dissestes?
IAGO - Afastai a idéia de afogamento, estais
ouvindo?
RODRIGO - Já refleti melhor; vou tratar de vender
todas as
minhas terras.
IAGO - Vai; adeus. Põe bastante dinheiro na bolsa.
(Sai Rodrigo.)
Assim, de um tolo faço minha bolsa. Profanaria,
meus
conhecimentos, se gastasse meu tempo com um
idiota desta
marca, a não ser para proveito próprio ou por
distração. Odeio o
Mouro. Há quem murmure que ele o meu trabalho
já fez em
meus lençóis. Se é certo, ignoro-o. Pelo sim, pelo
não, agir
pretendo como se assim, realmente, houvesse sido.
Tem-me
afeição. Meu plano, desse modo, sobre ele vi atuar
com mais
certeza. Cássio é um homem de bem. Ora vejamos
como posso
alcançar o lugar dele e enfeitar meu desejo com
dobrada
patifaria. Como? De que modo? Reflitamos. Deixar
passar o
tempo e embair-lhe os ouvidos, declarando-lhe que
Cássio
mostra muita intimidade com a mulher dele. O
exterior de
Cássio e seu todo insinuante o predispõem a tomar-
se suspeito
facilmente. Foi feito para seduzir mulheres. De
natureza é o
Mouro livre e aberta; honesto julga ser quem
aparenta, tão-só,
honestidade. Sem trabalho pelo nariz poderá ser
levado, tal qual
os asnos. Pronto; já está gerado. A noite e o inferno
à luz hão
de trazer meu plano eterno.
(Sai.)
ATO II
Cena I
Porto de mar em Chipre. Praça perto do cais.
Entram Montano e
dois gentis-homens. MONTANO - Que distinguis no
mar, desde
essa ponta?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM - Nada a distância; as
ondas se
encapelam; entre o alto mar e o céu não se percebe
vela
nenhuma.
MONTANO - O vento falou alto para terra, parece-
me. Jamais
tão desenfreada tempestade abalou nossas ameias.
Se em
pleno mar rugiu dessa maneira, que costela de
roble ficou firme
no encaixe, ao derreterem-se sobre ela montanhas
desse porte?
Que teremos?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM - A dispersão, tão-só,
da armada
turca. Basta a praia espumante examinares. Só
parece que as
ondas ralhadoras as nuvens chicoteiam; a mareta
de crina
gigantesca, sacudida pelo vento, parece jogar água
na Ursa
inflamável e apagar as guardas do pólo sempre
fixo. Não vi
nunca revolta assim das ondas irritadas.
MONTANO - Se não pôde abrigar-se a armada turca
nalgum
porto ou baía, está perdida. É impossível que
houvesse
resistido.
(Entra um terceiro gentil-homem.)
TERCEIRO GENTIL-HOMEM - Novas, rapazes!
Acabou-se a
guerra! Maltratou a furiosa tempestade os turcos
de tal jeito,
que seus planos ficaram mancos. Um navio nobre
de Veneza
assistiu ao pavoroso naufrágio e sofrimento da mor
parte da
armada deles.
MONTANO - Como! É então verdade?
TERCEIRO GENTIL-HOMEM - O barco está no
porto; é de
Veneza. Miguel Cássio, tenente do guerreiro
mouro, Otelo,
saltou em terra; o próprio Mouro se acha no mar,
com carta
branca, a caminho de Chipre.
MONTANO - Muito alegre me deixa essa notícia; é
um muito
digno governador.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM - Mas esse mesmo
Cássio, muito
embora se exprima com confiança sobre as perdas
dos turcos,
está triste, rezando pela salvação do Mouro, pois
violenta e
medonha tempestade dele o fez separar-se.
MONTANO - O céu o atenda, pois servi sob o
Mouro; ele é
soldado na mais lata acepção. Mas vamos logo para
o porto,
não só porque vejamos o barco recém-vindo, como
para olhar
também do lado que há de vir-nos o bravo Otelo,
até que a
nossos olhos desapareça o mar e o azul-celeste.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM - Façamos isso, sim;
cada momento
nos traz a expectativa de outros barcos.
(Entra Cássio.)
CÁSSIO - Meus agradecimentos aos valentes desta
ilha
valorosa, por mostrardes tanta afeição ao Mouro.
Oh! Que lhe
dêem os céus defesa contra os elementos pois o
perdi num mar
perigosíssimo.
MONTANO - Está num bom navio?
CÁSSIO - Seu barco tem altivos vigamentos e dispõe
de piloto
experimentado bastantes vezes, sendo só por isso
que, não
tendo esperança empanturrada para morrer,
confio em sua
cura.
VOZES (dentro) Uma vela! Uma vela!
(Entra um mensageiro.)
CÁSSIO - E esses gritos?
MENSAGEIRO - Deserta está a cidade; sobre a
borda do mar o
povo todo, em filas, grita: Uma vela! Uma vela!
CÁSSIO - Diz-me o peito que é a do governador.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM - Disparam tiros de
cortesia. É
amigo, pelo menos.
CÁSSIO - Por obséquio, senhor, ide informar-vos e
trazei-nos
notícias mais precisas.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM - Perfeitamente.
(Sai.)
MONTANO - Mas meu bom tenente, casou-se o
vosso general?
CÁSSIO - Por sorte; traz uma esposa que ultrapassa
toda
descrição e alta fama, deixa longe os conceitos da
pena
aduladora, e que no respeitante às qualidades
naturais da
criação, deixa estafado, só com ela, o inventor.
(Volta o segundo gentil-homem.)
Então, quem era?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM - É um certo Iago,
alferes junto ao
nosso general.
CÁSSIO - Realizou a travessia em boas condições e
pouco
tempo. A própria tempestade, o mar furioso. os
ventos
sibilantes, os penedos escarpados, os bancos
movediços
traidores de emboscada para os barcos inocentes
prenderem -
todos, todos, como se do sentido da beleza fossem
dotados,
transmudada sua natureza nociva, permitiram que
por eles
passasse, sã e salva, a divina Desdêmona.
MONTANO - Quem é ela?
CÁSSIO - A de quem vos falei, a capitoa de nosso
capitão. Em
companhia ele a mandou do destemido Iago, cuja
vinda
ultrapassa nossos cálculos de uma semana. O
poderoso Jove,
protege Otelo e enfuna suas velas com teu bafejo
todo
poderoso, porque abençoar ele nos venha o porto
com seu
navio, palpitar nos braços carinhosos de sua bem-
amada,
reacender-nos o espírito apagado e trazer alegria a
toda Chipre!
(Entram Desdêmona, Emília, Iago, Rodrigo e
séquito.)
Oh! Vede! Já desembarcados foram os tesouros do
barco.
Ajoelhai-vos, moradores de Chipre! Salve, dama!
Possa diante
de ti ficar a Graça celestial, por detrás, por toda a
parte,
envolvendo-te toda.
DESDÊMONA - Agradecida, valente Cássio. Que
notícia tendes
do meu marido?
CÁSSIO - Ainda não chegou. Não sei mais nada,
salvo que ele
se acha com saúde e que breve aqui estará.
DESDÊMONA - Contudo, tenho medo. Qual a causa
por que vos
separastes?
CÁSSIO - A atroz luta das águas e do céu me afastou
dele. Mas,
ouvi: uma vela!
VOZES (dentro - Vela! Vela!
(Ouvem-se tiros de canhão.)
SEGUNDO GENTIL-HOMEM - Q barco está
saudando a cidadela.
É outro amigo.
CÁSSIO - Vai ver o que há de novo. Bem-vindo, bom
alferes. (a
Emília.) Vós, senhora, também sois mui bem-vinda.
Que não
seja causa de se enturvar vossa paciência, bondoso
Iago, a
extensão dos meus saudares. E minha educação
que me
confere saudações de tamanho atrevimento.
(Beija a Emília.)
IAGO - Se ela vos desse, meu senhor, dos lábios
tanto quanto
da língua me concede, em pouco tempo ficaríeis
farto.
DESDÊMONA - Coitada, ela nem fala!
IAGO - Não? Demais. Quando quero dormir é que o
percebo.
Mas em frente de Vossa Senhoria a espertalhona
guarda um
pouco a língua no coração e ameaça em
pensamento.
EMÍLIA - Não tendes causa para assim falardes.
IAGO - Vamos; fora de casa sois pinturas; nos
quartos, sinos;
na cozinha, gatos; santas, quando ofendeis;
demônios puros,
quando sois ofendidas; chocarreiras no governo da
casa e boas
donas do lar quando na cama.
DESDÊMONA- Oh! vai saindo, caluniador!
IAGO - Quero ser turco, caso não seja assim.
Brincais o dia
inteiro; só na cama há trabalho verdadeiro.
EMÍLIA - Não haveis de escrever meu elogio.
IAGO - Nem o desejo.
DESDÊMONA - E como escreverias, se incumbido
te visses de
elogiar-me? IAGO - Cuidado, gentil dama, que
outra coisa não
sou, tirante um crítico modesto.
DESDÊMONA - Tentai, tentai! - Alguém foi até ao
porto?
IAGO - Foi, sim, senhora.
DESDÊMONA - Alegre não me sinto, mas engano
meu próprio
estado, simulando o gosto. Vamos: de que maneira
me
elogiaras?
IAGO - Já estou quase no ponto; mas do casco me
sai sempre a
invenção como da bolsa visco de passarinho: vem o
cérebro, e
tudo o mais, grudado. Minha musa, porém, começa
a sentir
dores fortes e à luz, por fim, dá isto: Se ela tiver
espírito e
beleza, aquele é dádiva; natureza.
DESDÊMONA - Ótimo! E se for preta e espirituosa?
IAGO - Preta e espirituosa... Que mistura! Mas um
branco há de
achar para a feiúra.
DESDÊMONA - De mal para pior.
EMÍLIA - E se for bela e tonta?
IAGO - Mulher tonta não há, sendo bonita, pois
sabe arranjar
filho e ser catita. DESDÊMONA - São paradoxos
velhos, para
fazer rir os tolos nas cervejarias. Que mísero elogio
reservaste
para as feias e tontas?
IAGO - Não há feia tão tola que não possa nas belas
e sabidas
fazer mossa.
DESDÊMONA - Oh ignorância maciça! Fizeste
maior elogio das
piores. Mas que dirás em louvor da mulher
verdadeiramente
merecedora de encômios, que, escudada em seu
merecimento,
obriga a render-se à própria maledicência?
IAGO - A que bela foi sempre, não vaidosa, e,
podendo falar,
não foi verbosa; a que, tendo ouro à larga, não se
enfeita, e,
coibindo-se, diz: numa outra feita; a que, ofendida
e a ponto de
vingar-se, sabe conter-se e a fúria deixa alar-se; a
que não
fosse néscia que trocasse salmão por bacalhau com
alegre face;
a que pensasse e não dissesse nada e aos
chichisbéus fugisse
recatada; tal mulher, se existisse, claro seja...
DESDÊMONA - De que fora digna?
IAGO - De criar pascácios e provar cerveja.
DESDÊMONA - Oh! Semelhante conclusão é por
demais coxa,
muito débil. Emília, não aprendas nada com ele,
embora seja
teu marido. Que pensais, Cássio? Não é um
conselheiro
licencioso e de muito má língua?
CÁSSIO - A linguagem dele é rude, de fato, minha
senhora; é
preciso ficardes apreciando nele mais o soldado do
que o
erudito.
IAGO (à parte) - Ele a segura pela mão. Muito bem!
Cochicha
lhe aos ouvidos. Com uma teiazinha tão pequena
assim,
pretendo pegar uma mosca do tamanho de Cássio.
Sim, dirigelhe
sorrisos; mas um pouco, e eu te amarrarei com
tuas
próprias cortesias. Tendes razão: é assim mesmo.
Se vierdes a
perder o posto de tenente por umas frioleiras desse
porte,
melhor vos teria sido não ter beijado tantas vezes
os três
dedos, como ainda vos mostrais disposto a fazer,
para vos
apresentardes como senhor de respeito. Muito
bem! Belo beijo!
Excelente cortesia! E assim mesmo, não há dúvida.
Levais mais
uma vez os dedos à boca? Quisera que vos
servissem com
outras tantas cânulas de clister...
(Ouve-se toque de trombeta.)
Mouro! Çonheço o som da trombeta dele.
CÁSSIO - É ele mesmo.
DESDÊMONA - Vamos ao encontro dele para
recebê-lo.
CÁSSIO - Ei-lo que chega.
(Entra Otelo e séqüito.)
OTELO - Minha linda guerreira!
DESDÊMONA - Caro Otelo!
OTELO - Tanto contentamento quanto espanto me
causa ver
que antes de mim chegastes. Ó alegria de minha
alma! Caso
viesse sempre depois da tempestade semelhante
bonança,
poderiam soprar os ventos de acordar a morte. Que
o meu
barquinho escale montes de água tão altos quanto o
Olimpo e,
após, afunde tanto quanto distar do céu o inferno.
A morte,
agora, para mim seria uma felicidade, pois tão
grande é a
ventura que da alma se me apossa, que não pode,
receio-o,
reservar-me outra igual o futuro nebuloso.
DESDÊMONA - Permita o céu que nosso amor e
nossa felicidade
cresçam como os dias que ainda temos de vida.
OTELO - Amém, poderes inefáveis! Não posso falar
muito sobre
esse assunto. Sinto-me abafado: é excessiva alegria.
(Beijando Desdêmona.)
Recebe este, e este também. Que a única discórdia
de nossos
corações tenha este aspecto.
IAGO (à parte) - Oh! Por enquanto estais bem
afinados; mas eu
me incumbo de afrouxar as cordas que produzem
tal música;
tão certo como eu ser gente honesta.
OTELO - Vamos logo para o castelo. Trago
novidades, caros
amigos. Acabou-se a guerra; os turcos se afogaram.
Como
passam os moradores da ilha, meus amigos? Vais
ser amor,
muito querida em Chipre. Em todos encontrei
muita amizade. Ó
minha doce amiga, estou pulando de um assunto
para outro,
desconexo; tanta felicidade me estonteia. Por
obséquio, bom
Iago, vai ao porto, desembarca meus cofres e
conduze ao forte
o comandante. É um homem digno; seus méritos
impõem só
respeito. Desdêmona, subamos. Novamente: és mui
bem-vinda
a Chipre.
(Saem todos, com exceção de Iago e Rodrigo.)
IAGO - Vai logo encontrar-me no porto. Aproxima-
te. Se fores
um rapaz valente, sendo verdade, como dizem, que
as pessoas
de baixa extração, quando apaixonadas revelam
mais nobreza
do que seria de esperar de sua natureza: escuta-me.
Hoje à
noite o tenente ficará de vigia no corpo da guarda.
Para
começar, preciso dizer-te o seguinte: Desdêmona
está
apaixonada por ele.
RODRIGO - Por ele? Não é possível.
IAGO - Põe o dedo assim e deixa que tua alma se
instrua.
Recorda a violência com que de início ela amou o
Mouro, só por
causa de suas fantarronadas e de suas aventuras
mentirosas.
Amá-lo-ia sempre por sua tagarelice? Que o teu
coração
discreto não acredite em semelhante coisa. Ela
precisará
espairecer a vista; e que deleite poderá encontrar
na
contemplação do demônio? Quando o sangue se
torna pesado
pelo ato do prazer, para inflamá-lo de novo e para
despertar o
apetite à saciedade é preciso que o amante seja de
aparência
agradável e que haja uma espécie de simpatia
quanto à idade,
os costumes e os encantos pessoais, o de que o
Mouro carece
por completo. Ora, não existindo esses requisitos
vantajosos,
sua ternura delicada ficará desiludida, sentirá
náuseas,
revelando, por fim, repulsa e asco pelo Mouro. A
própria
natureza lhe ensinará essas coisas, levando-a a
fazer uma
segunda escolha. E agora, senhor, uma vez
admitido isso -
proposição mais do que certa e não forçada - quem
se acha
mais alto do que Cássio na escada dessa felicidade?
E um tipo
volúvel, cuja escrupulosidade só vai até ao ponto de
permiti-lo
assumir a simples forma de uma aparência afável e
educada,
para melhor satisfazer os apetites mais inconfessos
e
licenciosos. Ninguém mais! Ninguém mais! E um
tipo astucioso
e equívoco, sempre à cata de oportunidades, com
um olho que
pode cunhar e falsificar vantagens, muito embora a
verdadeira
vantagem nunca chegue a se apresentar... Um
sujeito diabólico!
Ao lado disso, de figura apresentável, moço, com
todos os
requisitos que atraem o olhar do povinho
inexperiente e
desmiolado; é um biltre pestilencioso a conta
inteira, que já
chamou a atenção da mulherzinha.
RODRIGO - Não posso acreditar em tal coisa, em se
tratando
dela; é exornada das mais celestes qualidades.
IAGO - Celestes, uma figa! O vinho que ela bebe é
feito de uva;
se fosse celeste, nunca se teria apaixonado do
Mouro. Um
pudim celeste! Não viste como ela brincava com a
mão dele?
Não observaste isso?
RODRIGO - Vi, sem dúvida; mas era por simples
cortesia.
IAGO - Lascívia, por esta mão! Indice e prólogo
obscuro de uma
história de luxúria e de pensamentos libidinosos.
Ficaram com
os lábios tão próximos, que seus hálitos se
abraçaram.
Pensamentos torpes, Rodrigo! Quando essas
reciprocidades
iniciam a campanha, segue-lhe no rasto a manobra
principal, a
conclusão carnal. Ora! Mas, senhor, deixai-vos
guiar por mim.
Trouxe-vos de Veneza. Ficai de guarda hoje à noite;
eu mesmo
vos indicarei o ponto. Cássio não vos conhece; não
ficarei muito
longe. Arranjai oportunidade de irritar Cássio, ou
falando-lhe
muito alto, ou transgredindo suas determinações,
ou por
qualquer outro meio que a ocasião vos sugerir.
RODRIGO - Bem.
IAGO - Ele é violento e se encoleriza com facilidade,
podendo
acontecer que vos bata. Provocai-o, para que ele
faça isso
mesmo, pois pretendo valer-me desse pretexto,
justamente,
para amotinar o pessoal de Chipre, cuja pacificação
só poderá
ser restabelecida com a destituição de Cássio.
Desse modo,
encurtareis o caminho de vossos desejos, graças
aos meios que
eu arranjar para promovê-los, ficando removido
com facilidade
o obstáculo sem o qual não poderemos esperar
nenhum êxito. -
RODRIGO - E o que farei, no caso de encontrar
oportunidade.
IAGO - Por isso eu me responsabilizo. Vai logo
procurar-me no
forte; tenho de desembarcar a bagagem do Mouro.
Adeus.
RODRIGO - Adeus.
(Sai.)
IAGO - Que amor lhe tenha Cássio, é o que acredito;
que ela o
ame, é quase certo e compreensível. O Mouro,
embora eu
suportar não o possa, por natureza é firme, nobre e
amável,
tendo eu plena certeza de que ele há de ser o
marido ideal para
Desdêmona. Mas eu também a amo, não por
simples
concupiscência, muito embora eu seja também
passível dessa
grande falta. Não; é para saciar minha vingança,
pois suspeito
que o Mouro luxurioso pulou na minha sela,
pensamento esse
que, como mineral nocivo, me corrói as entranhas,
sem que
nada possa ou deva deixar-me a alma aliviada antes
de virmos
nisso a ficar quites: é mulher por mulher. Falhando
o plano,
farei tal ciúme despertar no Mouro, que não possa
curá-lo o
raciocínio. Para obter isso - caso este sabujo de
Veneza, que à
trela sempre trago, saiba encontrar o rasto e correr
firme -
pegarei Miguel Cássio pelo flanco, pois temo que
ele também
tenha usado meu gorro de dormir. Assim, o Mouro
me amará,
ficar-me-á reconhecido, e um prêmio me dará por
eu ter feito
dele um asno completo, e o ter privado da paz e do
sossego,
até nas raias ir bater da loucura. Aqui está tudo.
Meio confuso,
é certo; mas, inteira, nunca se mostra, nunca, a
bandalheira.
(Sai.) Cena II Uma rua. Entra um arauto com uma
proclamação; seguem-no pessoas do povo.
ARAUTO - É vontade de Otelo, nosso nobre e
valente general,
que, por motivo das notícias do complexo
desbarato da arma da
turca, festejem todos esse triunfo com trajes
alegres, ou seja
dançando, ou acendendo fogueiras, ou entregando-
se aos
divertimentos e prazeres a que estiverem mais
inclinados.
Porque além dessas notícias auspiciosas, celebra
Otelo tam bém
o seu casamento. Assim, determinou que se fizesse
esta
proclamação. Todas as lojas ficarão abertas,
havendo inteira
liberdade de diversão, desde agora, cinco horas da
tarde, até
dar o sino o sinal das onze. Que o céu abençoe a
ilha de Chipre
e o nosso nobre general Otelo!
(Saem.)
Cena III
Uma sala no castelo. Entram Otelo, Desdêmona,
Cássio e
pessoas do séqüito.
OTELO - Caro Miguel, cuidai da guarda à noite.
Mostremos pelo
exemplo a decorosa moderação, porque não haja
excesso nas
festas permitidas.
CÁSSIO - Já dei ordens,para Iago a esse respeito.
Não
obstante, pessoalmente irei ver tudo de perto.
OTELO - Iago é pessoa honesta. Boa noite, Miguel;
quanto mais
cedo for possível, vinde amanhã falar-me.
(A Desdêmona.)
Vamos, querida; já fizemos a compra; ora é preciso
saber
aproveitá-la com juízo.
(Saem Otelo, Desdêmona e séqüito.)
(Entra Iago.)
CÁSSIO - Sede bem-vindo, Iago. Precisamos ir para
a guarda.
IAGO - Ainda falta muito tempo, tenente; não são
dez horas.
Nosso general nos despediu assim tão cedo por
amor de sua
Desdêmona, pelo que, aliás, não podemos censurá-
lo; ainda
não passou uma noite regalada com ela, que é um
pratinho
para Jove.
CÁSSIO - É uma senhora admirável.
IAÇ3O - E deliciosa, posso asseverar.
CÁSSIO - Realmente, uma criatura muito louçã e
delicada.
IAGO - E que olhos tem! Soam-me como um convite
para o
assalto.
CÁSSIO - Olhar atraente, de fato, mas muito
modesto.
IAGO - E quando fala, não parece uma alvorada
para o amor?
CÁSSIO - É, de fato, a perfeição em pessoa.
IAGO - Muito bem; felicidade para seus lençóis.
Vamos,
tenente; tenho um quartal de vinho e aí fora um par
de
galantes chipriotas que de bom grado beberiam à
saúde do
negro Otelo.
CÁSSIO - Não hoje à noite, meu bom Iago; tenho a
cabeça
muito fraca para bebidas. Desejara que a cortesia
inventasse
outras maneiras de manifestarmos a alegria.
IAGO - Oh! são nossos amigos! Um copo, somente;
beberei em
vosso lugar.
CÁSSIO - Só bebi esta noite um copo, e assim
mesmo muito
diluído; mas, apesar disso, podeis ver que
desarranjo produziu
aqui. E um defeito lastimável; não quero pôr à
prova mais uma
vez a minha fraqueza.
IAGO - Ora, homem! A noite, hoje, é de folia! Os
rapazes que
insistem. CÁSSIO - Onde se encontram?
IAGO - Aqui, à porta; chamai-os, por obséquio.
CÁSSIO - Vou fazê-lo, mas a contragosto.
(Sai.)
IAGO - Se eu puder empurrar-lhe mais um copo
além do que
ele já bebeu à tarde, ficará tão rixendo e quereloso
como uma
cadelinha. Aquele tonto, Rodrigo, a quem o amor
virou no
aveso, esta noite, à saúde de Desdêmona bebeu
potes
seguidos. Vai dar guarda. Mais três rapazes de alto
e nobre
espírito, que em distância prudente a honra
conservam,
elementos desta ilha belicosa, esta noite deixei
meio confusos
com copos transbordantes. Todos eles irão também
dar guarda.
Ora, no meio de tantos bêbados, farei que Cássio
pratique
qualquer ato que alboroto venha na ilha a causar.
Ei-los que
chegam. Se condisser com os sonhos a seqüela,
meu barco
correrá com vento e vela.
(Volta Cássio, acompanhado de Montano e vários
cavalheiros.
Entram criados com vinho.)
CÁSSIO - Por Deus! Já me fizeram beber uma boa
caneca.
MONTANO - Pequenita, por minha fé; não chegava
a uma pinta;
tão certo como eu ser soldado.
IAGO - Tragam-nos vinho, olá!
(Canta.) Fazei tinir a caneca! Fazei tinir a caneca!...
A vida é
quente, soldado é gente... Soldado... que leve a
breca!
Mais vinho, rapazes!
CÁSSIO - Por Deus, excelente canção.
IAGO - Aprendi-a na Inglaterra, onde se bebe, em
verdade,
largamente. Vosso dinamarquês, vosso alemão e
vosso
holandês pançudo - à saúde, olá! - são nada,
comparados com
os ingleses.
CÁSSIO - Vosso inglês é tão entendido em bebidas,
assim?
IAGO - Ora, com a maior facilidade ele bebe de
matar vosso
dinamarquês não chega a suar para derrubar vosso
alemão e
faz vosso holandês vomitar antes de encherem de
novo a
caneca.
CÁSSIO - A saúde do nosso general!
MONTANO - O mesmo eu digo, tenente; faço-vos
justiça.
IAGO - Oh, doce Inglaterra!
(Canta.) O rei Estêvão, mui digno par, deu pelas
calças uma
coroa; mas achou caro; não quer pagar; chama o
alfaiate de
coisa à-toa. Era de casa de grande fama; mas tu não
passas de
um gafanhoto. O orgulho o reino joga na lama; por
isso veste
teu manto roto. Mais vinho, olá!
CÁSSIO - Essa canção é ainda mais esquisita do que
a outra.
IAGO - Desejais que a repita?
CÁSSIO - Não, porque considero indigno de seu
posto quem se
conduz por esse modo. Sim, Deus está acima de
tudo; há almas
que devem salvar-se e há almas que não devem
salvar-se.
IAGO - E certo, meu bom tenente.
CÁSSIO - No que me diz respeito - longe de mim a
intenção de
ofender o general ou qualquer outra pessoa de
posição espero
salvar-me.
IAGO - Eu também, tenente.
CÁSSIO - Sim; mas, com vossa permissão, não
antes de mim;
o tenente deve ser salvo antes do alferes. Não
falemos mais
disso; voltemos para nosso trabalho. Deus perdoe
nossos
pecados. Cavalheiros, cuidemos da obrigação. Não
vades
pensar, cavalheiros, que eu estou bêbado. Este aqui
é o meu
alferes; esta, a minha mão direita; esta, a esquerda.
Agora não
estou bêbado; posso manter-me de pé e falar sem
atrapalharme.
TQDOS - Perfeitamente!
CÁSSIO - Então, muito bem; não deveis imaginar
que eu estejá
embriagado.>br> (Sai.)
MONTANO - A esplanada, senhores! Para a guarda!
IAGO - Vistes o tipo que saiu há pouco? É soldado
que a César
não desonra; digno de comandar. Mas vede o vício,
equinócio
adequado de seu mérito: um, tão longo quanto o
outro. Faz-me
pena. Temo sinceramente que a confiança que
Otelo nele
deposita, possa numa hora aziaga sacudir esta ilha.
MONTANO - Fica assim muitas vezes?
IAGO - Sempre o prólogo esse é do sono dele. Duas
voltas
completas do relógio ele consegue ficar de
sentinela, quando o
vinho não lhe sacode o leito.
MONTANO - Bom seria que ao general falássemos
sobre isso.
Decerto ignora tudo; ou, porventura, sua bondade
louva em
Cássio apenas a virtude aparente, sem das faltas
tomar
conhecimento. Não é verdade?
(Entra Rodrigo.)
IAGO - (à parte, a Rodrigo) - Que há de novo,
Rodrigo? Por
obséquio, ide atrás do tenente.
(Sai Rodrigo.)
MONTANO - É lastimável que o nobre Mouro
arrisque um lugar
desse, em importância logo após o dele, com um
sujeito
tachado de fraqueza. Ação honesta fora alguém
com o Mouro
falar a esse respeito.
IAGO - Eu, não! Nem mesmo por esta formosa ilha.
Gosto
muito de Cássio; hei de fazer todo o possível para
curá-lo dessa
enfermidade. Mas, escutai! Que barulheira é essa?
GRITOS (dentro) - Socorro! Socorro!
(Entra Cássio, empurrando Rodrigo.)
CÁSSIO - Miserável! Patife!
MONTANO - Que acontece, tenente?
CÁSSIO - Um pulha destes, pretendendo ensinar-
me o dever.
Pois vou inflá-lo numa garrafa, à custa de pauladas.
RODRIGO - Bater em mim?
CÁSSIO - Ainda resmungas, choldrar?
(Bate em Rodrigo.)
MONTANO - (segurando Cássio) - Meu bom
tenente, calma, por
obséquio! Detende a mão.
CÁSSIO - Senhor, deixai-me livre; caso contrário,
amasso-vos o
crânio.
MONTANO - Deixai disso; estais bêbado.
CÁSSIO - Eu, bêbado?
(Lutam.)
IAGO (a parte, a Rodrigo)- Saí, vos digo. Ide tocar
alarma.
(Sai Rodrigo.)
? Não, meu caro tenente! Oh Deus! Senhores!
Socorro, olá!
Tenente! Bom Montano! Socorro, olá! Que bela
guarda temos!
(O sino toca.)
Quem estará tocando o sino? Diablo! Vão alarmar
toda a cidade.
Calma! Calma, senhores! Calma! Para sempre vos
heis de
envergonhar.
(Entram Otelo e séqüito.)
OTELO - Que aconteceu?
MONTANO - Com a breca! Estou sangrando; estou
ferido
gravemente.
OTELO - Parai, por vossas vidas!
IAGO - Calma, tenente! Cavalheiros, calma!
Porventura
perdestes todo o senso do dever e lugar? Parai! Que
opróbrio!
OTELO - Então, que aconteceu? Como foi isso?
Viramos turcos
para permitir-nos o que o céu não consente aos
otomanos? Pelo
pudor cristão, parai com essa gritaria de bárbaros.
Aquele que
se mexer para saciar a raiva, não faz caso da vida; é
homem
morto. Fazei calar esse terrível sino, que ele
espanta a ilha e a
tira de seus hábitos. Que aconteceu, senhores?
Honesto Iago,
pareces morto de tristeza; dize-me: quem
começou? Por teu
amor, intimo-te.
IAGO - Não sei; amigos éramos há pouco, neste
momento, em
termos como noivos, quando se despem antes de ir
deitar-se.
De repente, agorinha mesmo, como se algum
planeta houvesse
o mundo todo deixado dementado, espadas fora,
visando o
peito um do outro, em sanguinária oposição. Dizer
não posso
como principiou esta odiosa diferença. Fora
melhor haver no
campo de honra perdido as pernas que me
conduziram para ser
parte nisto.
OTELO - Qual a causa, Miguel, de vos haverdes
esquecido de
vós mesmo a este ponto?
CÁSSIO - Só vos peço que me perdoeis, porque falar
não posso.
OTELO - Digno Montano, sempre fostes probo;
conhece o
mundo a calma e a gravidade de vossa mocidade;
vosso nome
grande é na boca dos juízes sábios. Que aconteceu,
para que
vossa fama desabotoeis assim e a vossa rica
reputação gasteis
só pelo nome de brigador noturno? Respondei-me.
MONTANO - Digno Otelo, ferido estou de morte.
Iago, vosso
oficial, pode informar-vos - porque eu me poupe,
que falar me
cansa - tudo o que sei. Não sei de nada errado que
esta noite
eu tivesse dito ou feito, a não ser que o amor-
próprio seja um
vício e pecado nos pormos em defesa, quando
alguém nos
ataca.
OTELO - Agora, pelo céu, sinto que o sangue
começa a dirigirme
o entendimento, e que a paixão, já tendo
obscurecido minha
razão, procura arrebatar-me. Se eu me mexer ou
levantar o
braço, o melhor dentre vós cairá ao peso de minha
repreensão.
Dizei-me como teve princípio esse tropel estúpido,
quem foi o
causador. Quem quer que tenha sido o culpado de
tão cru delito
- irmão gêmeo me fosse, de um só parto - de mim o
afastarei.
Pois como! Numa praça de guerra inquieta ainda,
todos com o
coração a transbordar de medo, provocarem
questões
particulares, de noite e no local, precisamente, da
guarda e
segurança! Oh! É monstruoso.
MONTANO - Se razões de amizade ou de hierarquia
a dizer te
levarem mais ou menos do que a verdade, é que
não és
soldado.
IAGO - Não me aperte assim. Preferiria que da boca
esta língua
me cortassem, a ofender de algum modo a Miguel
Cássio. Mas
convencido estou de que a verdade mal nenhum lhe
fará. Eis
como tudo se passou, general. Eu e Montano a
conversar
estávamos. De súbito, a gritar por socorro entra um
sujeito
perseguido por Cássio, que, de espada
desembainhada, a ponto
se encontrava de desferir-lhe um golpe. Este
fidalgo, senhor,
deteve Cássio, procurando demovê-lo do intento.
Eu saí logo em
pós do tipo que corria aos berros, para ver se
evitava que seus
gritos - como se deu, de fato - provocassem o
alarma na
cidade. Mas, dotado de pé velozes, ele, em pouco
tempo, me
frustrou a intenção, tendo eu achado mais
prudente voltar, por
ter ouvido tinir de espadas e exaltadas juras
proferidas por
Cássio, o que impossível me fora acreditar até esta
noite. Ao
retomar porque tudo isso fora obra de alguns
momentos -
encontrei-os engalfinhados, em defesa e ataque, tal
como
estava, quando aqui chegastes, para vir separá-los.
E tudo
quanto sei sobre esse assunto. Mas os homens são
homens, e
por vezes o melhor pode errar. Embora Cássio
houvesse feito
alguma ofensa ao outro - pois quando arrebatados,
machucamos até o melhor amigo - estou convicto
de que ele
recebeu do que fugia uma dessas injúrias nunca
ouvidas, que
admitir a paciência não consegue.
OTELO - Iago, sei bem que a tua honestidade e teu
bom
coração ora te levam a atenuar este assunto, para
que ele pese
menos em Cássio. Cássio, estimo-te; mas nunca
mais serás
meu oficial.
(Entra Desdêmona, acompanhada.)
Vede! Acordaram minha terna esposa!
(A Cássio.)
Um castigo exemplar pretendo dar-te.
DESDÊMONA - Que aconteceu?
OTELO - Tudo está bem querida. Retorna para o
leito. (A
Montano.) Desses golpes, senhor, o cirurgião serei
eu próprio.
Levai-o logo.
(Montano é conduzido.)
Iago, inspeciona bem toda a cidade e tranqüiliza os
que essa vil
querela possa ter alarmado. Vem, Desdêmona; é
sempre assim
a vida de um soldado: ter amiúde o sono
despertado.
(Saem todos, com exceção de Iago e Cássio.)
IAGO - Quê! Estais ferido, tenente?
CÁSSIO - Sim, sem possibilidade de cura.
IAGO - Oh! Não o permita o céu.
CÁSSIO - Reputação, reputação, reputação! Oh!
perdi a
reputação, perdi a parte imortal de mim próprio,
só me tendo
restado a bestial. Minha reputação, Iago; minha
reputação
! IAGO - Tão certo como eu ser um homem honesto,
pensei que
houvesses recebido algum ferimento no corpo; há
mais prejuízo
nisso do que na reputação. A reputação é um
apêndice ocioso e
enganador; obtido, muitas vezes, sem
merecimento, e perdido
sem nenhuma culpa. Não perdestes nenhuma
reputação, a
menos que vos considereis como tendo sofrido
semelhante
perda. Que é isso, homem! Há muitos meios de
reconquistar a
estima do general; fostes despedido apenas em um
momento
de mau humor; um castigo aplicado mais por
considerações de
ordem geral do que por maldade, justamente como
no caso de
bater alguém em seu cãozinho inofensivo, para
amedrontar um
leão temível. Implorai-lhe perdão e ele se tornará
vosso outra
vez.
CÁSSIO - Preferira implorar o seu desprezo a
enganar um
comandante tão bom com um oficial tão leviano,
bêbado e
indiscreto. Embriagado! Falando como papagaio!
Provocar
brigas, fazer fanfarronadas, jurar e falar empolado
com a
própria sombra! Ó espírito invisível do vinho! Se
não és ainda
conhecido por nenhum nome, recebe o de
demônio.
IAGO - Quem era o sujeito a quem perseguíeis de
espada em
punho? Que vos havia feito?
CÁSSIO - Não sei.
IAGO - Será possível?
CÁSSIO - Recordo-me de uma infinidade de coisas,
mas nada
distintamente; de uma briga, porém não de seus
motivos. Oh
Deus! Terem os homens o inimigo na própria boca,
para roubarlhes
o cérebro! Constituir para nós alegria, prazer,
divertimento
e júbilo isso de nos transformarmos em brutos!
IAGO - Mas é interessante que estais agora
inteiramente lúcido!
De que modo recuperastes os sentidos assim tão
depressa?
CÁSSIO - Aprouve ao demônio da embriaguez ceder
o lugar ao
demônio cólera. Uma imperfeição me mostra
outra, ensinandome
a detestar-me sem reservas.
IAGO - Ora, vamos; sois um moralista muito
severo.
Considerando-se o momento, o lugar e as condições
da cidade,
sinceramente, eu preferira que tudo isso não
houvesse
acontecido; mas já que é como é, tratai de
consertar as coisas
em proveito próprio.
CÁSSIO - Vou pedir-lhe que me reintegre no meu
posto; ele vai
responder-me que eu sou um bêbado. Se eu tivesse
tantas
bocas como a hidra, semelhante respostas mas
entupiria todas.
Há pouco eu era um indivíduo ajuizado; logo
depois, um tolo; e
neste momento, um bruto. Oh! é terrível! E
amaldiçoado todo
copo bebido fora da conta, sendo o seu conteúdo o
próprio
diabo.
IAGO - Vamos, vamos; o bom vinho é um camarada
bondoso e
de confiança, quando tomado com sabedoria; não
continueis a
falar mal dele. E, meu bom tenente, creio que
tendes çerteza de
que vos tenho amizade.
CÁSSIO - Já

e disso sobejas provas, senhor. Eu, bêbado!


IAGO - Ora, homem! Vós, ou qualquer pessoa viva podeis
embriagar-vos de vez em quando. Vou dizer-vos o
que deveis
fazer. A mulher do nosso general é agora o general.
Posso
exprimir-me dessa maneira, por ter-se ele
devotado e dedicado
à contemplação, ao exame e à observação de suas
partes e
graças. Falai-lhe com franqueza; importunai-a, que
ela vos
ajudará a reconquistar esse lugar. É de uma
disposição tão
franca e generosa, tão bondosa e abençoada, que
em sua
bondade considera vício não fazer mais do que o
que se lhe
pede. Pedi-lhe que conserte a fratura da articulação
existente
entre vós e o marido dela. E todos os meus bens
contra
qualquer coisa sem valor em como essa fratura do
vosso amor
vai ficar mais forte do que era antes.
CÁSSIO - Dais-me um bom conselho.
IAGO - Podeis crer que o faço com a maior
sinceridade e çom
afeição honesta.
CÁSSIO - Tenho certeza disso; logo que amanhecer,
vou pedir à
virtuosa Desdêmona que interceda a meu favor.
Perderei a
confiança na sorte, se ela me for contrária neste
passo.
IAGO - Tendes razão. Boa noite, tenente; preciso ir
para a
guarda.
CÁSSIO - Boa noite, honesto Iago.
(Sai.)
IAGO - Quem poderá dizer que eu represento papel
de celerado,
se o conselho que eu dei é honesto e leal, muito
plausível e em
verdade o caminho para ao Mouro vir a
reconquistar? Sim,
porque é muito fácil de conseguir que a
complacente
Desdêmona se empenhe em qualquer súplica
honesta; é
dadivosa com a terra. E para obter do Mouro
qualquer coisa -
muito embora para ele se tratasse de abrir mão do
batismo, das
insígnias e símbolos de uma alma redimida - tanto
ele o coração
traz encadeado na afeição de Desdêmona, que tudo
fazer ou
desfazer ela consegue, como entender, reinando
como deusa
sua vontade sobre o fraco esposo. Estarei sendo,
acaso, um
celerado, por ter mostrado a Cássio esse caminho
que vai dar
ao seu bem, diretamente? Divindades do inferno!
Quando os
diabos querem dar corpo aos mais nefandos
crimes, celestial
aparência lhes emprestam, tal como agora faço.
Pois, enquanto
este imbecil honesto pede à bela Desdêmona que
cure a sua
sorte, e ela sobre isso insiste junto ao Mouro,
veneno deitarei
no ouvido dele, com dizer que ela o faz só por
luxúria; quanto
mais houver feito ela por ele, mais, junto ao Mouro,
há de
perder o crédito. Transformarei em pez sua
virtude, e com a
própria bondade apresto a rede que há de a todos
pegar.
(Volta Rodrigo.)
Então, Rodrigo?
RODRIGO - Sigo-te nesta caçada não como um
cachorro que
persegue, mas como o que apenas completa a
matilha. Já
gastei quase todo o meu dinheiro; esta noite fui
sovado de rijo,
estando certo de que o resultado final consistirá em
ganhar
experiência à custa própria, e, assim, sem dinheiro
nenhum e
com um pouco mais de sabedoria, voltar para
Veneza.
IAGO - Quão pobre é quem carece de paciência!
Qual é a ferida
que não sara aos poucos? Bem sabes que eu
trabalho com a
cabeça, não por meio de mágica, e em tudo depende
aquela do
tardio tempo. Não vai tudo tão bem? Cássio bateu-
te; e em
troca dessas dores de brinquedo fizeste que ele o
seu lugar
perdesse. Posto sazone o sol todos os frutos, os da
primeira
floração se tornam maduros mais depressa. Sê
paciente. Mas,
pela Missa! Já é quase dia! Os folguedos e a ação as
horas
fazem parecer muito curtas. Mas retira-te; vai logo
para o teu
alojamento. Não te demores, digo; mais de espaço
te contarei o
que há. Vamos, retira-te.
(Sai Rodrigo.) E agora, duas coisas: sobre Cássio,
falar minha
mulher junto à senhora; vou concitá-la já. Nesse
entrementes,
chamarei o Mouro para que venha encontrar
Cássio, quando
falando estiver este com Desdêmona. Esse é o
caminho certo;
que a tardança não me faça perder a segurança.
(Sai.)
ATO III
Cena I
Chipre. Diante do castelo. Entram Cássio e alguns
músicos.
CÁSSIO - Mestres, cantai; pagar-vos-ei o incômodo.
Algo bem
curto; e, ao fim, falai desta arte: .Bom dia, general!.
(Música.)
(Entra o bobo.)
BOBO - Olá, mestres! Vossos instrumentos
estiveram em
Nápoles, para falarem assim pelo nariz?
PRIMEIRO MUSICO - Como assim, senhor?
BOBO - Por obséquio: é a isso que chamais
instrumentos de
vento? -
PRIMEIRO MUSICO - Perfeitamente, senhor.
BOBO - Então eles devem ter um apêndice.
PRIMEIRO MUSICO - Como apêndice, senhor?
BOBO - Ora, senhor, como muitos instrumentos de
vento que eu
conheço. Mas, caros mestres, trago-vos este
dinheiro. O general
aprecia tanto vossa música, que em nome da
amizade vos pede
não continuardes com esse barulho.
PRIMEIRO MUSICO - Perfeitamente, senhor; não
continuaremos.
BOBO - Se tiverdes alguma música que não se ouça,
então que
venha essa; mas com a que se ouve, o general não
se
preocupa, nem eu tampouco.
PRIMEIRO MUSICO - Dessa espécie não temos,
senhor.
BOBO - Nesse caso, enflai as flautas nos sacos,
porque preciso
retirar-me. Vamos! Desaparecei no ar! Toca!(Saem
os músicos.)
CÁSSIO - Estás ouvindo, meu honesto amigo?
BOBO - Não; não estou ouvindo vosso honesto
amigo; estou
vos ouvindo.
CÁSSIO - Por obséquio, pára com essas graças.
Aqui tens uma
pequena moeda de ouro. Se a dama de companhia
da senhora
do general já estiver de pé, dize-lhe que aqui fora se
encontra
um certo Cássio que solicita dela alguns momentos
de atenção.
Far-me-ás isso? BOBO - Ela já está de pé, senhor;
no caso de
vir ela até este ponto, dar-lhe-ei vosso recado.
CÁSSIO - Sim, caro amigo.
(Sai o bobo.)
(Entra Iago.)
Em feliz hora, Iago. IAGO - Então, não vos
deitastes?
CÁSSIO - Oh, não! Raiou o dia, quando nos
separamos. Tomei,
Iago, a liberdade de mandar um próprio chamar
vossa mulher;
quero pedir-lhe o obséquio de me obter uma
entrevista com a
virtuosa Desdêmona.
IAGO - Sem falta, farei que vos procure agora
mesmo. Além do
mais, vou arranjar um meio para distrair o Mouro
e, assim,
poderdes falar de vosso assunto livremente.
CÁSSIO - De todo coração vos agradeço.
(Sai Iago.)
Nunca vi florentino tão honesto e serviçal.
(Entra Emília.)
EMÍLIA - Bom dia, bom tenente. Estou penalizada
por vos
terdes desavindo com Otelo. Mas em pouco, tudo
acabará bem.
Neste momento o general e a esposa falam nisso,
com ardor
pleiteando ela vossa causa. Mas o Mouro lhe objeta
que a
pessoa que feristes é em Chipre conceituada e de
alta
parentela, aconselhando-o por isso, a demitir-vos a
prudência.
Por outro lado, afirma que vos ama, não tendo
precisão de
outros padrinhos além da afeição própria, e que só
espera
momento azado para reintegrar-vos.
CÁSSIO - Contudo, vos suplico - se julgardes
conveniente ou
possível - a vantagem me obterdes de eu falar a sós
com ela,
numa entrevista curta.
EMÍLIA - Por obséquio, acompanhai-me.
Arranjarei as coisas de
modo que possais com liberdade desafogar o peito.
CÁSSIO - Agradecido vos sou de todo o coração por
isso.
(Saem.)
Cena II
Um quarto no castelo. Entram Otelo, Iago e gentis-
homens.
OTELO - Iago, entrega estas cartas ao piloto, e que
ao Senado
ele me recomende. Nesse entrementes, vou olhar as
obras; vai
ter comigo lá.
IAGO - Perfeitamente, meu bom senhor.
OTELO - Quereis, meus caros nobres, inspecionar
aquela
fortaleza?
GENTIS-HOMENS - Estamos ao dispor de Vossa
Graça.
(Saem.)
Cena III
Diante do castelo. Entram Desdêmona, Cássio e
Emília.
DESDÊMONA - Podeis ficar tranqüilo, meu bom
Cássio; farei por
vós o que me for possível.
EMÍLIA - Sim, bondosa senhora; meu marido se
aborreceu
tanto com isso, como se fosse dele o caso.
DESDÊMONA - Oh! Que homem de valor! Não
tenhais dúvida,
Cássio, que hei de fazer que vós e Otelo vos torneis
bons
amigos como dantes.
CÁSSIO - Generosa senhora, seja a sorte qual for de
Miguel
Cássio, nunca ele há de ser outra coisa, senão tão-
somente
vosso leal servidor.
DESDÊMONA - Tenho certeza disso e vos agradeço.
Amais a
Otelo; há muito o conheceis. Ficai, pois, certo que a
frieza dele
durará somente, enquanto as conveniências o
exigirem.
CÁSSIO - Pois não, senhora; mas as conveniências
poderão ser
morosas e viverem com dieta tão aguada e delicada
ou com tais
circunstâncias se nutrirem, que, ausente eu me
encontrando e
já ocupado meu posto, acabará por olvidar-se meu
general do
meu amor e préstimos.
DESDÊMONA - Que isso não te preocupe. Aqui, em
frente de
Emília te asseguro o antigo posto. Podes ficar
tranqüilo; quando
eu faço um voto de amizade, cumpro-o à risca. Meu
marido não
mais terá sossego; hei de amansá-lo à custa de
vigílias; sua
paciência será posta à prova; escola vai virar o leito
dele;
confessionário, a mesa. Em tudo quanto quiser
fazer, misturarei
a súplica de Cássio. Por tudo isso, Cássio, alegra-te;
porque,
antes de desistir de tua causa há de a vida perder
teu
advogado.
(Entram Iago e Otelo e se conservam a distância.)
EMÍLIA - Senhora, aí vem meu amo.
CÁSSIO - Senhora, aqui despeço-me.
DESDÊMONA - Esperai para ouvir-me defender-
vos.
CÁSSIO - Noutra ocasião, senhora; estou indisposto
e incapaz
de servir meu próprio intuito.
DESDÊMONA - Como quiserdes.
(Sai Cássio.)
IAGO - Isso não me agrada!
OTELO - Como disseste?
IAGO - Nada, meu senhor; ou, talvez... Já não sei.
OTELO - Não era Cássio que estava a conversar com
minha
esposa?
IAGO - Cássio, senhor? Acreditar não posso que ele
como
culpado se esgueirasse, quando vos viu chegar.
OTELO - Creio que era ele.
DESDÊMONA - Oh! meu marido! Estive a conversr
com um
suplicante; que vosso desfavor faz definhar.
OTELO - A quem vos referis?
DESDÊMONA - Oh! a vosso tenente Cássio. Caro
marido, se eu
possuo graça ou força para vos comover,
reconciliai-vos com ele
desde já. Se não se trata de uma pessoa que vos é
afeiçoada
sinceramente, e errou mais por descuido do que
por intenção,
não sei, de fato, reconhecer uma feição honesta.
Peço-te que o
reintegres no seu posto.
OTELO - Daqui não saiu ele agora mesmo?
DESDÊMONA - Sim, e tão abatido que comigo
deixou parte das
mágoas que ainda me compungem. Chama-o, caro!
OTELO - Mais tarde, agora não, cara Desdêmona.
DESDÊMONA - Mas será logo?
OTELO - Logo que possível, minha querida, já que
assim
desejas.
DESDÊMONA - Hoje de noite, à ceia?
OTELO - A noite, não.
DESDÊMONA - Então amanhã cedo, à hora do
almoço?
OTELO - Não estarei em casa amanhã cedo;
almoçarei com os
capitães no forte.
DESDÊMONA - Quando? Amanhã à noite? Ou
terça-feira pela
manhã? ou à noite? ou quarta-feira cedinho? Por
obséquio:
marca a data; contanto que não passe de três dias.
Arrependeu-se, é certo. Aliás, seu erro, segundo o
são juízo - se
não fosse dizerem que na guerra é necessário
castigar os
melhores, para exemplo - é falta que mal pode ser
punida.
Quando poderá vir? Dizei-me, Otelo. Pergunto-me,
admirada, o
que podíeis pedir-me que eu negasse, ou me
deixasse vacilante
a esse ponto. É incompreensível! Miguel Cássio,
esse mesmo
que se achava convosco, quando a corte me fizestes,
e que,
mais de uma vez, se acontecia eu de vós dizer algo
em
desacordo, vos defendia logo: terei tanto trabalho
para
reempossá-lo agora? Acreditai-me: eu poderia
muito...
OTELO - Por favor, não prossigas. Pois que venha,
quando bem
entender; não te recuso coisa nenhuma.
DESDÊMONA - Ora, isso não é graça; é como se eu
pedisse que
pusésseis as luvas ou comêsseis pratos pingues,
não vos
resfriásseis, insistindo muito sobre algo que vos
fosse de
proveito. Não; se vos faço algum pedido, para pôr
vosso amor à
prova, será sempre de muito peso e mui penoso
fardo, de grave
concessão.
OTELO - Não te recuso coisa nenhuma. Mas, por
isso mesmo te
suplico um favor; vais conceder-mo, deixando-me
um
pouquinho a sós comigo.
DESDÊMONA - Eu, recusar-to? Não. Adeus, senhor.
OTELO - Adeus, querida; é só por uns momentos.
DESDÊMONA - Emília, vamos logo. Seja tudo como
vossos
caprichos entenderem. Tal como fordes, hei de
obedecer-vos.
(Sai com Emília.)
OTELO - Adorável criatura! Que minha alma a
apanhe a
perdição, se eu não te amar; e se não te amo, que
este mundo
volte de novo para o caos.
IAGO - Nobre senhor... OTELO - Que queres, Iago?
IAGO -
Acaso Miguel Cássio estava a par de vossos
sentimentos,
quando a corte fizestes à senhora?
OTELO - Desde o início até o fim. Por que o
perguntas?
IAGO - Para satisfazer o pensamento; não há
malícia alguma.
OTELO - Como, Iago! Que pensamento?
IAGO - E que eu pensava que ele então não a
conhecesse.
OTELO - Oh! Conhecia! Muitas vezes serviu de
intermediário
entre nós dois.
IAGO - Realmente?
OTELO - Sim, realmente. Encontras algo, nisso,
censurável? Ele
não é honesto?
IAGO - Honesto, meu senhor?
OTELO - Honesto, sim; honesto.
IAGO - Por tudo o que sei dele...
OTELO - E que é que pensas?
IAGO - Que penso, meu senhor?
OTELO - .Que penso, meu senhor?. Oh! Pelo céu!
Ele me serve
de eco! Só parece que traz no pensamento um
monstro
horrível, horrível por demais, para ser visto.
Alguma coisa deves
ter em mente. Há pouco, quando Cássio se afastava,
Iago,
disseste-me: .Isso não me agrada.. Que é que não te
agrada? E
ao declarar-te que ele de confidente me servira,
quando eu
fazia a corte à minha esposa, exclamaste:
.Realmente?. e
contraíste, fechaste o sobrecenho, parecendo que
trancavas,
então, dentro do cérebro, alguma idéia horrível.
Caso me ames,
revela-me o que pensas.
IAGO - Sabeis, senhor, quanto vos quero bem.
OTELO - Sei disso; e por saber quanto és honesto,
quanta
afeição albergas, e que pesas tuas palavras antes de
insuflarlhes
o sopro animador, mais intranqüilo me deixa o
interrompê-
las. Se essas coisas se passassem com algum sujeito
à-toa,
sem lealdade nem fé, eu as tomara por manhas
habituais. Em
se tratando, porém, de um homem justo, são avisos
e delações
sinceras, escapadas de um coração que dominar
não pode seus
próprios movimentos.
IAGO - Quanto a Cássio, atrevo-me a jurar que ele é
honesto.
OTELO - É também o que eu penso.
IAGO - Deveriam os homens ser somente o que
parecem, ou
então não parecer o que não fossem.
OTELO - Sim, deveriam ser o que parecem.
IAGO - Sendo assim, considero Cássio honesto.
OTELO - Não, não; ocultas algo. Peço-te que me
fales o que
pensas, como as idéias fores ruminando, e as mais
terríveis
digas com palavras mais terríveis também.
IAGO - Senhor, perdoai-me; mas conquanto
obrigado esteja a
todos os atos do dever, sinto-me livre para me
recusar a fazer

algo que dos próprios escravos não se exige. Qual é


o palácio
em que não se introduzem, por vezes, coisas sujas?
E que peito
tão puro pode haver, que não contenha culpáveis
apreensões,
que não se assentem nos tribunais, para emitir
sentenças lado a
lado às idéias mais legítimas?
OTELO - Conspiras, Iago, contra teu amigo se,
julgando-o
ultrajado, seus ouvidos deixas como estrangeiros
ao que
pensas.
IAGO - Suplico-vos, no caso de algo errôneo haver
no que
suspeito - pois confesso que minha natureza se
ressente desse
defeito de aventar maldades e que por vezes meu
ciúme
inventa faltas que não existem - que ora a vossa
sabedoria não
empreste a mínima importância a quem pensa por
maneira tão
defeituosa, nem fundeis vexames no que ele possa
ter
conjeturado por modo tão disperso e pouco firme.
Não fora de
vantagem para vosso repouso e paz de espírito,
nem para
minha sabedoria, honestidade, meus sentimentos
de homens,
conhecerdes o que ora estou pensando.
OTELO - Que pretendes dizer com isso?
IAGO - Um nome imaculado, caro senhor, para a
mulher e o
homem é a melhor jóia da alma. Quem da bolsa me
priva,
rouba-me uma ninharia; é qualquer coisa, nada;
pertenceu-me,
é dele, escravo foi de mil pessoas. Mas quem do
nome honrado
me espolia, me priva de algo que não o enriquece,
mas me
deixa paupérrimo.
OTELO - Pelo céu, saber quero o que ora pensas.
IAGO - Não o poderíeis, mesmo que tivésseis meu
coração nas
mãos, máxime, achando-se ele sob minha guarda.
OTELO - Ah!
IAGO - Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um
monstro de olhos
verdes, que zomba do alimento de que vive. Vive
feliz o esposo
que, enganado, mas ciente do que passa, não dedica
nenhum
afeto a quem lhe causa o ultraje. Mas que minutos
infernais não
conta quem adora e duvida, quem suspeitas
contínuas alimenta
e ama deveras!
OTELO - Oh miséria!
IAGO - Quem com sua pobreza está contente, é rico,
muito
rico; nas riquezas infinitas são como o frio inverno,
para quem
medo tem de ficar pobre. Livrai-me, céu bondoso, e
as almas
todas de minha tribo, de sentir ciúmes!
OTELO - Por quê? Por que tudo isso? Crês, de fato,
que eu
passaria a vida tendo ciúmes e as mudanças da lua
acompanhara 8com suspeitas crescentes? Não; a
dúvida já me
traria a solução do caso. Troca-me por um bode, se
o
andamento de minha alma eu torcer, com base
apenas em
infiadas e vácuas conjeturas, como ora as
apresentas. Não me
deixa enciumado dizerem-me que minha mulher é
linda, que
aprecia a mesa, gosta da sociedade, é de linguagem
mui
desembaraçada, dança, canta e representa bem.
Onde há
virtude, tudo isso mais virtuoso, ainda, se torna.
Não tirarei de
meu modesto mérito o menor medo ou dúvida a
respeito de seu
procedimento; ela tinha olhos e me escolheu. Não,
Iago;
primeiro hei de ver para duvidar. E após a dúvida,
precisarei de
provas; feitas essas, uma só coisa resta: liquidemos
de vez o
amor e o ciúme.
IAGO - Isso me alegra, porque me enseja base
suficiente para
provar-vos com mais franco espírito a afeição e
lealdade que
vos voto. Assim, já que o dever a isso me obriga,
sincero vou
falar, mas não de provas, por enquanto. Vigiai
vossa consorte;
observai bem como ela e Cássio falam; lançai-lhe
olhar assim,
nem enciumado, nem confiante demais. Não
desejara que vossa
natureza leal e nobre vítima viesse a ser por causa,
apenas, da
generosidade que lhe é própria. Vigiai-os bem.
Conheço minha
terra; em Veneza as mulheres não se correm de
confessar ao
céu as leviandades que ocultam dos maridos. Para
todas a
virtude consiste apenas nisto: Não deixes de fazer,
mas em
segredo.
OTELO - Crês que seja assim mesmo?
IAGO - Ao pai ela enganou com desposar-vos; ao
fingir que
tremia à vossa vista, mais vos era afeiçoada.
OTELO - Isso é verdade.
IAGO - Tirai a conclusão: uma donzela que finge a
ponto de
deixar os olhos do pai como vendados, obrigando-o
a achar que
era feitiço... Mas confesso-me passível de censura.
Humildemente vos peço me perdoeis tanta
amizade.
OTELO - Obrigado te fico para sempre.
IAGO - Percebo que ficastes abalado com o que vos
disse.
OTELO - Nada! Nem um pouco!
IAGO - Em verdade, receio-o. Mas espero que
considerareis
tudo o que eu disse como oriundo, tão-só, do meu
afeto. Mas
estais comovido. Instantemente vos peço não tirar
de meu
discurso forçadas conclusões, nem distendê-lo
senão até à
suspeita.
OTELO - Apenas isso.
IAGO - Se tal fizésseis, meu senhor, tiráreis de
minha fala
conseqüências crassas, que não me obriga a mente.
Considero
Cássio meu digno amigo. Porém vejo, senhor,
quanto abalado...
OTELO - Nada disso! Mas não posso deixar de ter
Desdêmona
como muito virtuosa.
IAGO - Vida longa tenha ela assim, e vós também,
guardando
semelhante certeza.
OTELO - No entretanto, como pode transviar-se a
natureza...
IAGO - Sim, esse é o ponto. Para falar franco
convosco:
recusado haver propostas de casamento de sua
própria terra,
estado e parentesco, em que se achara conforme
em tudo a
própria natureza... Bah! poder-se-ia farejar no caso
uma
vontade mais do que corrupta, instintos
pervertidos,
pensamentos contrários à natura. Mas perdoai-me;
não avanço
essas coisas, tendo em vista a ela precisamente,
muito embora
chegue a recear que seus desejos possam vir dar de
encontro a
um juízo mais sadio e com seus compatriotas
confrontar-vos,
levando-a, porventura, a arrepender-se.
OTELO - Adeus, adeus; se de algo mais souberes,
não deixes de
contar-mo. Dá à tua esposa a incumbência de espiá-
la. Deixame,
Iago.
IAGO - Despeço-me, senhor.
(Retirando-se.)
OTELO - Por que casei? Esta criatura honesta sabe
mais, muito
mais do que revela.
IAGO (retomando) - Desejara, senhor, poder pedir-
vos que não
pensásseis mais sobre esse assunto. Confiai-o ao
tempo.
Embora Cássio deva ser reintegrado em seu antigo
posto - em
que, em verdade, ele se desempenha com muita
habilidade - no
entretanto se mantê-lo quisésseis afastado mais
algum tempo,
poderíeis logo conhecer o indivíduo e seus
processos. Notai se
vossa esposa pede a volta dele com insistência
muito incômoda.
Já fora muita coisa. Nesse em meio, deixai-me
parecer
exagerado nos meus receios - como tenho causas
para pensar
que o seja - e inteiramente livre a deixai; é o que a
Vossa Honra
eu peço.
OTELO - Serei discreto em tudo.
IAGO - Mais uma vez despeço-me.
(Sai.)
OTELO - Esse rapaz é a própria honestidade; de
espírito
experiente, os móveis todos discemir sabe das
ações humanas:
Se ela se revelar falcão rebelde, ainda que seus
atilhos fossem
fibras do próprio coração que aqui me bate,
assobiarei,
soltando-a, para que alce vôo a favor do vento e
faça presas
como a sorte o ensejar. Porque sou negro e de fala
melíflua não
disponho qual petimetre, ou porque já me encontro
no declive
da idade - mas não tanto - ela se foi, havendo-me
enganado.
Meu consolo vai ser agora, apenas, ter aversão por
ela. Oh!
Maldição do casamento! Ser-nos facultado nossas
chamar a
essas criaturas frágeis e não seus apetites!
Preferira ser um
sapo e viver só dos vapores de um cárcere, a ceder
uma
partícula da coisa amada para que outrem a use.
Serem os
grandes sempre flagelados por ter quinhão menor
que o dos
pequenos, é coisa inevitável como a morte. Esta
peste farpada
já se achava para nós destinada ao nascimento. Mas
vede que
ela chega! Se for falsa, é que o céu de si próprio está
zombando.
(Entram Desdêmona e Emília.)
DESDÊMONA - Então, querido Otelo? A ceia e os
nobres
insulanos que havíeis convidado estão à vossa
espera.
OTELO - Sou passível de censura.
DESDÊMONA - Por que falais tão fraco? Sentis-vos
indisposto?
OTELO - Dói-me a fronte.
DESDÊMONA - É que tendes velado todo o tempo.
Há de
passar; deixai que vos aperte bem a cabeça e heis
de sarar
numa hora.
OTELO - É por demais pequeno vosso lenço.
(Desdêmona deixa cair o lenço.)
Deixai! Deixai! Vamos; irei convosco.
(Saem Otelo e Desdêrnona.)
EMÍLIA - Fico contente por haver achado
justamente este lenço,
que é a primeira lembrança a ela ofertada pelo
Mouro. Meu
estranho marido umas cem vezes me pediu que o
roubasse.
Mas tão grato para ela é o mimo - por pedir-lhe o
esposo que o
conservasse sempre - que a toda hora o traz
consigo, e o beija,
e com ele fala. Mandarei que me tirem uma cópia e
darei este a
Iago. Qual a sua intenção, não sei dizê-lo; mas seus
caprichos
me despertam zelo.
(Entra Iago.)
IAGO - Que fazeis aqui só?
EMÍLIA - Não vos zangueis; tenho um presente a
dar-vos.
IAGO - Um presente? Coisa é muito comum...
EMÍLIA - Ah!
IAGO - ... ter uma mulher louca.
EMÍLIA - Oh! nada mais? Então, que me daríeis por
este lenço
aqui?
IAGO - Como! Que lenço?
EMÍLIA - Que lenço? Ora, o que o Mouro deu como
primeiro
mimo de seu amor, e me mandastes tantas vezes
roubar.
IAGO - Dela o tiraste?
EMÍLIA - Não; por descuido ela o deixou cair.
Aproveitando o
ensejo, estando eu perto, levantei-o do chão. Ei-lo;
aqui o
vedes.
IAGO - És um rapariga e tanto! Dá-mo.
EMÍLIA - Que pretendeis fazer com ele, para que
me pedísseis
com tamanho empenho que o escamoteasse?
IAGO - E que vos importa isso?
(Arrebata-lhe o lenço.)
EMÍLIA - Se não for para alguma coisa boa,
restituí-mo. Coitada
da senhora! Ficará louca ao dar por falta dele.
IAGO - Finge que nada sabes. Tenho emprego para
ele. Podes ir.
(Sai Emília.)
Dentro do quarto de Cássio jogarei o lenço, para
que ele o
venha a encontrar. As ninharias leves com o ar,
para quem tem
ciúmes, são verdades tão firmes como trechos da
sagrada
Escritura. Disto pode sair alguma coisa. Meu
veneno já produziu
alterações no Mouro. Certos conceitos são por
natureza
verdadeiros venenos que, de inicio, não provocam
nenhuma
repugnância, mas logo que no sangue atuam,
queimam como
mina de enxofre. Não me engano. Ei-lo que chega!
(Entra Otelo.)

Agora, nem papoula, mandrágora, nem todos os


xaropes
sonolentos do mundo poderiam dar-te de novo o
doce sono de
ontem.
OTELO - Ah! Ah! Ela, enganar-me?
IAGO - Então, meu general? Parai com isso.
OTELO - Retira-te! Retira-te! Puseste-me a tratos.
Pelo céu, é
preferível ser enganado muito, a saber pouco do
que se passa.
IAGO - Como, meu senhor?
OTELO - Que percepção eu tinha de suas horas
roubadas de
luxúria? Não sabia de nada, não pensava em coisa
alguma,
nada me compungia. A noite toda dormia bem;
livre me achava
e alegre. Não encontrava em sua boca os beijos de
Cássio.
Quem não dá por falta nunca de algo que lhe
tirassem, continue
na ignorância, pois nunca foi roubado.
IAGO - Entristece-me ouvir-vos.
OTELO - Feliz teria sido, muito embora todo o
campo, inclusive
a recovagem, lhe tivesse provado o doce corpo, sem
que eu
conhecimento houvesse disso. Oh! mas agora,
adeus
tranqüilidade de espírito! Oh! Adeus,
contentamento! Para
sempre. Adeus, tropas de penacho, exércitos
altivos, que em
virtude mudam toda ambição! Adeus! Adeus!
Adeus cavalos
relinchantes, trompas belicosas, tambores
animosos, pífaros
estrindentes, reais bandeiras, tudo o que o orgulho
constitui, a
pompa e a aparelhagem da gloriosa guerra! E a vós
também,
adeus, mortais engenhos, cujas rudes gargantas os
estrondos
terrorantes imitam do alto Jove: a obra de Otelo já
não tem
sentido.
IAGO - É possível, senhor?
OTELO - Infame, dá-me a prova de que minha
mulher é
prostituta. Fica certo: quero prova evidente; ou,
pelo mérito de
minha alma imortal, melhor te fora teres nascido
cão que
responderes agora à minha cólera desperta.
IAGO - Chegamos a esse ponto?
OTELO - Quero prova visível ou, no mínimo, uma
coisa que não
tenha nem gancho nem presilha onde a dúvida
possa pendurarse.
Se não, ai de tua vida!
IAGO - Muito nobre senhor...
OTELO - Se a caluniaste e me torturas, rezar já não
precisas;
abandona todo o remorso; sobre o horror empilha
novos
horrores; com teus crimes faze chover o céu,
estarrecer a terra:
não acrescentarás mais nada à tua condenação que
aquilo
sobrepuje.
IAGO - Oh Graça! Céu, ampara-me! Sois homem?
Tendes alma
e sentidos! Deus vos guarde. Tirai-me o posto. Ó
desgraçado
idiota, teres vivido até hoje, para veres tachar de
vício tua
honestidade! Mundo monstruoso! Toma nota,
mundo! E
perigoso ser sincero e honesto. Agradeço a lição;
mas
doravante renuncio à amizade, pois ofensa pode
causar quem
nisso menos pensa.
OTELO - Não, fica; deverias ser honesto.
IAGO - Não; devera ser sábio. A honestidade, como
tolo, ao
patrão só dá prejuízo.
OTELO - Pelo mundo! Ora penso que é virtuosa, ora
penso que
é infiel; sincero te acho, e, ao mesmo tempo, falso.
Quero
provas. O nome dela, que era tão singelo como o
rosto de
Diana, ora se encontra como meu próprio rosto:
negro e sujo.
Se cordas ainda houver, facas, veneno, fogo ou
água asfixiante,
então não hei de suportar esse insulto. Oh! se eu
tivesse uma
prova qualquer!
IAGO - Meu senhor, vejo que a paixão vos corrói.
Arrependido
me sinto por ter sido a causa disso. Quereríeis a
prova?
OTELO - Quereria, não; quero!
IAGO - Podeis tê-la. De que modo? Como haveis de
vos dar por
convencido? Aberta a boca, ficareis no posto de
espectador
estúpido, no instante em que ela for coberta?
OTELO - Morte e inferno.
IAGO - Quero crer que seria uma tarefa assaz
dificultosa
convencê-los a se deixarem ver sob esse aspecto. O
demo que
os carregue, se possível for a olhar de mortais,
tirante o deles,
vê-los deitados juntos. Que me resta para dizer?
Que provas
posso dar-vos? Não vos será possível ver tal coisa,
embora
ardentes fossem como bodes, quentes como
macacos,
luxuriosos como lobos no cio e tão grosseiros como
o ser mais
alvar, quando embriagado. Contudo, vos direi, se
alguns
indícios, circunstâncias de peso, que conduzem
diretamente à
porta da verdade vos deixarem convicto, haveis de
tê-las.
OTELO - Dá-me uma prova real de que ela é falsa.
IAGO - Não me agrada esse ofício. Mas já que fui
tão longe
nesse caso, levado pela honestidade estúpida e a
amizade, tãos
ó, não me detenho. Passei com Cássio uma das
noites últimas;
mas por estar sentindo dor de dentes, não podia
dormir. Ora, há
pessoas de alma tão largada que no sono revelam
seus
negócios. Cássio é dos tais; pois estando a dormir,
ouvi quando
ele murmurava: .Desdêmona querida, sejamos
cautelosos,
encubramos bem nosso amor!. Então, senhor,
pegando-me das
mãos e as apertando, suspirava: .Oh criatura
adorável!. e
beijava-me com tamanho furor, como se os beijos
pela raiz
colhesse de meus lábios. Depois, a perna colocou
por cima de
minha coxa, suspirou, beijou-me de novo e
disse: .Oh fado
amaldiçoado, que te foi entregar para esse Mouro!.
OTELO - Oh! Monstruoso! Monstruoso!
IAGO - Mas tudo isso era somente sonho.
OTELO - Sim, mas sonho que experiências passadas
nos
inculcam; suspeita atroz, embora só de sonhos.
IAGO - E que podem deixar mais consistentes
outras provas
que tênues ainda se achem.
OTELO - Vou deixá-la em pedaços.
IAGO - Sede cauto; ainda não vimos nada; é bem
possível que
seja honesta. Ora dizei-me apenas o seguinte: não
vistes
porventura na mão de vossa esposa, algumas vezes,
um lenço
com bordados de morangos?
OTELO - Dei-lhe um assim; foi meu primeiro mimo.
IAGO - Ignorava esse fato; porém tenho certeza
plena de ter
hoje visto Cássio passar na barba um lenço desses,
que foi de
vossa esposa. OTELO - Se era o mesmo...
IAGO - O mesmo, ou outro qualquer dos lenços
dela, é prova
muito forte, ao lado de outras.
OTELO - Oh! Se a escrava tivesse dez mil vidas!
Uma só será
pouco, muito pouco, para minha vingança. Agora
vejo que tudo
era verdade.
IAGO, olha aqui: sopro assim para o céu meu amor
néscio; já
não existe. Negra vingança, surge do oco inferno!
Passa tua
coroa, ó amor, e o trono do coração para o ódio
mais ferino!
Intumesce-te, peito, com tua carga de línguas de
serpentes!
IAGO - Ficai calmo.
OTELO - Oh! Sangue! sangue! sangue!
IAGO -Ficai calmo, torno a dizer; podeis mudar de
idéia.
OTELO - Jamais, Iago. Tal como o Ponto Euxino,
cuja corrente
fria e o forte curso não se ressentem do refluxo
nunca, e
seguem sem parar para a Propôntida, para o
Helesponto: assim
meus pensamentos sanguinários, com passos
furibundos
avançam sempre, sem jamais olharem para trás
nem refluírem
para o amor, até que uma vingança avassalante e
ampla os
envolva e absorva.
(Ajoelhando-se.)
Por aquele céu de mármore, empresto a essas
palavras a
gravidade de um sagrado voto.
IAGO - Não vos levanteis ainda.
(Ajoelha-se.)
Testemunhas me sede, luzes sempiternas do alto;
vós, também,
elementos, que por todas as partes nos cingis: Iago
dedica as
mãos, o coração e todo o espírito ao ultrajado
Otelo. Dando ele
ordens, por mais cruéis que sejam, será caso, para
mim, de
consciência, obedecer-lhe.
OTELO - Agradeço teu voto, não com termos
formais, apenas,
mas com sentimento de gratidão, estando decidido
a recorrer já
aos teus serviços: nestes três dias quero que me
digam que
Cássio já morreu.
IAGO - Morto está meu amigo; será feita vossa
vontade. Mas
poupai Desdêmona.
OTELO - Que baixe para o inferno essa lasciva
prostituta! Que
baixe para o inferno! Fica à parte comigo; retirar-
me desejo,
para refletir nalguma modalidade suave de
extermínio para esse
belo diabo. Doravante serás o meu tenente.
IAGO - E eu me declaro vosso por toda a vida.
(Saem.)
Cena IV
Diante do castelo. Entram Desdêmona, Emília e o
bobo.
DESDÊMONA - Maroto, por acaso sabes onde
pousa o tenente
Cássio?
BOBO - Não me atrevo a dizer que ele pouse em
qualquer
parte.
DESDÊMONA - Por quê, homem?
BOBO - Por ser ele soldado; dizer que um soldado
pousa, é
arriscar-se a ser apunhalado.
DESDÊMONA - Vamos, dize, maroto! Onde ele
mora?
BOBO - Se eu vos dissesse onde ele mora, era o
mesmo que
dizer onde iria pôr o pescoço.
DESDÊMONA - Haverá quem possa entender isso?
BOBO - Não sei onde ele mora; se lhe atribuísse
qualquer
morada e vos dissesse que ele se deita neste ou
naquele lugar,
seria pôr em risco o próprio pescoço.
DESDÊMONA - E não poderias informar-te a esse
respeito?
BOBO - Vou catequizar o mundo inteiro a respeito
dele, isto é,
apresentar perguntas e responder a elas.
DESDÊMONA - Vai procurá-lo e dizer-lhe que
venha até aqui.
Participa-lhe que eu já deixei meu marido inclinado
a seu favor,
e que espero termine tudo bem. BOBO -
Semelhante
incumbência cai dentro do âmbito do
entendimento humano;
por isso vou tentá-la.
(Sai.)
DESDÉMONA - Onde eu deixei aquele lenço,
Emília?
EMILLA - Não sei, minha senhora.
DESDÊMONA - Podes crer: preferira ter perdido
minha bolsa,
repleta de cruzados. Não fosse ter meu pobre
Mouro o espírito
estreme de suspeita e das escórias das criaturas
ciumentas,
essa perda poderia inspirar-lhe pensamentos de
todo maus.
EMÍLIA - Ele não é ciumento?
DESDÊMONA - Quem? Ele? Ao vir ao mundo, estou
bem certa, o
sol lhe retirou do sangue todos os humores do
ciúme.
EMÍLIA - Ei-lo que chega!
DESDÊMONA - Não o deixarei, enquanto no seu
posto não tiver
sido Cássio reintegrado.
(Entra Otelo.)
Como passais, senhor?
OTELO - Dai-me essa mão. Úmida está, senhora.
DESDÊMONA - Até este instante, não conheceu
velhice nem
cuidados.
OTELO - Isso revela desperdício e, em tudo,
coração liberal.
Umida e quente!
Esses sinais indicam que é preciso cercear a
liberdade e, assim,
impor-vos jejuns e rezas, pios exercícios e
mortificações, pois
um demônio suarento aqui demora, que costuma
rebelar-se. A
mão tendes muito boa, muito franca, em verdade.
DESDÊMONA - A vós assiste razão para afirmá-lo,
pois foi ela
que de meu coração voz fez presente.
OTELO - Mão liberal. Os corações antigos davam
mãos; mas a
nova ciência heráldica de coração carece; só tem
mãos.
DESDÊMONA - Sobre isso nada entendo. Mas
falemos outra vez
da promessa.
OTELO - Que promessa, minha pomba?
DESDÊMONA - Mandei recado a Cássio, para vos
vir falar.
OTELO - Estou sofrendo de um catarro importuno.
Por obséquio,
empresta-me teu lenço.
DESDÊMONA - Ei-lo, senhor.
OTELO - Aquele que vos dei.
DESDÊMONA - Não o tenho aqui.
OTELO - Não?
DESDÊMONA - Realmente, senhor.
OTELO - É grande falta. Esse lenço foi dado a
minha mãe por
uma egípcia. Era uma feiticeira que podia ler,
quase, os
pensamentos das pessoas. Disse-lhe, então, que
enquanto o
conservasse, grata a meu pai seria, e ao amor dela
preso o teria
sempre. Mas no caso de perdê-lo ou presente fazer
dele, os
olhos de meu pai com repugnância passariam a vê-
la e seu
espírito correria após outras fantasias. Ao morrer,
minha mãe
mo deu de herança, tendo recomendado que, no
instante em
que o destino me trouxesse esposa, com ele a
presenteasse, o
que já fiz. Tomai cuidado, pois, e o tende sempre
como jóia tão
cara quanto os olhos. Perdê-lo ou dá-lo a alguém
fora desgraça
de proporções incríveis.
DESDÊMONA - É possível?
OTELO - É como estou dizendo. Seu tecido contém
virtude
mágica; por uma sibila que na terra já contara do
sol duzentas
voltas foi bordado durante acessos de furor
profético. De
vermes consagrados viera o fio, que tinto foi no
suco retirado de
corações de virgens e habilmente conservado até
então.
DESDÊMONA - Realmente! É certo?
OTELO - Mais do que certo. Assim, tomai cuidado.
DESDÊMONA - Quem dera, então, que nunca o
houvesse visto!
OTELO - Oh! Por quê?
DESDÊMONA - Por que causa me falais assim
brusco e violento?
OTELO - Foi perdido? Como Dizei-me: não podeis
achá-lo?
DESDÊMONA - O céu nos abençoe.
OTELO - Que disseste?
DESDÊMONA - Perdido não se encontra. Mas, no
caso...
OTELO - Como?
DESDÊMONA - Repito: não está perdido.
OTELO - Então trazei-o aqui; desejo vê-lo.
DESDÊMONA - Ora, senhor; faria, se o quisesse;
mas não
agora. Vejo que isso é um meio para que eu não vos
faça meu
pedido. Por obséquio, chamai de novo Cássio.
OTELO - Ide buscar o lenço; meu espírito pressente
algo
funesto.
DESDÊMONA - Vamos, vamos; não achareis
ninguém mais
competente.
OTELO - O lenço!
DESDÊMONA - Por favor, falai de Cássio.
OTELO - O lenço!
DESDÊMONA - Uma pessoa que durante toda a
vida fundou sua
fortuna. sobre vossa amizade e sempre esteve nos
perigos
convosco.
OTELO - O lenço, digo!
DESDÊMONA - Sois digno de censura.
OTELO - Fora! Fora!,
(Sai.)
EMÍLIA - Então este homem não será ciumento?
DESDÊMONA - Nunca o vi assim antes. É certeza
conter aquele
lenço algo de extraordinário. Desolada me sinto
com sua perda.
EMÍLIA - Nem dois anos são suficientes para
conhecermos os
homens. São estômago, somente, e nós, os
alimentos. Todos
eles nos devoram com ânsia; mas, repletos, nos
vomitam. Oh!
Cássio e meu marido!
(Entram Iago e Cássio.)
IAGO - Não há outro caminho senão esse ela há de
consegui-lo.
Oh! Quanta sorte! Insisti junto dela.
DESDÊMONA - Então, bom Cássio, que há de novo
convosco?
CÁSSIO - Ainda e sempre, minha senhora, aquele
meu pedido.
Peço-vos que, por vossa interferência virtuosa, eu
existir outra
vez possa, voltando a ser um membro da amizade
de quem
com todo o coração venero. Basta de dilações; se
minha falta
tão mortal se afigura, que os serviços passados, as
tristezas do
presente e a determinação de comportar-me
melhor para o
futuro não conseguem devolver-me a amizade de
meu chefe,
que ao menos disso eu possa ter certeza. Já me
fizera bem,
pois assumira alegria forçada e me dispunha a
aguardar o que a
sorte me aprestasse por vias diferentes.
DESDÊMONA - Oh, três vezes amável Cássio!
Minha
intercessão, neste momento, está desafinada. Otelo
está
mudado; não me fora fácil reconhecê-lo, se o
caráter alterado
tivesse como o rosto. Tão certo como eu desejar a
ajuda dos
espíritos do alto, vossa causa foi por mim
defendida com
carinho, chegando eu, até mesmo, a transformar-
me no alvo do
seu desgosto pela minha franqueza de falar. E
necessário
mostrardes-vos paciente. Farei quanto me for
possível; farei
mais, ainda, do que me atreveria em causa própria.
Que isso
vos satisfaça por enquanto.
IAGO - O general acaso está irritado?
EMÍLIA - Saiu daqui agora mesmo e, certo, num
estado de
estranha agitação. IAGO - Ele, irritado? É incrível.
Muitas vezes,
muitas, vi o canhão lançar seus homens pelos ares
e, como
atroz demônio, seu próprio irmão dos braços
arrancar-lhe.
Mostrar-se ele irritado? Alguma coisa de grave
aconteceu. Vou
procurá-lo. Se está irritado, é que há motivo sério.
DESDÊMONA - Faze isso, por obséquio.
(Sai Iago.)
Algum negócio, certamente, de Estado, ou de
Veneza, ou
conluio, talvez, aqui de Chipre turvou-lhe o claro
espírito. Em
tais casos, da natureza humana é muito próprio
irritar-se por
coisas despiciendas, quando se ocupa com razões
de peso. É
sempre assim. Quando nos dói o dedo, aos
membros sãos ele
transmite o incômodo. Não pensemos que os
homens sejam
deuses; esperar deles não podemos sempre
tratamento de
noivos. Mas tens muita razão, Emília, para
censurar-me, pois
me portei como guerreira injusta, na alma o
acusando de ter
sido duro; mas vejo que peitei as testemunhas e o
acusei
falsamente.
EMÍLIA - Praza aos céus que só sejam, mesmo,
assuntos de
Estado, como credes, não caprichos nem veneta de
ciúme, que
vos digam respeito mui de perto.
DESDÊMONA - Oh dia infausto! Nunca lhe dei
motivo para
tanto.
EMÍLIA - Mas os ciumentos não atendem a isso;
não precisam
de causa para o ciúme: têm ciúme, nada mais. O
ciúme é
monstro que se gera em si mesmo e de si nasce.
DESDÊMONA - Que o céu proteja o espírito de
Otelo de
semelhante monstro.
EMÍLIA - Amém, senhora.
DESDÊMONA - Vou procurá-lo. Neste em meio,
Cássio, ficai
passeando aqui. Se o achar disposto, pleitearei
vossa causa,
sem recurso nenhum deixar de lado.
CÁSSIO - Agradecido vos fico humildemente.
(Saem Desdêmona e Emília.)
(Entra Bianca.) BIANCA - Bom dia, amigo Cássio.
CÁSSIO - Que negócios vos tiraram de casa? Como
passa minha
formosa Bianca? Francamente, caro amor, ia agora
procurarvos.
BIANCA - E a vossa casa eu também ia, Cássio. Uma
semana
ausente? Sete dias e sete noites? Cento e sessenta
horas com
mais oito de quebra? E horas passadas longe do
amante, que
mais longas são cento e sessenta vezes do que as
horas do
mostrador. Oh cálculo penoso!
CÁSSIO - Bianca, perdão. Todo esse tempo estive
premido por
preocupações de chumbo. Mas quando eu dispuser
de alguma
folga, riscarei essas dívidas da ausência. Querida
Bianca,
(Dando-lhe o lenço de Desdêmona.)
tira cópia disto.
BIANCA - De onde veio isto, Cássio? Algum
presente, decerto,
de outra amiga. Agora entendo o motivo da
ausência tão
sentida. Chegamos a esse ponto? Muito bem.
CÁSSIO - Saí daí, mulher! Jogai aos dentes do diabo
vossas
infernais suspeitas, pois dele as recebestes. Só
ficastes com
ciúme por pensardes que é lembrança de alguma
amiga. Podeis
crer-me, Bianca, juro que não.
BIANCA - Então, a quem pertence?
CÁSSIO - Não sei, querida; achei-o no meu quarto.
Mas gostei
do trabalho; e antes que o venham reclamar - o que
certo não
demora - quero mandar copiar esse desenho. Levai-
o, pois,
deixando-me sozinho.
BIANCA - Deixar-vos? Para quê?
CÁSSIO - Espero aqui o general e penso de
nenhuma vantagem
ser por ele visto na situação de amaridado.
BIANCA - E o motivo, senhor?
CÁSSIO - Não é por falta de amor da minha parte.
BIANCA - É só por falta de amor da vossa parte. Por
obséquio,
acompanhai-me um pouco e declarai-me se ainda
vos verei
antes da noite.
CÁSSIO - Não posso acompanhar-vos muito longe,
pois neste
ponto o espero. Será logo.
BIANCA - Que assim seja; terei de conformar-me.
(Saem.)
ATO IV
Cena I
Chipre. Diante do Castelo. Entram Otelo e Iago.
IAGO - Será crível tal coisa?
OTELO - Crível, Iago?
IAGO - Beijar às escondidas!
OTELO - Foram beijos proibidos.
IAGO - Ou ficar uma hora ou duas nua no leito, o
lado de um
amigo, sem ruins intenções.
OTELO - Nua no leito, sem ruins intenções?
Hipocrisia fora, com
relação ao próprio diabo. Os que assim fazem com
tenções
virtuosas, a virtude lhes tenta o diabo, enquanto
tentam eles o
céu.
IAGO - Se nada fazem é um pecado venial. Porém
no caso de
eu dar um lenço à minha esposa...
OTELO - E então?
IAGO - Ora, senhor; seria dela o lenço. E, dela
sendo, penso
que podia dá-lo a quem entendesse.
OTELO - Da própria honra ela é também guardiã.
Por isso pode
fazer presente dela?
IAGO - A honra é uma essência que não cai na vista.
Muitas
vezes a tem quem nunca a teve. Mas quanto ao
lenço...
OTELO - Pelo céu! Mui de grado me esquecera de
semelhante
coisa. Ias dizendo - Oh! à memória me retorna o
assunto como
o corvo aos lugares emprestados. gritando a todos -
que ele
tem meu lenço?
IAGO - Bem; e depois?.
OTELO - É coisa muito grave.
IAGO - E que se dera se eu tivesse dito que ele vos
ultrajara, ou
que falara por aí fora, como certos biltres que -
tendo
conquistado alguma dama, ou por impertinência
nos assaltos,
ou com o consentimento dela própria. depois de
convencida -
de indiscretos falam por toda a parte.
OTELO - E ele, disse algo?
IAGO - Sim, senhor. Mas podeis ter a certeza de que
não disse
nada que não possa negar sob juramento.
OTELO - Que disse ele?
IAGO - Oh céu! Que tinham... Que sei eu?... Que
tinha...
OTELO - Quê? Quê? Falai.
IAGO - Deitado...
OTELO - Quê! Com ela?
IAGO - Com ela ou em cima dela, o que quiserdes.
OTELO - Deitar-se ele com ela! Em cima dela!
Dizemos que
alguém se deita por cima dela, quando a está
cobrindo. Deitarse
ele com ela! Oh! é asqueroso! O lenço... a
confissão... o
lenço! Confessar, e, pelo trabalho: forca! Primeiro,
a forca;
depois a confissão. Estou tremendo. A natureza não
se deixaria
abafar por sentimentos tão escuros, se não se
tratasse de
alguma advertência. Não me deixo abalar assim por
meias
palavras. Ora! Narizes, orelhas, lábios... Será
possível?
Confessai!... O lenço... Oh, diabo!
(Cai com um ataque.)
IAGO - Trabalha, meu veneno! Trabalha! Desse
modo é que
pegamos os idiotas crédulos. E é assim, também,
que muitas
damas dignas e castas, sem senão, ficam faladas.
Olá, senhor!
Senhor, repito! Otelo!
(Entra Cássio.)
então, Cássio?
CÁSSIO - Que é que houve? -
IAGO - É um ataque de epilepsia que teve o general.
Este é o
segundo, pois já teve um ontem.
CÁSSIO - Friccionai-o nas têmporas.
IAGO - Deixemo-lo. Deve seguir seu curso a
letargia, sem
atropelos. Do contrário, em breve, com a boca
ficará cheia de
espuma, caindo, após, em furioso acesso de
loucura. Ora vede:
já se mexe. Ficai de lado por alguns instantes. Ele
vai despertar.
Após sua ida, quero falar-vos de um assunto grave.
(Sai Cássio.)
Como então, general! Não machucastes a cabeça?
OTELO - De mim estás zombando?
IAGO - Eu, zombando de vós? Não, pelo céu. Como
homem,
suportai vosso destino.
OTELO - O homem de chifres é animal, é monstro.
IAGO - Então numa cidade populosa há muitos
desses animais e
muitos monstros civilizados.
OTELO - Ele próprio o contou?
IAGO - Meu bom senhor, sede homem e lembrai-
vos de que
todo tipo de barba, quando sob a canga, pode puxar
convosco o
mesmo carro. Há no mundo milhões de homens
que dormem à
noite em camas de outrem, cujos donos juram que
são
unicamente suas. Vosso caso é melhor. Oh! é ironia
do inferno,
arqui-sarcasmo do demônio beijar uma rameira em
leito limpo e
imaginá-la casta. Não; preciso saber o que há;
sabendo o que
sou mesmo, sei o que vai ser dela.
OTELO - Tens razão; é assim mesmo.
IAGO - Ficai um pouco à parte; numa liça paciente
confinai-vos.
Enquanto vos acháveis dominado por vossa grande
dor - paixão
imprópria de um homem como vós - Cássio chegou.
Mandei-o
embora, dando uma desculpa para vosso desmaio,
mas lhe
disse que aqui voltasse para conversarmos, no que
ele
concordou. Ficai de espia e observai seus remoques
e
sarcasmos, o notável desdém que se lhe expande do
rosto todo,
pois pretendo agora levá-lo a relatar-me outra vez
tudo: como,
onde, de que modo, há quanto tempo, quantas
vezes deitou-se
e há de deitar-se com vossa esposa. Os gestos
observai-lhe.
Mas é preciso calma. Do contrário, direi que estais
colérico e
não tendes de homem coisa nenhuma.
OTELO - Ouves-me, Iago? Vou mostrar-me
astucioso em minha
calma, porém - estás me ouvindo? - sanguinário.
IAGO - Não será mal; mas tudo tem seu tempo. Não
quereis
afastar-vos?
(Otelo se coloca à parte.)
Bem; agora vou conversar com Cássio sobre
Bianca, rapariga
que vende seus favores para comprar, com a venda,
pão e
roupa. É doidinha por Cássio; mas é sina das
prostitutas
enganarem muitos para por um, também, serem
logradas.
Quando ouve falar dela, quase estoura de tanto rir.
A postos; aí
vem ele.
(Volta Cássio.)
Com isso Otelo vai ficar furioso; seus ciúmes
ignorantes hão de
errôneo sentido dar aos gestos e sorrisos do pobre
Cássio e à
sua leviandade. - Então, tenente, como estais
agora?
CÁSSIO - Tanto pior, por me dardes esse título,
cuja falta me
mata.
lAGO - Com Desdêmona falai sobre isso, que
obtereis o posto.
(Abaixando a voz.)
Se de Bianca o pedido dependesse, tudo se
arranjaria num
momento.
CÁSSIO - Ah! Coitadinha dela!
OTELO (à parte) - Vede! Vede! Já começou a rir.
lAGO - Mulher alguma já vi que tanto amor tivesse
a um
homem, como ela vos dedica.
CÁSSIO - Pobre diaba! Creio que ela, realmente, me
idolatra.
lAGO - Escuta, Cássio.
OTELO (à parte) - Agora ele o importuna, para que
a história
conte por miúdo. Continuai. Muito bem!
lAGO - Ela assoalha por aí fora que ides desposá-la.
Haverá
sombra de verdade nisso?
CÁSSIO - Ah ah, ah!
OTELO (à parte) - Romano, estás triunfando? Estás
triunfando?
CÁSSIO - Eu, casar-me com ela? Uma mulher
pública? Por
favor, sede mais complacente com meu espírito,
não
imaginando que ele esteja tão depravado. Ah, ah,
ah!
OTELO (à parte) - Assim, assim ri quem está
ganhando.
lAGO - É o que vos digo: corre por aí o boato de que
ides
desposá-la.
CÁSSIO - Por favor, deixai de brincadeira.
lAGO - Quero ser um biltre, se não estiver dizendo a
verdade.
OTELO -(à parte) - Já me pusestes o ferrete? Muito
bem.
CÁSSIO - E aquela macaca mesma que anda
dizendo isso. A
idéia de que eu possa desposá-la nasceu de sua
própria ilusão,
não de qualquer promessa de minha parte.
OTELO (à parte) - Iago me fez um sinal; vai
começar a história.
CÁSSIO - Neste momento ela esteve aqui; persegue-
me por
toda arte.Há dias eu estava na praia a conversar
com certos
venezianos, quando, de repente, surge essa
coisinha e me salta
ao pescoço, deste modo...
OTELO (à parte) - A suspirar: .Meu querido Cássio!.
O gesto
expressivo.
CÁSSIO - Ela se pendura em mim, gruda-me
comigo e chora e
me puxa e me repele deste modo... Ah, ah, ah!
OTELO (à parte) - Ele está contando agora como ela
o puxou
para o meu quarto. Oh! Estou vendo vosso nariz,
mas não sei
ainda para que cão hei de atirá-lo. CÁSSIO - Preciso
afastar-me
dela.
IAGO - Santo Deus! Ei-la que vem chegando!
CÁSSIO - E uma outra doninha e, ainda por cima,
perfumada.
(Entra Bíanca.)
Que pretendeis comigo, para me perseguirdes
desse modo?
BIANCA - Que o diabo e sua mãe vos persigam! Que
pretendeis
fazer com aquele lenço que me destes há pouco?
Fui uma
grande tonta em aceitá-lo. E para eu tirar uma
cópia, pois não?
E terei de acreditar que o achastes em vosso
quarto, sem saber
quem o deixara ali... E presente de alguma
sirigaita, e eu ainda
terei de copiar o modelo! Pois aqui o tendes; dai-o
vossa
queridinha. Tenha ele vindo de onde quer que seja,
não copiarei
coisa nenhuma.
CÁSSIO - Como assim, minha querida Bianca!
Como assim!
OTELO (à parte) - Pelo céu! Pode ser o meu lenço!
BIANCA - E se quiserdes vir cear esta noite,
podereis fazê-lo.
Caso contrário, vireis quando tiverdes vontade.
(Sai.)
IAGO - Correi atrás dela! Correi atrás dela!
CÁSSIO - E o que precisarei fazer; se não, ela se
porá a dizer
disparates por aí fora.
IAGO - Pretendeis cear em casa dela?
CÁSSIO - Em verdade, pretendo.
IAGO - Bem; é possível que nos encontremos lá,
porque tenho
grande necessidade de falar-vos.
CÁSSIO - Sim, por obséquio. Ireis lá?
IAGO - Parti logo; nem mais uma palavra.
(Sai Cássio.)
OTELO - (avançando) - Como fazer para matá-lo,
Iago?
IAGO - Percebestes como ele ria de seu próprio ato
pecaminoso?
OTELO - Oh, Iago!
IAGO - E vistes o lenço?
OTELO - Era o meu?
IAGO - Sim, o vosso, por esta mão. Vede em que
apreço ele
tem a tonta da vossa esposa. Ela lhe fez presente do
lenço, e
ele o deu a outra pessoa.
OTELO - Desejaria levar nove anos a assassiná-lo.
Uma mulher
tão bela, tão encantadora, tão meiga!
IAGO - Será preciso esquecer tudo isso.
OTELO - Que ela apodreça, que morra, que seja
condenada esta
noite mesmo. Porque não continuará viva. Não!
Meu coração já
se tornou de pedra; ao golpeá-lo, sinto que me dói a
mão. Oh!
Não havia criatura mais doce em todo o mundo; era
digna de
compartilhar do leito de um imperador e de ditar-
lhe leis.
IAGO - Estais vos afastando do assunto principal.
OTELO - Ela que se enforque! Disse apenas o que
ela era. Tão
habilidosa na agulha! Tão admirável na música!
Oh! Com uma
canção poderia domesticar um urso. Com um
espírito tão rico e
elevado, tão inventivo!
IAGO - Tudo isso só deixa mais censurável sua
conduta.
OTELO - Sim, mil vezes mais. E de um caráter tão
franco!
IAGO - Sim, muito franco.
OTELO - Sem dúvida. Mas, que pena, Iago! Que
pena, Iago!
IAGO - Se vos encontrais tão apaixonado de sua
iniqüidade,
concedei-lhe patente para pecar, porque se não
fordes atingido,
ninguém mais o será.
OTELO - Vou deixá-la reduzida a cacos... Enganar-
me!
IAGO - Oh! É abominável!
OTELO - Com o meu oficial!
IAGO - Mais abominável, ainda.
OTELO - Arranja-me algum veneno, Iago. Esta
noite. Não quero
ter com ela nenhuma explicação, de medo que seu
corpo e seus
encantos me desarmem a intenção. Esta noite,
Iago.
IAGO - Não deveis recorrer a veneno; estrangulai-a
no leito, no
próprio leito que ela poluiu.
OTELO - Bem, bem; agrada-me essa justiça. Muito
bem.
IAGO - Quanto a Cássio, deixai a meu cargo essa
tarefa. Lá pela
meia-noite ouvireis mais alguma coisa a esse
respeito.
OTELO - Excelente. (Ouve-se dentro um toque de
trombeta.)
Que trombeta é essa?
IAGO - Notícia de Veneza, certamente. É Ludovico,
enviado pelo
doge. E vede! Vossa esposa vem com ele.
(Entram Ludovico, Desdêmona e séqüito.)
LUDOVICO - Deus vos guarde, mui digno general!
OTELO - De todo coração vos agradeço.
LUDOVICO - O doge e os senadores de Veneza vos
enviam
saudar.
(Entrega-lhe uma carta.)
OTELO - Beijo este intérprete das ordens deles
todos.
(Abre a carta e lê.)
DESDÊMONA - E as novidades, bom primo
Ludovico?
IAGO - Muito alegre, signior, me deixa vossa vista.
Sois bemvindo
a Chipre.
LUDOVICO - Agradecido. E como passa o tenente
Cássio?
IAGO - Senhor, vivo.
DESDÊMONA - Houve uma certa desavença, primo,
entre ele e
meu marido. Mas espero que possais conciliá-los.
OTELO - Tendes plena certeza disso?
DESDÊMONA - Como, meu senhor?
OTELO - .Não deixeis de fazê-lo, quando
houverdes....
LUDOYICO - Não vos chamou; a carta é que o
preocupa.
DESDÊMONA - Muito de lastimar. Daria tudo para
reconciliá-los,
pelo afeto que diquei sempre a Cássio.
OTELO - Fogo e enxofre!
DESDÊMONA - Meu senhor?
OTELO - Sois discreta?
DESDÊMONA - Que acontece, para ele estar
zangado?
LUDOVICO - Com certeza isso é efeito da carta, pois
parece-me
que ordem lhe veio de ir para Veneza, deixando
Cássio aqui no
lugar dele.
DESDÊMONA - Isso me alegra, podeis crer-me.
OTELO - É certo?
DESDÊMONA - Meu senhor?
OTELO - Eu também fico contente por vos ver
louca.
DESDÊMONA - Por que causa, Otelo?
OTELO - Demônia!
(Dá-lhe uma bofetada.)
DESDÊMONA - Mereci receber isso? LUDOVICO -
Houve
excesso, senhor, de vossa parte. Ninguém
acreditara isso em
Veneza, muito embora eu jurasse que o observara.
Desculpas
lhe pedi; está chorando.
OTELO - Oh, demônio! Demônio! Se, com lágrimas
de mulher
fosse a terra fecundada, cada gota gerara um
crocodilo. Fora da
minha vista!
DESDÊMONA - Já que minha presença vos ofende,
eu me retiro.
(Faz menção de retirar-se.)
LUDOVICO - Que esposa tão cordata! Senhor, tende
a bondade
de chamá-la.
OTELO - Senhora!
DESDÊMONA - Que ordenais?
OTELO - Dizei-lhe agora que quereis dela.
LUDOVICO - Eu, meu senhor?
OTELO - Vós mesmo. Pedistes que a chamasse. Ei-
la, senhor.
Ela pode virar uma e mais vezes, ir embora, voltar
de novo.
Pode, também, chorar, senhor; chorar. É muito
cordata. Assim
dissestes. Mui cordata. Continuai a chorar. - No que
respeita a
este assunto, senhor - oh sentimento bem pintado! -
chamado
fui de novo. - Podeis sair! mandar-vos-ei recado
dentro de
pouco. - Acatarei as ordens, senhor, e voltarei para
Veneza. -
Fora daqui! Depressa! -
(Sai Desdêmona.)
Deixo Cássio no meu lugar. Cearemos juntos hoje,
caro senhor.
Sois mui bem-vindo a Chipre. Bodes e micos!
(Sai.)
LUDOVICO - E esse o nobre Mouro que nossos
senadores não
se cansam de proclamar perfeito e capacíssimo? A
criatura de
prol que sacudida nunca é pelas paixões? Cuja
virtude jamais
foi atingida pelos tiros da sorte e os arremessos da
fortuna?
IAGO - Está muito mudado.
LUDOVICO - Estará no uso perfeito da razão? Não
terá fraca,
porventura, a cabeça?
IAGO - Ele é o que é. Manifestar não devo o meu
juízo. Se ele
não é o que devera ser... Prouvera ao céu que o
fosse!
LUDOVICO - Inconcebível! Bater na própria
esposa!
IAGO - Isso, em verdade, não fica bem. Mas só
quisera,
mesmo, saber que o pior foi essa bofetada.
LUDOVICO - É sempre assim? Ou, porventura, a
carta no
sangue atuando, à fala deu origem?
IAGO - Ai de mim! Será quebra de lealdade revelar
o que sei ou
tenho visto? Vós mesmo o observareis; sua conduta
vai revelá-
lo tal como é, poupando-me, assim, de dizer algo.
Mas segui-o,
para ver de que modo ele prossegue.
LUDOVICO - Dói-me ter-me enganado a seu
respeito.
(Saem.)
Cena II
Um quarto no castelo. Entram Otelo e Emília.
OTELO - Nada vistes, então?
EMÍLIA - Nem ouvi nada, nem suspeitas tive.
OTELO - Porém com Cássio a conversar já a viste.
EMÍLIA - Mas nada vi de mal, e todas, todas as
sílabas ouvi que
pronunciaram.
OTELO - Então não cochichavam?
EMÍLIA - Nunca, nunca, meu senhor.
OTELO - Nem mandavam que saísses?
EMÍLIA - Nunca, também.
OTELO - Para ir buscar o leque, sua máscara, a
luva, ou
qualquer coisa?
EMÍLIA - Nunca, senhor,
OTELO - É estranho.
EMÍLIA - Apostaria que ela é honesta, senhor,
pondo minha
alma, por causa dela, a tratos. Se outras coisas
imaginais, tiraias
da cabeça, que vos causam distúrbio. Se algum
biltre voz fez
acreditar em tal absurdo, que faça o céu cair sobre
ele a própria
maldição da serpente. Pois se honesta não for,
casta e sincera,
haver não pode marido algum feliz, porque a mais
santa das
esposas ainda é mais horrenda do que a própria
calúnia.
OTELO - Vai chamá-la.
(Sai Emília.)
É uma sutil rameira, gabinete muito seguro, chave
dos segredos
mais íntimos. No entanto, ajoelhar pode para rezar.
Já a vi
nessa postura.
(Volta Emília com Desdêmona.)
DESDÊMONA - Que desejais, senhor?
OTELO - Aproximais-vos, minha pombinha.
DESDÊMONA - Que mandais que eu faça?
OTELO - Mostrai-me os olhos; frente a frente olhai-
me.
DESDÊMONA - Que fantasia horrível é essa agora?
OTELO (a Emília) - Reassumi por um pouco vosso
ofício, minha
senhora, a sós alguns instantes deixando-nos
procriar. Fechai a
porta; tossi ou gritai .Hum!. se virdes gente. Vosso
mister!
Vosso mister! Depressa!
(Sai Emília.)
DESDÊMONA - De joelhos vos pergunto que é que
exprime
semelhante discurso. Entendo a cólera de vossas
expressões,
não as palavras.
OTELO - Ora, que és tu?
DESDÊMONA - Senhor, sou vossa esposa, vossa
esposa leal e
verdadeira. OTELO - Vem jurar-me e condena-te,
sim, para que,
por um anjo te tomando, o diabo se tema de pegar-
te. Assim,
condena-te duas vezes, jurando que és honesta.
DESDÊMONA - O céu sabe de tudo.
OTELO - O céu bem sabe que és falsa como o
inferno.
DESDÊMONA - Falsa como, meu senhor? Para
quem? De que
maneira vos tenho sido falsa?
OTELO - Oh céu! Desdêmona! Para trás! Para trás!
DESDÊMONA - Oh dia horrível! Por que chorais?
Sou eu a causa
dessas lágrimas, meu senhor? Se porventura
suspeitais que
meu pai tenha influído na ordem que vos
mandaram a Veneza,
não me imputeis a culpa. Se o perdestes, também
eu o perdi.
OTELO - Se o céu tivesse querido pôr-me à prova de
amarguras, mil cuidados e afrontas me fazendo
cair sobre a
cabeça, na miséria mais profunda até aos lábios me
enterrando,
e se me houvesse aprisionado e às minhas mais
caras
esperanças, eu teria nalguma parte de minha alma
achado ao
menos uma gota de paciência. Mas, ai! na estátua
imóvel
transformar-me que com o dedo que aos poucos se
desloca
marca a hora do escarninho... Também isso pudera
suportar.
Bem; muito bem. Mas onde eu tinha enceleirado o
próprio
coração, de onde eu tinha de ter vida, se morrer
não quisesse;
o nascedoiro que meu curso alimenta, para que ele
não se
resseque... Ser dali expulso, ou conservá-lo como
uma cisterna
cheia de horríveis sapos, que se juntam para
reproduzir!...
Empalidece paciência, querubim de lábios róseos, e
enfarruscada fica como o inferno!
DESDÊMONA - Estou certa de que meu nobre
esposo me
considera honesta.
OTELO - Oh, sim! Sem dúvida! como as moscas no
açougue,
que recebem vida da podridão. Ó erva daninha, tão
bela ao
parecer e tão cheirosa que ofendes os sentidos! Oh!
se nunca
tivesses vindo ao mundo!
DESDÊMONA - Que pecado cheguei a cometer, sem
que o
soubesse?
OTELO - Teria sido feito um tão formoso papel, tão
belo livro,
para nele ficar escrito o nome .Prostituta.? Que
cometeste?
Como! Cometeste, mulher pública? Destas minhas
faces faria
fráguas que reduziriam a cinzas a modéstia, se eu
chegasse a
dizer o que fazes. Cometeste? Tapa o nariz o céu; a
lua, os
olhos; o zéfiro lascivo que, à passagem, beija tudo o
que
encontra, se acomoda no oco das minas para que
não saiba
tudo o que fazes. Como! Que fizeste, rameira
descarada?
DESDÊMONA - Injustamente me acusais, pelo céu.
OTELO - Não sois rameira?
DESDÊMONA - Não; tão verdade, como eu ser
cristã. Se este
vaso guardar para o meu dono imune de qualquer
contacto
impuro for não ser prostituta, não sou isso.
OTELO - Como! Não sois rameira?
DESDÊMONA - Não; tão certo como quero ser
salva.
OTELO - É então possível?
DESDÊMONA - Que o céu de nós se apiade.
OTELO - Nesse caso, peço perdão, pois tinha-vos
tomado pela
rameira astuta de Veneza que desposara Otelo. - E
vós, senhora
que o ofício oposto tendes de São Pedro na porteira
do inferno!
(Volta Emília.)
Vós! Vós mesma!
Já chegamos ao fim. Eis vossa paga. Passai a chave,
por
obséquio, e sede discreta nisto tudo.
(Sai.)
EMÍLIA - Oh céus, que idéia veio a este cavalheiro?
E vós,
senhora, como vos encontrais? Que estais
sentindo?
DESDÊMONA - Por minha fé, com muito sono.
EMÍLIA - Boa senhora, que acontece com meu
amo?
DESDÊMONA - Com quem?
EMÍLIA - Ora, senhora; com meu amo.
DESDÊMONA - Quem é teu amo?
EMILIÁ~ - O vosso, boa dama.
DESDÊMONA - Amo não tenho, Emília; não me
fales. Chorar
não me é possível e não posso responder a não ser
com muitas
lágrimas. Por obséquio, esta noite põe na cama
meu vestido de
noiva. Não te esqueças. E chama teu marido.
EMÍLIA - Que mudança radical houve aqui!
(Sai.)
DESDÉMONA - E muito justo que ele me trate
assim; é muito
justo. Que fiz eu para que ele pendurasse sua
menor suspeita
no mais ínfimo descuido meu?
(Volta Emília, com Iago.)
IAGO - Que desejais, senhora? Como passais?
DESDÊMONA - Dizer não posso nada. Os que
educam crianças
usam meios brandos e lhes impõem tarefas curtas.
Ele bem
poderia ter ralhado comigo desse modo, que, em
verdade, sou
como criança para ouvir censuras.
IAGO - Que aconteceu, minha senhora?
EMÍLIA - Oh, Iago! Chamou-a o general de
prostituta e o rosto
lhe atirou tão baixos termos, pesados e insultuosos,
que um
sincero coração suportar não poderia.
DESDÊMONA - Sou esse
nome, Iago?
IAGO - Bela dama, que nome?
DESDÊMONA - O nome que ela disse há pouco, que
o meu
senhor dissera a meu respeito.
EMÍLIA- Chamou-lhe prostituta. Essa palavra nem
mesmo um
vagabundo, embriagado aplica à sua amásia.
IAGO - E a razão disso?
DESDÊMONA - Ignoro-a; porém sei que não sou
isso.
IAGO - Não choreis! Não choreis! Oh dia triste!
EMÍLIA - Ter renunciado a tantos casamentos, ao
próprio pai, à
pátria, aos conhecidos, para chamada ser de
prostituta! Não é
para fazer chorar a gente?
DESDÊMONA - E o meu triste destino.
IAGO - Caiam nele todas as maldições. E de que
modo lhe veio
essa loucura?
DESDÊMONA - O céu o sabe.
EMÍLIA - Quero ser enforcada se tudo isso não for
obra de
algum vilão diabólico, de algum pulha insinuante e
intrometido,
de algum escravo que rasteja e adula para alcançar
um posto e
haja inventado semelhante calúnia. Que me
enforquem, se não
for isso.
IAGO - Ora essa! Não existe um bomem desse jeito.
Não é
possível.
DESDÊMONA - E caso exista, o céu que lhe perdoe.
EMÍLIA - Perdoe-lhe mas é a força e lhe corroa o
inferno os
ossos todos. Por que causa lhe chamou prostituta?
Que pessoa
recebeu ela? Em que lugar? que tempo? sob que
pretexto? O
Mouro foi logrado por algum miserável, algum
pulha de baixeza
notória, algum tinhoso. O céu! por que não nos
descobres o
homem e um chicote não pões na mão de todas as
pessoas
honestas, porque o biltre seja açoitado, nu, por
todo o mundo,
de leste a oeste?
IAGO - Não faleis tão alto, que ouvir podem lá fora.
EMÍLIA - Que ouçam todos! Um tipo desses foi que
vosso
espírito virou no avesso, a suspeitar levando-vos de
que eu com
o Mouro tinha alguma coisa.
IAGO - Sois bem louca. Saí!
DESDÊMONA - Ó bondoso Iago, como devo fazer
para que
possa reaver o meu marido? Ide falar-lhe, meu
caro, pois, por
esta luz celeste, não sei como o perdi. Aqui me
ajoelho. Se a
seu amor, em qualquer tempo, a minha vontade
transgrediu, ou
pelos meandros do pensamento ou por ações
concretas; se
pelos olhos ou qualquer sentido me veio algum
prazer com
referência a outra pessoa que não fosse a dele; se
como até
hoje, agora e em todo o tempo não lhe dedico o
afeto mais
sincero, muito embora a atirar-me ele ainda venha
ao divórcio
indigente: que a alegria de todo me abandone. A
grosseria
consegue muito; sua austeridade pode destruir-me
a vida, mas
não há de jamais manchar-me o amor. Dizer não
posso
.Prostituta.; horroriza-me somente pronunciar
esse termo, sem
que todas as vaidades do mundo conseguissem
levar-me a
realizar o menor ato que me fizesse merecer tal
nome.
IAGO - Sossegai; é um capricho passageiro; os
negócios do
Estado o irritam muito; por isso vos repreende.
DESDÊMONA- Oh! se fosse isso!
IAGO - Posso afiançar-vos; é isso, tão-somente.
(Trombetas.)
Ouvi! E o toque que anuncia a ceia. Os mensageiros
de Veneza
aguardam para serem servidos. Ide logo; não
choreis; tudo
ainda acaba bem.
(Saem Desdêmona e Emília.)
(Entra Rodrigo.)
RODRIGO - Acho que não estás procedendo
lealmente comigo.
IAGO - Que tens a contestar?
RODRIGO - Todos os dias tu me logras com algum
pretexto,
Iago, parecendo-me, agora, que, muito longe de
obteres para
mim a vantagem da menor esperança, afastadas de
mim todas
as oportunidades. Estou decidido a não suportar
por mais
tempo semelhante situação, sem que me tenha
convencido a
digerir em silêncio tudo o que até agora venho
sofrendo
estupidamente.
IAGO - Quereis ouvir-me, Rodrigo?
RODRIGO - Em verdade, já vos ouvi demais,
porque vossas
palavras e vossas ações não têm nenhuma
afinidade entre si.
IAGO - Acusais-me injustamente.
RODRIGO - Só digo o que é verdade. Dissipei toda a
minha
fortuna; as jóias que vos entreguei para que as
désseis a
Desdêmona, teriam bastado para corromper uma
freira.
Dissestes-me que ela as havia aceito e me destes
esperanças e
o consolo de uma aproximação e de favores para
breve, sem
que nada disso se concretize. IAGO - Bem;
continuai; muito
bem!
RODRIGO - .Muito bem! Continuai!. Desse jeito,
homem, não
poderei continuar, nem vai muito bem coisa
nenhuma. Por esta
mão, afirmo que tudo isso é muito indecente e que
já começo a
perceber que estou sendo ludibriado.
IAGO - Muito bem.
RODRIGO - Torno a dizer que nada está muito bem.
Vou
procurar Desdêmona; se ela me devolver as jóias,
paro com
minhas pretensões e me arrependo das minhas
solicitações
ilícitas. Caso contrário, posso assegurar-vos, haveis
de me dar
satisfações.
IAGO - Já terminastes?
RODRIGO - Já, e não disse senão o que estou no
firme
propósito de realizar. IAGO - Ora bem; começo a
perceber que
és um rapaz corajoso, e a partir deste momento
passo a fazer
de ti uma opinião mais lisonjeira do que antes. Dá-
me a mão,
Rodrigo; levantas-te contra mim uma objeção
muito justa; no
entanto, posso asseverar-te que tenho procedido
com lisura
neste negó

.
RODRIGO - Não parece.
IAGO - Realmente, concordo em que não parece,
não sendo
vossas suspeitas de todo carecentes de sentido e de
sagacidade. Mas, Rodrigo, se possuis o que mais do
que nunca
eu tenho razões para imaginar que possuis, a
saber: iniciativa,
coragem e valentia, prova-o esta noite. Se na
próxima noite não
vieres a possuir Desdêmona, tira-me
traiçoeiramente deste
mundo e inventa suplícios para fazer-me morrer.
RODRIGO - Bem, de que se trata? É alguma coisa
razoável e
possível?
IAGO - Senhor, veio uma ordem especial de Veneza,
para que
Cássio fique no lugar de Otelo.
RODRIGO - Isso é verdade? Nesse caso Otelo e
Desdêmona
terão de voltar para Veneza.
IAGO - Oh, não! Ele vai para a Mauritânia e levará
consigo a
bela Desdêmona, a menos que sua permanência
aqui seja
prolongada por algum acidente, não havendo
nenhum mais
decisivo do que o afastamento de Cássio.
RODRIGO - E que entendeis por isso: .O
afastamento de
Cássio?.
IAGO - Ora, ficar incapaz de ocupar o lugar de
Otelo, por lhe
terem estourado os miolos.
RODRIGO - E é isso que desejais que eu faça?
IAGO - Sim, no caso de quererdes tirar partido com
o exercício
de vosso diretor. Hoje à noite ele vai jantar em casa
de uma
cortesã, onde pretendo visitá-lo. Ainda não sabe
nada a respeito
de sua honrosa felicidade. Se quiserdes ficar de
espreita no
momento em que ele se dirigir para lá o que
arranjarei que se
dê entre as doze e uma hora - podereis surpreendê-
lo com
segurança. Estarei por perto, para auxiliar-vos no
ataque, sendo
certeza que não nos escapará. Vamos, não fiqueis
tão
estupefacto; vinde comigo. Vou demonstrar-vos de
tal modo a
necessidade da morte dele, que vos sentireis na
obrigação de
matá-lo. Mas já estamos mais do que em tempo de
cear, e a
noite corre. Mão à obra!
RODRIGO - Desejo que me apresenteis razões mais
convincentes.
IAGO - Haveis de ficar satisfeito.
(Saem.)
Cena III
Outro quarto no castelo. Entram Otelo, Ludovico,
Desdêmona,
Emília e criados.
LUDOVICO - Não vos canseis, senhor, por minha
causa.
OTELO - Não é trabalho; faz-me bem passear.
LUDOVICO - Senhora, boa noite! Humildemente
me despeço de
Vossa Senhoria.
DESDÊMONA - Vossa Honra é mui bem-vindo.
OTELO - Vamos logo,
meusenhor? Oh, Desdêmona!
DESDÊMONA - Senhor?
OTELO - Ide deitar-vos imediatamente; voltarei
neste instante.
Mandai a camareira embora. Cuidai disso.
DESDÊMONA - Assim farei, meu senhor.
(Saem Otelo, Ludovico e os criados.)
EMÍLIA - E como vão as coisas? Ele mostra-se
agora mais
afável.
DESDÊMONA - Avisou-me de que voltava logo,
tendo dito que
me deitasse e, após, vos despedisse.
EMÍLIA - Despedir-me!
DESDÊMONA - Sim; foram suas ordens. Por isso,
boa Emília,
dá-me logo minha camisa de dormir, e adeus.
Convém não
contrariá-lo em coisa alguma.
EMÍLIA - Desejara que nunca o houvésseis visto.
DESDÊMONA - Pois eu não. A tal ponto o
recomenda meu amor,
que até mesmo suas teimas, repreensões e
violências são
dotadas de certa graça e encanto.
EMÍLIA - Pus na cama os lençóis que pedistes.
DESDÊMONA - Está bem. Oh céus! Como por vezes
somos
loucas! Caso eu venha a morrer primeiro, envolve-
me num
lençol destes.
EMÍLIA - Ora, que tolice, tudo isso!
DESDÊMONA - Minha mãe teve uma criada de
nome Bárbara.
Ela amou a um moço que a abandonou, por ser um
doidivanas.
Cantar soía a letra do salgueiro, balada antiga,
porém mui de
acordo com seu destino. E se finou cantando-a.
Essa balada não
me sai da mente toda esta noite. Tenho de conter-
me, para a
cabeça não deixar pendida e, como a pobre
Bárbara, cantá-la.
Põe pressa nisso. Vamos!
EMÍLIA - Trago vossa camisa de dormir?
DESDÊMONA - Não; tira todos os alfinetes. Esse
Ludovico é bem
apessoado.
EMÍLIA - Bem bonito.
DESDÊMONA - Conversa muito bem.
EMÍLIA - Conheço uma senhora de Veneza que iria
a pé à
Palestina, descalça, só por um ligeiro contacto de
seu lábio
inferior.
DESDÊMONA - A suspirar cantava a coitadinha à
sombra do
salgueiro. Canto de dor coração lhe vinha: Oh
salgueiro!
salgueiro! Triste, ouvia-a o regato todo o dia: Oh
salgueiro!
salgueiro! O pranto a pedra dura amolecia. Deixa
esse de lado.
Oh salgueiro! salgueiro! Mais pressa, por favor; ele
já chega. De
salgueiro farei minha coroa. Não o censureis, que o
seu desdém
me é grato. Não é a vez disso. Escuta! Quem bateu?
EMÍLIA - Foi o vento.
DESDÊMONA - Chamei-o de perjuro. E ele, que
disse? Elas me
vêem... Conquista-os... Que tolice! Vai-te embora.
Boa noite.
Doem-me os olhos. Será indício de choro?
EMÍLIA - Coisa alguma!
DESDÊMONA - Ouvi dizer que sim. Oh! Esses
homens! Esses
homens! Em sã consciência, Emília, dize-me se
acreditas que
haja esposas capazes de enganar os seus maridos
por modo tão
grosseiros?
EMÍLIA - Sim, há algumas, não há dúvida.
DESDÊMONA - E tu, farias isso, por todo o mundo?
EMÍLIA - Ora essa! Não o faríeis?
DESDÊMONA - Não; pela luz celeste.
EMÍLIA - O mesmo eu digo: não pela luz celeste.
Poderia fazê-
lo, mas no escuro.
DESDÊMONA - Então farias isso por todo o
mundo?
EMÍLIA - O mundo todo é muita coisa; preço
exorbitante para
um pequeno vício.
DESDÊMONA - Não, não creio que tu sejas capaz de
fazer isso.
EMÍLIA - Em verdade, penso que sim, para
desfazer depois o
que houvesse feito. Não faria tal coisa por uma
aliança dupla,
nem por alguns côvados de cambraia, nem por
vestidos, saias e
toucas, nem por qualquer presentezinho de pouca
monta. Mas
pelo mundo todo! Que mulher não enganaria o
marido, para
fazê-lo monarca? Para tanto, eu arriscaria o
purgatório
DESDÊMONA - Maldita eu venha a ser, se fizer isso,
por todo o
mundo.
EMÍLIA - Ora, o ultraje só é ultraje no mundo; e se
ganhásseis
o mundo por vosso trabalho, seria um ultraje em
vosso próprio
mundo que poderíeis corrigir rapidamente
. DESDÊMONA - Não creio que haja uma mulher
assim.
EMÍLIA - Sim, há uma dúzia delas, e com tantas de
crescença,
que foram suficientes para prover o mundo que por
prêmio lhes
fosse dado. Mas estou convicta de que os maridos é
que são
culpados da queda das esposas. Logo, afrouxam de
seus
deveres, em regaço estranho derramam nossos
bens, ou então
explodem em ciúme impertinente, ou nos impõem
peias de todo
gênero, ou nos batem, fazendo pouco de quanto
antes éramos.
Ora, nós temos fel; e ainda que boas, poderemos
vingar-nos.
Os maridos devem se convencer de que as esposas
têm
sentidos como eles: vêem e cheiram, distinguir
sabem o que é
azedo e doce, tão bem como os maridos. Que é que
fazem
todos eles, trocando-nos por outra? Será que é
diversão? Penso
que sim. Haverá nisso amor? É bem possível. Será a
fraqueza
que erra tanto neles? Justamente. Ora bem. E nós,
acaso não
temos afeições, prazer não temos para os
divertimentos, ou
fraqueza, tal como os homens? Eles que nos tratem,
portanto,
bem, e saibam que é com eles que aprendemos
também a
zombar deles.
DESDÊMONA - Bem, boa noite! O céu me ajude,
para do mal
tirar toda a virtude.
(Saem.)
ATO V
Cena I
Chipre. Uma rua. Entram Iago e Rodrigo.
IAGO - Fica atrás do pilar; ele vem logo. Arranca a
tua boa
espada e vibra-a com segurança. Vamos logo!
Vamos! Não
tenhas medo, que eu estarei por perto. Disso
depende tudo,
não te esqueças: ou subirmos agora, ou nos
perdermos.
Afirma-te, portanto, no propósito.
RODRIGO - Ficai perto, que eu posso errar o golpe.
(Afasta-se.)
IAGO - Estou à mão. Coragem! Vai, esconde-te.
RODRIGO - Não me sinto inclinado a fazer isso.
Mas razões
suficientes ele deu-me. Será um de menos. Vamos,
minha
espada; sai logo da bainha! Vou matá-lo.
IAGO - Esfreguei tanto esta borbulha jovem, de
quase a
arrebentar. Está arruinado. Agora, se ele matar
Cássio, ou
Cássio o eliminar, ou os dois se trucidarem,
ganharei dos dois
lados. Se Rodrigo ficar vivo, virá pedir-me a volta
de tudo o que
me deu em ouro e jóias, e que dele eu tirei sob o
pretexto de
presentear Desdêmona. Isso não pode ser.
Sobrando Cássio,
beleza cotidiana tem na vida que me deixa
horroroso, sem
contarmos que o Mouro pode revelar-lhe tudo.
Corro grande
perigo. Não; precisa morrer. Que morra, então. Ei-
lo que chega.
(Entra Cássio.)
RODRIGO - Conheço o passo dele. Morre, biltre!
(Dá um bote em Cássio.)
CÁSSIO - Quase inimigo meu fora esse golpe, se
mais duro não
fosse o meu casaco do que pensavas. Vou provar o
teu.
(Saca da espada e fere Rodrigo.)
RODRIGO - Oh! Oh! Estou ferido!
(Iago, por trás de Cássio o fere na perna e sai.)
CÁSSIO - E eu, aleijado para sempre. Socorro, oh!
Assassino!
(Cai,)
(Entra Otelo, a distância.)
OTELO - É a voz de Cássio; Iago tem palavra.
RODRIGO - Que miserável sou! -
OTELO - É assim, de fato.
CÁSSIO - Socorro Luz! Socorro! Um cirurgião!
OTELO - É ele. Ó valente Iago, honesto e justo! Que
nobreza
revelas ante o ultraje de teu amigo! Ensinas-me
Pombinha, teu
querido está morto e teu destino já se aproxima.
Aqui vou eu,
rameira! Do coração retiro o teu feitiço; teu sangue
mau vai
terminar tudo isso.
(Sai.)
(Entram Ludouico e Graciano, a distância.)
CÁSSIO - Ronda, olá! Ninguém vem? Crime!
Assassino!
GRACIANO - O grito é de aflição. E coisa grave
. CÁSSIO - Socorro!
LUDOVICO - Escutai!
RODRIGO - Vilão maldito!
LUDOVICO - São dois ou três gemidos. É noite alta;
pode ser
fingimentos. É perigoso ir até lá sem termos um
reforço.
RODRIGO - Ninguém me acode? Morro
dessangrado.
LUDOVICO - Escutai.
(Volta Iago, com uma luz.)
GRACIANO - Eis alguém em camisa, com luz e
arma.
IAGO - Quem está aí? Quem grita por socorro?
LUDOVICO - Não o sabemos. Ouvistes algum grito?
CÁSSIO - Aqui! Socorro! Pelo céu, socorro!
IAGO - Que aconteceu?
GRACIANO - Parece que é o alferes do general
Otelo.
LUDOVICO - Ele, em pessoa, rapaz de muito
mérito.
IAGO - Que tendes, para gritar assim tão dolorido?
CÁSSIO - É Iago? Uns assassinos me assaltaram.
Presta-me
algum socorro.
IAGO - Ó tenente, quem foi que vos fez isso?
CÁSSIO - Penso que um deles deve estar por perto;
não pode
ter fugido.
IAGO - Oh, miseráveis!
(A Ludovico e Graciano.)
Quem Sois? Vinde ajudar-me.
RODRIGO - Socorro! Aqui! Socorro!
CÁSSIO - É um dos meliantes.
IAGO - Oh, vilão! Assassino!
(Apunhala Rodrigo.)
RODRIGO - Maldito Iago! Cão desumano!
IAGO - Assassinar pessoas no escuro! Esses
bandidos
sanguinários por onde se meteram? Que silêncio
nesta cidade!
Acudam! Homicídio! E vós, quem sois? Amigos ou
inimigos?
LUDOVICO - Para louvar-nos, ponde-nos à prova.
IAGO - É o signior Ludovico?
LUDOVICO - Ele mesmo.
IAGO - Peço desculpas, mas aqui está Cássio ferido
por ladrões.
GRACIANO - Cássio?
IAGO - Mano, que tens?
CÁSSIO - Feriram-me na perna. IAGO - O céu não
queira que
seja assim. Senhores, luz! Com minha camisa vou
pensá-lo.
(Entra Bianca.)
BIANCA - Que acontece? Quem gritou por socorro?
IAGO - Quem gritou?
BIANCA - Oh meu querido Cássio! Doce Cássio!
Cássio, Cássio,
Cássio!
IAGO - Oh notável rameira! Cássio, tendes,
porventura, suspeita
de quem sejam os ladrões que aleijado vos
deixaram?
CÁSSIO - Não.
GRACIANO - Pesa-me por achar-vos nesse estado,
pois vinha
procurar-vos.
IAGO - Emprestai-me uma liga. Está bem. Ah! Se
pudéssemos
carregá-lo daqui numa cadeira!
BIANCA - Oh, desmaiou! Oh Cássio, Cássio, Cássio!
IAGO - Cavalheiros, suspeito que esta coisa tem
parte neste
crime. Ficai calmo, bondoso Cássio. Vamos, vamos
logo.
Iluminai aqui. Conheceremos esta fisionomia? Oh!
Meu amigo,
meu conterrâneo! És tu, Rodrigo? Não é... Sim...
Com certeza.
Oh céus! Rodrigo!
GRACIANO - Aquele de Veneza?
IAGO - Justamente. Conhecei-lo?
GRACIANO - Decerto que o conheço.
IAGO - Signior Graciano? Peço-vos desculpas; estas
cenas
sangrentas justificam minha conduta, assim vos
esquecendo.
GRACIANO - Estou contente por vos ver de novo.
IAGO - Cássio, como ides? A cadeira logo!
GRACIANO - Rodrigo!
(Trazem uma cadeira.)
IAGO - Ele, ele mesmo. Enfim, eis a cadeira! Com
cuidado
alguns homens caridosos o transportem daqui. Vou
buscar logo
o cirurgião do general. Senhora, quanto a vós, não
vos deis
tanto trabalho. Cássio, o ferido, e eu somos amigos.
entre vós
dois havia alguma coisa?
CÁSSIO - Nada no mundo; não conheço o homem.
IAGO (a Bianca) - Por que ficais tão pálida? - Oh!
Tirai-o do
vento!
(Cássio e Rodrigo são carregados para fora.)
Não vos retireis, senhores. Mudais de cor, senhora?
-
Percebestes que ar espantado tem? Se estais
atônitos, cedo
haveremos de saber mais coisas. Observai-a,
senhores, por
obséquio. Viste-la, cavalheiros? Sim, a culpa se trai,
embora a
língua fique muda.
(Entra Emília.)
EMÍLIA - Que aconteceu, marido? Que foi que
houve?
IAGO - Cássio foi atacado aqui no escuro, por
Rodrigo e outros
tipos que escaparam. Está grave; Rodrigo a morrer
veio.
EMÍLIA - Bom gentil-homem! Ah! Bondoso Cássio!
IAGO - Tudo isso é por ter sido mulherengo.
Mas procura saber, Emília, logo, onde ele ontem
ceou. Como!
Tremestes? BIANCA - Ceou comigo; mas não fiquei
trêmula.
IAGO - Ah, foi assim? Então acompanhai-me.
EMÍLIA - Ora, rameira à-toa!
BIANCA - Não sou isso; sou tão honesta como quem
me insulta.
EMÍLIA - Como eu? Não tens vergonha?
EMÍLIA - Como eu? Não tens vergonha?
IAGO - Cavalheiros, tratemos de pensar o pobre
Cássio. Vós,
agora, senhora, ireis contar-nos uma outra
história. Corre ao
forte, Emília, e dize tudo ao meu senhor e à esposa.
Quereis
passar à frente? (A parte.) Minha sorte se decide
hoje: ou caio,
ou fico forte.
(Saem.)
Cena II
Um quarto de dormir, no castelo. Desdêmona
dorme, no leito.
Uma candeia acesa. Entra Otelo.
OTELO - Esta é a causa, minha alma. Oh! Esta é a
causa! Não
vo-la nomearei, castas estrelas! Esta é a causa! Não
quero
verter sangue, nem ferir-lhe a epiderme ainda mais
branca do
que neve e mais lisa que o alabastro. Mas é fatal
que morra; do
contrário, virá ainda a enganar mais outros
homens. Apaga a
luz! Depois... Apaga a luz! Se te apagar, ministro
flamejante,
poderei restituir-te a luz primeira, se vier a
arrepender-me. Mas
extinta que seja tua luz, ó tu, modelo primoroso da
excelsa
natureza! de onde o fogo trazer de Prometeu, para
dar nova luz
à tua chama? Se tua rosa colher, é-me impossível o
vital
crescimento restituir-lhe: fatal é que feneça. Vou
aspirá-la no
próprio galho. (Beija-a.) O hálito aromoso, que
quase a
convencer chegaste a própria Justiça a espedaçar a
sua espada!
Mais um! Mais um! Se assim ficares, morta, quero
tirar-te a
vida, e, após, amar-te. Mais outro; será o último;
um tão doce
jamais foi tão fatal. Chorar preciso lágrimas
impiedosas; é
celeste meu sofrimento, pois castiga ao que ama.
Vai acordar!
DESDÊMONA - Quem está aí? Otelo?
OTELO - Sim, Desdêmona.
DESDÊMONA - Não vindes para o leito, meu
senhor?
OTELO - Desdêmona, rezastes esta noite?
DESDÊMONA - Oh, decerto, senhor!
OTELO - Se vos lembrardes de alguma falta não
perdoada ainda
pelo céu e sua graça, cuidai logo de tê-la redimida.
DESDÊMONA - O meu senhor! Que pretendeis
dizer com isso?
OTELO - Bem; fazei o que vos disse e sede breve.
Passarei
nesse em meio; não desejo trucidar-vos o espírito
manchado.
Não pelo céu! Não vos matarei a alma.
DESDÊMONA - Quê!
Falais em matar?
OTELO - Sim, é isso mesmo.
DESDÊMONA - Então que o céu de mim tenha
piedade.
OTELO - Amém, de coração.
DESDÊMONA - Se assim falais, é que não
pretendeis matar-me
agora.
OTELO - Hum!
DESDÊMONA - Contudo, sinto medo, pois terrível
sois sempre,
quando revirais os olhos dessa maneira. A causa
desse medo,
não sei dizê-lo, pois não sou culpada; porém sinto
que tenho
muito medo.
OTELO - Pensa nos teus pecados.
DESDÊMONA - Só consistem no amor que vos
dedico.
OTELO - Pois por ele vais agora morrer.
DESDÊMONA - É contra a natureza dar a morte a
alguém por
ter amor. Ah! Por que causa mordeis o lábio assim?
Toda a
postura tendes ora abalada, por alguma
sanguinária paixão. E
mau agouro; contudo espero, espero que nenhuma
ameaça me
comine.
OTELO - Paz e aquieta-te.
DESDÊMONA - Estou quieta. Que é que há?
OTELO - O lenço que te dei, que eu tanto amava, a
Cássio o
deste?
DESDÊMONA - Não, por minha vida, por minha
alma, não o dei.
Mandai chamá-lo e interrogai-o.
OTELO - Juízo, querida alma, não jures falso, pois
estás agora
no teu leito de morte.
DESDÊMONA - Sim, no leito, mas não para morrer.
OTELO - Sim, neste instante. Assim, confessa
francamente a
culpa, pois se com juramentos contestasses ponto
por ponto,
em nada isso alterara ou sustara o propósito em
que me acho e
que gemer me faz. Urge que morras.
DESDÊMONA - Que Deus de mim se apiade.
OTELO - Digo amém.
DESDÊMONA - Sede também piedoso. Em toda a
vida jamais
vos ofendi. Nunca amei Cássio, só lhe tendo dicado
essa
amizade que o céu permite, e nunca o presenteei.
OTELO - Pelo céu, vi meu lenço na mão dele.
Mulher perjura,
em pedra me transmudas o coração e o nome dás
de crime ao
que eu pensava ser um sacrifício. Vi o lenço! Eu
mesmo!
DESDÊMONA - Então, é que ele o achou. Nunca lho
dei. Mandai
chamá-lo, para vir confessar o que há.
OTELO - Já confessou.
DESDÊMONA - Confessou quê, senhor?
OTELO - Que te possuiu.
DESDÊMONA - Como? Ilicitamente?
OTELO - Sim.
DESDÊMONA - Absurdo! Não dirá isso.
OTELO - Não, porque tapada já tem a boca, pois o
honesto Iago
tomou suas providências.
DESDÊMONA - Oh! Meu medo tinha razão de ser!
Então,
morreu?
OTELO - Se seus cabelos todos vivos fossem, minha
grande
vingança os devorara.
DESDÊMONA - Ai de mim! Foi traído e estou
perdida!
OTELO - Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo na
minha frente?
DESDÊMONA - O meu senhor! Bani-me de vossa
vista, mas
deixai-me viva.
OTELO - Para trás, prostituta!
DESDÊMONA - Hoje, não; amanhã! Deixai-me viva!
OTELO - Se resistires...
DESDÊMONA - Meia hora apenas.
OTELO - Não há trégua; está feito.
DESDÊMONA - Ó tempo, apenas, de rezar uma vez.
OTELO - É muito tarde.
(Asfixia-a.)
EMÍLIA (dentro) - Senhor! Senhor! Olá Senhor!
Senhor!
OTELO - Que ruído é esse? Como! Não morreu?
Não morreu de
uma vez? Embora eu seja cruel, sou compassivo.
Não desejo
causar-te sofrimento prolongado. Asstm... Assim...
EMÍLIA (dentro) - Olá, senhor! Senhor!
OTELO - Quem está aí?
EMÍLIA (dentro) - Senhor, uma palavra convosco,
por obséquio.
OTELO - Sim; é Emília... Devagar... Está morta...
Com certeza
vem me falar de Cássio; fez barulho. Como! Já não
se mexe?
Está quieta como uma sepultura... Deixo-a entrar?
Seria de
vantagem?... Penso que ainda se mexe um pouco.
Não. Que
fazer devo? Se eu deixar que entre, há de querer
falar com
minha esposa... Que esposa? É o que não tenho.
Que hora
pesada! Oh coisa insuportável! Fora bem se se
desse um grande
eclipse do sol como da lua e que o assustado globo
em dois se
fendesse a essa mudança.
EMÍLIA (dentro) - Por obséquio, senhor, uma
palavra! Ó
bondoso senhor! OTELO - Ia esquecendo de ti. Oh,
entra,
Emília! Neste instante. - Só o tempo de correr estas
cortinas. -
Onde estás?
(Abre a porta.)
Que é que tens para dizer-me?
EMÍLIA - O bondoso senhor! Um crime horrível
aconteceu lá
fora!
OTELO - Como! Agora?
EMÍLIA - Neste momento, meu senhor.
OTELO - É efeito do desvio da lua; ela aproxima-se
agora mais
da terra do que de hábito, e deixa os homens
loucos.
EMÍLIA - Cássio matou Rodrigo, meu senhor, um
moço de
Veneza.
OTELO - Quê! Rodrigo foi morto? E Cássio, também
morto?
EMÍLIA - Não, não! Cássio não foi morto.
OTELO - Não foi morto? Então está fora de tom a
morte e a agradável vingança desafina.
DESDÊMONA - Oh dor! Assassinada injustamente!
EMÍLIA - Que é que há? Que grito é esse?
OTELO - Como? Como?
EMÍLIA - Oh! É a voz da senhora. Aqui! Socorro! O
senhora,
falai de novo! Doce Desdêmona, falai! Minha
senhora!
DESDÊMONA - Morro, e morro inocente.
EMÍLIA - Oh! Quem fez isso?
DESDÊMONA - Ninguém; eu mesma. Adeus! Faze
que sempre
de mim se lembre meu querido esposo.
(Morre.)
OTELO - Por que haveria de ter sido morta?
EMÍLIA - Quem poderá sabê-lo?
OTELO - Ouvistes que ela disse que não fui eu.
EMÍLIA - Sim, ela o disse; vou espalhar a verdade.
OTELO - Para as chamas do inferno foi como uma
mentirosa:
quem a matou fui eu.
EMÍLIA - Tanto mais anjo ela é por isso; e vós,
demônio negro.
OTELO - Entregara-se ao vício; era rameira.
EMÍLIA - Não passas de um demônio e caluniá-la.
OTELO - Era falsa como a água.
EMÍLIA - E tu és selvagem como o fogo, dizendo
que era falsa.
Não! Ela te era fiel celestialmente.
OTELO - Cássio a manchou. Pergunta a teu marido
o mais que
desejares. Condenado devera eu ser no ponto mais
profundo do
inferno, se tivesse procedido dessa maneira sem
motivos justos.
Teu marido está a par de tudo o que houve.
EMÍLIA - Meu marido?
OTELO - Sim, teu marido.
EMÍLIA - Que aos seus deveres ela fora falsa?
OTELO - Sim, com Cássio. Se fiel tivesse sido e o
céu um
mundo diferente houvesse feito de um só crisólito
admirável,
não o trocara por ela.
EMÍLIA - Meu marido!
OTELO - Sim, foi ele o primeiro a prevenir-me. E
um homem
muito honrado e odeia a lama que adere às ações
baixas.
EMÍLIA - Meu marido!
OTELO - Ora, mulher! Por que repetes isso? Teu
marido, já
disse.
EMÍLIA - Oh, querida ama! Diverte-se com o amor
a vilania.
Meu marido afirmou que ela era falsa?
OTELO - Sim, mulher; ele mesmo, teu marido.
Compreendes o
que digo? Teu marido, meu amigo, o honesto Iago,
mais que
honesto...
EMÍLIA - Se ele for tal, que sua alma perniciosa
meio grão
apodreça cada dia. Mentiu conscientemente.
Apaixonada ela
estava de sua indigna escolha. OTELO - Ah!
EMÍLIA - Faze o que houver de pior. Tão indigno é
do céu este
teu feito como és indigno dela.
OTELO - Mais lucraras se te calasses.
EMÍLIA - Não dispões de forca que me faça sofrer
nem a
metade do que posso agüentar. Ó néscio! Ó
estúpido! Tão
ignorante como a própria lama! Cometeste uma
ação... Não
tenho medo dessa espada! Vou dar-te a conhecer,
embora a
perder venha vinte vidas. Socorro! Assassino! Olá!
Socorro!
(Entram Montano, Graciano, Iago e outros.)
MQNTANQ- Que é que houve, general? Que
aconteceu?
EMÍLIA - O Iago! também viestes? Procedestes
otimamente,
para que ao pescoço os homens seus delitos vos
atirem.
GRACIANO - De que se trata?
EMÍLIA - Desmente este vilão, se fores homem. Ele
afirmou que
foi de ti que soube que a esposa lhe era infiel.
Tenho certeza de
que não poderias ter dito isso. Não és pulha a esse
ponto. Fala
logo, que tenho o coração por demais cheio.
IAGO - Disse-lhe o que pensava, sem que houvesse
contado
nada além do que ele próprio julgara natural e
verdadeiro.
EMÍLIA - Mas dissestes-lhes que ela fora infiel?
IAGO - Disse.
EMÍLIA - Dissestes uma infâmia odiosa. Por minha
alma, ele
mente; é um pervertido. Ela, falsa com Cássio? E
assim? Com
Cássio?
IAGO - Com Cássio, sim senhora. Retirai-vos daqui
e ponde
cobro nessa língua. EMÍLIA - Não ponho cobro em
nada, Falar
quero. Minha ama ali se encontra, assassinada.
TODOS - Não o permita o céu!
OTELO - Senhores, não vos espanteis; é a pura
verdade o que
ela disse.
GRACIANO - Muito estranha verdade!
MONTANO - Ato monstruoso!
EMÍLIA - Infâmia, infâmia! Penso nisso, torno a
pensar...
Suspeito... Oh vilania! Já havia suspeitado. Vou
matar-me só de
tristeza. Oh infâmia!
IAGO - Como! Ficastes louca? Retirai-vos para casa,
já, já!
EMÍLIA - Caros senhores permiti-me falar. Sei que
lhe devo
plena obediência; não, porém, agora. Talvez, Iago,
eu não volte
para casa.
OTELO - Oh, oh, oh!
(Atira-se sobre o leito.)
EMÍLIA - Sim, rebolca-te e ruge, pois a morte deste
à mulher
mais inocente e meiga que jamais viu a luz.
OTELO - Era culpada. Não vos reconheci, meu tio.
Vossa
sobrinha ali se encontra, cujo alento por estas
mãos foi abafado
há pouco.
GRACIANO - Pobre Desdêmona! Por sorte minha,
teu pai já
faleceu. Este consórcio para ele foi fatal: e débil fio
da vida pela
dor teve cortado. Se vivesse, esta vista o levaria,
decerto, ao
desespero, amaldiçoara seu anjo tutelar,
escorraçando-o de seu
lado e, com isso, se perdera.
OTELO - Dá-me pena; mas Iago sabe que ela com
Cássio
praticou mais de mil vezes o ato impudico. Cássio o
confessou,
tendo-lhe ela os trabalhos amorosos recompensado
com o
penhor e mimo de amor que, de princípio, eu lhe
ofertara: era
um lenço, lembrança muito antiga que a minha
mãe meu pai
outrora dera.
EMÍLIA - Oh céu! Poderes celestiais!
IAGO - Silêncio! Fica quieta!
EMÍLIA - Preciso dizer tudo! Preciso dizer tudo!
Eu, ficar quieta,
senhor? De forma alguma. Falar quero tão livre
como o vento. O
céu, os homens, todos os diabos, tudo, tudo pode
exprobar-me
esta ação, mas falar quero.
IAGO - Sê prudente e retorna para casa.
EMÍLIA - Não vou.
(Iago ameaça ferir Emília.)
GRACIANO - Virar contra a mulher a espada!
EMÍLIA - O Mouro bruto! o lenço de que falas
foi por mim encontrado casualmente e dei-o a meu
marido, pois
bem vezes com mui séria insistência - mais, de fato,
do que tal
ninharia merecia - pedira que o roubasse.
IAGO - Vil rascoa!
EMÍLIA - Ela o ter dado a Cássio? Não! Achei-o e o
dei a meu
marido.
IAGO - É falso, imunda!
EMÍLIA - Pelo céu, cavalheiros, é a verdade. Oh
palhaço
assassino! Que haveria de fazer um cretino
rematado com uma
mulher tão boa?
OTELO - Por que as pedras todas do céu só servem
para o raio?
Celerado completo!
(Corre para Iago; Iago apunhala Emília e sai.)
GRACIANO - Ela
desmaia! Creio que ele matou a própria esposa.
EMÍLIA - Ai, ai! Deitai-me ao lado de minha ama.
GRACIANO - Fugiu, mas a mulher deixou sem vida.
MONTANO - E um notório vilão. Guardai esta arma
que eu ao
Mouro tomei. Vigiai a porta, não deixando que saia.
Antes,
matai-o. Vou procurar aquele miserável; é um
escravo maldito.
(Saem Montano e Graciano.)
OTELO - Já valente não sou; qualquer menino me
desarma.
Deve a honra viver mais do que a virtude? Que leve
o demo
tudo.
EMÍLIA - Que queria, senhora, pressagiar tua
cantiga? Vou fazer
como o cisne; morro e canto: Oh, salgueiro,
salgueiro! Mouro,
ela era casta. Cruel Mouro, ela se amava muito.
Assim minha
alma seja salva, como digo a pura verdade. Desse
modo falando
como penso... morro... morro.
(Morre.)
OTELO - Tenho outra arma no quarto, antiga
espada de
Espanha, temperada em água fria. Ah! Ei-la! Tio,
abri, para que
eu saia.
GRACIANO (dentro) - Se tentares sair, custar-te-á
caro. Não
tens armas; preciso é, pois, que sofras.
OTELO - Então me olha e me fala; do contrário,
embora
desarmado, hei de assaltar-te.
(Volta Graciano.)
GRACIANO - Que é que se passa?
OTELO - Vê, tenho outra espada. Melhor do que
esta nunca ao
lado esteve da coxa de um soldado. Já vi o dia em
que este
curto braço e esta boa arma me franqueavam
caminho com
obstáculos vinte vezes mais sérios do que os vossos.
Mas, oh
bravata inútil! Quem o fado dominar pode? Já não
é assim,
Nada receies, por me veres de arma. Cheguei ao fim
da viagem,
esta é a meta, a baliza da minha última vela.
Recuais pálido
assim? E medo inútil. Se alguém vier contra Otelo
com um
caniço, Otelo recuará. Para onde iria? Que aspecto
tens agora,
malfadada rapariga? Da cor do teu sudário.
Quando nos
encontrarmos para o ajuste de contas, teu olhar há
de minha
alma precipitar do céu, apoderando-se dela os
demônios logo.
Estás gelada, minha menina, tão gelada como tua
própria
castidade. Oh! maldito, maldito celerado!
Demônios, com
açoites expulsai-me da vista desta aparição divina!
Entregai-me
aos tufões, no enxofre assai-me, em tanques me
lavai de fogo
líquido. Oh Desdêmona! Morta! Oh, oh!
Desdêmona!
(Entram Ludovico, Montano, Cássio carregado em
uma cadeira,
e oficiais com Iago, prisioneiro.)
LUDOVICO - Onde está o violento e infeliz homem?
OTELO - Esse que foi Otelo? Aqui me encontro.
LUDOVICO - E onde se encontra a víbora? Trazei-
nos esse
infame.
OTELO - Prpcuro ver-lhe os pés. Mas não... É pura
fábula. Se
fores o diabo, não conseguirei matar-te.
(Fere Iago.)
LUDOVICO - Tomai-lhe a espada.
IAGO - Estou ferido, apenas, senhor; mas não
morri.
OTELO - Não me aborrece saber isso; é melhor que
fiques vivo,
pois a morte, a, meu ver, é grã-ventura.
LUDOVICO - O tu, Otelo, que tão bom já foste,
como vieste a
cair nas artimanhas de um celerado? Que dirão de
ti?
OTELO - O que quiserem. Assassino honrado, se
assim vos
aprouver, porque fiz tudo pela honra, não por ódio.
LUDOVICO - Este patife já confessou em parte as
vilanias. Mas
é verdade, mesmo, que com ele tínheis
prçmeditado matar
Cássio?
OTELO - É...
CÁSSIO - Meu general, eu nunca vos fiz nada.
OTELO - Disso estou certo e peço-vos perdão.
Perguntai, por
favor, a este demônio porque a alma e o corpo me
enleou a tal
ponto.
IAGO - Não me pergunteis nada; o que sabeis, já
sabeis. Não
direi, de agora em diante, nem mais uma palavra.
LUDOVICO - Quê! Nem mesmo para rezar?
GRACIANO - Haveis de abrir a boca no banco de
tormentos.
OTELO - Sim, faze isso.
LUDOVICO - Ireis saber agora tudo o que houve,
senhor, o que
decerto ainda ignorais. Esta carta se achava num
dos bolsos do
corpo de Rodrigo. Aqui está outra. Numa delas se lê
que deveria
Rodrigo matar Cássio.
OTELO - Oh, miserável!
CÁSSIO - Bárbaro a todo ponto e repulsivo.
LUDOVICO - Esta outra carta cheia de censuras
também estava
num dos bolsos dele. Parece que Rodrigo pretendia
enviá-la a
este malvado; mas decerto nesse em meio ele deu-
lhe
explicações.
OTELO - Oh biltre pernicioso! De que modo, Cássio,
vos foi
parar às mãos o lenço de minha esposa?
CÁSSIO - Achei-o no meu quarto, e o próprio Iago
confessou,
há pouco, que ali o jogara, tendo em vista um plano
que muito
lhe importava.
OTELO - Oh! Tolo, tolo!
CÁSSIO - Lêem-se também na carta de Rodrigo
censuras dele a
Iago por havê-lo forçado a provocar-me, quando
estávamos de
guarda, o que me fez perder meu posto. E agora
mesmo, tendo
de si voltado, depois de estar por morto, declarou-
nos que Iago
o ferira e que por ele mesmo tinha sido instigado.
LUDOVICO - Forçoso é que deixeis este aposento,
para virdes
conosco. Do comando já fostes destituído. Agora é
Cássio quem
manda em Chipre. Quanto a este bandido, se
houver algum
tormento prolongado que o faça durar muito, será
dele. Ficareis
como nosso prisioneiro, até que o Estado de Veneza
tome
conhecimento do que aqui fizestes. Vamos! levai-o
logo!
OTELO - Docemente! Uma palavra ou duas antes de
irdes.
Prestei alguns serviços à República, o que é sabido.
Mas sobre
isso, basta. Peço-vos por favor que em vossas
cartas, ao
relatardes estes tristes fatos, faleis de mim tal como
sou,
realmente, sem exagero algum, mas sem malícia.
Então a
alguém tereis de referir-vos que amou bastante,
embora sem
prudência; a alguém que não sabia ser ciumento,
mas,
excitado, cometeu excessos, e cuja mão, tal como o
vil judeu,
jogou fora uma pérola mais rica do que toda sua
tribo; a
alguém com olhos vencidos e que embora pouco
usados aos
sentimentos moles, maior número de gotas
derramaram do que
as árvores da Arábia fazer soem com sua goma
medicinal.
Contai-lhes isso tudo. E também que em Alepo,
certo dia, um
turco de turbante e malicioso bateu num veneziano
e em
termos baixos falou do Estado, e que eu, pela
garganta detendo
aquele cão circuncidado, o feri deste modo, assim...
assim...
(Apunhala-se.)
LUDOVICO - Oh conclusão sangrenta!
GRACIANO - Foi inútil tudo quanto dissemos.
OTELO - Dei-te um beijo antes de te matar. Só me
restava
(Caindo sobre o corpo de Desdêmona.)
morrer beijando a quem eu tanto amara.
(Morre.)
CÁSSIO - Receava isso mesmo; mas sem armas
julgava que
estivesse. Era pessoa de grande coração.
LUDOVICO (a Iago) - O cão de Esparta, mais cruel
que a fome,
a angústia e o próprio oceano! Contempla nesse
leito o fardo
trágico. É tua obra. Envenena a vista o quadro.
Tapemo-lo.
Graciano, a casa, agora, vos pertence; guardai os
bens do
Mouro, pois sois o herdeiro dele. A vós compete,
senhor
governador, dar o castigo a este biltre infernal.
Marcai o dia, o
lugar e a tortura. Oh! rigorosa! De bordo escreverei
para o
senado, relatando tudo isto, angustiado.
(Saem.)

FIM

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