Sociedade de Risco Ulrich Beck
Sociedade de Risco Ulrich Beck
Sociedade de Risco Ulrich Beck
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O conceito de sociedade de risco se cruza diretamente com o de globalizao: os riscos so democrticos, afetando naes e classes sociais sem respeitar fronteiras de nenhum tipo. Os processos que passam a delinear-se a partir dessas transformaes so ambguos, coexistindo maior pobreza em massa, crescimento de nacionalismo, fundamentalismos religiosos, crises econmicas, possveis guerras e catstrofes ecolgicas e tecnolgicas, e espaos no planeta onde h maior riqueza, tecnificao rpida e alta segurana no emprego. A proposta de construir no apenas um novo conceito dentro da teoria social, mas uma teoria da sociedade global de risco, apresentada por Beck de forma mais explcita em seus ltimos quatro livros: The reinvention of politics Rethinking modernity in the global social order (1997); Qu es la globalizao? Falacias del globalismo, respuestas a la globalizacin (1998); World risk society (1999) e The brave new world of work (2000). Nessas obras, o autor situa sua teoria no contexto de outras anlises sobre riscos e globalizao, fugindo de seu estilo anterior, com limitadas referncias produo acadmica. Beck pretende construir uma teoria social que estabelea um paradigm-shift dentro da sociologia, para poder reinventar a sociedade e a poltica. Apesar de ter sido criticado como um terico catastrofista (ver Mol e Spargaaren, 1993), Beck manifesta significativo otimismo em relao ao papel que devem e podem chegar a ter a sociologia e, em especial, a sua teoria. As pesquisas empricas altamente especializadas so objeto da crtica de Beck porque permaneceriam cegas ante transformaes que esto tendo lugar, ao pressupor a conservao de categorias e uma alta estabilidade social. Por exemplo, se, por um lado, lamenta-se o crescimento do desemprego, por outro, no se chega a questionar como uma sociedade baseada no trabalho est acabando com os empregos, devendo-se mudar o prprio conceito para se pensar como as identidades sociais e a segurana tornam-se possveis alm de suas relaes clssicas com o trabalho. Portanto, para Beck, no se pode continuar pensando alternativas com velhas categorias. A sociologia como disciplina deveria transformar-se, procurando novas teorias, hipteses e catego-rias, para evitar converter-se numa loja de antigidades especializada na sociedade industrial e para poder orientar as transformaes dos fundamentos das instituies da modernidade. O conceito de sociedade de risco permitiria a compreenso da modernizao reflexiva e, por isto, tambm entender o caminho pelo qual as solues devem ser formuladas. [2] Neste artigo me proponho discutir o alcance da teoria da sociedade global de risco, apresentando alguns questionamentos contextualizados no reconhecimento da contribuio crucial de Beck, ao trazer o tema dos riscos para o centro da teoria social, colocando a sociologia ambiental como chave para interpretar a atual fase da modernidade (Guivant, 1998). Destaco fundamentalmente dois problemas na sua teoria: 1) o evolucionismo/linearidade/ eurocentrismo na conceitualizao e descrio da dinmica da globalizao e 2) a impreciso acerca de como pode ser implementada a sua proposta de subpoltica ou de novas formas de fazer poltica para lidar com os riscos de graves conseqncias. Argumento que a proposta terica de Beck, apesar de apresentar um agudo diagnstico da alta modernidade como sociedade de risco, no plano das alternativas, s vislumbra algumas que permanecem, sobretudo, num terreno proftico e bem-intencionado na direo de uma desmonopolizao do conhecimento cientfico. No final deste artigo, procuro mostrar brevemente como os limites que indicamos na conceitualizao da dinmica da globalizao e da subpoltica comprometem a compreenso de um dos mais interessantes conflitos globais entre leigos e peritos a respeito dos riscos: o conflito relativo s sementes transgnicas. Os limites da globalizao No livro Risk Society, Beck apresentava uma perspectiva bastante linear e evolutiva entre a sociedade de classes e a sociedade de risco, deixando de considerar que no mundo globalizado encontram-se sociedades com as duas caractersticas, o que daria uma dimenso diferente prpria sociedade de risco. Assim, faltava a Beck analisar como se integram pobreza e riscos de graves conseqncias, como se potencializam os riscos com sistemas de controle e fiscalizao estatais precrios, ou como se caracterizam sociedades com culturas democrticas fragmentadas. Beck parece ter assumido que o conceito de sociedade de classes implicava necessariamente considerar a classe social como sujeito poltico privilegiado da transformao social. Separar esta relao relevante porque as desigualdades de classe continuam existindo, apesar do enfraquecimento da classe social como sujeito histrico.
Em seus trabalhos mais recentes, Beck tem procurado explicitamente fugir tanto dessa limitada caracterizao da sociedade de classes como da decorrente viso linear e evolutiva entre sociedade de classes e sociedade de risco. Beck passou a reconhecer que seria muito simplista afirmar que a ecologia teria suplantado a questo de classe, enfatizando que elas podem se sobrepor e se agravar mutuamente (Beck, 1999: 24) num contexto em que, simultaneamente, h pases menos industrializados, ainda em busca de atingir o que se entende como as vantagens da modernizao simples, ao lado de pases altamente industrializados nos quais diversos setores questionam os fundamentos e os objetivos da modernidade industrial. Beck (1997:16) define esta situao como a chaotic simultaneity of the non-synchronous, a qual, para ser evitada, precisa de um intercmbio, em nvel global, para redefinir o que se entende ou se busca no desenvolvimento. Nesta simultaneidade, esto presentes trs tipos de ameaas globais, que podem se complementar e acentuar entre si: 1) aqueles conflitos chamados bads: a destruio ecolgica decorrente do desenvolvimento industrial, como o buraco na camada de oznio, o efeito estufa e os riscos que traz a engenharia gentica para plantas e seres humanos; 2) os riscos diretamente relacionados com a pobreza, vinculando problemas em nvel de habitao, alimentao, perda de espcies e da diversidade gentica, energia, indstria e populao; 3) os riscos decorrentes de NBC (nuclear, biological, chemical), armas de destruio de massas, riscos que aumentam quando vinculados aos fundamentalismos e ao terrorismo privado. O relevante desta classificao mostrar que no existem riscos globais como tais, mas que eles esto permeados por conflitos em torno de questes tnicas, nacionais e de recursos, os quais tm lugar desde o fim do confronto Oriente/Ocidente. Outro aspecto que Beck desenvolve para fugir de uma anlise linear e evolucionista o de considerar que os processos de modernizao no so irreversveis. A sociedade industrial apresenta-se para Beck como uma sociedade que no conseguiu ser plenamente moderna, mas tornou-se semimoderna, porque sempre teria combinado simultaneamente elementos de contramodernidade. O conceito de contramodernidade no inclui s o nazismo e o comunismo e tambm fenmenos como a opresso das mulheres, a industrializao generalizada da guerra, a militarizao de diversas formas da vida social, mas se refere s reformas potenciais baseadas no mundo das megatcnicas, como a engenharia e medicina genticas. A contramodernidade no definida, portanto, como uma sombra da modernidade, sendo ambas processos autnticos. A cincia e a tecnologia, a educao, os meios de comunicao de massa e as prticas polticas teriam contribudo para o surgimento das tendncias da contramodernidade. Beck (1998, 1999, 2000) tem enfatizado que a contribuio da sua teoria da sociedade global de riscos consiste em demonstrar que tanto as sociedades ocidentais quanto as no ocidentais podem enfrentar, simultaneamente, os mesmos desafios da segunda modernidade. Haveria uma pluralidade de modernidades, numa sociedade global de riscos, na qual as sociedades no ocidentais compartilham com as ocidentais os mesmos desafios da segunda modernidade, atravs de diferentes percepes culturais. Beck aponta aqui a simultaneidade das transformaes e a necessidade de definir as diferentes sociedades em relao a suas prprias caractersticas e no apenas ao fato de apresentarem ou no traos de modernidade. A globalizao dos riscos no significaria a igualdade global frente a eles porque, segundo o que define como a primeira lei dos riscos ambientais, a poluio segue os mais pobres. No seu af de deixar de lado o vis evolucionista, Beck chega a reverter esse quadro, colocando as sociedades no-ocidentais como espelho do que sero no futuro as sociedades ocidentais, com implicaes tanto positivas quanto negativas. Entre as primeiras, Beck enumera o desenvolvimento de pluralismos religiosos, tnicos e culturais. Como exemplos negativos, ele menciona a difuso do setor informal e a flexibilizao do mercado de trabalho, a desregulao de amplas reas da economia e das relaes de trabalho, a perda de legitimidade do Estado, o crescimento do desemprego, a interveno cada vez mais forte das corporaes multinacionais e o aumento dos ndices de violncia cotidiana, tomando o autor como modelo a sociedade brasileira (Beck, 2000). Como avaliar essas reformulaes da proposta terica de Beck a respeito da sociedade global de riscos? Em parte, ele corrige certos mal-entendidos acerca de suas idias em Risk Society, mas h outros aspectos que Beck no considera e que limitam o alcance da sua teoria. Surpreende como ele mantm uma viso empobrecida da globalizao, ao considerar como a maior diferenciao na simultaneidade da globalizao aquela que separa o bloco das sociedades ocidentais do das no-ocidentais, deixando de se referir aos diferentes tipos de
sociedades ocidentais. Pases pobres no se encontram exclusivamente entre os pases no ocidentais, nem os pases altamente industrializados deixam de ter as suas regies empobrecidas. O referencial destes ltimos leva Beck a no considerar as complexidades de combinaes possveis ao interior do bloco ocidental, como pode observar-se no caso da sociedade brasileira. Esta est atravessada pelos problemas de escassez, na qual a distribuio da riqueza altamente desigual entre as classes sociais coexiste com os problemas da sociedade de risco, sem estar organizada uma reflexividade ativa, como a que Beck identifica nas sociedades mais industrializadas, o que potencializa mais ainda os riscos. Esta situao afeta no s o Brasil, mas tem conseqncias peculiares dentro da dinmica da globalizao dos riscos. Desse modo, a teoria global dos riscos ainda carece de uma abordagem com maior potencialidade explicativa das complexas relaes entre os processos de globalizao dos riscos e as manifestaes especficas que estes podem adquirir em diferentes sociedades. A subpoltica difusa Em The Reinvention of Politcs (1997), Beck coloca como objetivo aprofundar as conexes entre sua teoria e as conseqncias que ela traz para a ao poltica. Depois da Guerra Fria, novas definies polticas se fariam necessrias para se entender os caminhos da modernidade e da contramodernidade. Todo o lxico poltico e social (a mistura ocidental de capitalismo, democracia e governo das leis) teria passado a ser obsoleto e, por isto, Beck levanta a necessidade de uma reinveno da poltica que no pregaria revolues, crises, desintegraes ou conspiraes, mas uma renegociao, um redesenho, uma autotransformao da sociedade industrial. O mundo das instituies polticas (parlamentos, partidos polticos, sindicatos etc.) simbolicamente rico, no qual se identifica poltica com Estado, sistema poltico com carreiras polticas full-time, estaria coexistindo com o mundo das prticas polticas cotidianas, caracterizado por uma individualizao dos conflitos e interesses. Transformaes complexas estariam acontecendo no plano da individualizao conjuntamente com os processos de globalizao. Tal individualizao no seria equivalente a atomizao, isolamento ou solido, mas a processos em que os indivduos devem produzir suas biografias (algo equivalente formulao de Giddens sobre a reflexividade). A esse tipo de individualizao corresponde um tipo de poltica que ainda coexiste com a anterior, mas esta superposio no implica necessariamente dilogo entre as duas formas de fazer poltica. [3] A poltica convencional, de acordo com Beck, se enfraquecer cada vez mais medida que as categorias tradicionais de esquerda e direita ou conservador e socialista forem deixando de ter utilidade. Trs dicotomias substituiriam a metfora poltica esquerda-direita: seguro-inseguro, insideoutside e poltico-apoltico, correspondentes s perguntas sobre quais atitudes adotar em relao incerteza, em relao aos estrangeiros e possibilidade de desenhar a sociedade. O espao da subpoltica (entendido como subsistemas polticos) distingue-se da poltica (na acepo do sistema poltico oficial), por envolver atores que so outsiders desta ltima esfera (grupos profissionais e ocupacionais, a intelligentsia tcnica de companhias, institutos de pesquisa e administrao, trabalhadores qualificados etc.) e que passam a participar do debate pblico sobre diversos tipos de assunto. Tais atores no participam apenas como agentes coletivos e sociais, mas tambm como indivduos no sentido da individualizao acima referida. A subpoltica seria uma forma de fazer poltica radical, que levaria a uma reconstruo do sistema poltico, por meio da delegao do poder a grupos diversos (deixa isto no plano da ambigidade, como veremos) e a agncias globais, combinando novos contedos, formas e coalizes com um ingrediente de realismo maquiavlico, e no atravs de uma poltica de convico no sentido de Weber. Uma questo central como na subpoltica se lida com os riscos de graves conseqncias. Em Risk Society, Beck havia evitado relacionar sua anlise com os trabalhos j existentes na teoria social e cultural dos riscos, particularmente com a influente contribuio de Mary Douglas (1994). Beck oscilava entre uma posio realista sobre os riscos e uma posio construtivista. Cada uma destas posturas tem implicaes diferentes para a questo da subpoltica. Por exemplo, se consideramos os riscos reais, como lidar com as percepes dos leigos? Continuamos dando o poder decisrio aos peritos? Mas, se consideramos os riscos produto de construes sociais, como lidar politicamente com as diferentes percepes?
Recentemente, Beck (1999) abriu o debate com outros tericos dos riscos e explicitou sua posio de superar a dicotomia entre realistas e construtivistas, combinando ambas posturas. Beck, assim como Giddens, afirma compartilhar com a teoria cultural dos riscos a crtica dicotomia entre um conhecimento perito que avalia os riscos e uma populao leiga que os percebe. A no-aceitao de uma determinada definio cientfica de um risco por um setor da populao no implica que este seja irracional, mas, o contrrio, indica que as premissas culturais acerca da aceitabilidade de riscos contidas nas frmulas cientficas so as que esto erradas. Mas, ainda que reconhea tanto as contribuies de Douglas quanto as de Wildavsky (1983), na compreenso de como os riscos no existem independentemente de nossas percepes culturalmente definidas, para Beck seria pouco satisfatria a posio desses autores por eles ignorarem: 1) o carter dual dos riscos, que combina a sua imaterialidadedefinio social e sua materialidade-produto de uma ao; e 2) a especificidade dos riscos do perodo de ps-guerra a capacidade de aniquilao ecolgica e nuclear. A confluncia entre a perspectiva realista e a construtivista estaria no cerne da teoria da sociedade global de riscos. Da posio realista, Beck resgata o reconhecimento de que o conhecimento cientfico pode identificar e demonstrar que as conseqncias e os perigos da produo industrial desenvolvida so agora globais, exigindo polticas a serem formuladas por instituies transnacionais. Mas a perspectiva construtivista chave para se poder responder a questes acerca de como, por exemplo, se produz a auto-evidncia segundo a qual os riscos so reais, e sobre quais atores, instituies, estratgias e recursos so decisivos para sua fabricao (Beck, 1999: 24). Isto , os riscos existem e no so meramente uma construo social, mas a sua transformao depende de como so percebidos socialmente. Reconhecendo-se esta confluncia entre as duas perspectivas, poderiam ser aceitos, com menores resistncias entre os peritos, os limites do conhecimento cientfico para estabelecer os standards de certos tipos de potenciais riscos, assim como a necessidade de que no mbito da subpoltica no s se devam tomar decises, mas tambm se restabelecer as regras e as bases em que se tomam tais decises, abrindo-se o dilogo e o processo decisrio e reconhecendo-se a ambigidade e a ambivalncia dos processos sociais como inevitveis, sem se procurar solues definitivas (Beck, 1994). A proposta de Beck vai na direo, por exemplo, de uma tecnologia autnoma, livre das determinaes e interesses econmicos e militares, o que possibilitaria um processo decisrio aberto e democrtico acerca de suas aplicaes e usos. At aqui estamos ante a manifestao de Beck sobre a necessidade de uma subpoltica para encaminhar as transformaes que ele vislumbra como necessrias. Mas Beck no tem avanado significativamente em precisar a implementao desta subpoltica, apesar de incorporar exemplos recentes, como o dos alimentos transgnicos e o debate na Inglaterra no incio de 1999. Neste caso, Beck identifica o incio do caos normal do conflito sobre os riscos, no qual se manifestam desencontros e contradies entre peritos e contraperitos, que acabam estimulando a descrena dos consumidores nos sistemas peritos. Diante disso, Beck (1999: 108) prope que se criem governos e instituies abertas, transparentes, que informem o pblico e alertem as indstrias, de forma que se possa conviver com os riscos da sociedade moderna, em lugar de bani-los. Isto implicaria, em lugar de se esperar por um completo controle dos riscos, procurar formas de lidar democraticamente com as decises sobre os riscos que as sociedades escolhem enfrentar. Mas como implementar-se a subpoltica? Como controlar os riscos? A alternativa seria a formao de fruns de negociao, envolvendo autoridades e empresas, assim como sindicatos, representantes polticos, peritos, ONGs etc. Tais fruns no necessariamente procurariam o consenso, mas possibilitariam tomar medidas de precauo e preveno, integrando as ambivalncias, mostrando quem so os ganhadores e perdedores, tornando isso assunto pblico e, desta forma, melhorando as precondies da ao poltica. Beck sugere tambm que poderiam ser instaurados comits e grupos de peritos nas reas cinzas da poltica, da cincia e da indstria, incorporando representantes de diferentes disciplinas, de grupos alternativos de peritos e de leigos. Esses fruns de negociaes no seriam necessariamente mquinas de produzir consenso com sucesso garantido nem eliminariam conflitos ou perigos industriais fora de controle. Mas poderiam contribuir para prevenir riscos, garantir uma simetria de sacrifcios que no pudessem ser evitados, tornar mais transparentes quem so os vencedores e os perdedores. A cincia tpica da sociedade de risco, que opera por trs das portas fechadas dos laboratrios, seria assim superada por outra cincia, que seja, paradoxalmente, mais racional do que aquela pretendia ser. Por este argumento, Beck est muito distante do discurso da ps-modernidade e
longe de qualquer possibilidade de cair na defesa do irracionalismo. Trata-se de uma cincia que efetivamente se coloca numa torre de marfim, mas s em relao aos interesses econmicos e polticos. O mais preciso que Beck chega ao sugerir uma espcie de upper house ou corte tecnolgico, que deveria garantir a diviso de poderes entre o desenvolvimento tecnolgico e sua implementao, e um reconhecimento pblico das incertezas cientficas. Neste apelo aos fruns, participao do pblico e a uma democratizao dos processos decisrios/desmonopolizao do conhecimento perito, podemos identificar um dos dois significados democratizantes da obra de Beck. O outro significado est relacionado com a abrangncia sem limites sociais e geogrficos dos riscos da alta modernidade. Enquanto esta forma de democratizao implica que todos podemos nos ver afetados pelos riscos de graves conseqncias, a primeira significa que todos podemos participar da tomada de decises a respeito dos riscos que queremos correr. A segunda coloca a populao como vtima; a primeira, como agente ativo da subpoltica. Com a democratizao dos riscos, Beck faz o diagnstico da sociedade de risco; com a democratizao das decises, faz a sua profecia. Algumas perguntas precisam ser colocadas frente a esses argumentos: 1) O que desmonopolizao da cincia? sua apertura desde seu interior e a filtragem de suas limitaes a partir do teste pblico de suas prticas; a politizao dos espaos de tomada de decises cientficas?; 2) Quem o pblico?, e 3) Quais so os meios para se atingir a democratizao que prope? O conceito de pblico no bem especificado, permanecendo como sinnimo de povo soberano, envolvendo leigos e peritos dissidentes As respostas de Beck tendem a enfatizar e a pressupor uma cega confiana no pblico, tratado como se formasse uma categoria homognea, incontaminada no sentido das influncias dos peritos. Poderamos dizer que se trata de uma espcie de mito da democracia popular. Um problema equivalente pode ser encontrado nos excelentes trabalhos de Wynne (1996 a e b) e Irwin (1995), nos quais uma sofisticada e rica crtica ao conhecimento cientfico no parece corresponder com o tipo de enfoque sobre conhecimento, percepes e prticas dos leigos. Consideramos que a desmonopolizao da cincia no implica necessariamente democracia das decises, porque nem os leigos nem os peritos se opem entre si como blocos homogneos (Guivant, 1997). H vrias respostas possveis pergunta sobre como queremos viver, dadas por atores sociais e instituies, em alianas, redes diversas, altamente heterogneas envolvendo tanto leigos quanto peritos, instituies estatais, ONGs etc. , de carter parcial a respeito de um assunto , efmero no implicam adeses ou identidades duradouras , com especificidades nacionais, regionais ou locais dentro de uma aliana global em relao a um determinado assunto. Estas redes de alianas so heterogneas tanto entre os que so a favor quanto entre os que so contra uma determinada tecnologia e seus potenciais riscos (Guivant e Miranda, 1999). Nesse ponto que radica a dificuldade de visualizar as alternativas propostas por Beck. A complexidade de conflitos e tenses que ele identifica na sociedade de risco parece evaporarse quando nos perguntamos o que haveria alm dela. As solues propostas permanecem num plano de alta generalidade e, portanto, mais parecem prximas da utopia do que de uma vivel reinveno da poltica. Em parte, isso chega a ser assumido pelo prprio Beck ao analisar as alternativas ao modelo tecnolgico dominante, quando reconhece que sua proposta pode parecer contrria aos fatos e mais prxima do que Giddens chama a utopia realista. Mas tambm pode se considerar que a idealizao dos leigos apia-se na limitada percepo que Beck tem das complexidades da dinmica da globalizao nas relaes entre pases do Norte e do Sul e no interior de cada um destes pases, como vimos no item anterior. A sociedade global de riscos que Beck analisa est enraizada em sua experincia europia e talvez mais intimamente na sua realidade alem. Mesmo quando, no seu ltimo livro (Beck, 2000), focaliza o problema da flexibilizao do trabalho e os efeitos do desemprego, e os identifica com a brasileanizao do Ocidente, encontramos uma viso simplista do Brasil, por no consider-lo atravessado de realidades diversas e coexistentes. Os transgnicos na sociedade global de riscos Os acontecimentos recentes em torno dos transgnicos colocam a teoria da sociedade de risco ante uma situao que pode ser interpretada com algumas das categorias da teoria da sociedade global de riscos, particularmente no que se refere aos limites do sistema cientfico-
tcnico de segurana alimentar (food safety) para lidar com o conhecimento incerto no longo prazo. O caso dos transgnicos aparece como um claro exemplo dos limites atuais dos mtodos tcnicos/estatsticos na anlise dos riscos que envolvem um alto grau de incerteza. J Beck (ver Mol e Spaargaren, 1993) tem questionado tais mtodos por: 1) terem alcance limitado, pois nem mesmo todas as substncias podem ser avaliadas no seu potencial de risco, nem podem ser avaliados os efeitos das combinaes nos nossos corpos e no meio ambiente; 2) no considerarem os efeitos cumulativos a longo prazo; 3) projetarem para os seres humanos, de uma forma controvertida, resultados estudados em animais; 4) ignorarem-se os fatores sociais que podem influenciar as peculiaridades da sensibilidade dos indivduos. Tambm podemos, a partir de Beck, dimensionar esse debate no contexto da crise de confiana nos critrios, regras, instituies e produo cientfica igualmente envolvidos na busca de garantia da seguridade dos alimentos que consumimos. A reflexividade mais ampla a respeito da sade e da qualidade de vida tem emergido apesar da falta de acordo cientfico sobre os riscos, inclusive justamente por sua causa. As freqentes marchas e contramarchas da pesquisa cientfica sobre a relao entre alimentos e sade acabam no s estimulando as incertezas do pblico consumidor como tambm provocando dvidas quanto confiabilidade das prprias informaes cientficas e das instituies que as emitem, acirrando os conflitos entre o conhecimento leigo e o perito. O consumidor deve navegar num mar de informaes difundidas nos meios de comunicao e transmitidas pelos mdicos, que podem ser altamente contraditrias e tambm desmentidas em tempo acelerado. Fischler (1980), muito antes da crise dos transgnicos, definiu esta situao como gastroanomia, referindo-se ao fato de que estamos cada vez mais desorientados em relao ao que devemos consumir, sem cdigos nutricionais precisos, sem saber o que ou no seguro. No entanto, os eventos em torno dos transgnicos colocam a teoria global dos riscos diante do desafio de traduzir as crticas e propostas em procedimentos operacionais, no s frente a um conflito entre leigos e peritos, visto que tambm envolve influncias polticas, poder das corporaes, velocidade da mudana tecnolgica, problemas ticos, efeitos econmicos diversos, especialmente se consideramos os pequenos produtores agrcolas e a ao dos grupos de interesse pblico tentando mudar o ritmo e a trajetria do prprio processo de globalizao. Trata-se do cenrio de um conflito global em torno dos riscos. Sem poder entrar aqui nos detalhes do debate cientfico acerca das evidncias ou no dos riscos que os transgnicos importam para a sade da populao e para o meio ambiente, o que nos interessa focalizar o prprio debate e as alianas e coalizes discursivas que se estabeleceram entre setores leigos e peritos (Hajer, 1995). Argumentamos que a teoria da sociedade global de risco no permite entender as complexas alianas que se estabelecem no plano internacional entre diversos atores e instituies, articulaes entre representantes de subpolticas e de polticas diante de um mesmo risco. Nos pases altamente industrializados, encontramos sistemas governamentais cada vez mais sofisticados tecnicamente na avaliao e manejo dos riscos alimentares, os quais estimulam uma expectativa de risco zero na populao. Esta se v abalada dramaticamente quando so difundidos eventos de riscos alimentares (contaminao por salmonela, doena da vaca louca, dioxina etc.), que expem as deficincias do sistema de controle de riscos. Pnicos alimentares se acumulam, estimulando a crise de confiana generalizada nos sistemas peritos, nas autoridades governamentais e nas instituies responsveis pela segurana alimentar (Beardsworth e Keil, 1997). Neste contexto de saturao de riscos alimentares, os transgnicos no constituem apenas mais um exemplo de problemas que podem ser ocasionados por vises reducionistas tanto do conhecimento leigo quanto do conhecimento perito. Eles tornaram-se a gota dgua que transbordou a confiana dos consumidores nos sistemas peritos. As reaes de consumidores e das ONGs, primeiro na Inglaterra e depois no resto da Unio Europia, levaram a retroceder os governos e a prpria Monsanto, e a mudar as estratgias dos supermercados. Outras facetas da crise gerada pelos transgnicos podem ser analisadas do ponto de vista da sociedade global de riscos, acrescida de uma viso mais complexa da globalizao, como estamos propondo neste artigo. No Brasil, por exemplo, a reao contra os transgnicos surge de uma aliana entre diferentes setores leigos e peritos num contexto muito peculiar sobre os riscos alimentares. H muito menos denncias destes riscos e, portanto, menos casos de pnicos na populao. Mas, obviamente, isto no implica afirmar que os riscos no existam porque os sistemas que procuram garantir a segurana alimentar sejam mais eficientes, e sim que no existem recursos tcnicos nem funcionrios suficientes para analis-los e detect-los.
Diante desta generalizada precariedade de controle e fiscalizao dos alimentos, o pblico consumidor est distante de uma expectativa de controle zero dos riscos. H mais uma atitude de resignao ou indiferena frente aos possveis riscos junto com o desconhecimento da sua dimenso. Estas atitudes dos consumidores devem ser avaliadas sem se desconsiderar as desigualdades sociais e a ameaa de muitos outros graves riscos sade pblica (remdios falsificados, situao precria de atendimento hospitalar etc.), assim como os avanos significativos nos direitos dos consumidores a partir da vigncia do Cdigo do Consumidor. Dentro da aliana heterognea no Brasil contra os transgnicos encontramos atores sociais convencionais, como o PT (Partido dos Trabalhadores) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que incorporam o tema dos transgnicos em um discurso classista, contra a globalizao, o imperialismo, as multinacionais, os Estados Unidos, o Fundo Monetrio Internacional, etc. As denncias contra os transgnicos so justificadas em argumentos econmicos e polticos: quem se beneficia e quem se prejudica? Como defender a sobrevivncia dos pequenos produtores rurais e dos assentados contra a globalizao e mercados de excluso social? Apesar de um referencial poltico marxista/socialista antiimperialista, tratam-se de atores sociais que estabelecem alianas com setores que assumem uma identificao maior com novos discursos polticos e que tomaram a iniciativa na mobilizao contra os transgnicos. Entre estes incluem-se ONGs internacionais, como Greenpeace, e rgos que assumem a representao dos consumidores, como os PROCONs, o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e os promotores pblicos federais. As aes legais so os eixos de sua interveno, com o objetivo de redefinir as competncias e decises da CTNbio (Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana), reivindicando a rotulagem e a aplicao do princpio de precauo. Os argumentos voltam-se mais para os riscos para a sade e ao meio ambiente e para defesa dos direitos dos consumidores, uma categoria significativamente ausente dos discursos do PT e do MST. Aliados diretos a este grupo, encontram-se agncias governamentais, como o IBAMA, e grupo de cientistas que focalizam sobretudo no nvel de incerteza existente em relao aos riscos dos transgnicos e que recomendam tambm a aplicao do princpio de precauo. Na coalizo a favor, encontramos os cientistas que defendem os critrios e decises da CTNbio e representantes das empresas de biotecnologia, como a Monsanto. O argumento apresentado de carter cientfico convencional, identificando os setores contrrios como irracionais, desinformados, catastrofistas e contra o progresso. Tambm este discurso caracteriza-se pela pouca flexibilidade para reconhecer as limitaes do conhecimento cientfico para captar os nveis de incerteza e indeterminao das novas tecnologias. Portanto, contra os transgnicos constituiram-se alianas entre diversos grupos de leigos incluindo setores de produtores rurais setores de produtores agrcolas [4] e peritos que convergem por diferentes interesses e motivaes e sobrepassam as fronteiras regionais e nacionais. Por sua vez, alianas dentro desta rede podem intersectar-se com outras redes de alianas, mas no necessariamente superpor-se. Por exemplo, as alianas dos setores crticos dos riscos dos transgnicos podem envolver ou no consumidores que fazem parte de redes de produo orgnica, uma vez que o questionamento dos produtos transgnicos pode reforar a produo convencional, como, por exemplo, o caso da soja, que tem alto uso de insumos qumicos. Se, por um lado, Beck permite entender o debate em torno dos riscos dos transgnicos a partir da combinao que ele faz das perspectivas realista e construtivista sobre os riscos de graves e incertas conseqncias, por outro, este caso nos permite analisar os limites de sua teoria da sociedade global de riscos. Isso fundamentalmente em dois aspectos: 1) a necessidade de uma conceitualizao diferente da globalizao que considere as especificidades das dinmicas locais e regionais, no apenas confrontando pases ocidentais e no ocidentais ante os mesmos problemas, com alianas especficas e cruzadas entre grupos de leigos e de peritos, mas tambm articulando atores que representam diversas formas de subpoltica com os que representam as formas convencionais de poltica; 2) a necessidade de definir mais precisamente o que se entende por subpoltica, por alternativas sociedade de risco, evitando-se abordagens idealizadas ou uniformizantes acerca das posies dos leigos. Concluses Em defesa da sua proposta de uma teoria da sociedade global de riscos, Beck (1997) apela para o critrio de positive problem shift, formulado pelo terico e historiador da cincia Irme
Lakatos. O que importa no so unicamente os fatos individuais que comprovem ou refutem sua teoria, porque estes sempre existem, como mostra a histria da cincia. O que decisivo, aponta Beck, mostrar at que ponto, ao ocupar o lugar dos velhos, novos argumentos tericos tornam possvel outros projetos de pesquisa e novos debates pblicos medida que trazem luz fatos, problemas, falsificaes e desenvolvem argumentos que anteriormente tinham permanecido marginais para as teorias dominantes. Mas, como propomos neste artigo, se a teoria da sociedade global de riscos permite formular diagnsticos, estes no deixam de ser simplistas, uma vez que partem de um conceito de globalizao que meramente ope pases do Norte a pases do Sul, sem considerar as complexidades no interior destes blocos e as conseqncias que elas tm para a dinmica global dos riscos. Vinculada a este conceito limitado de globalizao, a proposta de subpoltica de Beck tambm cai em dicotomias entre leigos e peritos, tendendo a idealizar os primeiros, o que dificulta pensar os caminhos para se implementar a proposta de subpoltica. Ilustramos esses questionamentos com a crise provocada pelos transgnicos. A proposta de Beck permite identificar e caracterizar os conflitos em torno do modo como lidar com os riscos considerando as incertezas, as certezas contraditrias, as indeterminaes, os valores diferentes a respeito da sociedade que pretendemos. Mas tal teoria altamente imprecisa para entender a complexa dinmica de globalizao dos riscos, assim como as heterogneas coalizes entre leigos e peritos, tanto nos planos nacionais quanto a nivel internacional. Referncias bibliogrficas Adam, B., Beck, U. e Van Loon, J.(eds). The risk society and beyond. Critical issues for social theory. Londres, 2000. Beardsworth, A e Keil, T. Sociology on the menu. An invitation to the study of food and society. Londres: Routledge, 1997. Beck, U. Risk society. Towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992. __________. The reinvention of politics, towards a theory of reflexive modernization. In Beck, U., Giddens, A. e Lash, S. Reflexive Modernization. Politics, Tradition and Aesthetics in the modern social order. Cambridge: Polity Press,1994 __________. Ecological politics in an age of risk. Cambridge, Polity Press, 1995a. __________. Ecological enlightenment. Essays on the politics of the risk society. New Jersey: Humanity Press, 1995b. __________. The reinvention of politics. Rethinking modernity in the global social order. Cambridge: Polity Press, 1997. __________. World risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. __________. The brave new world of work. Cambridge: Polity Press, 2000. Douglas, M. Risk and blame.Essays in cultural theory. Londres, Routledge, 1994. __________; Wildsky, A. Risk and culture. An essay on the selection of technical and environmental dangers. Berkeley: University of California Press, 1982. Fischler, C. Food habits, social change and the nature/culture dilemma. In: Social Science Information, 19, 6, 1980. Franklin, Jane (ed.). The politics of the risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. Giddens, A. Living in a Post-Traditional Society, Beck, U., in: Giddens A. e S. Lash, Reflexive Modernization. Politics, Traditions and Aesthetics in the Modern Social Order. Cambridge, Polity Press, 1994a. __________. Beyond Left and Right. The Future of Radical Politics. Cambridge: Polity Press, 1994b. __________. Runaway world. How globalization is reshaping our lives. London: Profile Books, 1999. __________. The third way and its critics. Cambridge: Polity Press, 2000. Guivant, J. Percepo dos olericultores da grande Florianpolis (SC) sobre os riscos decorrentes do uso de agrotxicos. Revista Brasileira de Sade Ocupacional. Fundacentro, So Paulo, v. 22, 1995.
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