O Novo Mundo Digital - Ricardo Neves
O Novo Mundo Digital - Ricardo Neves
O Novo Mundo Digital - Ricardo Neves
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ndice PREFCIO DE QUE TRATA ESTE LIVRO? CAPTULO 1 Crnicas do sculo XXI CAPTULO 2 A internet s o comeo CAPTULO 3 Renascena Digital CAPTULO 4 Paradoxos do progresso e o mito dos Anos Dourados CAPTULO 5 O trabalho na era digital CAPTULO 6 Quando a riqueza passa a ser mais do que patrimnio e renda CAPTULO 7 Vivendo muito mais tempo CAPTULO 8 Reinventando a educao CAPTULO 9 Sade e bem-estar CAPTULO 10 O lar na Renascena Digital CAPTULO 11 Subrbios e centralidades CAPTULO 12 A universalizao da educao financeira na Renascena Digital CAPTULO 13 Entretenimento CAPTULO 14 Mdia pessoal e colaborativa CAPTULO 15 A nova geografia multinacionalizada do cotidiano CONCLUSO
PREFCIO
Este livro trata de caminhos que vrias pessoas esto descobrindo exatamente
como meio de se tornarem menos refns de estruturas antiquadas (instituies, tecnologias, estilos de vida, trabalho sem sentido etc.) e ter uma vida mais cheia de significado. No so caminhos prontos, mas em processo de construo, obra inovadora de indivduos que no esto dispostos a resignar-se ao papel de espectador passivo da vida que transcorre. Mais e mais pessoas se descobrem como pioneiros que avanam em direo nova fronteira: os tempos futuros. Como lagartas que tentam sair da crislida para tornarem-se borboleta, esses novos pioneiros trabalham arduamente construindo novos estilos de vida e organizaes inovadoras. Assim, como os pioneiros que descobriram novos mundos exteriores Marco Polo, Colombo, Vasco da Gama , estes pioneiros arriscam mais do que a mdia da humanidade que prefere engordar, se intoxicando, corpo, mente e alma de lixo, que mistura fast-food, reality shows, entretenimento de massa, consumismo, comodismo e conformismo. com essas pessoas e sobre estas questes que este livro se prope a dialogar, contribuindo para um crculo virtuoso, que parte da reflexo, passa pelo dilogo e desgua nas aes de transformao.
CAPTULO 1
entre Internet, a TV digital e a telefonia celular, ocorreu um espetacular salto exponencial que acabou por tornar a conexo da grande rede algo to natural quanto ter documento de identidade. Uma revoluo vem acontecendo na vida produtiva de todos os pases, bem como no estilo de vida das pessoas. Milhares de tipos de negcios simplesmente tm deixado de existir, assim como os empregos por eles gerados; em alguns casos, literalmente da noite para o dia. Porm, de forma igualmente frentica, outros diferentes e inovadores negcios vm sendo progressivamente criados. Os jornais dirios em papel acabaram e o mercado de livros vem paradoxalmente crescendo com extrema vitalidade. Quando se fala em notcia, tudo agora on-line. Com a acessibilidade grande rede tendo se tornado lugarcomum, e em especial depois que a velocidade de conexo ultrapassou a barreira dos dez gigabytes por segundo, mesmo sem necessidade de conexo por fios, tornou-se irracional e totalmente anticomercial fazer jornal impresso por causa dos custos com papel, servios grficos e especialmente por causa dos custos de distribuio. Por outro lado, indo na contramo das anlises de tendncias de mercado dos especialistas, o segmento editorial deu um salto de crescimento. A indstria do livro nunca esteve to bem. O livro se tornou um produto mais desejado pelas pessoas, pois apresenta um grande diferencial em relao aos produtos digitais. O livro, costuma-se dizer, tem permanncia e charme em um mundo onde tudo digital. A produo grfica se tornou mais caprichada, com design mais arrojado. Alm disso, o preo do livro caiu graas ao crescimento da economia de escala, isto , o aumento das tiragens em cada edio e o aumento da eficincia da industria editorial. Na medida em que o livro passou a ser visto como uma espcie de suvenir de conhecimento, as editoras passaram a customizar edies: voc pode comprar um mesmo texto com diferentes opes de formato, capa, textura, ilustraes. Escolha o tipo que mais combinar com voc, como so ainda os tnis e sapatos esportivos. A expectativa de vida ao nascer nos pases escandinavos j alcanou a marca de 97 anos para as mulheres e 95 para os homens. Com isso, ser votado brevemente um novo piso para a aposentadoria nos pases da Unio Europia: 78 anos. Estima-se que 60% das pessoas da gerao que nasceu na virada do sculo XX para o XXI devero ultrapassar cem anos. No Brasil, estamos chegando mdia de 90 anos de expectativa de vida ao nascer, e o governo est tentando convencer o Congresso a votar um aumento do piso de aposentadoria para 72 anos ao mesmo tempo que procura convencer a sociedade da importncia do aumento. O mal de Alzheimer atinge mais de 5% da populao nos EUA. O nmero de pessoas internadas nos asilos para idosos acometidos de Alzheimer j maior que a populao do estado do Rio de Janeiro no comeo do sculo XXI. A eutansia, como um direito do indivduo, foi finalmente reconhecida pela Suprema Corte nos EUA. Esse fato ocorre com uma defasagem de duas dcadas em relao aos pases escandinavos e anglosaxnicos europeus. Filmes e msicas no so mais comprados nem alugados em lojas. Voc pode baixar da Internet tudo o que quiser. Na verdade, a tendncia de substituir produtos
por servios vem sendo acentuada mundialmente. Cada vez mais as pessoas preferem alugar produtos eletrnicos e eletrodomsticos na forma de assinatura disponibilizao em suas residncias. Ao alugar um aparelho de TV, ar-condicionado, geladeira, home theater, computador, e mesmo automvel, as pessoas se livram das dores de cabea de manuteno e de obsolescncia. Esse processo melhorou consideravelmente a reciclagem dos produtos. Para isso, os grandes fabricantes tiveram que se reinventar para trabalhar em parceria com uma rede de fornecedores que atende localmente os seus clientes. TV e rdio convergiram para dentro da Internet. A grade de horrio de programao no existe mais. Voc v o que quer, na hora que quer. Muita gente ainda conta para os netos como era engraado juntar todo mundo na sala em determinada hora para assistir novela, ao noticirio e outros programas de TV. A SSCC Sndrome da Sobrecarga Cognitiva uma das principais razes de pedidos de aposentadoria por questes de sade. Esta uma sndrome tpica da Era Digital que comeou a ser observada por especialistas ainda nos primrdios do sculo XXI. Em seu estgio inicial, as pessoas se mostram irritadias ou frustradas por no conseguirem acompanhar e processar as informaes s quais so expostas. Se no for acompanhado e tratado, com terapias, medicamentos, grupo de auto-ajuda, o quadro poder evoluir para catatonia crnica ou ento para comportamentos marcadamente anti-sociais. Todo o mundo tem seu prprio tablet. O aparelho eletrnico do tamanho de um pequeno bloco de papel e que integra o computador pessoal ao telefone celular alcanou a penetrao de 100% do mercado na Europa, na Amrica do Norte e no Japo. Adultos e tambm crianas a partir da pr-escola usam seus tablets para as mais diversas finalidades. Noventa por cento dos jornais dirios so lidos on-line nesses dispositivos. A frota mundial de carros atingiu a marca de dois bilhes de veculos. Em 2000 eram 700 milhes. O maior crescimento se registrou em pases como China, ndia e Brasil, o qual triplicou sua frota de 2000, tendo atingido a marca de 60 milhes de veculos. Os veculos atuais produzem baixa poluio. Os maiores transtornos so congestionamentos e a segurana viria. Todos os pases esto adotando o pedgio eletrnico nas principais artrias urbanas e foi abolido o estacionamento gratuito. O carro transformou-se em um bem barato, acessvel a qualquer um. Na verdade, o custo da posse do carro se tornou irrelevante. O que conta o custo do uso: pedgio e estacionamento, principalmente. Para se livrar dos transtornos dos congestionamentos e para ter uma vida mais barata, um novo estilo de vida tem se tornado muito popular, o das pessoas que optam por morar nas chamadas centralidades urbanas, locais onde mesmo a p pode-se ter acesso ao trabalho e s atividades de lazer e compras etc. Andar a p, resolver necessidades cotidianas via grande rede e poder optar por usar o carro com muita moderao passaram a ser um estilo de vida almejado como busca por qualidade de vida. Isso provocou uma enorme desvalorizao dos imveis situados em condomnios fechados distantes dos centros urbanos, os quais eram vistos como osis de qualidade de vida e segurana no comeo do sculo XXI.
Crime organizado, narcotrfico, terrorismo e armas de destruio em massa: os quatros cavaleiros do Apocalipse. Guerra, epidemias, pobreza e fome no so consideradas mais as grandes ameaas humanidade atualmente. Os riscos de conflagrao militar se tornaram pontuais. Com isso, os exrcitos sofreram um processo radical de reengenharia. As Foras Armadas tpicas do sculo XX multides de soldados com armamento de alto poder de destruio que exigiam uma megaestrutura de logstica foram substitudas por redes de unidades constitudas de comandos de elite. A figura do soldado raso a carne de canho desapareceu. Apenas permanecem em foras armadas de pases muito atrasados. Praticamente todos os militares so oficiais profissionais altamente qualificados em inteligncia e ao militares tpicas de comandos de elite, equipados com os mais avanados recursos tecnolgicos, que vo desde avies e viaturas-robs, nanotecnologia, lasers, satlites, at redes neurais. O hidrognio vai se tornando a verdadeira fonte de energia da Era Digital, da mesma forma que o minrio foi a fonte da Revoluo Industrial e depois o petrleo no caso da sociedade ps-industrial. O petrleo, como combustvel, est praticamente aposentado. Os pases produtores de petrleo que no conseguiram encontrar outra vocao, como a Nigria, a Venezuela, o Ir e vrios pases rabes, esto passando por srias dificuldades econmicas e turbulncias sociais. O Brasil e todos os pases das Amricas assinaram a formalizao da Unio das Amricas, a chamada UA. Com um bilho de habitantes, os 38 pases da Patagnia ao Alasca passam a ter como moeda comum o dlar, e seus cidados passam a ter dupla cidadania, a de seu pas de nascena e a cidadania americana, isto , cidado da UA. (Foi por essa razo que passamos a chamar os cidados dos EUA de estadunidenses.) A regionalizao vai se tornando realidade nos outros continentes. A China assume a liderana na articulao da Unio do Pacfico. Enquanto isso, a Liga dos Pases rabes e a Unio Africana negociam sua entrada na Unio Europia (UE). A profisso de mdico j no atrai mais a juventude e vrios cursos esto sendo fechados. Salrios baixos e poucos empregos so a razo. Mesmo depois de trs anos aps a formatura, apenas dois de cada formando da rea mdica encontra um emprego com salrio comparvel ao de um motorista de nibus urbano. Uma das causas que a prtica da medicina mudou radicalmente nos ltimos anos. A combinao dos avanos tecnolgicos, com destaque para a medicina diagnstica, a engenharia gentica, os frmacos inteligentes, a nanotecnologia etc., fez com os quadros mdicos o que a tecnologia de informao fez com a categoria dos bancrios, que eram 900 mil empregados apenas no Brasil em meados ao final da dcada de 1980, e foi reduzida a quase cem mil ao final da primeira dcada do sculo XXI. Por outro lado, tem tido acentuada valorizao alm de aumento da demanda enfermeiros, paramdicos e os chamados tcnicos profissionais ligados aos servios de bem-estar, que combinam a expertise de educao fsica, psicologia e terapias alternativas como shiatsu, pilates, acupuntura etc. A Assemblia Geral das Naes Unidas aprovou hoje um fundo especial para a Reengenharia Governamental. Essa iniciativa se destina a ajudar os pases que
esto necessitando mais urgentemente racionalizar a mquina governamental. Desde a ltima dcada, pressionados pelos eleitores e contribuintes, que tm feito mobilizaes locais e internacionais com o slogan Mais com menos, os lderes polticos tm enxugado o funcionalismo. No Brasil, o governo federal j reduziu em um tero a mquina pblica. Servidores com mais de 45 anos que no so capazes de utilizar tecnologia de informao para suas funes so estimulados a se demitir ou aposentar. Os pases mais avanados em processos de reengenharia que fizeram avanos significativos tanto em termos de produtividade quanto de qualidade so Nova Zelndia, Austrlia e Coria do Sul. Os fundos de penso de empresas estatais apresentam dficits recordes e correm o risco de irem bancarrota ameaando a segurana social de milhes de brasileiros com mais de 60 anos. Segundo o governo, no existe mais possibilidade de transferncia de recursos pblicos para cobrir dficits. Uma das solues que est sendo estudada, inclusive com o apoio dos participantes desses fundos, a agilizao do processo de privatizao dessas empresas. Assim, empresas como Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econmica podero finalmente passar condio de empresas privadas. E tem muito mais
CAPTULO 2
A internet s o comeo
A infncia da grande rede e o comeo da grande ruptura
Existem
dois grupos de explicaes para o incio do Universo. Uma explicao totalmente religiosa e que est no Gnesis: Fiat lux, isto , faa-se a luz, teria dito Deus. A outra a hiptese cientfica que cosmlogos e fsicos criaram e desenvolveram durante o sculo XX: o Big-bang, isto , a grande exploso que teria ocorrido cerca de 15 bilhes de anos atrs. O planeta Terra, nossa nave no universo, teria aparecido h uns quatro bilhes de anos e ns, como espcie, teramos surgido somente h um milho de anos. As primeiras cidades, na verdade meros acampamentos, teriam se formado h mais ou menos dez mil anos. Civilizaes que so construes humanas muito mais complexas, como a egpcia, a mesopotmica, a grega, a romana etc., so criaes coletivas muito mais recentes e que comearam menos de cinco mil anos atrs. Do ponto de vista individual, a vida humana segue um passo cotidiano em que as pessoas, mergulhadas na luta pela sobrevivncia, no conseguem perceber a prodigiosa saga civilizatria que, como espcie, temos realizado nestes ltimos dez mil anos. Em verdade, a maior parte da humanidade passa pela vida sem ter uma perspectiva clara da nossa jornada civilizatria. pena que ns, como indivduos, no percebemos nossa condio de protagonistas nesta fantstica Histria e tambm no desenvolvemos mais nossa viso prospectiva. Em alguns momentos turbulentos de nossa histria como espcie, algumas vezes logramos realizar uma sinergia de criaes e invenes coletivas que aceleram o curso da vida humana associada fazendo acontecer rupturas impressionantes. Aqui entra a Internet, que hoje a mais extraordinria dessas invenes e que estar sendo o centro das megatransformaes civilizatrias que nos conduziro da Era Ps-Industrial para os tempos da Era da Sociedade Digital Global. Mas antes de falarmos especificamente na revoluo chamada Internet, vejamos alguns dos exemplos das grandes invenes e inovaes coletivas que a precederam e que produziram rupturas igualmente extraordinrias. Isso deixar mais clara a idia de evoluo que defendo. Linguagem, agricultura e cidades: as trs maiores invenes coletivas da humanidade at ento A primeira grande inveno humana , sem dvida, a linguagem oral. Esta foi a mais extraordinria ferramenta de socializao criada pela humanidade desde o incio dos tempos em que o Homo sapiens apareceu. Imagine que coisa extraordinria: associar sons sados de dentro da boca dos indivduos a significados dos mais diversos
possveis e estabelecer um padro coletivo de comunicao baseado nesses sons e seus significados. Imaginem como as possibilidades dos indivduos aumentaram. Poder expressar sentimentos e necessidades. Poder explicar planos e intentos, como coordenar as funes domsticas, caar, encontrar comida, guerrear e, por fim, comear a criar uma das mais sublimes formas de expresso humana: a arte. Milhares de anos se passaram, at que uma outra inveno tomou forma: a agricultura. A segunda grande revoluo coletiva do Homo sapiens sapiens. Os primeiros grupamentos humanos estavam condenados a perambular por toda sua existncia coletando e caando para sobreviver. Vidas curtas e de extrema penria. A agricultura significou a libertao do estado natural que equiparava os seres humanos a quase bichos. A inveno coletiva da agricultura teve mltiplas vantagens alm de libertar o homem da escassez nutricional a que coletores e caadores estavam condenados: tempo liberado para mais contatos humanos e para desenvolver novas experincias. A agricultura permitiu que se formassem ainda comunidades maiores. Mais gente, mais energia criativa colaborativa, mais comunicao, mais ingredientes para outras inovaes foram se acumulando at chegarmos a uma nova criao coletiva revolucionria que nasceu h dez mil anos: as cidades. Assim, juntando as trs grandes invenes linguagem, agricultura e cidades , a humanidade se descolava do mundo natural e ficava cada vez mais desassemelhada da vida natural dos bichos. No entanto, a comunicao entre os humanos por ser unicamente oral era restrita aos seres que estavam vivos na mesma poca. Sem a comunicao escrita, o patrimnio do saber no podia ser estocado e passado adiante. Cada gerao ficava presa ao seu prprio e curto tempo de existncia. Os antepassados falavam com as geraes futuras apenas atravs de seus resqucios materiais e obras de arte. At que a escrita surgiu cerca de cinco mil anos atrs, passados quase cinco mil anos depois da inveno das cidades. Agora sim, era possvel acumular a sabedoria dos que viveram e pass-la adiante. Com isso a humanidade no estava mais condenada a ter de reinventar uma srie de coisas a cada gerao que nascia. No ambiente das cidades, j com a vantagem da comunicao escrita, floresciam centenas de outras promissoras atividades humanas. Comrcio, indstria, finanas, cincia, tecnologia, artes: a criatividade do Homo sapiens sapiens progredia e novas invenes foram sendo incorporadas ao cotidiano. Como sempre acontece, a integrao e a sinergia delas foram produzindo ondas de rupturas sucessivas. s lembrar gregos, romanos, Idade Mdia, Estados Nacionais, Revoluo Comercial, Revoluo Francesa, Independncia Americana, Revoluo Industrial e... Estamos chegando ao nosso tempo, quase na vspera da entrada no Terceiro Milnio, quando homens e mulheres inventaram uma grande rede de comunicao que poderia crescer infinitamente, a qual todos, pessoas, organizaes, governos, pases em qualquer continente, poderiam usar para comunicar e estocar conhecimentos. Assim, enquanto indivduos, no nos dvamos conta do que amos fazendo coletivamente, mas a humanidade, graas ao desenvolvimento de suas mquinas eletrnicas capazes de processar e estocar informaes e dados na forma de 0s e 1s, chegou a um novo
patamar civilizatrio. E aqui estamos no limiar de um futuro desafiador. At que ponto voc tem se preocupado com sua adaptao pessoal, em um mundo no qual uma grande rede como essa vai mediar todas ateno, eu disse TODAS! as relaes humanas, sejam essas de objetivo produtivo, de consumo, de entretenimento, de natureza social, afetiva e outras dimenses prprias da vida humana associada. Quem no sabe andar na rua, no sai de casa. Nos anos que esto por vir, quem no souber navegar na Internet estar condenado a uma existncia de prisioneiro, de pria social, de ermito, de alienado. As pessoas simples costumam dizer, quando se deparam com complexidades que lhes parecem incognoscveis, isto , que so impossveis de serem compreendidas, que a vida para se viver um dia depois do outro. No entanto, homens e mulheres que conseguem ver um pouco mais adiante do que um dia depois do outro, que conseguem olhar 360 graus ao redor e no em uma linha reta, so os que melhor conseguem sobreviver. Mais do que isso, so os seres humanos que logram um maior controle sobre seu prprio destino. Portanto, temos de pensar tambm do futuro para o presente e no s do presente para o futuro. A Internet traz imensas possibilidades. Para o bem e tambm para o mal. Pela primeira vez na histria da humanidade temos uma mquina gigantesca de comunicao e estocagem de conhecimento com um nvel altssimo de acessibilidade instantnea. quase um organismo vivo de conhecimento, nutrido de bits e bytes que todos ns injetamos atravs de milhes e milhes de computadores conectados dia e noite. Em poucos anos sero bilhes de seres e computadores conectados em rede dia e noite. No contexto histrico do pessimismo que caracterizava a Guerra Fria, no tempo em que temamos o holocausto nuclear, criamos uma extraordinria inveno que beneficia o indivduo mais do que minorias totalitrias. A Internet pertence categoria das ferramentas humanas que so potencialmente libertrias, isto , que possibilitam aos indivduos terem mais controle do prprio destino do que serem controlados por uma minoria. So aquelas ferramentas que quanto mais gente tiver melhor para os prprios indivduos do que para uma minoria. O telefone e a imprensa inventada por Gutenberg so outros exemplos dessa linhagem de ferramentas. A plvora e a energia nuclear so exemplos de ferramentas de natureza totalitria, isto , que tendem a propiciar condies de domnio da maioria por uma minoria. Se voc est nos seus 80, 90 anos de vida, pense em aprender a usar a Internet para ter uma idia do que espera a humanidade nos prximos anos. Se voc est nos seus 60 e 70 anos, aprender a usar os recursos da Internet vai fazer bem, sobretudo como exerccio para seus neurnios. Isso vai ajud-lo a chegar melhor ainda aos 80, 90, quem sabe aos cem! Se voc est nos seus 40, 50 anos, no vacile nem um segundo em se tornar proficiente, sob o risco de envelhecer e se tornar irrelevante, do ponto de vista social e produtivo, muitos anos antes da velhice provecta. Se voc tem menos de 30, no se preocupe, a Internet ser parte natural de seu futuro, inevitavelmente. O uso da Internet como ferramenta de comunicao e como instrumento de busca e
construo de conhecimento no ainda corrente no cotidiano das residncias e dos indivduos fora da esfera do trabalho, mas em mais dez anos ela estar to presente nas residncias quanto o banheiro, que durante tanto tempo nas primeiras dcadas do sculo XX era chamado de WC (water closet) e que s comeou a se disseminar nos centros mais urbanizados a partir do final do sculo XIX. Da mesma forma como se disseminou a luz eltrica por todas as residncias e ambientes humanos, tornando-se disponvel somente a partir da primeira dcada do sculo XX. Praticamente 100% das residncias tero acesso Internet em velocidades cada vez mais rpidas. Alm disso, quando acontecer a convergncia entre telefonia celular, TV digital e Internet, o acesso individual ser indispensvel para as pessoas em qualquer circunstncia; seja em casa, no trabalho, em trnsito na rua ou no avio etc. Em um futuro prximo, no saber usar a Internet, em qualquer parte do planeta, ser uma ignorncia comparvel a no saber como usar uma descarga de banheiro, como dirigir um veculo, como usar um caixa bancrio, e por a afora. Servios bancrios, de educao, sade, consumo, atividades produtivas, mesmo o relacionamento social; tudo isso e muito mais ser impensvel sem a estrutura da grande rede, que evoluir a partir da Internet, seja qual for o nome que tiver. Nos anos que esto por vir, a Internet sacudir o status quo de forma imprevisvel e arrasadora. Demolir os muros e barreiras de toda a natureza, sejam elas geogrficas, de classe, institucionais, corporativas. Desestabilizar organizaes e instituies e implodir os centros estabelecidos que no se reinventarem. Dar margem ao nascimento de oportunidades inacreditveis, que ainda nem mesmo esto vista. Tremero e sero colocados margem aqueles que no forem capazes de manter a curiosidade infantil e a alegria de se tornarem permanentemente exploradores das novidades possibilitadas pela navegao do ciberespao. No perca mais seu tempo com bobagens como a TV. Deixe de lado jornais e rdios que no contriburem uma vrgula para que voc passe de espectador a ator ativo. Contrate um servio de banda larga. Acaso voc se julgue velho demais para aprender novos truques, no desanime. Aproxime-se de seus filhos, netos pequenos ou adolescentes, pea licena, sem ter vergonha de sua ignorncia, para acompanh-los na navegao do ciberespao. Entre sem medo na grande rede e inicie sua jornada em direo a um futuro onde voc tem mais opes para exercer maior controle sobre seu prprio destino. Antes que voc se torne irrelevante
CAPTULO 3
Renascena Digital
NAVEGANDO TEMPOS DE INCERTEZA
A transio entre a Era Ps-industrial e a Era da Sociedade Digital Global
Watt finalmente deu forma definitiva mquina a vapor, inveno que se mostrou revolucionria pelo fato de ter permitido humanidade, pela primeira vez, se libertar das limitaes da trao animal. Tnhamos tudo e nada tnhamos, amos todos diretamente para o Cu, ou amos em direo diametralmente oposta, continuava Dickens, de um jeito que voc deve identificar adequado tambm para descrever os nossos momentos manacodepressivos atuais. O resto do fatdico dia que passou a ser conhecido simplesmente como 11/9 foi consumido nos escritrios e nas residncias em frente a telas de TV ou computadores plugados na Internet. Boquiabertos, bestializados e da mesma forma que bilhes de outros seres humanos pelo planeta, vimos e revimos centenas de vezes as cenas do choque e da exploso do avio e das torres desabando. Imagens que nunca mais saram de meus neurnios. No dia seguinte, pela manh, a multinacional que nos encomendara os servios para o qual nos reunimos na manh anterior ligou informando que todos os projetos no exterior estavam suspensos e que iramos cancelar o contrato. Como na histria do domin, a queda das torres gmeas repercutiu na vida de todas as pessoas deste planeta. Boa parte da equipe que participou da reunio da manh do dia 11 em nosso escritrio teve de ser demitida nos meses seguintes. Um dos demitidos era um recm-casado que, passadas algumas semanas, soube que ia ser pai de gmeos. A Renascena Digital Confesso-me um apaixonado pelos perodos de transio civilizatria, e de tanto ler clssicos que abordam esse tipo de assunto, tornei-me convicto de que estamos vivendo um desses momentos. Sinto-me s vezes um Dom Quixote s avessas. O nobre luntico se recusava a sair de um mundo que fora extinto ainda h pouco. Eu vivo de olho em um mundo novo que vai se amalgamando. No temos ainda o distanciamento de nossa poca que permita a um genial autor imortalizar nossa saga, como foi o caso de Cames com Os Lusadas, Umberto Eco com O nome da Rosa, Dickens com Um conto de duas cidades, mas um dia isso certamente vai acontecer. Algum ainda vai escrever no futuro afirmando que ns fomos esticos navegadores do tempo, que vivemos o melhor e o pior dos mundos tocando o barco sob forte neblina e tempestade entre os portos da Era Ps-industrial para a Era Digital. Talvez, no final de mais algumas dcadas, os historiadores atinjam um consenso de fato e passem a chamar nosso tempo de Renascena Digital; o perodo no qual todo o trabalho e a maior parte de toda a criao humana foram convertidos para a forma de bits e bytes. As crianas do sculo XXI talvez digam de forma sumria que a Renascena Digital foi o perodo em que tudo foi migrado para dentro do ciberespao. Para o bem e para o mal. Tudo: servios, produo, consumo, interao profissional ou social, lazer, relaes pessoais, e tambm as atividades ilcitas, ilegais e anti-sociais, como o crime, o terrorismo, o vandalismo. Tudo mesmo ser transposto para as fabulosas avenidas
digitais do ciberespao. Essa migrao ser um processo turbulento de sistemtica, extensa e inelutvel destruio criativa que nos tirar do ponto de equilbrio atingido na plenitude da Era da Sociedade Industrial, perodo que podemos situar mais ou menos entre o final da Segunda Guerra e o final dos anos 1970. Um novo ponto de equilbrio ser talvez alcanado entre as dcadas de 2030 e 2040. Quem sabe? Mas a transio vai ser dramtica e deixar muitos pelo caminho. A rota incerta e tempestuosa que pode levar Sociedade do Conhecimento ou Barbrie Digital Global Seria formidvel se tivssemos certeza de que a Renascena Digital seria uma travessia em direo a um tempo de bonana, que nos levasse, por exemplo, era da Sociedade do Conhecimento, na qual toda a humanidade participaria de forma harmnica de uma nova economia, na qual a informao seria a mais importante das matrias-primas. Infelizmente ningum pode afirmar que essa rota esteja garantida. Do outro lado dos portais da Renascena Digital pode no existir somente a Sociedade do Conhecimento. Pode ser que apenas parcela da humanidade consiga ascender Sociedade do Conhecimento. Neste caso poderemos ter um mundo bipolar, onde haver de um lado aqueles que tiveram xito em ganhar acesso Sociedade do Conhecimento e do outro, separado por um abismo profundo, um grupo excludo, fortemente contrastante. Ao longo dos sculos temos visto divises bipolares da humanidade: imprios e colnias, pases desenvolvidos e subdesenvolvidos, burgueses e proletrios, senhores e escravos. Aprendemos (pelo menos algumas de nossas lideranas positivas!) ao longo da histria das civilizaes que quanto mais segregacionista a sociedade, maiores so as chances de decadncia, caos, descontrole social, revoltas. Muita coisa leva a crer que na travessia para a Sociedade Digital Global o maior desafio para a Humanidade no seja a expanso da pobreza, nem guerra, nem doena. O grande desafio ser vencer a grande separao, o abismo, a dicotomia entre dois mundos fortemente separados. Nosso desafio impedir que como contraponto formao da Sociedade do Conhecimento se crie o bloco dos condenados Nova Barbrie. Uma Nova Barbrie poder ser um mosaico de fragmentos, de correntes, tendncias de estilo de vida e arranjos sociais e anti-sociais de indivduos que no conseguirem vencer o fosso do acesso Sociedade do Conhecimento. E assim podero ser nutridas as hordas dos novos brbaros: terrorismo, ultranacionalismo, gangues, seitas, sqitos, fundamentalismos, drogas, megahedonismo, tribalismo tnico-digital. Pior do que isso. Estes grupos, por causa do seu forte grau de ressentimento, devero ser tornar potenciais presas fceis para predadores da Civilizao, que aparecero na forma de perigosos lderes demagogos, oportunistas, messinicos e regressistas, da mesma forma que Hitler teve sua ascenso nutrida pelo ressentimento do povo alemo h mais de 70 anos.
Vamos precisar buscar eleger e nutrir lderes capazes de entender que as oportunidades e os riscos se escondem na transio dos portais da Renascena Digital e que tenham clareza do desafio de tornar mais ampla e inclusiva a participao global de indivduos, comunidades e naes na Sociedade do Conhecimento. Precisaremos de uma nova liderana que nos inspire e ajude a transitar pela Renascena Digital e a minimizar a fragmentao que poder inchar a Nova Barbrie, impedindo que esta cresa e se torne dominante, impondo o caos que nos conduziria decadncia civilizatria. Assim como j ocorreu no Egito Antigo, na Grcia Antiga, na Roma Antiga.
Mas mesmo que tenhamos a sorte de encontrar lideranas que nos conduzam por caminhos mais virtuosos e seguros nesta jornada em direo ao futuro, uma coisa certa, a responsabilidade individual sobre o prprio destino aumentar muito nos anos que esto por vir. Ao longo do sculo XX, as pessoas testemunharam o crescimento do Estado como o grande guardio da ordem, como um grande impulsionador do desenvolvimento e como o grande provedor da seguridade social. Isso vai mudar. Mais uma vez para o bem e para o mal. O Estado cresceu de tal forma que se tornou um monstro obeso e ineficiente. No comeo dos anos 1900, os governos retiravam da sociedade, no mximo, entre 7% e 9% da riqueza produzida pelos indivduos para realizar as funes que eram prprias do Estado at aquela poca (medido na forma de Produto Interno Bruto, o famoso PIB). Duas guerras mundiais e a ampliao de uma srie de garantias sociais elevaram os gastos pblicos para um patamar tipicamente acima de 33% a 35%. No caso do Brasil, estamos no limiar de uma revolta dos contribuintes pelo fato de estarmos sendo hipertaxados. J so quase 40% do PIB sendo retirados dos indivduos pelo governo para termos de volta servios e funes pblicas em nveis absolutamente insatisfatrios e de baixa qualidade. Sero tempos difceis nos quais achar novas respostas ser imperativo. Se coletivamente falharmos, o caminho nos levar Barbrie Digital Global e a nossos tempos definitivamente no sero conhecidos no futuro como a Renascena Digital, mas como tempos de decadncia, que podero ser a ante-sala de um grande colapso civilizatrio. Mas contra o pessimismo, existe a esperana daqueles que pensam como a antroploga norte-americana Margareth Mead (1901-1978), que dizia: Nunca duvide
que um pequeno grupo de cidados consciente e comprometido possa mudar o mundo. De fato, s o que o tem mudado.
CAPTULO 4
no fechavam e que a situao tenderia a ficar cada vez pior. Alm disso, ela entendia que o Estado tinha exorbitado de suas funes prioritrias e estava excessivamente inchado, com empresas estatais se ocupando de funes e setores que seriam mais eficientes nas mos da iniciativa privada (transporte, produo de automveis, ferrovias, minerao, telecomunicaes etc.). Nesse contexto, a Dama de Ferro iniciou um duro trabalho que passava por uma receita extremamente amarga e impopular: encolher o tamanho do Estado, atravs das privatizaes, e racionalizar e reduzir o tamanho dos benefcios do Estado do BemEstar Social. Thatcher comeou no incio dos anos 1980 aquilo que mais tarde, paulatinamente, seria estendido a todos os outros pases da Europa. O setor de sade na Inglaterra dos anos 1970 era um retrato exemplar de uma liberalidade e irrealidade fiscal. Naquela poca, o Estado arcava praticamente com todas as despesas que seus cidados pudessem ter com mdicos, dentistas, remdios e demais tratamentos de sade. Mesmo estrangeiros em situao de turista na Inglaterra eram atendidos gratuitamente pelos servios de sade. Essa generosidade com o dinheiro do contribuinte tornou-se famosa a ponto de atrair turistas cujo objetivo era usar o servio de sade da Inglaterra. Anualmente, milhares de mulheres espanholas iam Inglaterra fazer aborto, que era ali legal e gratuito, diferentemente da realidade opressiva da Espanha, que quela poca vivia sob o jugo do ditador Franco. Cidados brasileiros que viveram temporariamente na Inglaterra naqueles tempos, tanto aqueles que eram estudantes de ps-graduao quanto funcionrios de empresas brasileiras, ainda se lembram com saudade como eram bons e gratuitos o atendimento de sade e os servios de educao nas terras de Sua Majestade. Um dia algum teria que se esforar para inverter a tendncia de excessiva liberalidade e ineficincia, ajustar despesas e receitas, e isso passaria por tomar medidas impopulares. Foi justamente o que a senhora Thatcher tratou de comear a fazer to logo subiu ao poder em 1979. Essa foi sua agenda at o final de seu tempo como primeira-ministra, o qual se prolongou at 1990. Quando os trabalhistas derrotaram os conservadores em 1997, havia certa expectativa de que Tony Blair, o primeiro-ministro trabalhista, desfizesse as reformas realizadas por Thatcher. No entanto, nem as reformas promovidas no Welfare State, nem as privatizaes realizadas foram desconstrudas pelo governo de Blair. Thatcher mostrou-se uma precursora, pois a partir dos anos 1990, todos os lderes polticos de pases da Europa Ocidental, independentemente de suas tendncias ideolgicas, passaram a considerar, de uma forma ou de outra, as necessidades de se promover reformas no Estado de Bem-Estar Social e na maneira de tornar a gesto do Estado mais eficiente. E assim passaram a fazer parte das agendas dos partidos a realizao de medidas impopulares para diminuir o custo social e aumentar a competitividade internacional das naes europias. Medidas que mexiam com direitos tidos como assegurados de forma permanente, como, por exemplo, a semana de trabalho de 35 horas e a idade mnima para a aposentadoria. Foi assim que tantos europeus passaram a se sentir como Anne-Marie e JeanPierre. A imensa e majoritria classe mdia existente na Europa comeou a perceber
que havia em seu futuro um horizonte de incerteza e insegurana. O que era dado como certo, seguro, direito adquirido indiscutvel etc., comeou a ser questionado pelos sucessivos governos que foram sendo eleitos em todos os pases. Mesmo aqueles mais esquerda, como o Partido Verde alemo, ao chegar ao poder passaram a ter de considerar reformas amargas como sendo a alternativa vivel. Era chegada a hora de pr em prtica a chamada realpolitik, isto , a poltica pragmtica. Mas a acelerao da globalizao dos anos 1990 trouxe ainda mais ms notcias para Anne-Marie e Jean-Pierre. Os seus empregos poderiam ser tambm relocados para os chamados pases emergentes (China, ndia, Brasil, Mxico, Rssia, pases do Leste Europeu etc.), que passaram a ser alternativas para as grandes empresas no apenas como mercado, mas tambm como fornecedores de mo-de-obra mais barata comparada com os salrios de alemes, escandinavos, italianos, franceses etc. Dessa maneira, conquistas consideradas sagradas, como a semana de 35 horas na Alemanha, tiveram de ser revistas por sindicatos fortes como o dos trabalhadores metalrgicos alemes. O que fazer diante da alternativa colocada pelos grandes empregadores de relocar fbricas inteiras para o Leste Europeu? Todo esse caldo de acontecimentos transformou a perspectiva de futuro dourado, certo e seguro para as classes mdias europias. Para uma gerao nascida aps a Segunda Grande Guerra, que conheceu praticamente durante toda a sua vida os tempos de vacas gordas, o final do sculo XX e o comeo do novo milnio no so vistos como um horizonte muito promissor. nesse contexto que se formam as razes do mau humor de franceses, alemes, holandeses, belgas, italianos com a globalizao. Na Amrica do Norte, a histria um pouco diferente, pois ali o Estado do BemEstar Social no teve nunca uma dimenso to abrangente e generosa como na Europa. No entanto, a competio globalizada se tornou encarniada, o que est trazendo para a tambm imensa classe mdia norte-americana uma perspectiva de incerteza e insegurana. Foi nos EUA que nasceu a reengenharia radical redesenho de processos organizacionais visando, sobretudo, reduo de custos1 , uma prtica de gesto das empresas a partir dos anos 1990 que se disseminou pelo mundo e que tem possibilitado realizar sistemtica reduo de pessoal. As empresas descobriram em especial que possvel fazer cada vez mais com menos gente graas tecnologia da informao. A reengenharia somada terceirizao offshore, isto , a prtica de relocar fbricas e escritrios para regies no exterior, onde as condies de mo-deobra so mais vantajosas, tem criado tambm nos EUA, assim como na Europa Ocidental, um clima de saudosismo baseado na crena de que o passado era um tempo feliz e seguro. Junte-se a isso o fator terrorismo, identificado pelo fatdico atentado de 11/9, que acrescentou ainda mais incerteza e medo s perspectivas do futuro. No Brasil, temos uma camada da populao que se sente como Anne-Marie e JeanPierre, isto , igualmente preocupada com seu futuro, mais insegura e temerosa. Aqui,
o que costumamos chamar de classe mdia no como na Europa e nos EUA, a grande maioria da populao. Os pesquisadores de mercado costumam dizer que a populao urbana brasileira pode ser segmentada em classes socioeconmicas da seguinte forma (nmeros de 2006): 6% da populao compem a classe A, que seriam os domiclios abastados; 24% seriam classe B, o segmento costumeiramente chamado de classe mdia; 34% seriam C, equivalente classe mdia popular; 30% seriam o segmento D, que representam a classe mdia mais baixa; e, por ltimo, 6% classe E, que seriam os mais pobres. Digamos que a classe B a parcela da populao brasileira que ascendeu durante o perodo do regime militar, beneficiando-se do crescimento do pas nos anos 1970. Esse segmento social ascendeu graas a uma conjugao de circunstncias, entre as quais se destacam: o acesso s universidades pblicas e gratuitas, aos empregos pblicos e estatais, a subsdios na compra do imvel prprio graas poltica de financiamento de habitao que vigorou nos anos 1970 e 1980, e ainda pela circunstncia de driblar a inflao dos tempos duros, graas indexao de suas contas bancrias. Essa classe B teve sua ascenso estancada e est insegura e com medo do futuro, mais do que as classes populares. Isso o que atestam as pesquisas de mercado e de opinio. Esta parcela mais alta da classe mdia brasileira, da mesma forma que Anne-Marie e Jean-Pierre e as classes mdias na Europa e na Amrica do Norte, v que seu futuro e o mundo, que tinham como certos e seguros, acabaram. Essa exatamente a parcela da populao brasileira que j no usa mais os servios pblicos de educao para seus filhos, nos nveis fundamental e mdio, nem usa os servios pblicos de sade, porque a qualidade desses servios baixssima. (O topo da pirmide, a classe A, nunca usou!) Esse segmento social, que esperava se aposentar na prtica em uma idade ao redor dos 55 anos (a idade mdia de aposentadoria em algumas grandes estatais de 53 anos), v as reformas que vo sendo feitas com extrema intranqilidade. E mais, o segmento mais assustado diante do descalabro com que o Estado brasileiro trata da questo de segurana pblica, pois, diferentemente da classe A, ainda no pode se valer de segurana privada, condomnios fechados e carros blindados. No contexto global, essas classes mdias vem incerteza e insegurana quando olham para o futuro. Nada melhor para ilustrar de forma objetiva e quantitativa essa sensao como a srie histrica de pesquisas que vem sendo realizada anualmente por grupos de economistas, antroplogos e psiclogos em vrios pases. Essas pesquisas mostram que nos ltimos 50 anos, apesar do crescimento da renda, portanto da riqueza material das famlias, a felicidade das pessoas no cresceu na mesma proporo. Pior do que isso: as pessoas sinalizam que esto menos felizes. O grfico a seguir sintetiza o que essas pesquisas descobriram ao longo de quase meio sculo.
Crescimento da renda mdia anual e evoluo da felicidade nos EUA entre 1955 e 2002.
O grfico, apesar de os dados terem sido coletados nos EUA, aplicvel realidade dessas classes mdias, seja na Europa, seja no caso dos pases emergentes, como o caso do Brasil. A renda cresce continuamente, portanto as pessoas podem ter mais acesso ao consumo de bens e servios, o que em tese deveria gerar um sentimento positivo de realizao. No entanto, no isso que se constata quando se pergunta s pessoas se elas se sentem felizes. O que se conclui que mesmo sendo mais ricas do ponto de vista material, isso no implica um sentimento de maior satisfao com a vida. O que se conclui que o medo do futuro que justifica a queda do sentimento de felicidade. Que fazer? No espere, leitor, que daqui para frente eu v fazer no restante deste captulo exortaes e sermes acerca das virtudes da frugalidade. Longe de mim. Mas gostaria de desenvolver nesse momento uma reflexo sobre o grande sentimento de desiluso, o grande paradoxo dos nossos tempos. Progredimos em termos quantitativos e no somos capazes de nos sentir felizes com nosso progresso. Ainda na dcada de 1950 acomodvamos 2,5 bilhes de habitantes em nosso planeta, e nos ltimos 50 anos trouxemos vida mais quatro bilhes, que at agora tm vivido sem guerras mundiais. Alm de acomodar muito mais gente no planeta, temos conseguido viver consideravelmente mais tempo que nossos pais e avs. S para se ter uma idia, em 1900 a expectativa de vida de um brasileiro ao nascer era de 33 anos. Hoje est por volta de 72 anos. A pelos anos 2030 estaremos seguramente prximos da marca de 80 anos. Temos reduzido a fome, a misria e a dimenso das guerras, mas no conseguimos extrair do saldo de nossos avanos razes para nos
sentirmos mais seguros. Pelo contrrio: as pessoas reclamam e reclamam e reclamam. E todo mundo est estressado, inseguro e desiludido, nunca foram to altos os desajustes de natureza psicossomtica como depresso, sndrome do pnico etc. O aumento da riqueza, medido pela renda e pelo acesso a bens materiais, no apaga nas pessoas a sensao de incerteza e medo em relao ao futuro. Temos conseguido ao longo dos dois ltimos sculos desativar bombas terrveis que ameaavam a humanidade. Lembra-se das previses de Malthus, o famoso demgrafo ingls que em 1798 lanou suas previses sobre a catstrofe da fome que se aproximava? Tente se colocar no lugar dos nossos avs que vivenciaram o rosrio de catstrofes como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Igualmente conseguimos diminuir os riscos do apocalipse nuclear vivido durante a Guerra Fria. Mas a manchete negativa que faz vender jornal, da... Acostumamos a falar cronicamente em caos urbano, seja para nos referir a Londres, Nova York, So Paulo, Rio de Janeiro, Johannesburgo etc. Mas verdadeiramente todas as cidades tm melhorado. O caos urbano era Londres, Paris e Nova York do sculo XIX. Reclamamos do trfego, mas as ruas das grandes cidades do sculo XIX eram uma mistura insuportvel de cheiro de lama, esgoto e excrementos de animais de trao. A misria e a desigualdade social que vemos hoje exposta nas ruas de cidades tanto de pases ditos desenvolvidos quanto dos emergentes no tm similaridade com o descalabro que se via no sculo XIX. Tome duas cidades como referncia. Pense em Londres e no Rio de Janeiro na primeira metade do sculo XIX, mais especificamente nas primeiras dcadas do Brasil Imprio. Londres vivia as agruras do comeo do capitalismo, recebendo formidveis exrcitos de pessoas e famlias buscando trabalho e sobrevivendo em cortios miserveis, freqentemente descritos por Dickens em seus romances. Londres, apesar de passar a ser a locomotiva do capitalismo mundial, era de fato uma cidade selvagem para a imensa maioria de sua populao. Somente nas primeiras dcadas do sculo XX esta situao foi sendo aos poucos modificada. Naquela mesma poca, o Rio de Janeiro, por sua vez, a capital imperial do Brasil, tinha 260 mil habitantes, dos quais 110 mil eram negros cativos, significando a maior concentrao urbana de escravos desde o Imprio Romano. Somos hoje uma megacidade de quase seis milhes de habitantes, um milho aproximadamente morando em favelas que esto se transformando rapidamente em bairros populares, com domiclios onde existe uma alta penetrao de bens de consumo, retratada pelos pesquisadores de mercado, mas no admitida pelo senso comum, que continua falando que favela o endereo da misria. A verdade que os barraces de lata e as palafitas encravadas no espelho da Baa de Guanabara nos anos 1960 praticamente desapareceram. Mas a gente no consegue enxergar progresso nisso. David Myers, em seu livro O paradoxo americano , arrola uma srie de dados que caracterizam uma realidade perversa que a sociedade norte-americana conseguiu mudar. No entanto, as realizaes no so contabilizadas pelas atuais geraes, que olham para o futuro com muito medo.
Pior do que isso, um sentimento de que o passado era mais humano e mais tranqilo se espalha entre as sociedades dos mais diversos pases. Ah, os anos dourados! Os anos em que as famlias viviam felizes e contentes e que as portas para a rua dormiam abertas!... Nada to distante da verdade. A ensasta norte-americana Stephanie Coontz procura desmistificar essa miragem do passado em seu livro, ainda no traduzido no Brasil, O jeito que ns nunca fomos: as famlias americanas e a armadilha da nostalgia 4. De seu livro so pinados alguns exemplos que comprometem seriamente a imagem idlica com que as novas geraes miram o passado, alguns deles transcritos a seguir: Crianas exploradas: na virada do sculo XIX para o XX, o trabalho infantil era uma brutal realidade na maioria dos pases da Europa e Amrica do Norte. Apenas nas minas da Pensilvnia trabalhavam 120 mil crianas, a maioria delas tendo comeado aos 11 anos de idade. Crianas eram 1/4 dos trabalhadores nas fbricas txteis do sul dos EUA. No raro, crianas de sete anos, que tinham jornadas de at 12 horas, caam no sono no prprio local de trabalho e eram levadas dali direto para a cama. Vida familiar era muito mais curta em razo da mortalidade: nos tempos coloniais, a mortalidade reduzia o tempo mdio de casamento a 12 anos. Quatro em dez crianas perdiam um dos pais com a idade de 21 anos. At 1940, uma em dez crianas no vivia com seus pais, mais do que o dobro de hoje (uma em 25 no vive com pelo menos um dos pais). At 1850, quando somente 2% da populao ultrapassavam 65 anos e muita gente migrava, poucas crianas tinham algum relacionamento com avs. Hoje, pela primeira vez na histria da humanidade, a mdia dos casais tem mais pais vivos do que tem crianas. Antes de 1900, somente quatro em dez mulheres casadas que tinham filhos criados eram capazes de envelhecer, porque a maioria das mulheres morria antes do casamento, nunca casava, ou morria antes de as crianas nascerem ou crescerem ou ficava viva antes de completar 50 anos. Seguridade social: simplesmente no existia antes do sculo XX! Divrcios e filhos: pais separados no eram obrigados a pagar penso ou qualquer tipo de apoio s crianas. Com isso, nos EUA, uma em cada cinco crianas vivia em orfanato, em geral porque seus pais eram pobres para mant-la. (No Brasil, a possibilidade jurdica de dissoluo do casamento s foi aparecer nos anos 1970. Veja bem: se por um lado o casamento por amor foi praticamente uma inveno do sculo XIX, at meados dos anos 1960, quando surgiu o desquite, homem e mulher estavam condenados a permanecer casados. Mesmo se odiando ou indiferentes um ao outro, o casamento era indissolvel.) Educao: oportunidades extremamente restritas. No sculo XIX, somente metade dos jovens entre 5 e 19 anos estava na escola (comparado com mais de 90% hoje). Somente 3,5% dos jovens de 18 anos se graduavam na escola secundria. Hoje, nos EUA, pelo menos oito em dez adultos completaram o ensino mdio.
Mulheres: oportunidades mais restritas ainda. Cem anos atrs somente um em cinco norte-americanos aprovava que uma mulher casada trabalhasse fora se ela tivesse um marido capaz de sustent-la. Apesar do que, ainda hoje, apenas 80% aprovam! Ento, hoje, seis em dez mulheres casadas tm emprego; contra quatro em dez h meio sculo; contra uma em sete h um sculo. No sculo passado todo o trabalho do lar era feito por mulheres. Ainda hoje as mulheres devotam s tarefas domsticas duas vezes mais tempo que os homens; mas estes vm desde 1965 cozinhando, faxinando e cuidando de filhos, o que propicia maior independncia mulher, fazendo com que a deciso de continuidade do casamento seja tomada mais com base no afeto e no na dependncia econmica. Minorias: simplesmente rejeitadas, ignoradas ou banidas. At os anos 1960, acomodaes pblicas ofereciam opes para brancos e negros. Pessoas portadoras de deficincias fsicas e suas necessidades especficas eram simplesmente ignoradas e homossexuais eram obrigados a esconder sua identidade sexual sob pena de priso ou de sofrerem violncia intimidadora legitimada pelos contemporneos. Fatos, dados e nmeros podem ser colhidos tambm no Brasil e em outras partes do mundo para nos lembrar que ver o passado como tempos dourados fantasiar a dura vida que nossos antepassados levaram. Vivemos um tempo de desiluso profunda. Essa a caracterstica de nossa poca. O problema do homem de hoje que ele no tem mais esperana. Somos todos pessimistas, diz o historiador francs Jean Delumeau.5 Ser que mesmo verdade que temos um mal-estar civilizatrio em que se mesclam as desiluses, o medo? Mas ser mesmo que caminhamos em direo ao caos, barbrie? Estamos fadados a ser uma civilizao terminal sem esperana, sem f no futuro, amarga e ctica, sem senso positivo de orientao? O que se passa com a gente? A certeza de que as velhas respostas no servem para as perguntas que esto sendo colocadas nossa frente, que so extremamente novas e desafiadoras. Nos prximos captulos, vamos encarar o desafio de procurar exemplos, pistas, novos insights, sacaes que nos ajudem a encarar o medo e a incerteza. Vamos encarar o desafio de navegar no tempo e desenvolver melhor capacidade de exercer maior controle sobre o nosso prprio destino em questes como trabalho, sade, emprego, entretenimento, acesso informao. Nossa tarefa , nada mais nada menos, do que reinventar os estilos de vida que herdamos do sculo XX em busca de maior controle e segurana para nossa existncia.
Notas
Reengenharia, conforme o dicionrio Houaiss, a reestruturao de uma empresa, por fora das novas condies de mercado, da concorrncia, do mercado internacional etc., para aumento de sua competitividade. [Inclui reciclagem do pessoal interno, privatizao, terceirizao, demisses, utilizao de um nmero menor de empregados, porm mais capacitados etc.]. As anlises de Malthus em seu livro On Essay on the Principles of Population estimavam que o crescimento da espcie humana, a partir da Revoluo Industrial, se dava em escala mais rpida do que o crescimento da capacidade de produzir alimentos. David Myers, The American Paradox. Spiritual Hunger in an Age of Planty (2001). 4 Stephanie Coontz, The Way We Never Were: American Families and the Nostalgia Trap. 5 Trecho retirado de entrevista ao Idias, suplemento literrio do Jornal do Brasil (23/6/2004). Delumeau membro do Collge de France e autor de vrios livros sobre os sentimentos coletivos na poca do Renascimento e da Idade Mdia.
CAPTULO 5
Tenho um velho amigo engenheiro que se diz humanista e comu-nista da velha guarda,
assumido stalinista. daqueles que dizem que o Encouraado Potemkin um dos melhores filmes da histria do cinema; que tm o Manifesto comunista, escrito e lanado por Marx e Engels em 1848, como leitura de cabeceira. Meu amigo gosta muito de filosofar enquanto passeia a p pelas ruas do Rio de Janeiro sempre elogiando as caladas feitas de pedras portuguesas, aquelas pedras polidas brancas e pretas, dizendo que um absurdo no existir mais mode-obra qualificada os calceteiros para garantir a continuidade dessa magnfica tradio carioca que o piso das caladas com desenhos em preto e branco. Ele sustenta que as pedras portuguesas poderiam gerar muitos e muitos empregos e tornar a cidade mais bela e humana. Como a maioria das pessoas, o meu velho amigo ignora o labor desumano que responsvel por essas belas caladas, faina de escravos que Cesrio Verde, poeta portugus da segunda metade do sculo XIX, capturou em versos: de ccoras, em linha, os calceteiros, com lentido, terrosos e grosseiros, calam de lado a lado a rua. Mesmo se dizendo humanista, meu amigo no percebe a desumanidade na permanncia dessa atividade como profisso, assim como outras que foram obsoletadas pela mecanizao, que tornou possveis outros mtodos produtivos e que liberou milhes de seres humanos de um dia-a-dia de uma existncia brutalizante. A mecanizao e, mais recentemente, a automatizao do trabalho rotineiro devem ser vistas como uma conquista da humanidade e no como uma mera destruio de empregos, apesar de no curto prazo existir sim um problema srio para aqueles que exerciam a funo que foi transferida para as mquinas. Na transio que vivemos da Era Ps-Industrial para a Era Digital Global, veremos um aumento da velocidade da supresso de milhares de tipos de profisses, ocupaes, empregos, e no haver nada que possamos fazer para deter essas ondas sucessivas de transformaes seno nos tornar mais flexveis e capazes de nos reinventar e aprender novas qualificaes e novas formas de subsistncia. Um bom exemplo da inexorabilidade das sucessivas ondas de transformao nossa frente o que aconteceu com o setor bancrio no Brasil nos ltimos 20 anos. At meados dos anos 1980, a profisso de bancrio era vista por muitos como uma
ocupao segura e bem remunerada, especialmente no caso de empregos em bancos estatais. Naquela poca, o setor bancrio chegou a ser quase seis vezes maior em termos de gerao de empregos se comparado indstria automobilstica, quando atingiu a marca de 900 mil funcionrios. No entanto, o setor bancrio foi uma atividade que experimentou um avassalador processo de reengenharia, iniciado entre o final dos anos 1980 e o princpio dos anos 1990, mudando-o radicalmente. Respondendo s necessidades de acompanhar a economia fortemente inflacionria daquele perodo, os bancos brasileiros investiram pesado em tecnologia de informao. A partir daquela poca trs ondas sucessivas revolucionaram a atividade bancria. A primeira onda ocorreu com a entrada em cena dos caixas automticos que fizeram com que os clientes passassem a resolver suas necessidades em locais mais convenientes que as agncias bancrias e que ficavam abertos 24 horas por dia, sete dias por semana. Essa convenincia para o cliente era por sua vez muito mais eficiente, por ser uma operao mais barata para o banco. Simples: para o banco cada cliente atendido em agncia custa hoje R$ 3,19 por transao, no caixa automtico sai por R$ 0,64. Ou seja, quanto mais gente for atendida no caixa eletrnico, maior produtividade para o banco. A segunda onda teve lugar quando os bancos disponibilizaram o acesso aos seus servios via Internet a partir de 1998. Mais convenincia para os clientes, porque seu computador, no trabalho ou em casa, se tornou uma agncia bancria, onde s no possvel sacar dinheiro. Para os bancos essa modalidade de operao trouxe ainda mais rentabilidade, pois o custo da transao por cliente era ainda mais baixo do que nos caixas automticos, apenas R$ 0,15. A terceira onda se iniciou recentemente com o servio via telefone celular, que ser provavelmente o mais popular acesso nos anos que esto por vir. Mais convenincia para os clientes, que passam a ter a comodidade de acessar todos os servios bancrios do seu celular, e mais rentabilidade para o banco. Desde a primeira onda o nmero de bancrios no Brasil caiu para prximo dos 300 mil e dever encolher ainda mais.1 Isso ilustra o chamado aumento da produtividade causado pelo uso da tecnologia da informao e que ocorrer em todos os setores da economia. Existe um drama humano que representado pelas pessoas que perdem seus empregos nessas ondas de reengenharia e que no so capazes de achar caminhos alternativos. Tenho uma amiga psiquiatra e terapeuta que tem acompanhado de perto esse lado humano (ou desumano) do processo de reengenharia do setor bancrio. Essa minha amiga, sem se dar conta, comeou a ver ainda no incio dos anos 1990 seu consultrio se encher de pacientes, na faixa entre os 40 e 50 anos, bancrios empregados e demitidos, com srios problemas de fundo nervoso. Os empregados estavam altamente estressados pela insegurana de sua condio. Os demitidos, em geral, em crise depressiva, sem saber o que esperar da vida. O pior era que muitos desses trabalhadores demitidos, especialmente os acima de 45 anos, sentiam-se obsoletos para a vida produtiva e no apenas para o setor bancrio, afirmava minha amiga psiquiatra. O paradoxo, explicava ela, que muitos
desses seus pacientes que buscavam terapia e apoio psiquitrico eram pessoas com diplomas de curso superior, que decidiram ser bancrios 20 anos atrs porque nesse setor identificavam segurana de emprego. Em sua maioria, odiavam o cotidiano da vida de bancrio, mas a segurana no emprego aparentemente era o grande e almejado objetivo. Os mais ressentidos com a situao eram justamente os que concluram curso superior e trocaram a carreira na qual se diplomaram pela segurana que identificavam na condio de bancrio. Com essas duas histrias, que enfocam os casos especficos de calceteiros e bancrios, coloco em questo uma discusso mais aprofundada acerca do emprego e os vnculos de relacionamento de trabalho que devero emergir nas dcadas seguintes. Uma coisa certa: para a maioria da humanidade, o emprego trabalho de horrio integral, ou que consome a maior parte das energias do ser humano; cinco dias por semana, onze meses por ano uma aporrinhao, quando no um verdadeiro castigo, um mero meio de se conseguir um contracheque. O bom mesmo seria poder viver o fim de semana de sete dias. Lima Barreto, o grande escritor carioca que morreu louco, dizia que procurar emprego era simplesmente uma das maiores humilhaes do ser humano. Vamos colocar mais lenha nesta discusso? Encarando a realidade: no h nenhum boom de empregos no horizonte Ao longo do sculo XX parece que aprendemos a associar emprego com trabalho e a usar as duas palavras como sinnimos. hora de comear a clarificar a distino entre essas duas palavras para poder compreender melhor para onde caminhamos. Emprego um tipo de vnculo de prestao de servio entre pessoas e organizaes, sejam empresas, rgos de governo, entidades sem fins lucrativos, ou at mesmo outros indivduos, contratados por um tempo para realizar determinadas tarefas remuneradas. No entanto, emprego tem uma conotao psicolgica mais forte do que mera relao contratual de trabalho. Quem tem emprego julga-se psicologicamente mais amparado na vida. Muito freqentemente aqueles que tm emprego em grandes empresas tm mais status e reconhecimento social do que os indivduos que tm vnculo de trabalho em tempo parcial, tempo limitado ou free-lance, mesmo que esses tenham muitas vezes uma remunerao superior. comum ouvir de sindicalistas o slogan de que um homem sem emprego um homem sem honra. Dentro desse contexto, a perspectiva de que o emprego, como vnculo de trabalho predominante, possa caminhar para uma virtual extino traz um grande sofrimento e ansiedade para o senso comum. Porm preciso ver como o senso comum muda ao longo da histria. Antes de se tornar um consenso mundial como sendo crime contra a humanidade, a escravido j foi entendida como um vnculo de trabalho normal para muita gente. Sempre que leio Machado de Assis, fico surpreso como ele, no meio dos dramas psicolgicos, de todos aqueles adultrios de gente fina, descreve de forma banal os escravos se movendo como sombras, recebendo e cumprindo ordens de seus
amos. Assim, da mesma forma que o velho Machado no revelava estranhamento maior em relao ao trabalho escravo, tambm boa parte da populao daquela poca achava aquilo normal. Pior ainda. No mundo do trabalho no qual a escravido era um vnculo aceito, aceitavam-se tambm os castigos corporais como parte das tcnicas dos especialistas em produtividade e recursos humanos daquela poca, isto , os feitores e os mercadores de escravos. imprescindvel encarar a realidade com a qual vamos nos defrontar: o emprego como vnculo de trabalho tal como o conhecemos no sculo XX est com seus dias contados. Por qu? Pense nas funes que vo sendo obsoletadas ao longo do tempo pela evoluo da tecnologia: ferreiros, acendedores de lampio, motorneiros, cobradores de nibus, ascensoristas, datilgrafas, telefonistas, montadores de linhas de produo, programadores de linguagem de computadores que se tornaram obsoletas como Mumps, Basic, DOS etc. Pense agora nos progressos conseguidos pela tecnologia de informao e a aplicao dessa tecnologia na automatizao das mais diversas atividades humanas repetitivas que possam ser executadas por mquinas controladas por computadores. Pense naquilo que pode ser mais bem executado a um custo muito menor por mquinas. No resta dvida que milhes e milhes de empregos sero suprimidos de forma inelutvel nas prximas dcadas. A indstria automobilstica no Brasil j teve, em 1987, no auge de contratao, 160 mil empregados que produziam um milho de veculos. Em 2004, eram cem mil empregados que produziram 2,1 milhes de veculos, de muito maior qualidade e complexidade que os veculos de 20 anos atrs. E tem mais. Acrescente agora as possibilidades de transferir globalmente, via rede de telecomunicaes cada vez mais baratas, tarefas que podem ser feitas em qualquer outro lugar do planeta onde a mode-obra seja mais barata. Imagine, por exemplo, j comum h mais de uma dcada, o centro de controle operacional de circuito fechado de TV para segurana condominial, durante a noite e em fins de semana, de prdios em cidades norte-americanas, ser feito por mode-obra sediada em pases da frica, porque no exige qualificao e barata. Sai mais barato rotear as imagens via satlite para o outro lado do planeta para que um empregado de salrio mais baixo faa a monitorao visual. Mesmo assim, vai ficar ainda mais barato na medida em que sejam desenvolvidos os softwares capazes de reconhecer padres de imagem com um mnimo de operao humana. Com todo esse furor de reengenharia e racionalizao de humanos na produo, voc acha que vamos ter alguma exploso de empregos vista, como costumam prometer os polticos mundo afora nas eleies? Claro que no. Mas no so apenas os polticos que se mostram cegos ante o que est realmente acontecendo. At mesmo entre aqueles que deveriam estar mais antenados, como o caso dos economistas, poucos so os estudiosos que reconhecem abertamente que caminhamos em direo a uma sociedade sem emprego, como fez, por exemplo, Jeremy Rifkins em seu best-seller internacional O fim do trabalho: o declnio da fora de trabalho global e a aurora da era ps-mercado.2
O senso comum expresso na lgica de que o homem sem emprego um homem sem perspectiva precisa mudar, uma vez que a revoluo tecnolgica, possibilitada pelo uso intensivo da tecnologia de informao, mudou e mudar cada vez de forma mais radical a maneira com que o ser humano desempenha seu papel na produo de riquezas. Parece no haver limite para a racionalizao da participao do homem nos processos produtivos. Por isso que a transio da Era da Sociedade Ps-Industrial para a Era Digital tem como uma das caractersticas mais marcantes sua faceta de mquina de triturao e reduo de empregos. Isso ocorre no porque as empresas so dirigidas por diretores e acionistas sanguinrios e desalmados escorados por polticas neoliberais. Empresas, por definio, existem porque foram criadas por seus proprietrios e acionistas para dar lucro, independentemente da natureza de sua atividade. At mesmo as organizaes pblicas governamentais e estatais no foram concebidas com o objetivo final de criar postos de trabalho, e sim com a finalidade de executar funes. De um lado temos as empresas racionalizando e reduzindo; do outro, no podemos esquecer, estamos ns, enquanto clientes e consumidores, querendo tambm preos mais atraentes. As empresas que no forem capazes de seguir esses padres de exigncia do mercado consumidor e da presso competitiva se tornam inviveis e sucumbem. Isso resulta em moto contnuo de permanente reengenharia em busca de custos mais baixos e produo mais enxuta. Com isso temos uma nova situao, uma nova realidade econmica para a humanidade como um todo: por mais que a economia ou a gerao de riqueza cresa, o crescimento do emprego no seguir da mesma forma que antigamente. Ai daqueles pases que no buscarem se adequar a essa situao competitiva global. Como vimos no exemplo dos circuitos fechados de TV para segurana predial, da mesma forma em outras atividades produtivas, hoje, as grandes empresas dos EUA, Inglaterra, Alemanha e de outras economias plenamente desenvolvidas analisam com muito carinho todas as opes de terceirizao offshore, isto , de transferir milhes de postos de trabalho para outros pases que dispem de mode-obra barata. O trabalho de escritrio que faz a retaguarda das grandes empresas, conhecido como back-office, e que engloba funes como a realizao dos servios de contabilidade, a preparao da folha de pagamentos, os servios de call-center, tudo isso est propenso hoje a ser transferido para pases onde a mo-de-obra mais barata. Mesmo funes mais qualificadas, como o desenvolvimento de software, podem e esto sendo transferidas, por exemplo, para a ndia, ou ento para a Irlanda. Nesse tabuleiro global, o servio a ser feito ir para onde puder ser feito de forma mais barata, ou seja, mesmo as necessidades de back-office de empresas brasileiras podero ser transferidas para nossos vizinhos, como Peru, Paraguai e Bolvia, onde a mo-de-obra mais barata e os encargos impostos pelo governo so menores. Assim, as promessas que polticos sejam eles de esquerda, direita ou centro fazem em suas campanhas eleitorais de gerar milhes de empregos via polticas pblicas, poltica industrial ou investimento pblico podem ser vistas sob duas perspectivas: mera enganao ou ignorncia. Em outras palavras, demagogia ou
inpcia. Eles no buscam de fato amadurecer as questes com as quais precisamos urgentemente nos defrontar. A verdade que, por mais poderosos que aparentem ser, governos no tm como gerar empregos de forma sustentvel. Podem faz-lo criando bolhas, isto , temporariamente. Porm, mais cedo ou mais tarde, uma salgada conta vir para os contribuintes. Quem cria riqueza de maneira sustentvel e, nesse processo, como meio e no como fim em si mesmo cria empregos, so indivduos empreendedores, empresrios e empresas capazes de combinar seu conhecimento, suas aptides, capital e correr riscos buscando atingir seus objetivos de lucro. E os postos de trabalho sero criados onde as relaes trabalhistas permitirem a maior flexibilizao possvel. Governos podem sim ajudar a criar um macroambiente mais propcio para a criao de riqueza e gerao de empregos. A combinao de responsabilidade fiscal, reduo da carga tributria, melhoria da eficincia da mquina pblica, incentivo reduo da informalidade so tnicos bem conhecidos para revitalizar a economia. Se essas so condies necessrias, no so, entretanto, suficientes. Vejamos de forma bem sumria quais so as perspectivas de crescimento da economia. Os economistas costumam segmentar a economia de um pas em trs setores: o setor primrio, que engloba agricultura, atividades extrativistas, minerao, pesca e pecuria; o setor industrial, tambm chamado de setor secundrio, e o setor de servios, muitas vezes chamado de setor tercirio. J h algum tempo que se fala em setor quaternrio, que seria o que engloba os servios com maior densidade intelectual e criatividade, como, por exemplo, alta tecnologia, software, consultoria, educao, entretenimento, sade, cultura, design, moda. Adotando essa segmentao como forma de fatiar a realidade, como se apresentam as perspectivas de gerao de postos de trabalho nas quais seria mais interessante um pas, que pretende ser realmente dinmico e antenado com as oportunidades futuras, apostar? Vamos ento comear pelo setor primrio. Em nossa transio para a Era Digital, devemos encarar o fato de que nenhum pas vai gerar empregos de maneira significativa no setor primrio, sobretudo se focarmos na realidade da produo agrcola. A realidade contempornea tem mostrado que no se faz mais riqueza com o homem do campo, mas com o agronegcio, o tal do agribusiness, isto , capital e tecnologia de ponta, o qual gera muito pouco emprego. Em economias plenamente desenvolvidas, apenas 2% a 4% da fora de trabalho composta de agricultores. No entanto, por mais bonito que possa parecer pretender ser o celeiro do mundo, como fazem aqueles que se entusiasmam com perspectivas do Brasil para o agronegcio, no ali que est a verdadeira gerao de riqueza para os pases que pretendem ser contemporneos da Era Digital e no a retaguarda dessa era. O agribusiness pode at ser importante para a economia nacional, mas no ser jamais o grande gerador de postos de trabalho que far a diferena. Tampouco no extrativismo de riquezas naturais a aposta parece ser muito alentadora. A histria mostra que existe pouca correlao entre riquezas naturais e
desenvolvimento econmico, portanto irrelevante ter ou no riquezas naturais, pois a extrao dessas riquezas no gera empregos em quantidade e em qualidade. Existem inclusive grupos de economistas que falam que todas as naes cuja economia se apia em riquezas naturais tm dificuldade em dar saltos para frente, e tomando como base dezenas de exemplos histricos, esses economistas advogam que existe certa maldio dos recursos naturais. A anlise histrica do desenvolvimento do capitalismo desde sua aurora at hoje partindo das repblicas italianas onde nasceu (Florena, Veneza, Gnova etc.) ao longo dos sculos XIV e XV, passando mais tarde pela Holanda do sculo XVII, em seguida pela Inglaterra do sculo XIX e no sculo XX considerando EUA e Japo demonstra que jamais a alavancagem de grande desenvolvimento se fundamentou no aproveitamento de riquezas naturais prprias. Tome-se como exemplo os pases produtores de petrleo membros da Organizao de Pases Exportadores de Petrleo (Opep): todos so pases que em termos de desenvolvimento apresentam muito pouco dinamismo. O setor industrial o mundo das empresas de produtos industrializados ser cada vez mais o paraso da robotizao e da automao em larga escala. Esse setor ser o territrio por excelncia da reengenharia permanente. Ali, nas prximas dcadas, o machado da reduo dos empregos vai cantar dia e noite, porque quanto menos gente, mais vivel e rentvel o negcio. Por isso, esperar gerao de empregos do setor industrial tambm uma aposta de risco. Os setores tercirio e quaternrio sero os setores da economia que faro a diferena em termos de potencial de crescimento econmico para um pas, de criao de riqueza (ou valor agregado para usar o jargo corrente em economia) e de gerao de empregos de qualidade e em quantidade. Sobretudo o chamado setor de servios quaternrio que o tercirio que se caracteriza pelo uso intensivo de tecnologia de informao. Este ser o setor que far a grande diferena e que deve ser o nosso alvo estratgico para nutrir o crescimento sustentvel da economia e empregos de um pas. Opa, empregos no, postos de trabalho! Vamos sair do campo das anlises macroeconmicas, isto , da viso da sociedade como um organismo coletivo, e faamos uma espcie de zoom de aproximao, procurando ver como os indivduos so afetados por essas perspectivas de mudanas relativas diminuio da oferta de emprego. Talvez voc j tenha ouvido falar daquela teoria acerca da pirmide das motivaes do comportamento humano que foi desenvolvida pelo psiclogo organizacional Abraham Maslow por volta da Segunda Guerra Mundial. Segundo Maslow, as motivaes humanas esto estruturadas como se fossem patamares superpostos de uma pirmide, sendo que mais perto da base encontra-se aquilo que mais bsico para a sobrevivncia dos indivduos em geral. Quanto mais baixo o patamar, mais imperiosa a necessidade. S aps satisfazer um determinado nvel, poder o indivduo considerar as outras necessidades. Assim, no primeiro patamar esto aquelas necessidades fisiolgicas fundamentais (comida, gua, oxignio). O segundo patamar de necessidade o da segurana e onde Maslow localiza a necessidade do emprego. O terceiro o das necessidades
sociais e de afeto, e a que Maslow localiza a necessidade de famlia, amigos e comunidade. O quarto patamar o das necessidades de reconhecimento e estima; sem o preenchimento dessas necessidades Maslow advogava que o indivduo se sentiria inferiorizado e desencorajado. O quinto e mais elevado dos patamares, na verdade o topo da pirmide, o da necessidade de auto-realizao. O que isso? Essa a necessidade de criar e realizar algo e que emana do prprio indivduo. Pode ser o msico, o compositor, o escritor, os artistas de forma geral, os esportistas profissionais, as profisses altamente especializadas, como cientistas, pilotos de avio etc., nas quais o indivduo se sente dono de um dom ao qual ama se dedicar. Para essa gente trabalhar no aporrinhao, mas uma sublime realizao. Segundo Maslow, menos de 1% dos indivduos consegue pautar sua vida por esse tipo de necessidade. Sem ser nem psiclogo organizacional, nem expert em recursos humanos, tenho l minhas questes em relao a essa hierarquia de necessidades. Mas devo dizer que, no geral, acho que a teoria de Maslow lanou muitas luzes na compreenso do ser humano do sculo XX. E no contexto de nossa discusso sobre emprego na transio em curso para a Era Digital Global, penso que a cultura da humanidade dever mexer com essa hierarquia de necessidades. A teoria de Maslow clarifica por que o ser humano sem emprego se sente pouco mais que um bicho, o qual, se satisfeitas suas necessidades fisiolgicas, s tem as necessidades de pertencer a um grupo e nada mais. (Voc nunca vai ver um leo pintando, um golfinho recitando poesia, um cachorro ou um gato largarem sua sesta com o objetivo de treinar para ganhar uma medalha olmpica etc.) A meu ver, a teoria da pirmide de Maslow se aplica especificamente sociedade do sculo XX, no qual o emprego praticamente o vnculo universal de trabalho ajustado entre os indivduos e as organizaes. Em uma sociedade em que o emprego como sinnimo de segurana e subsistncia est se tornando obsoleto, teremos de aprender a descobrir uma nova lgica muito parecida com o que diz o velho ditado: Descubra o que voc realmente gosta de fazer e voc nunca mais ter que trabalhar. Teremos de evoluir e repactuar uma nova perspectiva coletiva de encarar o trabalho no como o sacrifcio e a alienao da parte boa da vida, conforme estabeleceu o senso comum ao longo de tantos sculos. A propsito, voc sabe de onde vem a palavra trabalho? Segundo o professor Cludio Moreno, essa palavra vem de tripalium, ou trepalium, do latim tardio e que designava um instrumento romano de tortura, uma espcie de trip formado por trs estacas cravadas no cho, onde eram supliciados os escravos. Rene o elemento tri (trs) e palus (pau) literalmente, trs paus. Da derivou-se o verbo tripaliare (ou trepaliare), que significava, inicialmente, torturar algum no tripalium, o que fazia do trabalhador um carrasco, e no a vtima de hoje em dia. Ser possvel essa evoluo ou uma utopia irrealizvel? Bem, a humanidade j teve servido e escravido como vnculos de trabalho predominante para a maior parte dos seres humanos durante a quase totalidade da histria, desde as mais remotas civilizaes. Foi quase na entrada do sculo XX que essas duas
modalidades de contratao foram extintas. Os indivduos na produo da riqueza Frente enorme inquietao das pessoas com o desemprego, nosso objetivo neste captulo refletir e amadurecer o entendimento acerca de como esto evoluindo os vnculos de trabalho entre as pessoas e as organizaes na transio que estamos fazendo em direo Era Digital. Vamos partir de uma ponderao inicial. Governos ou empresas: quem efetivamente faz a diferena na criao e gerao de riqueza na sociedade capitalista globalizada do sculo XXI? Veja bem, voc pode ter governos que se dizem socialistas, comunistas, social-democratas, mas, na prtica, todos os pases, com rarssimas excees como Cuba e Coria do Norte, esto basicamente alinhados com um sistema internacional de livre mercado. Governantes que resolverem, como foi feito em Cuba, fechar as fronteiras de seu pas e torn-lo uma autarquia estaro condenando seu povo ao atraso e ao empobrecimento.
ao longo da histria da humanidade, no propiciaram um ambiente de estmulo para os indivduos se empenharem na inovao e no desenvolvimento, aceitando correr riscos em funo de poder colher em seguida a justa recompensa de seu esforo individual, o resultado foi sempre negativo. A vitalidade da sociedade entra em decadncia, os indivduos acabam prisioneiros de burocratas, aumenta a corrupo, h perda de competitividade em relao s outras sociedades nacionais etc. Veja os antigos pases comunistas que seguiram esse caminho: todos, sem exceo, onde foram parar! Nessa altura podemos encarar a questo: se so indivduos e no governos que verdadeiramente criam riqueza, quais seriam ento os papis que cada um deles pode assumir no processo produtivo? No sei se voc j se deu conta da seguinte coincidncia: os quatro substantivos que designam os tipos genricos de papis que as pessoas assumem no processo de criao de riquezas comeam pela letra e. So elas: empregado, executivo, empresrio e empreendedor. Comecemos por aqueles que so numericamente mais expressivos. E de empregado Para realizar os milhares de tarefas que compem o cotidiano de uma organizao so contratados enxames de empregados, cada indivduo recebendo um pequeno territrio de responsabilidade, podendo ser substitudo de forma relativamente fcil e sem prejuzo da continuidade das atividades da empresa. Sua recompensa: o salrio, uma segurana relativa e alguns benefcios. E de empreendedor Vejamos agora aqueles que tm um papel extremamente singular no processo produtivo e de criao de riquezas. Estes so numericamente muito poucos, daqueles que se encontram na proporo de um em centenas de milhares. Estamos falando de indivduos que so antes de tudo visionrios, obcecados por uma idia inovadora e ao mesmo tempo capazes de arriscar e de mover cus e terras na busca da implementao de sua viso. Algum que v uma oportunidade onde a maioria das pessoas simplesmente no v nada. Algum que diz: Por que no? e que coloca mos obra. So organizadores e arquitetos da energia humana coletiva que avanam tecendo uma teia de colaboradores: investidores, inventores, scios, colaboradores. Pode ser algum que visualiza uma oportunidade para um grande imprio empresarial, como Henry Ford visualizou um carro para cada famlia, como Bill Gates visualizou um computador para cada indivduo, como o Visconde de Mau vislumbrou a iluminao pblica e ferrovias no caso do Brasil. Pode ser um pequeno empreendedor que visualiza uma franquia de po de queijo, ou um novo tipo de servio na Internet. Nenhum deles inventor no sentido estrito, mas sim inventores de oportunidades que vem mais adiante algo que a maioria ainda no foi capaz de visualizar. So indivduos que se arriscam sim, mas que tm clareza dos riscos e so extremamente pragmticos do ponto de vista de negcios. Sua recompensa no apenas o lucro, mas, antes de qualquer coisa, a realizao de ver seu sonho concretizado.
E de empresrio Na medida em que frutifica a inovao do empreendedor, o velho jeito de fazer as coisas vai sendo deslocado e jogado para o passado. a destruio criativa4 entrando em cena. E para capitalizar as oportunidades do novo que foram descobertas e demonstradas pelo herico empreendedor, comeam a ser criadas empresas que competem entre si pelo imenso mercado trazido luz. Agora sim, so empresrios que montam seus negcios seguindo o novo conceito elaborado pelo empreendedor. Os empresrios no so to hericos quanto o empreendedor; esto mais preocupados com a gesto e a otimizao que permitam maximizar os lucros, seu grande objetivo de realizao. E de executivo As empresas crescem e se tornam mais complexas de gerir exigindo talentos de gesto em vrias e diferenciadas funes. Assim, so contratados os executivos altamente qualificados para tocar as divises da empresa que se tornaram grandes demais para serem geridas pelo empresrio. Aos executivos so delegadas misses e metas e, se tiverem uma performance bem-sucedida, recebem seus prmios: polpudos bnus, em geral, mais interessantes do que o prprio salrio. Naes onde o empreendedorismo encontra condies e pases supressores do empreendedorismo A gerao de riquezas em uma nao fruto de um formidvel concerto no qual esses quatro tipos de papis interagem. Cada pas um encontro nico de talentos e vocaes que aproveitam (ou no), criam (ou no) bens, produtos e servios. Cada nao tem um estilo e um repertrio prprio em termos de produzir riqueza. H naes que se assemelham a uma orquestra sinfnica, outras a uma banda de rock, outras a uma escola de samba. Os governos so verdadeiros facilitadores (ou atrapalhadores) que podem ajudar a criar boas e ms condies para que a sociedade produza riquezas. Pases e sociedade que conseguiram dinamizar a capacidade dos indivduos de gerar riqueza tm sido mais bem-sucedidos em acelerar o desenvolvimento econmico e o bem-estar material. Nessas naes estabeleceu-se um crculo virtuoso: o progresso dos indivduos impulsiona o progresso da sociedade; o progresso da nao cria um clima propcio e de incentivo aos indivduos para inovarem e produzirem mais. Os pases comunistas do sculo XX conseguiram estabelecer um crculo vicioso no qual o Estado sufocou o empreendedorismo. Todas as pessoas se tornaram funcionrios pblicos passando a cumprir tarefas prescritas pelos comissrios do povo. Tornaram-se assim sociedades onde no floresceram condies para que indivduos dispostos a correr riscos inovassem e colhessem as recompensas. Predominou em todos esses pases um ambiente hostil, a destruio criativa do status quo. Deu no que deu. A URSS o colossal Estado Sovitico foi cambaleando at ser finalmente dissolvida em 1991. No caso de uma sociedade com ampla liberdade e incentivo para a cultura
empreendedorista, temos centenas de milhares de empreendedores reinventando, noite e dia, a gerao de riqueza nos mais variados setores. Nesse tipo de sociedade, o Estado fica mais focado nas condies de manuteno da democracia, da manuteno de um ambiente macroeconmico mais equilibrado e agindo em conformidade com o interesse geral, impedindo cartis e monoplios que possam inibir a saudvel competio. Nas sociedades onde prevalece um sentido de valorizao do empreendedorismo, as pessoas tm menos possibilidades de se tornarem refns do Estado. Por sua vez, o Estado orientado no sentido de evitar que grupos econmicos faam as pessoas refns. Tudo isso se torna um crculo virtuoso e contribui para gerar mais estabilidade para criao e redistribuio de riqueza e oportunidades para os indivduos e grupos mais vulnerveis. Marx teria dito algo como: A cada um conforme sua necessidade, de cada um conforme sua capacidade. Paradoxalmente, no foram as naes que experimentaram modelos comunistas que conseguiram se aproximar dessa perspectiva. As naes mais prximas dessas situaes so aquelas onde a livre iniciativa e a democracia liberal floresceram e prosperaram, naes nas quais uma multido de seres humanos est dedicada a inovar, diferentemente de Estados altamente centralizados onde a estagnao passou a ser a regra. O Brasil do desenvolvimento chapa-branca e da cultura do emprego No Brasil, como disse anteriormente, nosso processo histrico nos encaminhou no sentido de criao de uma espcie de cultura do desenvolvimento chapa-branca na qual predomina a crena de que o governo o motor do progresso. Isto gerou como contrapartida uma perspectiva dos indivduos procurarem maior segurana se agasalhando no prprio seio do governo. Desde o seu nascimento como pas, j at como herana dos portugueses povo que perdeu cedo como nao o apetite pelo risco e pelo empreendedorismo , o Brasil tem sido uma sociedade onde pouca gente se interessa em correr riscos para edificar seus sonhos de criao de riqueza, um pas onde a imensa maioria busca como ideal de realizao a posio de empregado, de preferncia como funcionrio pblico. Assim, nosso pas passou a ter um iderio de progresso para os indivduos: a busca da segurana gerando a cultura do emprego. Dcadas de desenvolvimento chapa-branca cristalizaram a cultura de empregado. Pior do que isso, fizeram do emprego pblico a grande meta de boa parte dos indivduos. Nossos bisavs passaram para nossos avs, que passaram para nossos pais a concepo de que o melhor um emprego no Banco do Brasil ou ento, aps os anos 1970, em uma estatal, uma Brs da vida: emprego estvel, sem riscos, sem sobressalto, sem sonhos de riqueza, com segurana vitalcia, que vai se tornando um luxo inacessvel e inexplicvel para a grande maioria dos contribuintes e dos cidados comuns. Paradoxalmente, uma pesquisa do Partido dos Trabalhadores, divulgada em junho de 2004, feita por encomenda de seu Instituto da Cidadania, que detecta sinais de que estamos comeando a inverter essa tendncia. Essa pesquisa revela que 1/3 (10,8 milhes) dos jovens brasileiros querem ter seu prprio negcio: ou seja, no almejam
ser empregados, mas seus prprios patres. Emprego: as duas faces da moeda de um vnculo que j comea a no interessar a nenhuma das duas partes envolvidas nessa contratao No passado, o sonho de um emprego para a vida inteira era uma perspectiva bastante razovel. No mundo quase que exclusivamente masculino do trabalho, que vigorou at meados do sculo XX, arranjar um emprego na juventude, subir alguns degraus e, aps 30 anos, tomar os aposentos antes de morrer da vem a palavra aposentadoria era a perspectiva razovel do senso comum. Afinal, em um mundo em que a expectativa de vida era 33,5 anos assim era no comeo do sculo XX! , a aposentadoria aos 55, 60 anos sinalizava os tempos de botar o p na cova. Mas ao longo do sculo XX, em que a longevidade praticamente dobrou, ficar velho deixou de ser uma loteria e passou a ser uma perspectiva realista e demograficamente mais democrtica. Nesse novo mundo surgido aps a Segunda Guerra, a pelos anos 1990, algo aconteceu com a perspectiva de se ter um emprego estvel. Foi quando se tornaram evidentes os ganhos de produtividade que a tecnologia de informao e a reengenharia possibilitaram. Ao final daquela dcada, essas duas poderosas tendncias tornaram-se pedra de toque dos processos produtivos. Desde ento a ladainha nas empresas fazer mais com menos, incluindo com muito menos gente! Na virada do milnio, nenhuma empresa, a no ser o servio pblico e as estatais, promete mais aos seus empregados um vnculo de vida inteira. No h como prometer, na montanha-russa da economia moderna, um vnculo dessa natureza. Anote, o Estado da Era Digital ser, a partir de um dado momento, intimado pelos seus cidados e contribuintes, em face de sua situao insustentvel, a entrar em regime radical de reengenharia. Em outras palavras, a estabilidade vitalcia do emprego pblico vai tambm desaparecer. Desde os anos 1990, as empresas passaram a fazer da reduo de custos, incluindo do custo de capital humano, uma de suas necessidades cruciais para a prpria sobrevivncia. Quem j esteve frente de um negcio sabe como vital ter sempre preparada uma lista de demissveis. Nessa lista esto potencialmente todos os empregados cujo perfil no tenha as seguintes caractersticas: Ser produtivo, que busque permanentemente fazer mais com menos; Ser comprometido com o aperfeioamento contnuo, isto , que no esteja continuamente buscando melhorar sua capacitao e qualificao; Ser um resolvedor de problemas e no mero tarefeiro, isto , algum que descobre solues e no apenas segue o script; Ser capaz de produzir resultados extraordinrios para a empresa, em particular, quando as coisas esto mais difceis.
Aqueles que reunirem todas as caractersticas anteriormente relacionadas sero, por certo, os ltimos da lista de demissveis. Por outro lado, consideradas as possibilidades de realizao pessoal, cada vez mais evidente que mesmo as pessoas detentoras de empregos considerados como empreges em grandes e slidas empresas se sentem infelizes com o tipo de vnculo que hoje prevalece em sua relao empregado-empregador. Uma reportagem de capa da revista Exame, de abril de 2003, trazia a foto de um engravatado executivo espremido dentro de um caixote com o ttulo: Ainda vale a pena trabalhar nas grandes empresas? Que raio de situao ocorre em nossa sociedade contempornea em que uma parte se desespera por estar desempregada e a outra parte a que tem emprego! est descontente e infeliz pela forma com que sua energia produtiva aproveitada? Se o empregado de alta qualificao se julga um explorado, o que esperaramos dos empregados de baixa qualificao, que so os condenados s gals do trabalho do sculo XXI? Coloque-se agora no lugar do empregador, do empresrio que age em ambiente altamente competitivo de uma moderna sociedade de mercado. Imagine que voc tem uma fbrica com dezenas de empregados de baixa qualificao e sabe que 90% desses poderiam ser substitudos por mquinas e processos automatizados. Voc sabe que uma linha de produo operada por robs trabalha no escuro, em meio a rudo ensurdecedor, ningum reclama de nada e no faz greve etc. Qual seria sua deciso? Tem mais. O empresrio enfrenta uma realidade complicada e muito onerosa em termos de tributos e impostos trabalhistas. Mesmo quem tem uma microempresa com um nico empregado deve pensar, alm do salrio, em licenas remuneradas, maternidade, paternidade + benefcios sociais diversos + 13 salrio + carteira assinada + contribuies previdencirias + tqueterefeio + vale-transporte + vale isso, vale aquilo + contribuies sindicais + FGTS + PIS + PASEP + contribuies para Senai, Senac, Sebrae etc. + absentesmo + insatisfaes eventuais + custos de amenidades e infra-estrutura para acomodar gente. Todos esses tipos de complicao acabam sendo uma barreira para viabilizar a gerao de empregos. Essa a tragdia do vnculo de trabalho chamado emprego, tal como nos lembramos dele em seu formato em fins do sculo XX. No fundo e de forma geral, empregadores e empregados tm uma antipatia e desconfiana mtua. Apesar de todos os esforos dos executivos de Recursos Humanos progressistas em tornar o mundo das corporaes mais humano, difcil negar que a maioria dos empregados v apenas o contracheque como a grande motivao para ir ao trabalho e no sua prpria realizao como indivduo. Por outro lado, os empresrios se ressentem de empregados que no se habilitam como parceiros em termos de motivao e compartilhamento de riscos. Para ir para o trabalho no dia-a-dia nas empresas, a grande maioria da massa de empregados deixa tanto o crebro quanto o corao em casa. Compare as empresas com os ensaios das companhias de teatro, de bandas de
rock, nos quais os atores e msicos costumam ter hora de iniciar, mas no de terminar. Na maioria das empresas o relgio soberano. Acredite, existem empresas que fizeram acordo surreal com seus empregados: estes podem enforcar os dias espremidos entre fins de semana e feriados, gozando, portanto, todos os feriades do ano, em troca de uma compensao diria de dez minutos. Embora parea piada, conheo pelo menos uma dzia de empresas estatais nas quais esse sistema funciona. A humanidade precisou quase dez mil anos de histria para enterrar, nos estertores do final do sculo XIX, uma de suas mais imundas e pervertidas instituies: a escravido. De forma similar, vai ficando claro tambm para a humanidade do incio do sculo XXI que o vnculo de trabalho rotulado como emprego essa tortura que vai de segunda sexta, das 9 s 18 horas no tampouco um vnculo que permita a realizao de homens e mulheres livres e contemporneos das potencialidades dos novos tempos da Sociedade do Conhecimento. Da mesma forma que a escravido, o emprego tal como o reconhecemos no sculo XX ter seu lugar no museu das instituies humanas. O imperador est nu. Mas o que vir no lugar do emprego? No Brasil da economia agrria, em meados do sculo XIX, poucos indivduos eram capazes de visualizar a viabilidade de progresso sem braos escravos. Pelo contrrio, o senso comum legitimava a escravido. Por causa dessa falta de viso do que colocar no lugar, do comodismo e da crueldade dos que dirigiam a sociedade quela poca, o pas no foi capaz de articular uma transio corajosa. O Brasil foi o ltimo pas do mundo ocidental a abolir a escravido num processo de gradualismo inacreditavelmente lento. Processo ao final do qual Rui Barbosa ainda teve de mandar queimar todos os registros de escravos para que os ex-donos no tivessem papis com que documentar seu pleito de indenizaes, sustentando que tiveram lesados os seus direitos adquiridos de propriedade. De forma semelhante, precisamos contemplar o desafio de estabelecer um novo tipo de vnculo entre organizaes e indivduos, uma repactuao do vnculo do trabalho entre homens e mulheres realmente livres. Pessoas em busca de realizao e no apenas de contracheque e segurana relativa; em busca de espaos para os quais possam levar por inteiro seus coraes e mentes. Na medida em que o trabalho repetitivo e mecnico aquele que produz uma canseira e um desgaste desumano cada vez mais velozmente sendo transferido para mquinas, computadores, robs, andrides e sistemas especialistas teleinformatizados, poderemos ter outras oportunidades de realizao. No futuro, mesmo aqueles indivduos que, excepcionalmente, mantiverem longos perodos de vnculos com as organizaes, trabalhando para uma mesma empresa, por exemplo, por dez, 15 anos, devero ter um perfil mais parecido com o de empreendedores do que com o de burocratas tarefeiros. As empresas cada vez mais vo buscar os chamados intra-empreendedores, uma espcie de mistura de empregado e empreendedor. Na prtica so empregados que pensam e agem como
se fossem parcialmente donos da empresa e no meros contratados cumpridores de ordens. Na vspera da revoluo do mundo do trabalho que se aproxima rapidamente, o desemprego dever crescer ainda mais, de forma assustadora; mas desse banho de sangue demissionrio dever emergir uma nova cultura. Provavelmente nossos filhos no tero empregos, mas projetos. Muitas vezes simultneos. Provavelmente no falaro de carreira aquela progresso linear que feita ao longo da vida , mas de um portfolio de atividades. E nossos netos vo rir daquele regime de trabalho chamado emprego. A carteira de trabalho de todos os brasileiros aquela cadernetazinha azul traz, na pgina ao lado daquela em que est a foto, o seguinte texto: A carteira, pelos lanamentos que recebe, configura a histria de uma vida. Quem a examinar, logo ver se o portador um temperamento aquietado ou verstil; se ama a profisso escolhida ou ainda no encontrou a prpria vocao; se andou de fbrica em fbrica, como uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo a escala profissional. Pode ser um padro de honra. Pode ser uma advertncia. Li pela primeira vez esse pargrafo aos 17 anos. Sempre que o releio, juro, sinto um forte cheiro de ferro de marcar gado em brasa... Felizmente, como sinal dos novos tempos: essa carteira est sendo substituda por um carto plstico com chip inteligente!
Notas
Nmeros colhidos na Federao Brasileira dos Bancos (Febraban) e no Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos (DIEESE). Jeremy Rifkins, The End of Work, The Puttmans Sons, 1995. 3Os membros da Opep so Arglia, Indonsia, Ir, Iraque, Kuwait, Lbia, Arbia Saudita, Emirados rabes Unidos, Nigria, Catar e Venezuela. A Venezuela, pas que tem hoje mais de 52% de seu produto interno bruto provenientes do petrleo, j foi no sculo XIX, muito antes mesmo da descoberta do petrleo, uma das dez mais desenvolvidas naes do planeta. 4Destruio criativa foi uma rica e colorida expresso criada e tornada conhecida pelo economista austraco Joseph Schumpeter (1883-1950). Promover a destruio criativa simplesmente bolar um jeito novo de fazer as coisas de tal forma que a presente prtica, produto ou servio dominantes se tornem obsoletos. Por exemplo, o motor promoveu a destruio criativa do transporte de trao animal.
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CAPTULO 6
Pode ser que a economia continue crescendo, mas, muito provavelmente, o padro atual de distribuio desse crescimento vai mudar e isso vai fazer com que muita gente que tem hoje posio relativamente confortvel caia das nuvens. Portanto, quanto mais cedo as pessoas forem capazes de colocar em prtica na sua vida pessoal aquilo que as empresas tm realizado desde os anos 1990 em termos de fazer mais com menos, melhor para elas. Quem, com rapidez e eficincia, souber se precaver e for capaz de fazer a reengenharia de suas finanas pessoais e domsticas, vai adquirir mais controle pessoal sobre seu prprio destino. Pode esperar. Tenho srias razes para acreditar que isso vai acontecer. A economia global e, em geral, as economias nacionais podem at seguir sua expanso maneira do Big-bang, isto , com o PIB crescendo. Porm, os padres de crescimento da renda per capita e a distribuio de renda vo mudar. Na verdade, j esto mudando. As classes mdias estabelecidas at o final do sculo XX j esto comeando a perceber que tero de compartilhar sua fatia de bolo, o que na prtica pode significar mesmo aprender a conviver com perdas. Provavelmente, o que essas classes mdias vo perder ser abocanhado pelas classes populares que tambm so conhecidas como base da pirmide das categorias socioeconmicas nos pases emergentes (China, ndia, Brasil, Rssia, Mxico, frica do Sul etc.). Essa base da pirmide dever ver seus rendimentos crescerem um pouco mais rpido nos prximos anos e elas sero beneficiadas pelo processo de globalizao. E as classes mdias tradicionais sero provavelmente o segmento mais penalizado no avano da globalizao nas dcadas que esto por vir. Como assim? As tradicionais classes mdias vo ver seus empregos migrarem para locais e para grupos sociais que no se importaro tanto com o vnculo de trabalho que ser oferecido e mesmo com o fato de suas remuneraes serem menores se comparadas aos pases plenamente desenvolvidos do ponto de vista econmico. A flexibilizao das regulamentaes trabalhistas e a reduo dos salrios no sero empecilho para que essas classes populares, at aqui mergulhadas na informalidade, aceitem essas novas condies. Pelo contrrio, estaro vidas por preencher esses postos de trabalho, seja como trabalho temporrio, seja como contrato por tempo limitado, seja como freelance. Em resumo, as classes menos favorecidas devero literalmente tomar empregos dessa antiga classe mdia, simplesmente porque so mo-de-obra disponvel para fazer por menos. Mais e mais empregos de baixa e mdia qualificao ofertados atualmente na Amrica do Norte e na Europa Ocidental sero levados pela tecnologia de informao e tambm atravs da transferncia de fbricas e plantas industriais para a China, ndia e outros pases emergentes, incluindo o Brasil. Adicionalmente, as classes mdias, porque so em sua maioria o grande exrcito de pagadores de impostos, continuaro a ser escorchadas pelos governos e polticos sempre sequiosos de aumentar a carga tributria e a obesidade do Estado. Existem sinais de que o mercado consumidor maduro, no qual esto inseridas e onde so predominantes essas classes mdias, tem em torno de 1,5 bilho de pessoas. Teramos cinco bilhes, reunindo classes populares e pobres que devero ser incorporadas paulatinamente ao mercado consumidor global fora os que ainda vo
nascer nos anos que esto por vir. (Felizmente parece que a humanidade no dever superlotar o planeta. Demgrafos que trabalham para organizaes mundiais de renome, como as Naes Unidas, prevem que a populao mundial dever se estabilizar por volta de 2050 em torno de nove bilhes de habitantes.) Quem dever sofrer mais so as classes mdias europias, que sero impactadas pelo envelhecimento de sua populao mais do que os outros pases, bem como pelo alto custo de seu sistema de seguridade social. O desafio da reengenharia dos oramentos domsticos e pessoais: em busca de mais qualidade de vida com menos dinheiro Se voc faz parte dessa classe mdia que ter de conviver com perdas ou da classe popular que caminha para se transformar em um novo tipo de classe mdia isso no o mais importante. O que realmente voc precisa ter em mente que deve procurar reengenheirar seu estilo de vida de forma a aprender a fazer mais com menos. S isto pode lhe trazer um grau maior de controle sobre seu prprio destino. Quanto maior a incapacidade do indivduo de navegar do presente em direo ao futuro, mais inseguro, estressado, infeliz e potencialmente mais doente ele ser. E isso tende a se agravar nas transies civilizatrias, porque o futuro deixa de ser como os pais contavam para os filhos como o mesmo ia se realizar. No captulo anterior, falamos do trauma central na vida das pessoas que representar a perda progressiva do emprego como a referncia dominante e prevalecente de vnculo de trabalho entre indivduos e organizaes e de como na Sociedade Digital Global o trabalho vai ter vnculos com formatos muito mais diversificados. Em termos prticos, vamos deixar de ser uma sociedade bipolar de empregados e empregadores e passaremos a ser um mundo mais multifacetado, onde as partes podero ser contratante e contratado, sendo, com muita freqncia, as duas coisas simultaneamente. Isto poder ser, como foi dito anteriormente, uma perspectiva apavorante para quem imagina a realidade do sculo XX como a nica e imutvel alternativa. Lembre-se que, at 1888, muita gente no Brasil no conseguia ver o mundo do trabalho sem a existncia da escravido. Nossos netos, mais do que ns, acharo normais, racionais e mais convenientes os novos formatos de vnculo de trabalho que iro sendo inventados e testados nas prximas dcadas. Tendo sido posta e discutida a questo da superao do trauma do fim do emprego, vamos avanar e amadurecer sobre um dos maiores desafios que teremos de enfrentar: a necessidade de fazer mais com menos recursos financeiros. As empresas despertaram para a questo da busca de maior eficincia ali pelos anos 1980, quando comearam a ser experimentados conceitos de gesto empresarial conhecidos por nomes como reengenharia, just-in-time (no tempo exato), lean production (produo enxuta) etc. Em linhas gerais, podemos afirmar que administradores e consultores, em especial aqueles trabalhando com multinacionais,
concluram que as empresas estavam sofrendo de uma espcie de obesidade corporativa, digamos assim. Em sua busca por uma maior rentabilidade imposta pelos acionistas, os executivos das grandes empresas foram se dando conta de que tudo poderia ser feito com menos recursos se fossem adotados novos mtodos produtivos. O crescimento dos lucros das multinacionais ao longo dos anos 1960 e 1970 escondeu que, muitas vezes, existiam mais empregados do que o necessrio, que matriasprimas e recursos estavam sendo desperdiados e que o patrimnio, os ativos e investimentos poderiam ser mais eficientemente aproveitados. A isso se somou nos anos 1990 a presso da sociedade por novos padres ambientais, o que implicava tambm buscar reduzir os resduos da produo de riquezas por parte das empresas. Tudo isso faz com que as empresas do comeo do sculo XXI sejam muito mais eficientes se comparadas s das dcadas de 1950, 1960 e 1970. Cada vez com mais intensidade, as pessoas sero incentivadas e pressionadas a descobrir que possvel fazer mais com menos na gesto de seu domiclio e de sua vida pessoal, da mesma forma que as empresas descobriram a partir dos anos 1990. A verdade que, se queremos de fato ter mais controle sobre nosso destino como indivduos, temos um longo caminho nossa frente cheio de oportunidades para a reengenharia e enxugamento de nosso oramento domstico. A ideologia do progresso como sinnimo de crescimento econmico ilimitado, que se tornou globalmente consensual depois da Segunda Guerra Mundial, tornou-se uma grande armadilha para ns enquanto indivduos e tambm coletivamente como civilizao. Por qu? Passamos a entender que segurana, conforto e realizao pessoal so diretamente relacionados em primeiro lugar com a quantidade de dinheiro que temos disponvel. Para as pessoas comuns, a felicidade passou a ser, em ltima anlise, algo que pode ser equacionado pela quantidade de dinheiro e bens que voc tem. Pior do que isso que perdemos como civilizao a capacidade de enxergar a diferena entre quantidade e qualidade. A humanidade globalizada do sculo XXI, como civilizao, se deixou levar inteiramente pelo mantra dos economistas de que o crescimento econmico o objetivo estratgico a ser perseguido. O patamar a ser atingido? No h um limite quantitativo nem tampouco uma perspectiva de qualidade para nos considerarmos satisfeitos. Mais, mais e mais. assim que acabou sendo cunhado um dos mais certeiros ditados populares que conheo: Todo dinheiro do mundo, quando seu, pouco. Vivemos to narcotizados com a idia do crescimento ilimitado que coletivamente, como nao, somos capazes de dar carta branca aos polticos que sejam capazes de nos prometer o crescimento econmico como a grande panacia. Durante os ltimos 60 anos, apesar das crises temporrias do sistema econmico mundial, instituies multilaterais como o Fundo Monetrio Internacional (FMI), Banco Mundial e governos nacionais tm zelosamente apregoado que essa a coisa certa a fazer e que no resta outra alternativa. Esta a realpolitik. economia, bobo! E a locomotiva puxada pelos pases da Amrica do Norte e da Europa Ocidental segue acelerando, no piloto automtico, a corrida louca do crescimento econmico ilimitado, sem questionar o custo final dessa trajetria.
No entanto, milhes de indivduos esto percebendo que tempo de encontrar novas respostas individuais para nossa vida da mesma forma que precisamos de novas lideranas polticas. Nesta nova direo, descobrir como fazer mais com menos condio necessria e um dos primeiros e cruciais passos. Comida e renda: uma analogia para explicar melhor Pode parecer que estou propondo que as pessoas adotem um estilo de vida frugal e franciscano como forma de se defenderem das mudanas que se aprofundaro nos tempos que esto por vir, mas no o que estou querendo dizer. A expectativa que herdamos das geraes que fizeram a histria do sculo XX de que um processo natural cada gerao ter um padro de vida material melhor, mais fcil, mais afluente e mais seguro que o da anterior. Vivemos com mais conforto e afluncia que nossos pais e esses viveram melhor que nossos avs etc. Por isso, para o senso comum parece ser uma idia estranha e incompatvel com a realidade de quase um sculo essa proposio que estou trazendo neste captulo. No se trata simplesmente de viver com menos, isto , de empobrecer. Trata-se de fazer mais com menos. Em circunstncias em que uma idia no usual introduzida, muitas vezes produtivo lanar mo de uma analogia. isso que pretendo fazer ao estabelecer uma analogia da comida com renda para provar que no pretendo fazer a apologia da frugalidade. Da mesma forma que outras espcies, como seres vivos, temos necessidade de comida para nutrio. No entanto, j h muitos milhares de anos vimos progredindo desde o tempo das cavernas e nos libertamos daquilo que o velho Marx chamava de Reino da Necessidade no que diz respeito escassez de comida. Neste sentido, pelos menos 85% da humanidade atual j se libertaram do espectro da fome. Mesmo na frica, onde esse flagelo ainda persiste, a fome resultado de desequilbrios totalmente ligados a questes poltico-sociais. Ocorre que, como humanidade em termos globais, j temos uma produo excedente que ultrapassa em muito as nossas necessidades nutricionais. Basta ver que 300 mil pessoas morrem por ano apenas nos EUA em decorrncia de complicaes da obesidade, que tem suas razes no consumo excessivo e/ou inapropriado de comida. Essa condio de fartura recente na histria da humanidade. Com base nas condies produtivas existentes do sculo XVIII, portanto apenas dois sculos atrs, o economista ingls Robert Malthus (1766-1834) alertava a humanidade sobre o espectro da fome que nos rondava porque o crescimento populacional se dava em escala geomtrica, isto , muito mais rpido que o crescimento da nossa capacidade de produzir alimentos, que se dava em escala aritmtica. Pois bem, naquela poca tnhamos cerca de 750 milhes de seres habitando o planeta e, de fato, continuamos crescendo de forma geomtrica para atingir hoje aproximadamente 6,5 bilhes. Nossa capacidade produtiva, tanto em termos de competncia quanto de criatividade, respondeu de forma espetacular ao desafio do crescimento populacional. Somos hoje, na mdia, muito mais bem alimentados, em quantidade e em qualidade, do que a mdia das pessoas dos sculos anteriores de toda a histria da humanidade. Basta ver como
as geraes atuais so muito mais altas que as anteriores, e comparados em relao aos homens e mulheres da Idade Mdia, somos quase gigantes. Nesta nova perspectiva vivida pela nossa civilizao em relao abundncia de comida, poderamos dizer que temos hoje quatro tipos de condio em termos de preenchimento das necessidades nutricionais. Em primeiro lugar, poderamos apontar os famintos, que so aqueles que tm dificuldades em obter um mnimo de comida que garanta sua sobrevivncia, no que diz respeito nutrio e dignidade humana. As pessoas deste grupo na verdade no optaram por essa condio. Cabe a ns, que vivemos longe das garras da fome, resolvermos esse problema de escassez que nos envergonha a todos. Mas a imensa maioria da humanidade que no tem na escassez alimentar um problema de sobrevivncia poderia ser subdividida em trs grupos com caractersticas similares de comportamento em relao alimentao: os frugais, os gourmets e os compulsivos. Os frugais so aqueles que comem pouco, por mera opo, e esto absolutamente satisfeitos com sua dieta, tanto com a quantidade quanto com a qualidade, isto , no tm exigncias de grandes diversificaes e sofisticaes, seja em termos de ingredientes, seja na preparao dos alimentos. Por sua vez, os gourmets so aqueles indivduos que no comem apenas para satisfazer suas necessidades nutricionais, como os frugais, por exemplo. Comer para eles, alm da nutrio, representa tanto um papel social como uma forma de arte. Os gourmets se interessam tanto pelo preparo dos alimentos, quanto pelas histrias acerca da origem de cada prato. Interessa-lhes a alquimia do preparo, o cerimonial social do consumo, a peculiaridade de cada ingrediente. Para ser gourmet no necessrio ser rico. Claro que isso ajuda a diversificar e a sofisticar, mas mesmo em regime de restries econmicas existem seres humanos que mantm viva a arte da gastronomia. Os escravos africanos no Brasil so um bom exemplo. Eles foram capazes de preservar e mesmo desenvolver de forma criativa novos e incrivelmente deliciosos pratos mesmo estando confinados no pesadelo das senzalas. A celebrao da vida la joi de vivre, como dizem os franceses da comida africana conquistou a casa-grande mesmo com pratos feitos com restos, como foi o caso da feijoada, preparada com partes dos animais abatidos consideradas no nobres pelos senhores. Isto para no falar do xinxim de galinha, do caruru e de muitos outros pratos que nos deixam com gua na boca e que foram criados, aprimorados e cultivados por homens e mulheres em ignbil escravido. O grupo dos compulsivos, ou glutes, aquele que pode ser identificado at mesmo pelas suas caractersticas fsicas: acima do peso, gordos e obesos. Para esse grupo, a comida consumida de forma excessiva, independentemente da qualidade dos alimentos. Ao longo de sua jornada civilizatria, a humanidade aprendeu muito a respeito de comida e alimentao. Pouca comida no certamente uma situao cmoda ou desejvel. Sobretudo, quando essa escassez ameaa se transformar em fome, situao que rebaixa os homens e mulheres condio mais vil do mundo animal. Por outro lado, na situao de abundncia, h que se procurar ter sabedoria. E a
compulso vem sendo cada vez mais entendida como uma perverso que prejudica muito o indivduo, podendo inclusive resultar em sua morte prematura. Em termos coletivos, a luz amarela j acendeu para a humanidade, que j est percebendo que o limite entre o saudvel e o doentio foi ultrapassado. O aumento explosivo da obesidade no atinge apenas os EUA, um problema de sade pblica nos quatro cantos do planeta, mesmo em pases como o Brasil, a China, o Mxico etc. A compulso alimentar ou a glutonaria um mal que viceja na abundncia, quando falta sabedoria, e no na escassez. Quando essa escolha errada comea a ser feita por uma parcela significativa de indivduos, esse comportamento social sinaliza uma tendncia sria que poder desembocar em decadncia civilizatria. Algo similar ao que acontece nas situaes de escassez quando os suicdios deixam de ser casos isolados e passam a se configurar como tendncia social. Esto a para comprovar as razes das explicaes para fatos histricos como o fim do Imprio Romano, a decadncia da Igreja Catlica ao final da Idade Mdia, a aristocracia francesa no perodo que desembocou na Revoluo Francesa etc. O que a humanidade aprendeu em termos de sabedoria que devemos nos esforar para escapar das garras da fome; e na abundncia, que sejam feitas escolhas que tenham a ver com a celebrao da vida e com a sustentabilidade saudvel dos indivduos, enquanto espcie de seu meio ambiente e enquanto civilizao. Fome e glutonaria remetem o indivduo e, coletivamente, os grupos sociais barbrie. Assim, para fechar nossa analogia retornemos discusso econmica. A viso economicista de progresso nos ltimos 60 anos parece ter contribudo para uma perspectiva ilusria de progresso, em que a qualidade se tornou refm da quantidade. Crescer quantitativamente de maneira incessante a economia das naes, bem como a renda de seus cidados, parece uma perspectiva insana, que nos torna a todos, lderes e indivduos, compulsivos consumidores de no importa o qu. Comprar, ir aos shoppings, aumentar o consumo como um ato de patriotismo para evitar recesses e desempregos, a lgica que ouvimos, sobretudo em momentos de crise econmica de polticos, principalmente os norte-americanos. Basta ver que, nas pesquisas econmicas, o ndice de confiana de uma sociedade passou a ser medido quantitativamente pela inteno e disposio das pessoas em ir s compras. Isso comea a ser questionado cada vez mais, em especial pelos indivduos que esto na vanguarda de um novo estilo de vida, o de consumidores judiciosos. justamente no centro mais afluente do capitalismo contemporneo que comeam a se tornar mais visveis subgrupos culturais que esto questionando o mantra do crescimento ilimitado do PIB e da renda e tentando descobrir novos caminhos. No se trata de novos hippies ou grupos interessados em se fechar em guetos. Alguns estudiosos de marketing nos EUA j comeam a mapear e estimar que um em cada seis norte-americanos j acha que ter dinheiro para torrar em fast-food e em compras nos Wal-marts (megamercados tipicamente americanos onde se vende de tudo) no exatamente uma escolha sbia, mas um crculo vicioso que pode conduzir o indivduo a uma vida pobre em termos de significado e, coletivamente, levar a sociedade
decadncia. Este conjunto de, digamos assim, dissidentes, calculado em torno de cinqenta milhes de pessoas nos EUA e cinqenta milhes na Unio Europia. Esse grupo de pessoas, muito pequeno ainda se com parado ao total da humanidade, representa indivduos que esto, mesmo individualmente, procurando formas de desembarcar do sonho errado de progresso. A grande maioria ainda no se auto-reconhece como grupo como o fizeram os hippies e os ativistas de movimentos de contracultura e de direitos civis nos anos 1960, por exemplo. Mas esto criando as redes sociais que provavelmente vo amadurecer tendncias polticas importantes e liderar uma nova corrente civilizatria que vai aos poucos se tornando mais visvel e influente, tanto do ponto de vista nacional quanto global. Enquanto no tivermos essas novas tendncias amadurecidas, teremos de suportar a mesmice, o eterno mais-do-mesmo que a gerao contempornea dos nossos lderes polticos oferece. Esses, em sua maioria, so o oposto da sabedoria. So, de fato, arautos da demagogia e da ignorncia, incapazes de amadurecer as novas questes tanto quanto de produzir novas respostas. Paul Ray, socilogo, Ph.D. em antropologia pela Universidade de Michigan e consultor de empresas, reuniu um imenso material enquanto realizava trabalho de pesquisa de mercado para empresas que eram suas clientes ao longo de 13 anos. Foram mais de 500 grupos focais (atividades que compreendem entrevistas e discusses com facilita-dores de empresas de pesquisas mercadolgicas) e pesquisas quantitativas que atingiram mais de cem mil entrevistados. Seu objetivo era entender as razes de uma enorme e ainda no visvel fatia da populao dos EUA e do Canad que est mudando seus valores e seu estilo de vida. Essas pessoas no podem ser categorizadas como um nico e homogneo segmento da populao desses dois pases. Pelo contrrio, formam um caleidoscpio de subgrupos muito diversos, porm tm como caracterstica comum o fato de apresentarem certo cansao em relao ao american way of life. So pessoas dispostas a pagar o preo de assumir maiores responsabilidades individuais para buscar uma vida mais equilibrada e mais plena de significado, mais qualidade de vida e mais tempo para as coisas que julgam verdadeiramente importantes e prioritrias.1 No s na Amrica do Norte e na Europa, mas tambm no Brasil, na Argentina, no Chile, na ndia, na Coria do Sul, no Mxico, na frica do Sul e em outros pases, possvel encontrar cada vez mais pessoas que esto cansadas de esperar que governos e empresas simplesmente lhes ofeream novas escolhas e alternativas mais sensatas para suas necessidades e aspiraes. Essas pessoas formam um crescente substrato social de indivduos que no esto dispostos a se sentirem vtimas passivas de um mundo dominado pelos polticos incompetentes e corruptos e por empresas que buscam de forma selvagem o lucro. Elas buscam sadas individuais, mas no so egostas ou escapistas. Vrias delas comeam a perceber que o somatrio de suas prticas pode, paulatinamente, ir mudando a sociedade e o mundo em que vivemos. A maioria no se julga rf de utopias ou de revolues fracassadas. Tampouco acha que a sada se tornar ctico
ou cnico. No se entendem como um grupo parte da sociedade, como os hippies no sculo passado. Eu arriscaria dizer que temos a um bom exemplo de pioneiros do tempo, que testam estilos de vida que a maioria das pessoas adultas ainda no percebem como alternativas viveis. Fazer-mais-com-menos, em especial com qualidade superior Boa parte desses pioneiros do tempo so pessoas que pertencem classe mdia tradicional, que tiveram oportunidade de tirar um diploma universitrio e tm uma posio profissional confortvel. Elas no esto interessadas em se descolar da sociedade como se fossem um asceta, um profeta, um revolucionrio guerrilheiro ou um dissidente social. Talvez no seja arriscado dizer que so pessoas que descobriram novas ferramentas prprias dos tempos da Renascena Digital e so pioneiras na utilizao delas. Alm disso, parece que trazem ainda uma atitude positiva, questionadora e criativa diante da vida que lhes permite enxergar e aproveitar os novos caminhos que esto sendo abertos. Tomar conhecimento e analisar essa nova tendncia pode ser inspirador para reavaliarmos nossos valores e estilos de vida. O hbito de realizar um planejamento e controle dos gastos mensais pode dar muitos insights interessantes e nos ajudar a comear a ver a realidade de nossas despesas de uma nova forma. Em especial, nessas ocasies que comeamos a perceber gastos e despesas que no so realmente prioritrios e que podem muito bem ser reduzidos se estivermos interessados em realizar cortes para tornar mais enxuto nosso oramento domstico e pessoal. o caso, por exemplo, de despesas e gastos com carros que so, na realidade, desejos de ter mais status, gastos com certos tipos de entretenimento e consumo que nos damos como compensao pelo estresse que sofremos em empregos a que nos sujeitamos apenas pelo conforto e segurana que eles nos trazem. Pode ser o caso de despesas com terceiros para realizar tarefas domsticas que ns mesmos e nossos filhos poderamos fazer se tivssemos uma vida mais equilibrada em termos de tempo disponvel para o convvio domstico etc. Existe uma santssima trindade dos queixumes que praticamente todo o mundo, mas todo o mundo mesmo pratica costumeiramente: falta de dinheiro, falta de tempo e baixa qualidade de vida. A nica sada para entender e procurar solues para esses queixumes rever a vida pessoal, buscar fazer mais com menos e, alm disso, comear a refletir sobre a ilusria sensao de segurana que herdamos de nossos avs e pais de aceitar a continuar em empregos para os quais no levamos verdadeiramente nosso corao e muitas vezes nosso prprio crebro , atividades essas que nos sorvem as melhores energias, nos estressam sem dar o retorno que espervamos. Nos prximos captulos vou buscar sempre apontar idias e prticas inovadoras de pessoas que esto reinventando estilos de vida para melhorar sua qualidade de vida, fazer mais com menos, ter mais tempo e realizar mais com mais qualidade. J antecipo
aqui algumas delas s para voc, leitor, ir matando um pouco sua curiosidade. So coisas aparentemente pequenas, mas so passos significativos em uma nova direo. Existe um mundo de pessoas que est descobrindo que diversas coisas que compramos novinhas em lojas poderiam ser compradas de segunda mo, especialmente agora que dispomos de sites de comrcio de coisas usadas. O e-Bay dos EUA hoje uma das maiores empresas na Internet e tem o registro de 60 milhes de norte-americanos. Alm do e-Bay existe um incontvel nmero de outros sites que se especializaram em comrcio de bens e produtos de segunda mo. Ali na ptria me do capitalismo e do consumismo descartvel, onde comprar incentivado pelos polticos como um ato de patriotismo, uma grande parcela da populao comea a reconfigurar seus hbitos de compra por causa da Internet. Sempre existiram lojas e tambm jornais de coisas usadas, mas a Internet permite a voc garimpar em um mercado praticamente mundial por uma infinidade de ofertas. Um bom indicador dessa mudana cultural o artigo sado em um best-seller lanado nos EUA pela autora norte-americana Kathy Kristof,2 colunista do Los Angeles Times . No artigo, intitulado Dez coisas que voc no deveria comprar novo, Kathy pergunta: Por que algum deveria pagar mais por certas coisas apenas pelo prazer de ter uma embalagem vistosa sada de uma loja careira, se por uma excelente reduo voc pode ter exatamente o mesmo produto? E cita como exemplos: carro zero km, CDs, DVDs, vdeos, brinquedos infantis, jias, certos equipamentos esportivos, vrios tipos de mveis, em especial os de escritrio, games, coisas para seus filhos adolescentes etc. Uma outra colunista do portal MSN Money, M. P. Dunleavey, adiciona glamour ao comportamento de buscar comprar coisas de segunda mo pela Internet em seu artigo intitulado Por que pessoas de primeira linha amam comprar coisas de segunda mo?. No Brasil, essa prtica ainda est decolando. Por enquanto, o equivalente nacional mais conhecido um portal na Internet chamado Mercado Livre. Tudo leva a crer que, de fato, a compra de segunda mo via Internet um fenmeno que certamente vai ser mais massificado ainda e com isso reconfigurar e ajudar a tornar mais racional a sociedade de consumo, tornando mais barato e mais eficiente a alocao de bens e servios. Um outro exemplo de pioneirismo de, digamos assim, desonerao ou desmonetizao do estilo de vida a emergncia de uma tendncia de famlias que permutam suas casas em temporadas de frias com outras famlias de pases diferentes. Esses pioneiros fazem parte de redes mantidas via Internet nas quais negociam as bases da permuta de suas casas (home-swap). So arranjos que possibilitam trocar no s casa, mas tambm muitas vezes o automvel, e ter a convenincia de ter algum tomando conta de suas plantas e de seus animais enquanto voc est fora. Isso torna as frias internacionais muito mais baratas, pois os gastos passam a ser quase exclusivamente com passagens areas. Esse arranjo especialmente interessante para famlias com filhos pequenos ou adolescentes e que no poderiam arcar com custos de hospedagem em hotis. E gastos com carros? Muita gente j anda se dando conta de que se colocar na ponta do lpis os gastos com combustvel, manuteno, taxas, estacionamento, seguro
e a depreciao do veculo, fica mais barato usar txi dependendo de onde voc mora e de suas necessidades cotidianas de deslocamento. Em certos bairros das grandes cidades de todo o mundo, j tem muita gente com alto poder aquisitivo que faz isso por economia e conforto. A tendncia cada vez mais gente descobrir essa conta! Na Europa j existem diversas empresas s quais voc se filia e solicita um carro, por celular ou pela Internet, de acordo com sua convenincia de horrio e local. Depois voc o deixa em qualquer estacionamento pblico e informa pelo telefone que a empresa recupera o veculo. Voc paga uma taxa mensal conforme o uso. As empresas provam no prprio site voc mesmo pode fazer a simulao! que sai mais barato que ter carro prprio. verdade. Talvez voc no tenha ainda percebido que o carro passa mais de 90% do tempo estacionado, portanto ocioso. O que essas empresas europias esto fazendo um uso mais produtivo do carro. Elas ganham e o cliente tambm. E por a vai. Nos captulos seguintes sero apresentadas outras sugestes inspiradas nos novos estilos de vida que esto sendo inventados e recriados com a perspectiva de fazer mais com menos, buscando mais qualidade de vida, mais tempo e, sobretudo, mais controle individual sobre o prprio destino.
Notas
As anlises e concluses de Paul Ray esto reunidas em seu livro, produzido com sua mulher Sherry Ray, The Creative Cultures: How 50 million people are changing the world (NY, Harmony Books, outubro de 2000), ainda no traduzido para o portugus. Kathy Kristof autora do livro Deal with your Debts (Administrando suas dvidas), ainda no traduzido para o portugus.
CAPTULO 7
Quem tem filhos ou netos na faixa de dez anos de idade, fique sa-bendo que essa
meninada ser a primeira gerao que vai chegar de forma significativa, em termos demogrficos, aos cem anos de idade. Imagine como ser a velhice dessa turma. As timas notcias acerca de poder cruzar a barreira dos 85 estando ainda bem, fsica e mentalmente, e ativo do ponto de vista produtivo, e no uma carcaa completamente acabada pelo tempo, ocioso e esperando a morte chegar, sero fatos corriqueiros j nas primeiras dcadas do sculo que vivemos. Por volta de 2050, provavelmente a populao mundial dever ter atingido a marca de nove bilhes de seres vivendo no planeta Terra e, assim acreditam os demgrafos, dever se estabilizar ao redor desse nmero. Felizmente. medida que alcanamos um padro maior de desenvolvimento econmico e social, as mulheres passam a ter mais acesso educao. Com isso se tornam menos dependentes dos homens e a maternidade deixa de ser uma maldio, pelo nmero excessivo de filhos indesejados, e passa a ser uma escolha que envolve planejamento e conseqentemente um nmero menor de filhos. Alis, parece que este nmero est convergindo para algo prximo a dois. Um casal de filhos parece ser o sonho racional da humanidade transformado em realidade por mulheres e homens: a esperana e aposta de futuro cristalizadas na reposio biolgica dos parceiros. As mudanas demogrficas que tiveram lugar ao longo do sculo XX foram a mais espetacular das transformaes, pois mudaram com pletamente os nossos conceitos das fases da vida. A expectativa mdia de vida para homens e mulheres que nasceram trs mil anos atrs era de apenas 18 anos. Um Matusalm daqueles tempos era algum que tinha chegado marca dos 40 anos. Ao contrrio de hoje em dia, as mulheres viviam menos tempo, em mdia, por causa da maternidade. Os romanos e gregos, com os progressos realizados at o nascimento de Cristo, conseguiram puxar a mdia da expectativa de vida ao nascer para 25 anos. A Idade Mdia foi, em termos demogrficos, um perodo de vitria para a humanidade: a expectativa de vida subiu para 35 anos, portanto o dobro do que os homens que viviam em tribos nos tempos antes de Cristo. Nos primrdios da Revoluo Industrial, que se iniciou pelo final do sculo XVIII at o comeo do sculo XX, ocorre a sinergia de uma srie de modificaes positivas, tais como melhor alimentao, avanos da medicina, conquistas sociais e saneamento, que
permitem um aumento significativo da expectativa de vida. No comeo dos anos 1900, as mulheres atingem a marca de 49 anos nos EUA, enquanto os brasileiros tinham 33,5 anos de expectativa de vida ao nascer. Chegamos ao final do sculo com o dobro dessas mdias. Nas tabelas estatsticas demogrficas de 2005, pases maduros como Japo e EUA j ultrapassaram a linha dos 80 anos e brasileiros esto cruzando a linha dos 70. Assim, podemos nos preparar para ver outras marcas carem nas prximas dcadas, fazendo com que a humanidade comece a acalentar a idia de que talvez alguns indivduos possam chegar aos 150 anos. Se vai valer a pena ultrapassar a barreira dos cem anos de idade, isto outra histria. Desde tempos imemoriais at praticamente a Segunda Guerra Mundial, o senso comum segmentava a existncia do ser humano simplesmente em trs fases: infncia, vida adulta e velhice. A passagem para a idade adulta no era vista como hoje, compreendendo uma sucesso de fases, englobando a pr-adolescncia e a adolescncia. Tampouco as idias acerca de infncia e velhice conheciam a definio de nuances que usamos hoje: primeira e segunda infncias, terceira e quarta idade etc. Essas segmentaes foram sendo apreendidas e apresentadas ao senso comum por psiclogos, antroplogos, cientistas sociais e marqueteiros que perceberam que as mudanas demogrficas, sobretudo em funo do crescimento da expectativa de vida ao nascer, tam bm chamada de longevidade, resultaram em profundas transformaes de nossa cultura trazendo uma nova realidade acerca da sucesso das fases da vida humana do nascimento morte. Porm o mais marcante nessa histria que a transio para o sculo XXI um momento em que a humanidade redefine fundamentalmente as dcadas finais da vida do ser humano. O que a velhice? No Brasil, a Poltica Nacional do Idoso estabelece como marco legal da velhice a idade de 60 anos, perodo tambm designado como Terceira Idade. No entanto, quando uma pessoa se torna velha? Nada mais indefinido e flutuante do que esse limite em termos de complexidade fisiolgica, psicolgica e social. Como forma de tentar tornar mais flexvel essa linha demarcatria j se fala em Quarta Idade, uma nova marca para a velhice, a partir dos 80 anos. No sculo XIX, passados poucos anos do final da infncia, tanto o homem quanto a mulher adentravam quase que diretamente na idade adulta. A adolescncia no constitua propriamente uma fase da vida. Antes disso, as pessoas entre 12 e 20 anos eram vistas como adultos jovens. No seu Casa-grande & senzala, Gilberto Freire relata como a mulher deixava de ser menina para ser me abruptamente a partir dos 13, 14 anos. Aos 20 j era uma matrona e aos 30, av. As mulheres encaravam ao longo de sua idade reprodutiva uma penosa sucesso de gestaes e partos de alto risco e em sua maioria alcanava a morte entre os 40 e 50 anos, antes de se tornarem efetivamente velhas. No existem estatsticas, mas tudo leva a crer que as escravas seguiam aproximadamente as linhas de demarcao etria das brancas. Os homens, se pertencessem elite branca dominante, tinham um perodo de juventude mais alongado para receber educao, mas aos 20 eram vetustos cavalheiros. Sua longevidade era parecida com a das mulheres. No sofriam os
padeceres dos partos e gestaes, mas a alimentao totalmente inadequada, o fumo, o sedentarismo e a precariedade da medicina naquela poca impunham maioria uma expectativa de vida ao nascer bem abaixo dos 40 anos. Os escravos do sexo masculino, tratados como bestas de cargas, condenados a viver em promiscuidade e sem qualquer cuidado mdico, tinham uma expectativa de vida menor que a dos brancos. Para esses, a velhice avanada era uma realidade na proximidade dos 50 anos. Vida sexual ativa aps os 40 anos de idade era reservada apenas aos homens que se dispunham a ter amantes ou ir a bordis. Para a maioria das mulheres casadas, mesmo para as jovens, a vida sexual ativa era um evento extremamente curto e desinteressante. A grande maioria desconhecia o orgasmo, e o sexo para a mulher casada era uma obrigao qual tinham de se submeter, sem contraceptivos confiveis e acessveis, e ainda pressionadas pelas reprimendas dos padres confessores que no davam a absolvio quelas que ousavam evitar, de alguma forma, a concepo. No caso das solteiras, para essas, obviamente, o sexo era completamente vetado. As melhorias na alimentao, os avanos da medicina e o maior cuidado dos indivduos com o corpo e a sade, evitando o sedentarismo, realizando atividades fsicas regulares, causaram no apenas uma revoluo demogrfica, mas tambm uma revoluo cultural em pouco mais de 50 anos. A gerao de nossos pais, que nasceram por volta dos anos 1930 e 1940, via filmes de Hollywood mostrando a velhice chegando aos 40, 50 anos. Era a idade dos cabelos grisalhos, dos netos, do apagar do fogo do sexo, sobretudo para as mulheres. Hoje, esta gerao que chega aos 70 no tem paralelo com nenhuma outra em termos de velhice. Criados ao longo da vida com a convico de que ser idoso era quem chegasse aos 60, nossos pais so a primeira gerao que no est em conformidade com o esteretipo de velhice cultivado at o final do sculo XX. Existem algumas localidades especiais no Brasil que se tornaram um meio ambiente mais apropriado para envelhecer com mais qualidade de vida. So verdadeiros laboratrios de vanguarda onde se concentra, por um lado, um mercado significativo de pessoas acima dos 60 anos, e por outro, uma oferta consideravelmente maior e de melhor qualidade de servios, produtos e equipamentos pblicos e privados orientados para esse mercado consumidor. O melhor exemplo desse tipo de localidade o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, que tem quase 25% de sua populao acima de 60 anos e que antecipa hoje o que ser a realidade demogrfica do Brasil daqui a duas dcadas. Basta andar pelos calades da orla martima da Zona Sul do Rio de Janeiro e notar como cidados e cidads sexagenrios, setuagenrios e octogenrios desfilam pelas ruas, sobretudo pela orla, sem qualquer vestgio de sentimento de inferioridade esttica, vestidos de sunga, de mai, de roupo de banho. Repare os seus ps rpidos em tnis modernos com cores vibrantes. De segunda segunda fazem suas caminhadas na orla, vo para suas atividades em piscinas trmicas e academias,
circulam em lojas, supermercados, bares, restaurantes de comida a quilo. Turistas provenientes de outros estados brasileiros onde a vida menos solar que a carioca, como mineiros, goianos, paulistas, sulistas, se extasiam com a jovialidade de corpo e alma e com a funcionalidade da vida de moradores com mais de 60 que habitam a orla martima carioca que vai do Flamengo ao Leblon, bairros com alta densidade populacional onde boa parte das necessidades do cotidiano ainda pode ser realizada em distncias percorridas a p, de metr, ou com curtas corridas de txi. nesse contexto que Copacabana se tornou uma espcie de plataforma de lanamento e de teste de produtos e servios para os consumidores longevos. Por exemplo, nesse bairro existem empreendimentos imobilirios novos e prdios antigos tm sido adaptados com funcionalidades para essa populao de cabelos brancos interessada em ter vida independente e de qualidade. Analogamente plula anticoncepcional introduzida nos anos 1960 e 1970, que representou para a mulher a possibilidade de ter direito a usufruir as delcias do sexo minimizando os riscos da gravidez indesejada, vrios medicamentos que comearam a chegar ao mercado na virada para o sculo XXI esto proporcionando humanidade uma perspectiva inteiramente nova de vida sexual ativa na velhice. Na falta dos filtros da juventude, a farmacologia moderna tem ajudado senhores e senhoras acima dos 60 a descobrir que envelhecer no significa ser expulso do jardim do paraso representado pelas delcias do sexo. assim que o Brasil o segundo mercado para o Viagra, atrs apenas dos Estados Unidos. Agora est chegando ao mercado a verso Viagra para as mulheres. O papel sociocultural desses frmacos extrapola a simples cura e estimulao daqueles que tm disfunes sexuais, assim afirmam sexlogos, que explicam que esses medicamentos tm um efeito mais amplo em termos de comportamento moderno, estimulando a idia de que pessoas devem e podem manter sua atividade sexual ao longo de toda a vida independente da idade. Para as geraes que envelhecero a partir de agora, diferentemente do passado, o fogo do sexo no ser apagado mais com a velhice. pouco conhecido do grande pblico o impacto que esses frmacos vm provocando em fundos de penso, em especial com seus pensionistas ancios vivos. Esses eram casos de homens entre 80 e 90 anos, que, com o fogo reacendido pelo Viagra e congneres, passaram a cortejar com pedidos de casamento mulheres bem mais jovens, acenando para estas com a promessa de suas polpudas penses. Como, por exemplo, o de um pensionista que morreu com quase 90 anos e que deixou viva de 40 anos, depois de um casamento feito alguns anos antes. Diante da anlise coletiva de seus beneficirios, vrios fundos de penso concluram que esses no eram apenas casos isolados. Vivos turbinados com Viagra comeavam a se configurar como padro emergente de um estilo de vida ou de final de vida , e esses indivduos poderiam pr em risco a estabilidade dos clculos de seguros para a coletividade de pensionistas. Ante essa nova realidade, os fundos de penso acordaram em criar clusulas de barreira para seus participantes de forma a impedir novos casos abusivos. Agora o homem ou mulher que se tornar vivo(a) poder se casar claro , porm o(a) noivo(a) no poder mais se tornar seu beneficirio em caso de morte.
Vida ativa e produtiva: a receita para qualidade de vida e longevidade A humanidade comea finalmente a rever a idealizao da aposentadoria no momento em que o modelo concebido na virada do sculo XIX para o XX vai sendo implodido em todos os lugares do mundo. No sculo XIX, a maior parte de todas as atividades de trabalho humano assalariado exigia vigor fsico. A grande maioria dos afazeres, como agricultura, extrativismo, indstria e servios, exigia fora e vigor fsicos e exauria em poucos anos os trabalhadores em longas jornadas de trabalho. Peter Drucker, o mais notvel autor e estudioso de administrao norte-americano, falecido em 2006, aos 96 anos, em um de seus notveis artigos intitulado A Nova Sociedade,1 frisava que, nas economias de antes da Segunda Guerra Mundial, o trabalhador tinha de aposentar-se porque se exauria por completo fisicamente nos servios em que fazia, pois a maior parte dos trabalhos naquela poca era servio braal pesado. Antevendo a realidade da Sociedade do Conhecimento, que era a forma que Drucker se referia era que se seguir Era Ps-Industrial, sero progressivamente criados mais empregos para atividades que exigem qualificao educacional e no vigor fsico. Neste contexto, segundo Drucker, no futuro teremos certamente dois tipos distintos de fora de trabalho: uma parte composta pelos indivduos de menos de 50 anos e a outra pelos de mais de 50. Estas duas foras diferiro marcadamente em suas necessidades e comportamento. O grupo mais jovem buscar renda e trabalho mais estveis, ou pelo menos uma sucesso de servios de tempo integral. O grupo mais velho, que dever ter crescimento rpido, ter muito mais opes de escolha. Este grupo ir combinar trabalhos tradicionais, no convencionais, e lazer nas propores que mais se adaptarem ao seu perfil e disponibilidade. Drucker foi um dos primeiros autores a falar em fora de trabalho de mais de 50 anos. Mais do que isso, foi o primeiro autor que no mencionou um limite para que o ser humano se retire do mundo do trabalho. assim que nos anos que esto por vir, da mesma forma que estamos redefinindo a economia e o trabalho, redefiniremos um novo entendimento do que idade longeva e um novo conceito de aposentadoria. Provavelmente, a gerao que tem agora 30/40 anos no conhecer a aposentadoria no sentido que nossos avs e pais conheceram. Mais e mais postos de trabalho que exigem mais qualificao educacional, e no vigor fsico, sero criados. Assim, a aposentadoria tal como aprendemos a v-la o ostracismo da vida produtiva dever se tornar um anacronismo completo at a metade deste sculo. Para os jovens que entram hoje no mercado de trabalho a mensagem uma s: prepare-se para parar de trabalhar bem prximo hora de morrer. Mas no se apavore! Mire-se no exemplo de Drucker, ele mesmo um homem que nunca parou de trabalhar. Lanou seu ltimo livro aos 94 anos, dois anos antes de sua morte. Ele representava bem o fato de que determinados profissionais e profisses no admitem aposentadoria. Atores, msicos, cantores, escritores, artistas plsticos, polticos so exemplos de pessoas que morrem trabalhando. Gostam do que fazem, encontram um equacionamento entre suas condies e limitaes fsicas e seguem produzindo at
morrer. A Sociedade Digital Global, que poder ser tambm conhecida como Sociedade do Conhecimento, criar inacreditveis possibilidades se continuarmos ativos e produtivos mesmo dentro das condies fsicas de idosos, o que nos tornar mais saudveis e menos deprimidos. Mais importante do que buscar emprego para sobreviver ser o desafio de descobrir mais cedo o que realmente gostamos de fazer na vida. Lembra do velho ditado: Descubra o que voc gosta de fazer e voc nunca mais vai trabalhar? Essas histrias podem soar meio apavorantes para aqueles que passaram dos 45 anos, que comeam a se sentir cansados da competio do dia-a-dia da labuta e que iniciam seus devaneios de aposentadoria. Se voc est nessa faixa etria bom comear a pensar de forma mais positiva acerca de planos de desaposentadoria. Quer argumentos? Existe um estudo feito pelo gerontlogo Renato Veras, da Universidade de Estudos da Terceira Idade (Unati) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que analisa trs populaes distintas de pessoas idosas. Cada uma delas situada em bairros tpicos e paradigmticos do Rio de Janeiro. O primeiro grupo o dos residentes em Copacabana, bairro da Zona Sul; o segundo o dos residentes no Mier, um tpico bairro da Zona Norte, e o terceiro o dos residentes do bairro de Santa Cruz, um distante e pacato bairro do subrbio, que ainda guarda traos fortes da antiga zona rural. Veras compara os indicadores de cada grupo (os mesmos so homogneos, do ponto de vista de renda) em busca de um julgamento que estabelea comparao acerca de qualidade de vida de cada uma dessas populaes estudadas. Resumo da histria: o senso comum imaginaria que uma maior qualidade de vida estaria mais prxima daqueles residentes em uma localidade remota longe do famigerado caos urbano, isto , longe do trfego, do burburinho do comrcio, morando em casas em vez de morar em apartamento. Assim, a aposta seria a tranqilidade quase rural de Santa Cruz. Errado! O dr. Veras, com base nos indicadores como longevidade, nmero de amigos/crculo de relacionamento, depresso, sade fsica e mental etc., conclui justamente o contrrio. Os velhos de Copacabana so os que vivem mais e com melhor qualidade de vida, so menos propensos a doenas, entre as quais a depresso, so mais ativos etc. Santa Cruz, o local casa de campo, fica em terceiro lugar e o Mier em segundo. Tudo leva a crer que a tranqilidade idlica de locais remotos a ltima coisa para estimular positivamente o cotidiano dos seres humanos, sobretudo medida que estes envelhecem. Como se pode concluir pelos argumentos ao longo deste captulo, paulatinamente, o portal de entrada da velhice ser deslocado dos 60 para os 80 anos. No sculo XXI, o homem e a mulher sessentes no abandonaro a vida produtiva abruptamente como o costume que foi consolidado ao longo do sculo XX. Sero empurrados para esta nova tendncia porque querero continuar ativos, e porque tero de aumentar suas receitas, pois a renda da aposentadoria tender a diminuir consideravelmente. Essa gerao que chega agora velhice , provavelmente, a ltima gerao a ter
asseguradas penses de maior valor, em especial aqueles que so servidores pblicos. Caso sejam ex-trabalhadores da iniciativa privada, somente tero recursos se estiverem cobertos por planos de fundos de penso de empresas, ou se tiverem amealhado um patrimnio mais avantajado ao longo da vida. Mas mesmo os fundos de penso privados vo ter que encolher o valor dos benefcios concedidos, pois vamos coletivamente viver ainda mais tempo. A aposentadoria, assim como o casamento por amor, so invenes da humanidade realizadas ao final do sculo XIX e consolidadas ao longo do sculo XX. O casamento por amor permanecer. Mas a prtica, bem como os direitos adquiridos, de se aposentar aos 60 sero impraticveis da forma em que se acostumou a pensar no sculo XX, por duas razes. Primeiro, porque as contas de seguridade social no fecharo. Inventada por Bismarck no final do sculo XIX, a aposentadoria se baseava em uma estatstica de clculo de seguros de vida de uma coletividade que tinha a demografia peculiar daquela poca: expectativa de vida curta e altas taxas reprodutivas (naqueles tempos eram comuns taxas de fecundidade superiores a dez filhos para mulheres dos segmentos sociais realmente pobres). Naquela poca, para cada aposentado existiam pelo menos 18 contribuintes na ativa. Hoje, a aposentadoria j no vista por muitos homens e mulheres ativos como uma bno ou recompensa que culmina a jornada de uma vida. Pelo contrrio, a paralisia de sua vida ativa em um momento que antecede em muito a decadncia inevitvel do final dos dias. No Japo, por exemplo, aposentar-se aos 60 equivale a estar condenado a assistir passivamente vida pelos prximos 35 anos em mdia. Isso equivale a uma vida de condenado ao cio. Essa uma das razes que leva o Japo a ser um dos pases com mais altas taxas de suicdio do mundo. Alguns dos aposentados j reconheceram que seus caminhos e planos passam pela desaposentadoria se querem efetivamente superar o cio que corri sua qualidade de vida, que seus neurnios, tanto quanto seus msculos e aparelho circulatrio, necessitam de exerccios regulares para se manterem saudveis. Esta gerao de vanguarda que chega aos 70 no comeo do sculo XXI est reinventando o trabalho, para alm da aposentadoria, adequando o mesmo s suas peculiaridades de estilo de vida e caractersticas fsicas. Diante da sombra da runa da previdncia social faa seus planos de desaposentadoria A perspectiva da quebra dos sistemas de previdncia e seguridade social nos deixar cada vez mais desconfortveis. No acredite que d tempo para desarmar esta bomba. No h poltico no mundo, independentemente de carisma, autoridade, ideologia ou partido poltico, que conseguir desativar a armadilha montada pelo prprio sucesso da humanidade, que resultou na conquista de uma vida mais longa para a imensa maioria dos seres humanos. Em todo o mundo, passeatas esto sendo feitas por trabalhadores, sobretudo
funcionrios pblicos, contra reformas previdencirias que esto sendo propostas por governos em vrios pases mundo afora. No importa o nvel de renda, o PIB, se o governo de esquerda ou conservador. A questo : com o aumento da longevidade as contas no fecham. Tome a Frana, modelo para muitos de conquistas de igualdade social. No ano de 2002, 38% dos que se aposentaram nesse pas tinham menos de 60 anos. A Frana no tem ainda a longevidade do Japo, que de 84,4 anos de expectativa de vida ao nascer para a mulher e 77,4 para o homem. Mas estimemos, por exemplo, que uma professora francesa v se aposentar aos 57 anos, aps trabalhar 25, e que v viver at os 84. Sero nada menos do que 27 anos vivendo sustentada pelos outros contribuintes, depois de ter contribudo por 25 anos. Voc acha que existe alguma chance de estas contas fecharem? S atravs de subsdios pblicos. Mas quem paga essa conta? Claro que, no final das contas, so os prprios contribuintes. Outro agravante na equao que no fecha da previdncia a diminuio dos nascimentos. Em vrios pases, os casais j no se repem, isto , tm menos de dois filhos, em mdia, o que significa menos gente entrando no mercado de trabalho, portanto diminuio do nmero de contribuintes para a seguridade social enquanto um sistema coletivo. A Previdncia no Brasil tinha, em 1940, 32 contribuintes para um beneficirio. Na dcada de 1980, essa relao despencou para 9/2. Em 2002, a relao 7/1. Calcula-se que em 2030 ser de 1/1. O outro problema o aumento da informalidade. Em uma dcada o nmero de trabalhadores no mercado formal no Brasil caiu de 58% para 45%. Os que trabalham sem carteira assinada e os que trabalham por conta prpria cresceram de 37% para 52%. Quem informal, via de regra, no contribui para a previdncia social. O que vai acontecer com quem viveu a maior parte da vida na informalidade ao envelhecer? Ter de seguir trabalhando para conseguir rendimentos maiores que o parco salrio mnimo que far jus aps os 65 anos. Assim, temos de nos preparar para o encontro do Titanic da seguridade social com o iceberg do aumento da longevidade e do envelhecimento da humanidade, que dever se dar ao final da segunda dcada do sculo XXI. Temos de colocar botes salva-vidas desde j. No lugar de se desesperarem, os indivduos vo construir caminhos criativos e mltiplos. Alguns mais individuais, outros mais solidrios. No tente se adaptar. Comece hoje a projetar sua mudana. O sapo um anfbio bem conhecido por sua capacidade de adaptao, ou melhor, de acomodao. Acomodao pode, s vezes, ser muito positiva. No entanto, pode ser uma ameaa sobrevivncia. Se voc colocar o sapo em uma panela de gua fria e for elevando a temperatura, o organismo dele no se dar conta de que a elevao no permitir adaptao a partir de um determinado ponto e assim o sapo acabar sendo fervido. Num mundo onde a mudana passa a ser a regra justamente o contrrio das civilizaes e culturas congeladas nos tempos passados , uma das caractersticas que teremos de aprender mudar cada vez mais rpido, algumas vezes de forma radical. No ser possvel simplesmente se adaptar.
No adianta se voc de esquerda, conservador, neoliberal, capitalista ou socialista: estes so fatos contra os quais no se pode brigar. O melhor a fazer encarar a situao de frente e preparar caminhos alternativos em direo a um futuro que ser totalmente diferente do que a gente nascida e criada no sculo XX imaginava. bom preparar seus filhos para novos tipos de desafios que no faziam parte do mundo do sculo XX. No os eduque para um mundo que acabou. Tente faz-los ver o mundo e a vida em 30, 40, 60 anos para frente e sempre mudando. Ensine-os a surfar as novas possibilidades e no a reagir e tornar-se ressentido e pessimista. No comeo do sculo XX, ningum poderia imaginar o paradoxo que est ocorrendo hoje: jovens de vinte e poucos anos fazendo seus planos de aposentadoria; adultos seniores de 50, 60 anos fazendo seus planos de desaposentadoria. Mas existe uma coisa importante, uma grande ferramenta que precisamos reinventar, individual e coletivamente, e que nos possibilitar encarar com confiana as transformaes de ruptura que se colocam diante de ns: a educao, mas no essa que experimentamos ao longo do sculo passado. Mas isso conversa para o prximo captulo.
Nota 1 The New Society, relatrio especial para a revista The Economist, 21 de novembro de 2001.
CAPTULO 8
Reinventando a educao
QUALIFICAR DE FORMA CONTNUA AS PESSOAS PARA OS
DESAFIOS E POTENCIALIDADES DA
que ficou conhecida ao final dos anos 1960 que dizia no confie em ningum com mais de 30 anos. Esse era um slogan dos estudantes que se manifestavam contra o establishment conservador que naquela poca representava uma posio favorvel guerra do Vietn, acelerao da corrida armamentista nuclear e tambm uma posio contrria s transformaes mais libertrias, como o sexo antes do casamento, a emancipao da mulher, direitos civis para minorias etc. O movimento dos estudantes e ativistas da chamada contra-cultura dos anos 1960 e 1970 clamava por mudanas, e por isso colocava os indivduos com mais de 30 anos na perspectiva de inimigos pela incapacidade destes de assimilar qualquer mudana. Inspirado nesse slogan, adotei a marca dos 30 anos como a idade em que o indivduo socialmente reconhecido como adulto pronto e acabado para exercer todas as responsabilidades individuais e sociais. Ainda presentemente, vivemos em um sistema que nos programa para realizar escolhas ao longo do perodo em que estamos recebendo nossa carga de educao. A partir da estaremos prontos e moldados de forma definitiva. No isso que acontece mais. Estamos descobrindo que nunca estaremos prontos. Mesmo como indivduos adultos e mesmo mais seniores, vamos ter de preservar aquela maleabilidade que tnhamos como criana; bem como a atitude em termos de curiosidade e a disposio para o aprendizado contnuo. Assim esto descobrindo os adultos da aurora da Renascena Digital. Os jovens dos tempos da transio para a Sociedade Digital sofrem sobretudo pela falta de referncia de receitas prontas do que deve ser feito para ganhar qualificao e atingir a plenitude da vida adulta. Sofrimento agravado fundamentalmente pela falta de perspectiva de disponibilidade de empregos que eram tradicionais no sculo XX. Porm, por sua vez, os adultos com mais de 30 anos sofrem com a sobrecarga cognitiva que vai se tornando cada vez mais epidmica e pelas suas dificuldades de manter o passo atualizado com as mudanas, em especial as de natureza tecnolgica. No ser nada engraado ter 40, 50 ou 60 anos e, diante das extraordinrias e vertiginosas mudanas, assumir que sua vida tornou-se um casulo de ignorncia. Pode ser engraado no caso de voc ser um cronista talentoso, como o Lus Fernando Verssimo. Veja como foi sua experincia de dirigir carros na Europa, onde comeam a utilizar sistema de navegao por satlite, tambm conhecido como Sistema de Posicionamento Global (GPS): Sempre digo que ainda no entendo bem como funciona uma torneira, de sorte que qualquer mecanismo mais complicado, do liquidificador ao rob teleguiado em Marte, para mim mgica. E claro que nem tento entender o sistema de navegao por satlite, hoje comum em carros na Europa, que no s sabe e mostra uma tela onde voc est o tempo todo, e para onde tem que ir, como lhe fala isso na lngua que escolher!1 O grande problema que legies de pessoas adultas com mais de 30 anos se sentem como seres perdidos na selva do conhecimento humano que se expande celeremente. Para esses, soa como ofensiva a enorme naturalidade e familiaridade com que os jovens manipulam as novas ferramentas high-tech. O que fazer com adultos que se julgavam prontos e preparados ao sair da faculdade e que de repente no sabem operar os utilitrios de computador considerados
rudimentares pelos jovens e adolescentes? Onde vamos buscar o saber, o conhecimento operacional que nos qualificar e capacitar para viver como seres contemporneos dos novos tempos da Renascena Digital? Essa a grande questo que estamos dispostos a amadurecer neste captulo. Deixemos de lado, por agora, a educao dos jovens, aquela a ser realizada pelo sistema de educao tradicional, que vai da pr-escola at a faculdade, para nos concentrarmos na necessidade de buscar educao continuada para adultos. O medo de se tornar jurssico Aqueles adultos que tm contato cotidiano com adolescentes, seja no papel de pais ou no de professores, certamente ficam pasmos como essa meninada vive confortavelmente em um mundo onde bits e bytes imperam, seja na forma de blogs, emails, torpedos, rings, msica, vdeo, uploads e downloads, wikis, etc.; imersos em uma realidade na qual se navega com a ajuda de ferramentas digitais como celulares, computadores, cmeras digitais, Ipods, players, DVDs, conexes wireless, banda larga etc. Essa a primeira das geraes que, para saber das notcias, no precisa sujar os dedos de tinta folheando jornais nem ficar parado na frente de uma TV aguardando a hora do noticirio. Ante essa perspectiva, os adultos com mais de 30 anos costumam se sentir como sados de um museu ou de um parque temtico que retrata a prhistria da humanidade. A verdade que esses adolescentes encaram, com naturalidade e sem se dar conta das transformaes radicais, a caminhada civilizatria que fazemos em direo Sociedade Digital Global. E quem quer sobreviver, ativa e produtivamente, tem de acertar o passo com essa gerao. Boa parte dessa humanidade que tem mais de 30 anos est em estado de sofrimento, apreensiva com sua potencial excluso digital em um mundo que se transformou em gigantesco organismo processador de bits e bytes. Os adultos, mais do que os jovens, penam para conseguir acompanhar o passo das inovaes que chegam ao mercado em ritmo vertiginoso. O sofrimento ocasionado pela sobrecarga cognitiva acaba por somatizar-se nos indivduos, e coletivamente est na raiz de uma verdadeira epidemia de disfunes e sndromes psicolgicas como ansiedade, pnico, depresso, transtorno bipolar, fobia social, fibromialgias2 etc. A severidade desse sofrimento pode levar at mesmo os indivduos reao extrema daqueles que no suportam mais tanta dor psicolgica: o suicdio. O Japo um caso emblemtico da agudizao dessa situao. A imprensa em geral no costuma enfocar esse assunto, pois existe uma crena e um temor comum entre jornalistas de que notcias a esse respeito podem ter um efeito indutor desse comportamento. No entanto, vai se tornando evidente que o suicdio uma manifestao de natureza social, que no deve ser ignorada e que est afetando sociedades que, paradoxalmente, tm um nvel de bem-estar material elevado. O Japo um pas no qual esta tendncia se manifesta de uma maneira altamente preocupante. Essa nao hoje a comunidade nacional com o maior nmero absoluto
anual de suicdios, e em termos percentuais, uma das maiores taxas do mundo. O recorde ocorreu no ano de 2004, quando 34.427 japoneses decidiram acabar com suas vidas. Dois teros eram do sexo masculino, e assim o fizeram por causa dos problemas de sade e desemprego. um nmero comparvel ao de mortos no trfego anualmente no Brasil (18.877 em 2002) e nos EUA (42.850 tambm em 2002). Mas de acordo com a Organizao Mundial de Sade, o Japo no o campeo neste triste marcador da desesperana humana. Em termos relativos, comparando dados de 2000, a taxa de suicdios de 24,1 pessoas por grupo de cem mil no Japo.Em primeiro lugar vem a Rssia, com 39,4 por cem mil, seguida dos pases blticos, que em alguns anos superam a Rssia. Na Frana, essa taxa de 18,4; nos EUA, 10,4; e no Brasil, em torno de cinco pessoas por cem mil. Em todos os pases, os especialistas enxergam como causas bsicas desse problema o desemprego e o fracasso no trabalho. No que neurologicamente no possamos continuar aprendendo como fazem os jovens. Os neurologistas esto descobrindo que o crebro, diferentemente do restante de nosso organismo, tem uma plasticidade e uma capacidade regenerativa impressionante, de tal forma que a mente segue, em geral, jovem do ponto de vista das funes cognitivas. O problema que internalizamos uma cultura dominante na qual fomos educados de que o aprendizado habilidade prpria da juventude do indivduo. Cientificamente vai se compreendendo que no isso. Apenas nos recusamos a continuar aprendendo. Por que nos sentimos velhos para aprender depois dos 30? Ser isso biologicamente justificvel? Os avanos recentes da neurologia dizem que no bem assim. Parece que internalizamos como indivduos uma atitude cultural e, do ponto de vista cognitivo, nos sentimos mais velhos e menos capazes do que na realidade somos. Continuamos a encarar a juventude como o momento da plenitude da capacidade cognitiva sem que isso corresponda capacidade que realmente temos. O acontecimento da Renascena Digital impe a mudana dessa perspectiva. Antes bastava ao jovem encher sua mochila de conhecimento nos anos de escola fundamental, mdia e superior e voil: prontos e nutridos para a vida inteira. Quando ficasse velho, o Estado proveria os meios e a segurana da ociosidade na ante-sala da morte. Essa perspectiva vai simplesmente se exaurir nas prximas dcadas, e quanto mais cedo voc despertar para essa realidade tanto melhor para voc e para a sociedade como um todo. O desafio agora que a educao no a mera escolaridade para os jovens dever ser parte do cotidiano do adulto tanto quanto suas outras responsabilidades como o trabalho, o provimento da famlia, o lazer, seu relacionamento com os amigos etc. Este novo sistema de educao continuada para adultos, seus contedos, seus canais de distribuio, no est pronto em lugar nenhum do planeta. Ns estamos comeando a invent-lo e a constru-lo. No podemos simplesmente esperar sentados que o Estado se transforme no
grande e universal provedor de educao continuada. Enquanto indivduos, vamos ter de retomar uma maior fatia de responsabilidade sobre nossa prpria vida, bem como uma nova qualidade de responsabilidade. Aprendemos ao longo do sculo XX a confiar cada vez mais na montagem do Estado Contemporneo, que se transformou em uma megamquina da qual nos tornamos refns. Os custos de manuteno dessa megamquina seguem-se elevando de forma ilimitada e o retorno desse nosso investimento tem sido cada vez mais insatisfatrio. A educao dos adultos deve ser entendida nesse contexto. O senso comum que prevaleceu at o sculo XX consolidou a idia de que a universalizao da educao como direito de crianas e adolescentes to importante que esta questo se tornou uma agenda de polticas pblicas. A massificao do ensino universitrio como forma de qualificar os jovens adultos ocorreu mais recentemente depois da Segunda Guerra Mundial. Mas ser na Renascena Digital que ns vamos ver o incio do reconhecimento da educao continuada dos adultos como uma necessidade igualmente fundamental. No entanto, o provimento da educao continuada dos adultos ser bastante diferenciado. Esse provimento ser resultado de um compromisso entre o prprio indivduo, organizaes privadas e o Estado. Porque a humanidade da Era Digital necessita criar educao continuada para os adultos? Quantas vezes voc j ouviu pessoas na faixa entre 40 e 50 anos gente que deve ter ainda uns 30, 40, talvez at 50 anos de vida pela frente reclamando que so vistas como velhos pelas empresas, sobretudo pelos departamentos de recursos humanos que analisam seus currculos? O que fazer com indivduos que esto em plena vida produtiva que tm suas profisses e habilidades tornadas obsoletas da noite para o dia? Ou com centenas, s vezes milhares, de demitidos por ocasio da compra ou fuso de uma grande empresa com outra? O que fazer com profissionais que vo vendo seus postos de trabalhos sendo enxugados ou um mercado saturado, como o caso dos bancrios? O que fazer com pessoas mais velhas que se defrontam com mquinas ou programas aplicativos que julgam ter uma complexidade acima de sua capacidade de aprender a operar? O que fazer com pessoas que saram provisoriamente do mercado de trabalho, at mesmo voluntariamente, como o caso de mulheres que resolveram se dedicar aos filhos pequenos, e que querem retornar vida profissional mas precisam de requalificao e atualizao? S h uma resposta para essa ansiedade e angstia, que no se restringe a um grupo de indivduos, mas que, no final das contas, atinge toda a humanidade: um sistema de educao continuada dos adultos. Nas tribos pr-histricas, a educao existia sem ser um sistema explcito e sem escolarizao. A educao existia de forma implcita no cotidiano dos indivduos e tinha duas faces: o aprendizado da sobrevivncia material e o aprendizado das tradies dos antepassados. No plano da sobrevivncia material cabia ao homem o aprendizado da
caa e da defesa, ou ataque, para a proteo da tribo. mulher cabia aprender sobre a maternidade e o provimento domstico da famlia. E cabia a ambos aprender sobre as tradies dos antepassados, as crenas e os rituais. Nessas condies durssimas a expectativa de vida das pessoas situava-se abaixo dos 20 anos. Chegar a morrer de velhice era um fato muito raro. Em muitas sociedades tradicionais, os esquims, por exemplo, muitos indivduos ao se constatarem impedidos de ser produtivos, se suicidavam para no se tornarem fardos para sua coletividade. Nesse tipo de sociedade tal ato no era revestido do significado de tabu e desespero com que nossa civilizao o interpreta. Nas civilizaes que nos precederam at 200 anos atrs considerando as da Antiguidade, dos tempos medievais, feudais, os imprios , eram todas essas sociedades altamente elitizadas e no democrticas e nelas a educao como sistema formal universal no existia. A sistematizao e a transmisso do conhecimento humano eram restritas a uma minscula elite. O trabalho humano era, em sua maior parte, pesado e desgastante labor manual, e era ocupao de uma multido de escravos ou servos, verdadeiras bestas de carga. Vamos aprendendo que quanto mais complexa se torna a interao e participao dos indivduos no jogo social, mais complexa e sofisticada se torna a necessidade de capacitao dos mesmos. Fomos capazes de criar um sistema relativamente bem estruturado de educao universal para jovens. Porm, at aqui, no criamos ainda um sistema para a requalificao dos adultos, mesmo em sociedades mais democrticas e desenvolvidas como pases da Amrica do Norte, Unio Europia e Japo. A maioria esmagadora dos indivduos adultos tem mais tempo livre, graas ao aumento da produtividade nesses pases, porm, desafortunadamente a alocao desse precioso tempo livre vai para um entretenimento ocioso e frvolo. Nunca em nenhum momento da nossa jornada civilizatria como humanidade, tantos indivduos tiveram tanto tempo livre. No entanto, se for considerado o tempo de aposentadoria, as sociedades de pases mais afluentes na Amrica do Norte e Europa Ocidental, principalmente, so onde os indivduos consagram a maior parte de seu tempo de vida ao lazer e entretenimento fteis. Apesar do tempo livre, o adulto usa, na mdia, quase nada do mesmo para estudar e aprender coisas novas que sirvam para requalific-lo. Estaramos j vivendo uma verso moderna da frmula alienante do Po e Circo da Roma Imperial? (Trataremos especificamente do entretenimento e lazer no captulo 13.) Pense, por exemplo, no caso de um indivduo que tenha vivido 85 anos, que tenha sido um trabalhador de uma categoria como funcionalismo pblico ou estatal, categoria que no Brasil se aposenta em torno dos 53 anos, bem abaixo da mdia mundial. Um indivduo como este ter estudado at seus 23 anos, trabalhado durante 30 anos e vivido aposentado durante mais 32 anos. Do ponto de vista da sociedade, este um sistema insustentvel. E tambm o do ponto de vista do indivduo. Cedo ou tarde, um grande vazio ir corroer sua existncia. Temos o desafio de, enquanto sociedade que ruma em direo Era Digital, buscar reconfigurar nossas perspectivas de vida como adultos. Nesse contexto, a educao
continuada dever desempenhar papel relevante em nossas vidas. Parte de nosso tempo livre, que hoje consagrado ao entretenimento e lazer fteis, dever ser preenchida por atividades ligadas a um sistema de educao de mltiplas opes para nos manter abertas as possibilidades de atualizao de nosso conhecimento e de nossa qualificao. Afinal, essa uma das razes pelas quais alguns chamam a sociedade para a qual nos encaminhamos de Sociedade do Conhecimento. No so as atividades de lazer, os hobbies, o entretenimento de forma geral que nos levaro a ter um maior controle sobre nosso prprio destino. Vamos ter de assumir, repito, uma nova e maior qualidade de responsabilidade sobre nossas vidas, ou a epidemia de ansiedade, depresso e outras sndromes dessa natureza tero um efeito devastador sobre a humanidade. A peste da sobrecarga cognitiva no pode ser resolvida por nenhuma volta ao passado. A nica vacina, o nico remdio, tornar-se cada vez mais aberto ao aprendizado contnuo. Estamos naqueles momentos da humanidade em que as rupturas colocam enormes incertezas no horizonte e vale aquilo que dizia o poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939): Caminante no hay camino, se hace camino al andar. Nem o mercado nos oferece solues prontas, nem tampouco polticas pblicas governamentais. No h sistema de educao continuada para adultos. No h ainda uma idia de algo como plano privado de educao continuada para adultos que seja, por exemplo, anlogo a planos de sade privados, de seguros, de aposentadoria. Voc, eu, empresas, governos, todos ns, enfim, vamos ter de pr mos obra para inventar essa nova instituio, corporificada em um sistema de educao continuada dos adultos. Mas como adultos, diferentemente da educao tradicional dos jovens, teremos de fazer um sistema que seja altamente diversificado, flexvel e o mais personalizado possvel. A diversidade humana no permitir consolidar um sistema de educao padro rigidamente universal, como foi pensado, por exemplo, o sistema educacional para os jovens. Mas essa diversidade no problema. Tomemos como exemplo a indstria do entretenimento, que hoje uma das mais slidas e rentveis. Vejamos a abundande diversidade de produtos que foram criados por sofisticadas, rentveis e trilionrias iniciativas de negcios como a indstria do cinema, com seus megaconglomerados como Hollywood, grandes estdios, distribuidoras, megaempresas como a Disney, empresas de videogames, a produo de novelas, o trilionrio filo de esportes etc., etc. Tudo isso so atividades inventadas ao longo do sculo XX. Por que no poderemos ter um boom, uma exploso de um novo setor produtivo cujo objetivo ser qualificar o indivduo adulto a viver e a se inserir ativa e produtivamente ao longo de toda a sua vida na nascente Sociedade do Conhecimento? Pense nisso: a Microsoft, a empresa que tornou Bill Gates o homem mais rico do mundo, surgiu em 1975. O Google, a empresa que cresceu mais rapidamente na histria do capitalismo, nasceu em 1998. Voc, eu, nossos filhos sero parte da realizao desse empreendimento civilizatrio que ser a criao da megaindstria da educao continuada dos adultos.
Como eu disse, nada est pronto. Mos obra. Voc deve se recordar das sugestes para considerar seu plano de desaposentadoria. Pois bem. Mesmo que voc seja um leitor ainda se beneficiando do sistema tradicional de educao formal de jovens hora de esquecer o que seus pais falaram sobre o mundo das carreiras depois da faculdade. bom comear a desenhar seu programa de educao continuada. No precisa pensar nisso para um horizonte to amplo que v at o fim de seus dias, na velhice. Comece com dez anos. Certamente o primeiro passo identificar aquilo de que realmente voc gosta. O que lhe apaixona, melhor dizendo. De novo afirmo: artistas, pintores, escritores, polticos nunca se aposentam, porque amam o que fazem. E quem ama o que faz busca sempre aprender e se aprimorar, sem se importar com a idade cronolgica. Essa a base da teoria de aprendizado construtivista, aquela escola que defende uma proposta pedaggica do aprender-fazendo a partir das necessidades do prprio aluno, considerando aquilo que lhe d prazer, que tem significado e acrescenta significado para o mesmo. No final das contas, aprender como adulto no mais como nos tempos da juventude, que voc tinha de aprender aquilo que lhe era ensinado na escola. Voc, como adulto, pode definir pela sua paixo, prazer, interesses e necessidades os seus objetivos de aprendizado. Portanto, capriche na identificao do foco daquilo que o eletriza, daquilo que far voc dizer para si mesmo, quando estiver no leito de morte: Uau, valeu a pena viver! Desenhados tentativamente os seus eixos de interesse, que tal ir para a Internet? Entre no Google, Yahoo, no seu site de busca favorito e tecle algo parecido com os seus eixos focais de interesse. Use seus dons de serendipidade. J ouviu essa palavra? Muito provavelmente no. Mas se voc for ao dicionrio Houaiss vai ver l que a faculdade de atrair o acontecimento de coisas felizes ou teis, que era uma das caractersticas dos trs prncipes de Serendip, heris inventados pelo escritor ingls Horace Walpole (1717-1797), que sempre faziam descobertas acidentais de coisas que no estavam procurando. Na medida em que o seu serendipismo for trazendo referncias livros, artigos, pessoas, lugares, escolas, sites, blogs etc. , v construindo uma lista. No seja relutante e duro. Olhe como os adolescentes navegam rpido, clicando aqui e acol, abrindo mil janelas na tela do computador e fazendo uploads e downloads simultneos. Observe que na Internet j se fala muito em cursos e atividades no presenciais, isto , que voc no precisa ter contato fsico, mas virtual. A Internet boa nisso: ajudar a quebrar barreiras. V para o papel e transcreva parte de sua garimpagem na Internet. Refine. Faa uma linha de tempo. Divida anos em meses. Meses em semanas. Faa uma lista exaustiva de possveis visitas, exploraes, nomes de pessoas e instituies, livros para comprar e ler. Parece conversa cabea de adolescente? exatamente isso! Faz parte do esprito da coisa de educao continuada dos adultos reencontrar-se com o adolescente que voc foi. Aquele cara que pensava em mudar o mundo, que queria contribuir para melhorar a sociedade, que queria ganhar dinheiro fazendo algo muito legal e especial
de sua vida. Ainda d tempo de mudar o curso que leva tantos adultos ao cinismo e ao ceticismo. Essa uma das grandes possibilidades que a Renascena Digital est colocando para boa parte da humanidade: os indivduos poderem expandir sua capacidade de ter maior controle de seu destino atravs da reinveno individual e coletiva. Lembre-se que muitos especialistas acreditam que 75% das ocupaes profissionais da dcada de 2020 ainda no foram sequer inventadas. Substitua sua atitude de adulto jurssico por essa nova percepo dos tempos que estamos vivendo e aproveite! Notas Lus Fernando Verssimo, A sada da rotunda, O Globo, 22/6/2006. A fibromialgia um bom exemplo de sndrome psicossomtica em expanso. Estatsticas mdicas j relatam que pelo menos 5% das mulheres sofrem desse mal. Este tem como sintomas principais fortes e generalizadas dores, sensao de fadiga, sono superficial e no reparador, depresso psquica, dor de cabea sem que seja estabelecida nenhuma causa fsica ou fisiolgica. Tudo leva a crer que a causa seja psquica ou psicolgica.
CAPTULO 9
Sade e bem-estar
VIDA EQUILIBRADA E SAUDVEL, CADA VEZ MAIS UMA
RESPONSABILIDADE DO INDIVDUO A busca do equilbrio entre coletividade e individualidade
Nas antigas sociedades tribais e nos cls, o indivduo era praticamente um nada. O
que realmente importava era o grupo. O eu era um gro de areia frente ao ns. Por um lado, isso pode parecer muito opressivo do ponto de vista de nossa sociedade atual, que , comparativamente, muito mais individualista. Por outro lado, devo lembrar, isso representava proteo, segurana e estabilidade para os indivduos, na medida em que todos se sentiam provavelmente muito mais amparados do que nos sentimos nos dias de hoje. Um dos grandes paradoxos naquelas sociedades que, mesmo existindo escravido, no havia indivduos desgarrados e abandonados: o grupo era responsvel por todos os indivduos. Em suma, a sociedade era tudo e o indivduo, nada. Na poca entre a queda do Imprio Romano e a Renascena, a Europa Medieval era um mundo rural onde o tempo no transcorria linearmente, mas se arrastava em ciclos anuais. Nesse mundo pairava sobre todos a Santa Madre Igreja Catlica com sua mo de ferro, e abaixo dela os nobres senhores feudais. Tampouco nesses mais de mil anos a individualidade foi uma fora ou um direito reconhecido. As elites dominantes no entendiam a imensa maioria da populao, que era vista como uma massa uniforme de camponeses humildes, que no se entendiam como indivduos dotados de livre arbtrio. Tambm nesse mundo, afora papas, vigrios e nobres, o indivduo era um nada e a sociedade era tudo. Homens e mulheres comearam a se perceber como indivduos muito recentemente na histria da humanidade. A partir do sculo XII, teve lugar uma confluncia de fatores diversos que agitaram e comearam a transformar o status quo e a calmaria do mundo medieval, tais como a urbanizao, a ascenso das cidades-Estado italianas (Veneza, Florena, Gnova e Pisa), o incio do capitalismo, os primeiros movimentos rumo criao dos Estados nacionais, o abalo da hegemonia da Igreja Catlica por causa da Reforma Protestante, as grandes descobertas dos navegadores. Da integrao desses fatores emergiu a aurora da individualidade, o esprito de uma nova era que mais tarde foi chamada por muitos historiadores de o esprito da Renascena. Porm, foi mais tarde, j quase no final do sculo XVIII, com o impulso dos processos revolucionrios fomentados pelo esprito iluminista, como a Revoluo Francesa e a Independncia Americana, que a grande massa de seres humanos, que no tinha linhagem nobre, comeou a visualizar, assumir e lutar intensamente por direitos prprios como ser individual e no como mera parte da sociedade. Tomava impulso nessa poca, que coincidia tambm com os primrdios da Revoluo Industrial, a idia da universalidade da cidadania para todos. At ento, na verdade, a concepo
de cidadania dos gregos e romanos era, na prtica, extremamente egosta, pois s se aplicava a uma pequena classe de privilegiados proprietrios que pairava acima da multido de escravos e servos. Os indivduos dessas classes subalternas eram contabilizados como parte do patrimnio da classe dominante e, portanto, sem direito algum de cidadania. Apesar de todos os erros e descaminhos da Revoluo Francesa, herdamos todos ns, dos tempos atuais e futuros, a gloriosa e generosa concepo de cidadania fundada na Igualdade, Fraternidade e Liberdade. Desse mesmo rico e grvido tempo de revolues, os homens e mulheres que escreveram a Declarao de Independncia Americana nos legaram a radical premissa de que todos os homens so criados iguais, dotados pelo Criador de direitos alienveis, entre os quais esto a vida, a liberdade e a procura de felicidade. Parecia que, nos nossos tempos contemporneos, iramos ver uma reduo ainda maior daquilo que j foi um dia uma virtual ditadura da sociedade sobre o indivduo. Essa expectativa poderia bem ser ilustrada por meio de um comentrio da ex-primeiraministra Margaret Thatcher, que gerou imensa controvrsia: No existe esta coisa de sociedade: existem homens e mulheres como indivduos e existem suas famlias.1 No foi o que aconteceu. De alguma forma, diante das incertezas que se avolumam no horizonte, os indivduos parecem clamar por mais amparo e proteo da sociedade enquanto Estado. Paradoxalmente, parece que a histria do sculo XX, de certa forma, desacelerou o fortalecimento do individualismo. Tudo leva a crer que, almejando melhorias no bemestar e na segurana coletivos, os indivduos ao longo do sculo XX renegociaram entre si um novo contrato social que permitiu um fortalecimento do Estado, transformando-o em verdadeira megamquina. Se utilizarmos como medida quantitativa o custo de manuteno do Estado expresso em percentual do Produto Interno Bruto, poderemos ter uma boa compreenso desse fortalecimento. At o comeo do sculo XX, o funcionamento da mquina do Estado nos pases mais amadurecidos custava sociedade algo que nunca ultrapassava um dgito do Produto Interno Bruto (PIB) de uma nao.2 No geral, ao final do sculo XIX, o Estado custava nao, isto , aos seus cidados, algo em torno de 7% a 9% do PIB. Porm a consolidao do conceito do Estado do Bem-Estar Social e do Estado Militarista representou um fardo que foi crescendo ao longo das dcadas do sculo XX, a tal ponto que hoje os economistas estimam que, tipicamente, o Estado democrtico contemporneo deve custar algo em torno de 30% a 35% do PIB. Em pases como o Brasil, vemos a perverso dessa tendncia: j temos quase 40% do PIB sendo extrados do conjunto dos indivduos, isto , da sociedade, e em retorno temos servios prestados pelo Estado de baixssima qualidade. Como se diz freqente-mente: o Estado brasileiro taxa e tributa como um Estado escandinavo, naes que so reconhecidas mundialmente pela qualidade de seus servios, e d como retorno servios equiparveis aos pases dos Estados da frica Subsaarina. O que fez, em apenas meio sculo, o custo do Estado nos pases democrticos da Europa e da Amrica do Norte saltar mais de 20 pontos percentuais expresso em
termos do PIB? Eu diria que a maioria desses pases foi presa de duas tendncias mundiais. A primeira foi a de crescimento do Estado do Bem-Estar Social ( Welfare state) que, no limite, seria um Estado socialista e que na prtica, quando bem-sucedido, seria o Estado social-democrata. Essa foi uma conseqncia positiva da luta dos movimentos sociais que pressionaram e lutaram para criar uma sociedade com maior grau de eqidade social, capaz de amparar o conjunto da sociedade como um todo, protegendo os indivduos independentemente de raa, sexo, posio social e nascimento. Assim, para criar esse Estado provedor foi necessrio elevar a cobrana de impostos e taxas do conjunto dos indivduos trabalhadores e empresas geradoras de riquezas para financiar os sistemas de seguridade social, de educao e de sade. Isso nem sempre fica claro para o senso comum, quando as pessoas se acostumam com direitos sociais adquiridos e se esquecem que os mesmos tm de ser financiados de alguma maneira. Por isso, Margaret Thatcher lembrava, ao promover a reforma e cortes de determinados servios e subsdios pblicos, que esses representam um custo que os indivduos tiveram, tm e tero sempre que pagar com o fruto de seus esforos, pois o dinheiro no cai do cu.3 A outra tendncia, que acabou contribuindo para a criao da megamquina estatal, opressora e inimiga do individualismo, foi a dimenso que a guerra assumiu no sculo XX. Falo das duas Guerras Mundiais e tambm da Guerra Fria. A guerra, essa trgica componente da existncia humana, foi elevada no sculo passado a uma amplitude e dimenso at ento jamais vistas na histria da humanidade. No passado, as maiores vtimas eram militares combatentes que se dizimavam mutuamente em campos de batalhas muito bem definidos, via de regra segregados do cotidiano das pessoas. No sculo passado, para realizar os megaempreendimentos blicos foi criado um complexo industrial militar de alta sofisticao tecnolgica e produtiva de elevadssimo custo para a sociedade. Foi assim que naes montaram verdadeiras megamquinas militares necessrias e capazes de produzir as maiores chacinas jamais vistas, tanto de militares combatentes, quanto de civis e de destruio das cidades, fbricas e campos. Em apenas quatro anos, restrita praticamente Europa, a Primeira Guerra custou 65 milhes de vidas (o equivalente populao da Frana e da Sua atualmente). Por sua vez, a Segunda Guerra Mundial dizimou, entre 1939 e 1945, outros 65 milhes, no contabilizando os nmeros dos mortos no Holocausto judeu, estimado em seis milhes, pelo menos. O seguimento da tendncia do Estado militarista prosseguiu aps o fim da Segunda Guerra Mundial dando lugar Guerra Fria, que teve de um lado a liderana dos EUA e do outro a extinta URSS. Os cidados das naes democrticas da Europa Ocidental e da Amrica do Norte, sentindo-se ameaados ante as perspectivas de destruio nuclear criadas pelos complexos industriais militares capazes de aniquilar a vida do planeta dezenas de vezes, acordaram em aumentar o valor de suas contribuies para o Estado com o fim de obter sua proteo. A insana corrida armamentista incrementou gradativamente at o colapso da URSS, que aconteceu no ano de 1991. Assim chegamos ao modelo atual de relacionamento Estado-sociedade que nos tornou a todos superdependentes do Estado. O homem medieval era um mendigo dos
nobres feudais e da Santa Madre Igreja. O indivduo era uma entidade acorrentada e esmagada pelo peso da tradio que emanava da sociedade. De certa forma, ao final do sculo XX, tornamo-nos tambm uma espcie de mendigos do Estado contemporneo, ainda que esse tenha se tornado infinitamente mais generoso em termos de bem-estar coletivo. E entramos no sculo XXI como indivduos confinados em gaiolas de ouro, acostumados a direitos adquiridos que se tornam insustentveis do ponto de vista da capacidade produtiva da sociedade como um todo. E que influncia isso tem na nossa capacidade como indivduos que tm maior controle sobre a qualidade de nossa prpria sade individual, que afinal o tema deste captulo? Uma reforma realista no Estado na questo de sade ir demorar provavelmente umas duas, trs dcadas. Esse um tempo longo para ns, enquanto indivduos, que vivemos menos de cem anos! No podemos ficar sentados esperando que essa reforma seja feita e implementada. Temos de encontrar caminhos individuais diferenciados para lidar melhor com nossas necessidades e aspiraes. O propsito deste livro amadurecer questes que ainda esto verdes nessa caminhada da Renascena Digital que se inicia e procurar desenhar horizontes de ao para que os indivduos tenham maior controle individual sobre sua existncia. Sendo assim, como podemos obter maior controle em relao s nossas necessidades e aspiraes em termos de sade perante essa realidade presente? Essa a questo sobre a qual tentaremos lanar luz nas prximas sees. Ter sade , antes de qualquer coisa, ter bem-estar: reconhecer o enfoque correto para ter maior controle individual sobre a sua sade J dizia o gato Alice, aquela do Pas das Maravilhas: Se voc no sabe para onde vai, qualquer caminho te leva para l. Dito de outra forma, tambm podemos sustentar que se voc no tem clareza da pergunta, qualquer resposta ser insatisfatria. Assim, a primeira providncia procurar esclarecer o que so efetivamente nossas necessidades como indivduos no tocante questo sade. Certamente, ter sade no apenas ter acesso a mdico, servios mdicos e hospitalares e remdio. bem mais do que isso. Sade no ficar doente. Sade tem a ver, antes de qualquer coisa, com bem-estar. Essa a verdadeira questo. Claro que acidentes devidos a causas externas ao corpo do indivduo podem acontecer para ento necessitarmos de atendimentos de emergncia. Mas sade parte do problema de bem-estar fsico, mental e espiritual. Isso tem de ser admitido como parte do reconhecimento do verdadeiro problema que estamos tratando. Vou explicar um pouco mais com exemplos. Logo no comeo dos anos 1980, quando estava recm-formado, tinha um colega de trabalho que ficou encantado com um superplano de sade VIP, que anunciava ser pioneiro em UTI do Ar. Ele contratou o plano, mas nunca se cuidou. Vivia estressado, obeso, fumante compulsivo. Em suma, no fazia nenhum investimento em sua qualidade de vida, mas vivia feliz com o plano VIP que dava direito a ser resgatado de helicptero
em qualquer lugar do Brasil. Alm disso, era um usurio contumaz de seu plano, sempre tomando remdios para ajud-lo a se equilibrar no ritmo desregrado de trabalho. Meu antigo colega era um exemplo tpico entre milhares de outros exemplos de pessoas que adotam um estilo de vida que reflete a atitude dos que subcontratam e repassam para terceiros (plano de sade) todo o cuidado com o prprio bem-estar, que, em princpio, indelegvel. Ocorre que as chances de ser saudvel e de permanecer saudvel, pelo menos a maior parte do tempo, esto em nossas prprias mos. Os homeopatas, assim como outras correntes de medicina alternativa (acupunturistas, fitoterapeutas, preparadores fsicos, nutricionistas etc.), tm uma viso de que a etiologia de muitas das doenas e dos males de sade resulta de desequilbrio do corpo, da mente, do esprito ou do meio ambiente. A cura consiste em descobrir formas de restaurar o equilbrio perdido por alguma causa e a melhor preveno consiste em se adotar um estilo de vida equilibrado. Dificilmente voc vai ouvir explicaes e conversas dessa natureza nas consultas com os mdicos. Estatsticas mostram que seja no Brasil, seja nos EUA ou na Europa, a relao mdico-paciente extremamente impessoal, tanto quanto pode ser em um sistema em que as consultas duram em mdia entre sete e dez minutos quando se trata de ir a especialistas. Os clnicos gerais tm um padro diferente porque esta especialidade ainda no foi totalmente contaminada pela perverso dos especialistas que vem o paciente de forma caricatural, isto , como portadores de um rgo com disfuno e no como um ser nico dotado de uma complexidade impressionante, resultado da integrao das dimenses fsicas, mentais e espirituais. Todo mundo sabe por experincia prpria, mesmo no caso de ser cliente de um plano de sade VIP, que, no geral, o atendimento mdico quase to impessoal quanto o realizado por um caixa bancrio de atendimento eletrnico. No entanto, a exasperao das pessoas, mesmo os consumidores de servios de sade de caros planos particulares, no se restringe aos mdicos. Aposto que voc nunca recebeu uma carta ou telefonema de seu plano de sade perguntando se o seu atendimento mdico seja consulta, exame ou operao foi feito com qualidade. A relao mdico-paciente dimenso e parte crucial do problema de sade mundial e que no tem evoludo em termos de absorver os avanos da tecnologia que esto ocorrendo no campo da sade. Pelo contrrio. Basta ver o tratamento que os pacientes em ambientes de UTI (Unidades de Terapia Intensiva) recebem. Essas unidades se assemelham muito mais a uma masmorra high-tech assptica onde o repouso, o conforto e o tratamento humano foram banidos. Ter de ficar algum tempo em tratamento em UTI j traz como efeito colateral srios problemas que afetaro a capacidade de autocura do indivduo. Ao lado da indstria mdica e farmacutica, um novo contingente de solues tem sido trazido ao mercado, o qual se configura como mistura inovadora de cincia e arte teraputicas que percebe que seres humanos, em busca de sade e equilbrio, precisam muito mais do que remdios e terapias com equipamentos high-tech. Essas so novas solues tanto para atingir uma vida mais equilibrada quanto para buscar um
processo de cura mais eficaz. Essas novas solues representam um nascente setor de servios que podemos chamar de indstria do bem-estar. esse setor que vai crescer permitindo ao indivduo ser mais proativo, para que ele possa manter sua sade e uma vida mais equilibrada. No geral, somos seres saudveis ao nascer e temos, como todos os animais, uma vitalidade extraordinria para nos manter em equilbrio homeosttico. Homeostasia um termo cunhado pelo fisiologista americano Walter Cannon (1871-1945), que a Ciberntica tomou emprestado e ampliou o significado para o campo da engenharia de sistemas, passando a significar: Propriedade auto-reguladora de um sistema ou organismo que permite manter o estado de equilbrio de suas variveis essenciais ou de seu meio ambiente. Neste contexto, o florescente setor de servios do bem-estar poderia ser definido como fornecedor de solues, produtos e servios para a promoo da homeostasia. O que o Estado tem nos oferecido ao longo do sculo XX foi um sistema de correo da falta de sade, representado pelos tradicionais servios e produtos mdicos, hospitalares, medicamentos. Na verdade, no temos a um sistema de bemestar, de promoo da homeostasia. Neste contexto, o sistema tradicional de sade parte do sistema maior de bem-estar. E nas dcadas que esto por vir os indivduos vo amadurecer um novo tipo de consenso que vai lhes permitir ter mais controle individual sobre a prpria sade. A emergncia de um novo estilo de vida saudvel: mais responsabilidade dos prprios indivduos do que responsabilidade do Estado Cuidar da prpria sade de maneira proativa foi um estilo de vida de uma tendncia que emergiu nos anos 1960, sendo massificada a partir dos anos 1970. Quer ver evidncias? O declnio do tabagismo um caso ilustrativo. At o incio dos anos 1960, no havia um filme de Hollywood em que o cigarro no fosse onipresente, via de regra manejado como um instrumento de seduo ou afirmao de poder pelos gals e divas. Naqueles tempos, todo mundo fumava de uma forma inacreditvel, se compararmos com nossos dias. Fumava-se o tempo todo, em todas as ocasies e em todos os lugares. Isso praticamente acabou. De l para c, uma nova demanda das pessoas vem ditando para o mercado suas necessidades em termos de cuidar do prprio corpo e da sade de forma geral. Assim, progressivamente, desde os anos 1980 vieram surgindo as mais variadas linhas de medicina e terapias alternativas, acupuntura, homeopatia, shiatsu, pilates, academias de ginstica, atividades fsicas para terceira idade, grupos de auto-ajuda, produtos especiais de alimentao (orgnicos, vegetarianos, naturais etc.), linhas de medicamentos no-alopticos, cosmetologia de diferentes matizes alternativos, spas etc. Tudo isso foi resultado de um acmulo de eventos que foram sendo integrados ao
longo das dcadas de 1970, 1980 e 1990. O marco inicial da massificao da proposta Cuide-se parece ter sido mesmo a questo do antitabagismo, que teve incio a partir de um relatrio do Ministrio da Sade dos Estados Unidos detonando o hbito de fumar no princpio dos anos 1970. De l para c, o consumo de tabaco foi reduzido em 70%, mesmo considerando o crescimento vegetativo da populao. Ao final dos anos 1970, as doenas cardiovasculares, atingindo homens e mulheres a partir dos 30 anos de idade, foram a bola da vez. O infarto fulminante atingiu propores epidmicas nas dcadas de 1960 e 1970, resultante de um estilo de vida que combinava alimentao inadequada, sedentarismo e tabagismo. Mudar esse estilo de vida foi a proposio de gigantescas iniciativas de marketing social, conduzidas globalmente por governos, em parceria com ONGs de sade. Foi nos anos 1970 o lanamento do famoso Teste de Cooper, um dos cones do nascimento da preocupao com o bem-estar. De l para c, vem se disseminando cada vez mais: fazer check-up anual depois dos 40 anos de idade, check-up regular para preveno do cncer ginecolgico, de mama e de prstata, exames pr-natal, sexo seguro, tomar complementos vitamnicos etc. Sem dvida, os avanos da medicina high-tech, representada pela disponibilizao e barateamento dos mtodos de exames mdicos no-invasivos (ultra-som, tomografia, ressonncia magntica, eletrocardiografia etc.) ajudaram muito neste sentido. Ver o nosso corpo por dentro sem precisar de cirurgia algo que se tornou possvel a partir dos anos 1980. Foi assim que comeamos a tomar mais responsabilidade como indivduos do nosso prprio corpo. Recentemente est ganhando fora a luta contra a obesidade. Nos Estados Unidos, o pomposo termo forense em ingls obesity litigation, que j serve para identificar um rentvel e promissor campo de ao para advogados interessados em processar a indstria de comida que se dedica produo de alimentos insalubres (junk food, que significa literalmente comida podre). A questo que, por causa da m alimentao e do sedentarismo presentes no estilo de vida de todas as classes sociais de todos as naes, a obesidade j atinge propores epidmicas em todas as latitudes do planeta. O incio dessa nova cruzada tem como ponto de partida um relatrio de autoria do mesmo Ministrio da Sade dos Estados Unidos que detonou o cigarro nos anos 1970. Com grande visibilidade na imprensa norte-americana, o relatrio sobre obesidade foi divulgado no comeo do ano de 2003, alertando que 300 mil mortes por ano esto ocorrendo somente naquele pas por causas relacionadas obesidade. Essa cruzada antiobesidade vai gerar transformaes importantes no estilo de vida das pessoas de tal forma que a atividade fsica, regular ao longo de toda a vida, ser parte do cotidiano to confortvel quanto trabalhar, comer e se divertir. Aos poucos vo sendo vistos alguns indicadores. por essa razo que as academias de ginstica vo se tornando to onipresentes em vizinhanas como postos de gasolina. Aos poucos elas devero ser uma espcie de parceiras de convnios e planos de sade que estaro estruturando juntos projetos e programas de melhoria da qualidade de vida. segundo essas tendncias que nos tornaremos muito mais responsveis por ns mesmos e teremos maior sucesso em manter melhores nveis de sade, bem-estar e
qualidade de vida. Dr. Google e os e-pacientes: o papel da Internet em estar bem e na busca da cura O autoconhecimento muito mais eficaz do que simplesmente ir a um mdico em busca de um diagnstico. Mas caso voc adoea, melhor que um diagnstico correto a chance de ampliar seu conhecimento sobre o mal que lhe aflige. Melhor ainda, ter acesso a pares que enfrentam o mesmo problema. Nisso, a ferramenta-me da Renascena Digital, a Internet, indispensvel. Um estudo intitulado O Potencial da Internet como Facilitador do Fortalecimento dos Clientes de Servios de Sade, publicado por Charlotte Kimby, do Centro de Estudos de Mdia e Democracia da Sociedade em Rede do Departamento de Cincias Polticas da Universidade de Copenhague (2003), mostrou que 35% dos pacientes que sofrem de cncer na Dinamarca usam a Internet nas diversas fases do tratamento, do diagnstico cura ou at a morte. A investigao mostra que o principal fator que leva os pacientes a usarem a Internet porque eles ressentem-se de um tratamento inadequado recebido da parte dos doutores que assumem o saber mdico como se detivessem um monoplio, que inclui a definio do diagnstico e as decises de tratamento. A Internet preenche a lacuna em termos de colocar o paciente em posio de se tornar co-responsvel pelo tratamento. Ajuda a eliminar barreiras de tal forma que os paciente possam ter acesso a maiores e mais detalhadas informaes mdicas, tais como: pesquisas on-line, centros de excelncia, organizaes de pacientes, aconselhamento online, debates sobre diagnsticos e tratamentos etc. A possibilidade de o paciente obter informaes e conhecimento mdico e de sade de qualidade sobre sua molstia e possveis tratamentos lhe d a oportunidade de se tornar mais ativo no processo de tomada de decises envolvendo sua prpria sade. A pesquisa conclui que a Internet dever ter um profundo efeito nas atividades dos pacientes e da conduta dos mdicos na sua prtica profissional. Os mdicos no so mais a nica fonte de aconselhamento mdico para os consumidores. Os e-pacientes (usurios de Internet que buscam informaes sobre sade) esto se colocando no centro de uma rede de conhecimento que rene grupos de apoio, procuradores de contedo e web sites de instituies de sade, afirma um texto de uma pesquisa sobre pacientes e uso intensivo da Internet, realizada por Susannah Fox, do Pew Internet and American Life Project.4 Os destaques da pesquisa apontam que, no ano de 2002, 72 milhes de americanos usaram a Internet para diversas finalidades relativas sade, dos quais seis milhes a acessam por dia. Os e-pacientes em sua maioria continuam confiando em seus mdicos, mas acham importante ter uma segunda opinio, consultar outras fontes etc. A lista a seguir d uma idia melhor dos grandes grupamentos de interesses dos e-pacientes:
93% procuraram informaes acerca de uma doena ou condio especfica de sade; 65% procuraram informaes sobre nutrio, exerccio ou controle de peso; 64% procuraram informaes sobre receitas e medicamentos; 55% recolheram informaes para preparar-se para a consulta a um mdico; 48% procuraram informaes sobre tratamentos experimentais ou alternativos; 39% procuraram informaes sobre doenas mentais, como depresso ou ansiedade; 33% procuraram informaes sobre um tpico de sade sobre o qual particularmente difcil ou embaraoso falar; 32% procuraram informaes sobre um mdico especfico ou hospital. O e-paciente tpico comea com um site de busca, e no por um site mdico, visitando em seguida entre dois a cinco sites de sade. O processo, em geral, toma cerca de 30 minutos e envolve, via de regra, a checagem da concordncia entre um ou mais sites para a validao da informao recolhida. Os indivduos apresentados nas pesquisas da Dinamarca e dos Estados Unidos so, provavelmente, em sua maioria, pessoas mais afluentes e de nvel de educao formal mais elevado que a mdia. Mas a Internet ainda est em sua infncia como ferramenta disseminadora de conhecimento, que permite, sobretudo, a quebra de monoplio de conhecimento e o desmonte rpido de assimetrias injustas de informao. O aumento da penetrao da Internet certamente a transformar em ferramenta globalmente disseminada, um instrumento importante para que as pessoas tenham maior controle sobre a prpria vida, sobre a prpria sade e bem-estar. Mesmo no estgio atual, isso j est acontecendo dentro da realidade brasileira. Para ilustrar este ponto, gostaria de citar trs casos de exemplos positivos de como indivduos conseguiram, com a ajuda da Internet, chegar a solues mais satisfatrias para problemas de sade graves que se abateram sobre a vida de suas famlias. So casos de meu conhecimento pessoal, que, no entanto, prefiro manter no anonimato. Essas famlias viveram momentos particularmente dolorosos, sentindo-se abandonadas pelos mdicos e outros profissionais que no souberam como ajudar e como dar respostas adequadas aos seus desafios em lidar com sndromes raras que se abateram sobre seus filhos. O primeiro caso foi de uma famlia cuja filha de nove anos tinha uma sndrome grave e rara que atacou e comprometeu seriamente o desenvolvimento sseo da criana. A famlia estava totalmente desesperada e desenganada pelos melhores especialistas de So Paulo. Em uma noite de insnia, depois de uma sria crise que acometera a criana, o pai passou a noite em claro na Internet procurando saber mais sobre o mal que acometia
sua pequena. Bingo! Acabou descobrindo um hospital em Toronto, onde uma equipe estava fazendo experimentos de ponta. Era, na verdade, um pequeno grupo de pesquisadores que cavalgava a mais avanada onda de pesquisas sobre a tal sndrome rara. Atravs de e-mail, o pai conseguiu agendar uma consulta e em menos de um ms, com o apoio de uma bolsa do prprio hospital canadense, sua filha estava recebendo e testando um tratamento revolucionrio, que vem possibilitando a recuperao da criana. O segundo caso de um menino autista do Rio de Janeiro, cujo pai se viu s voltas com a necessidade de informaes mais aprofundadas sobre essa condio. Durante os primeiros meses que se sucederam ao diagnstico do menino, os mdicos e pedagogos envolvidos com o caso no tinham conseguido prover famlia um conjunto articulado de conhecimento e referncias para lidar com o problema. Foi por meio da participao interativa, via Internet, em grupos e listas de pais, amigos e especialistas em crianas autistas, que o pai dessa criana, amigo pessoal meu, se tornou uma espcie de autoridade no assunto. Conseguiu integrar a perspectiva de mdicos, de educadores, de famlias e transmitiu aos outros membros da famlia um conhecimento novo e aprofundado que trouxe um novo equacionamento para o problema e abriu novas perspectivas para seu filho e para a famlia. O terceiro caso foi de uma sndrome rara de distrbio imunolgico no Rio de Janeiro que acometeu uma criana de sete anos. Sua famlia, bem como a comunidade de pais dos amiguinhos dessa criana, e que se relacionavam com essa famlia, no conseguiam respostas e prognsticos adequados dos mdicos envolvidos no tratamento iniciado aps o diagnstico. Mais uma vez foi a Internet, atravs de um simples download, que possibilitou a esta pequena comunidade de amigos entender o que estava acontecendo e enxergar de forma clara o processo de evoluo da sndrome, incluindo sua reverso normalidade, que se d, em sua grande maioria, com o crescimento da criana. Tudo isso estava disponvel em um arquivo com a cartilha produzida pelo centro de referncia mais avanado sobre esta sndrome, que um hospital de Nova York. Os mdicos que atendiam essa criana no sabiam da existncia desse centro. Infelizmente, at aqui no consegui encontrar pesquisas realizadas no Brasil que enfoquem o uso da Internet para questes de sade. No entanto, tenho certeza de que em futuro muito prximo as escolas mais avanadas de medicina colocaro o uso da Internet como ferramenta da relao mdico-paciente. Os mdicos mais sbios certamente receitaro, alm do remdio, doses de conhecimentos mais aprofundados em visitas a sites da Internet. No Brasil, como em outros pases, convivemos com uma realidade na qual existem dois sistemas de sade: o pblico, Sistema nico de Sade, o tal do SUS, que atende a maioria da populao, predominantemente de baixa renda; e o sistema privado, que referido pelos especialistas de polticas pblicas como complementar. Este o sistema escolhido pelos que podem pagar para ter mais qualidade de aten dimento. O primeiro sinnimo de baixa qualidade, m gesto e fonte eterna de
corrupo. Mais uma vez repito, no restrita ao Brasil essa perversa realidade. O segundo ainda deixa muito a desejar em termos de qualidade. Enquanto discutimos coletivamente um novo contrato entre sociedade, mercado e Estado acerca do que deve ser um sistema pblico e privado de sade que se traduza em preveno, cura e bem-estar dos indivduos e no apenas cura, devemos fazer a reengenharia ou a lipoaspirao de nosso estilo de vida para que tenhamos maior controle sobre nossa vida pessoal de forma a sermos mais equilibrados e ter maior qualidade de vida. Isto possvel e milhes j esto fazendo essas opes e experincias. No preciso nenhum candidato eleito para comear hoje aquilo que ns mesmos podemos fazer. Notas Margaret Thatcher comandou como primeira-ministra o Reino Unido no perodo entre 1979 e 1990 e ficou conhecida como a Dama de Ferro, por sua inquebrantvel e rgida liderana em realizar a modernizao e a reengenharia da economia e dos servios prestados pelo Estado britnico, que havia alcanado um elevado grau de insustentabilidade econmica. O PIB a medida criada pelos economistas que expressa quanto produz uma sociedade em termos de riqueza que pode ser medida em valor monetrio. A citao exata : Pennies do not come from heaven, they have to be earned here on earth. 4 E-patients and the online health care revolution.
CAPTULO 10
apenas 33 anos. Naquele tempo, j era velho quem conseguia chegar aos 40. Pois bem, de agora em diante e com o aumento da penetrao da tecnologia de informao que vai explodir nos prximos anos, ns vamos nos acostumar cada vez mais a trabalhar em casa. Sem culpa e achando at mais equilibrado no que diz respeito vida pessoal. Por vrios motivos de convenincia, tanto para ns mesmos, os indivduos, quanto para as empresas e organizaes para as quais trabalhamos. Positivo tanto por motivos de natureza produtiva, quanto em relao melhoria de nossa qualidade de vida pessoal. Jornadas de trabalho de escritrio, que tipicamente ainda so fixas, das 9 s 18 horas, com intervalo para almoo, j no fazem sentido para muita gente nem tampouco para a prpria firma em que trabalham. Existem certas atividades cujo contato coletivo necessrio apenas para fazer reunies de acompanhamento, por exemplo. Vrias empresas j esto despertando para o fato de que exigir que todo indivduo cumpra horrio contraprodutivo. E isso vai ficando mais claro na proporo do tamanho da cidade em que se vive, entre outras coisas pelos problemas de deslocamento. Parafraseando Mestre Didi, o criador da folha-seca, que dizia que quem tem que correr a bola, no o jogador: quem tem que circular a informao. Para isso, o necessrio uma boa tecnologia de informao Internet banda larga e celular entre as casas das pessoas e as empresas. Tecnologia que j est a. Madurinha. Para que gastar, todo santo dia, no deslocamento casa-trabalho uma hora e meia pra l e outra de volta que totalizam 32 dias por ano ociosos? Essa a mdia do tempo gasto pelas pessoas para ir at o trabalho e voltar para casa no Rio de Janeiro e em So Paulo e em regies metropolitanas pelo mundo afora. Mais tempo do que em frias! Tudo bem se voc gosta ou acha muito legal andar de metr, nibus, dirigir no congestionamento... Mas no ser apenas a volta do nosso trabalho para casa que vai ser o motor das transformaes que levaro nossos lares a se tornarem um casulo de alta tecnologia no qual estaremos passando a maior parte de nosso cotidiano. Quer ver? O tardio fim da casa-grande e senzala e a vida domstica brasileira na Renascena Digital Se uma pessoa nascida a partir do ano 2000 visitasse uma residncia do comeo dos anos 1900, ficaria impressionada com a inexistncia de luz eltrica e, portanto, dos equipamentos eletroeletrnicos que hoje fazem parte do nosso cotidiano. Muito provavelmente ficaria mais pasma ainda pela provvel ausncia de convenincias e facilidades hidrulicas, sobretudo privadas. Ocorre que aproximadamente um sculo atrs, apenas famlias muito ricas tinham poder aquisitivo para importar e instalar o tal do sistema WC, isto , water-closed, literalmente sistema de gua-fechada, que s comeou a se disseminar pela Europa e pelos EUA na virada do sculo XIX para o XX. Era coisa de gente muito rica. A primeira privada, ou o mais prximo do equipamento tal qual conhecemos hoje, foi instalada no Castelo de Ehrenburg nos quartos de uso exclusivo da rainha Vitria, em 1860. O fato que, na verdade, at quase os anos
1930, quando o Brasil tinha menos de 20% de sua populao vivendo em cidades, a maioria esmagadora dos brasileiros resolvia suas necessidades na casinha, isto , no quartinho construdo sobre a fossa do lado de fora da casa. A outra alternativa era o penico, ou, como chamado de forma mais refinada, se que isso possvel, ourinol. Muita gente que nasceu nas duas primeiras dcadas do sculo XX guardou desses tempos o hbito de dormir com um penico sob a cama, mesmo nas proximidades do ano 2000. Esse um hbito que minha av falecida h poucos anos batalhou para manter como uma tradio, segundo ela. Existia ainda um outro utenslio domstico que a gua circulante de torneiras e privadas tambm tornou obsoleto. Melhor deixar o talento do cronista Mrio Prata apresent-lo: Penico todo mundo sabe o que ... Mas escarradeira, pouca gente sabe ou lembra do que se trata, apesar do escancarado do nome. Coisa de antigamente, da casa da v, influncia francesa. Existiam escarradeiras lindas, importadas, umas de metal mesmo, outras esmaltadas e, dizem, tinha gente que usava at escarradeiras de ouro. Ficavam distribudas estrategicamente pelos cantos dos cmodos e as pessoas escarravam l dentro. Tinha gente que se gabava de acertar a cuspida de uns trs ou quatro metros. Era chique ter vrias escarradeiras em casa. Na poca dava status. Mais chique ainda acertar o escarro l dentro. Era normal, educado. Os escravos que se virassem com aquilo depois.1 Na medida em que vo ocorrendo mudanas de natureza tecnolgica, cultural, socioeconmica, de modelos de negcios e inovaes criadas pelo mercado, tudo isso vai sendo amalgamado e provoca uma mutao de nosso cotidiano, atravs dos equipamentos e processo que utilizamos. Ainda hoje, passado pouco mais de um sculo desde a abolio da escravatura, ainda remanescem, encravados no seio e no cotidiano do lar brasileiro, traos de uma cultura brasileira fortemente marcada pela escravido e que para muita gente esclarecida, no obstante, permanece oculta. Parece que a sociedade brasileira em construo neste incio do sculo XXI vai conseguir finalmente efetuar a liquidao de um conjunto de anacronismos que remontam aos tempos da casa-grande e senzala.2 Ainda na transio do sculo XX para o XXI, preservamos da ordem casa-grande e senzala o entendimento tcito de que o trabalho domstico um degradante servio, servio de negro. Dos tempos do Brasil Colnia herdamos esse costume. Afinal, os portugueses que aqui chegavam, mesmo com uma mo na frente e outra atrs, tratavam logo de arrumar pelo menos dois escravos: um para realizar os trabalhos domsticos e outro para conseguir uma renda de servios prestados a terceiros. Nos primeiros dias aps a abolio, a vida domstica dos brancos tornou-se um caos. Snia SantAnna narra em seu pequeno, despretensioso e interessante livro sobre a decadncia do Vale do Paraba no Rio de Janeiro, Bares e escravos do caf, que no dia 14 de maio, quando chegou a notcia da proclamao da Lei urea em Vassouras, sinhs e sinhazinhas se perguntavam quem lhes faria o jantar e lhes traria a gua quente para o banho. Atnitas, recriminavam as criadas que as abandonavam assim, e deixavam famintas as criancinhas, sem ter quem as amamentassem [brancas no amamentavam, apenas as de condio social muito baixa. Para essa tarefa,
existiam as amasde-leite]. Seus pais e maridos tentavam salvar a situao, prometiam salrios, boa alimentao e melhorias nos alojamentos a que j no chamavam senzalas aos que voltassem ao trabalho.3 Nessa poca, eram comuns as residncias onde os brancos nem mesmo sabiam acender o fogo. A respeito dos libertos, relata Snia SantAnna: Ignorantes, sem terra e sem profisso, desconhecendo os direitos e deveres de um cidado, vendo o trabalho como sinnimo de cativeiro, libertos vagueavam pelas cidades mendigando, reforando os preconceitos que os davam como seres incapazes e irresponsveis (...) formando a camada mais miservel da populao, findando por aceitar, para sobreviver, baixos salrios e as mesmas ocupaes humildes, sobretudo o trabalho domstico. Se a escravido formalmente acabou no final do sculo XIX, ao longo de todo o sculo XX permaneceu o consenso que vigorava entre os portugueses imigrantes dos tempos coloniais, de que se deveria sempre, na medida do possvel, arranjar uma empregada para cozinhar, lavar banheiros, lavar e passar roupa, limpar a casa e eventualmente cuidar das crianas. Durante as dcadas dos mais intensos movimentos migratrios do campo para as cidades, sobretudo ao longo da segunda metade do sculo XX, as grandes cidades brasileiras tornaram-se verdadeiros entrepostos de empregadas domsticas. Praticamente sem exceo, os migrantes do campo para a cidade tinham dois caminhos: os do sexo masculino tentavam como primeiro emprego a construo civil; as mulheres, um posto de empregada em casa de famlia. Nos anos 1960 e 1970, era comum, mesmo entre a classe mdia tradicional, ter at duas empregadas. A tal ponto se tornou a famlia brasileira da antiga classe mdia dependente desse tipo de mo-de-obra que a arquitetura a partir dos anos 1950 institucionalizou uma inveno brasileira para os apartamentos, fossem esses at mesmo simples quarto-e-sala: a dependncia de empregada. A dependncia de empregada um fssil que remanesce na planta baixa dos apartamentos no Brasil. Tipicamente, um cmodo de 4 m2 , sem janelas para o exterior, ou mesmo sem janela alguma, tem sempre um banheiro exclusivo (que, em geral, ningum da famlia faz uso, mesmo em situaes de emergncia). Como parte dessa pequena senzala que tomou elevador, existe ainda um chuveiro, que, em condies onde o metro quadrado est a prmio, engenhosamente colocado sobre o vaso sanitrio. No h nada comparvel em termos de antropologia da arquitetura domstica ao quarto de empregada brasileiro nos pases da Amrica do Norte e Europa. Na ndia, por exemplo, voc encontra algo semelhante, mas no to enraizado e estruturado a ponto de ter se tornado um cmodo padro de uma residncia. Sobre esse particular da cultura brasileira empregada , alis, paira um silncio sepulcral. Nem conservadores, nem progressistas, nem gente de esquerda ou de direita ousam tecer anlises sobre empregada e o cotidiano do lar brasileiro. O mais estranho ainda quando se olha para o conjunto das obras de denncia social feita pela intelligentzia brasileira, sejam essas literrias, teatrais, filmes: no se v jamais a discusso sobre o lar brasileiro e a empregada como o resqucio de nossas relaes
sociais herdadas dos tempos de casa-grande e senzala. Sobre nossa inveno quarto de empregada, um amigo meu holands, ao tentar entender a cultura brasileira nesse aspecto, me perguntou se no havia registro de autuaes do Ministrio do Trabalho de empregadores domsticos por constranger seus empregados a fazer uso desse tipo de instalao. Muitas vezes necessrio algum de fora fazer certas perguntas para que voc veja com outros olhos a realidade com a qual se acostumou como normal. Fui pesquisar sobre o assunto e descobri, acredite, que existe algum tipo de normalizao que regulariza o cubculo indigno. O Cdigo Nacional de Obras determinava, at 25 de dezembro de 1998, que o quarto de empregada poderia ter entre 4 (2x2) e 6 (3x2) m2. A partir dessa data, o limite mnimo passou a ser de 6 m2 . Imagine o que viver num cubculo como esse no calor de vero de um pas tropical. Qualquer empregada domstica sabe bem o que . Alm disso, o quarto tem mltiplas finalidades para a famlia e se torna muitas vezes um verdadeiro depsito, alm de ser tradicionalmente o lugar onde se guardam tbuas de passar, baldes e vassoura, aspirador de p etc., etc. Outra dependncia que traz claramente os resqucios da planta baixa de casagrande e senzala a cozinha dos brasileiros. Esse espao, no geral, completamente apartado da rea nobre de convvio social da habitao, um territrio que pertence mais senzala do que casa-grande. Vem desse contexto a expresso ter um p na cozinha, que significa algum que se entende bem com os empregados domsticos ou que descende dos mesmos. Os nhonhs e sinhazinhas se transformaram em mauricinhos e patricinhas. Mas vo mudar muito nos anos da Renascena Digital Um anncio publicitrio de Comfort Easy Iron (condicionador para passar roupa da Unilever) que circula no Reino Unido apresenta uma foto do senhor Jake Lindsay, um enorme escocs que segura um ferro de passar sobre a tbua com o seguinte texto: Passar roupa agora me toma menos tempo. Presumivelmente, o senhor Lindsay participa das tarefas domsticas como qualquer cidado mediano nos pases plenamente desenvolvidos e calculou quanto tempo por ano uma pequena famlia gasta, no total, para passar suas roupas. Ele justifica sua escolha de consumidor baseado nesse argumento: No total, [uma famlia] despende dez dias por ano passando roupas a ferro e abominamos esta tarefa. Ento a Lever desenvolveu Comfort Easy Iron... Na contrapartida brasileira, nossos publicitrios em linha com nosso contexto casagrande e senzala apresentam produtos de limpeza, via de regra, com personagens como a Fil, uma atriz que encarna da maneira mais perversa o esteretipo da empregada domstica. A casa o hardware, o trabalho domstico o software. Se o hardware ainda transita entre casa-grande e senzala, tambm o faz o software. Ou seja, a diviso
sexual de tarefas e responsabilidades no cotidiano dos lares dos brasileiros ainda parece um retrato contemporneo dos tempos de casa-grande e senzala. Diferentemente dos hbitos prevalecentes desde o sculo XIX na Europa Ocidental e desde a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, o homem brasileiro ainda um velho escravocrata para quem o trabalho domstico mgica feita por gnomos invisveis. O Papai Sabe-tudo (Father knows best), comdia do gnero sitcom (comdias de situao) da televiso americana dos anos 1950, representava a famlia classe mdia americana, da qual a mulher era a esposa, domstica, que ficava em casa cuidando dos trs filhos. No havia empregados domsticos, mas, mesmo assim, o homem tinha uma participao nas tarefas domsticas. Indefectivelmente, Papai Sabe-tudo tinha seu destino traado aps o jantar: encarar uma pia da cozinha, de camisa branca e gravata. (O tal papai sabe-tudo era um trabalhador de escritrio tpico daquela poca, um white collar, vendedor de seguros mais especificamente.) Naquela poca, a penetrao da mquina de lavar loua no mercado americano ainda era incipiente. Nos anos 1960, a mquina de lavar tornou-se to onipresente nos Estados Unidos quanto a geladeira, e a imagem do homem de famlia na pia da cozinha foi tornada obsoleta nos sitcom tradicionais da televiso americana. Ainda hoje no Brasil, mesmo nos domiclios A e B, a mquina de lavar loua um eletrodomstico com baixa presena, apesar de ser um produto extremamente barato, de grande produtividade, capaz de economizar pelo menos 15 dias por ano de mo-deobra, de alta eficincia ambiental, capaz de salvar mais de mil litros dgua/ano. Por qu? Os pesquisadores de mercado concluram atravs de suas entrevistas nesses domiclios que a cultura brasileira mais ou menos traduzvel em uma frase: Deixa que a Maria lava! Ainda que a mulher brasileira venha avanando e ocupando espaos no mercado de trabalho, posies de prestgio e poder, dentro do espao familiar ela no consegue produzir modificaes significativas do status quo dos tempos de casa-grande e senzala. No costume no Brasil atribuir s crianas nenhuma tarefa domstica. Basta que estudem e pronto. Nossos mauricinhos e patricinhas tm ligao direta com nossos sinhozinhos e sinhazinhas. Nas classes de baixa renda, que no tm empregada domstica, as filhas contribuem para a realizao das tarefas domsticas. No os indivduos do sexo masculino. Com relao ao homem brasileiro, um fato notrio e comprovado que o mesmo, na mdia, independentemente de sua classe socioeconmica, no realiza nem considera como parte de tarefas pessoais: arrumar a prpria cama, tirar a mesa, tirar o prprio prato, arrumar suas prprias roupas na gaveta, levar o lixo para fora, colocar um novo rolo de papel higinico no banheiro, lavar louas, lavar roupas na mquina, passar aspirador ou varrer o cho, lavar a pia do banheiro etc. Igualmente em relao criao de filhos, no faz parte tampouco da cultura masculina trocar fraldas, dar banho, acordar noite, alimentar. Tambm nessa esfera,
para os homens, essas tarefas so realizadas por uma mo feminina invisvel. As mulheres classes A e B, para no se desesperarem com o descompromisso dos outros membros da famlia, sobretudo de seu companheiro, caso tenham condies financeiras, devem contratar uma empregada ou pelo menos uma faxineira. O adeus empregada domstica Sem dvida, a mulher brasileira evoluiu mais em termos de mobilidade social do que o homem. A participao ativa no mercado de trabalho, o acesso educao e a melhoria da capacidade de planejar e controlar a maternidade o momento de engravidar, o nmero de filhos deram mulher uma nova posio social no Brasil. Hoje a mulher pode almejar, ousar ser e chegar a ser uma grande executiva, uma empreendedora, prefeita, senadora, governadora, e brevemente at mesmo presidente do Brasil. Mas dificilmente pode almejar encontrar um companheiro que no se comporte como um traste que no tira o prprio prato da mesa. Paradoxalmente, alm disso, a mulher brasileira no consegue dar aos filhos do sexo masculino uma educao diferente da que sua sogra deu a seu marido: o direito de ser nhonh. Para evitar os desgastantes choques cotidianos de cobranas ao parceiro e para no se sentir explorada pelo mesmo fazendo o papel de gnomo invisvel para ele e os filhos, toda brasileira de sucesso tem por trs, quase que invariavelmente, uma empregada. Assim, a execuo de tarefas domsticas no Brasil se no realizada pela prpria mulher, terceirizada para uma empregada domstica (que pode ou no dormir no emprego), ou por uma faxineira. Para os estrangeiros que nos visitam, parece estranho que esse tipo de atividade ainda persista no Brasil. Americanos, canadenses, europeus, japoneses, por exemplo, alegam que em seus pases a terceirizao do servio domstico s cogitada para pessoas ricas que podem contratar governantas, mordomos e staff domstico. Ou, ento, algum disposto a correr risco contratando um imigrante clandestino. Provavelmente esta gerao de mulheres que hoje tem entre 20 e 40 anos a ltima gerao a dispor de empregadas domsticas. Pelos anos 2020, mais ou menos, esse tipo de mo-de-obra ser acessvel apenas para pessoas ricas que podem ter staff domstico qualificado e condizentemente remunerado. Desde os anos 1980, as empregadas que dormem no emprego comearam a escassear em virtude de melhores opes de trabalho que surgiram no mercado de servios e industrial, ou ento para adotar o modelo de faxineira diarista. O crescimento do setor de servios urbanos ser bem mais vertiginoso que o industrial. O McDonalds, por exemplo, que chegou ao Brasil na dcada de 1980, tem uma funo importantssima como gerador de primeiro emprego, sobretudo para jovens estudantes do ensino mdio, em sua esmagadora maioria provenientes de favelas e comunidades de baixa renda. So hoje 36 mil funcionrios, boa parte deles no atendimento de balco em mais de 600 McDonalds pelo pas afora. No vai aqui nenhum endosso, defesa ou simpatia relativamente qualidade dos servios ou dieta fast-food, s quero mostrar que a gerao de empregos dessa natureza muito alta e muito mais atraente para
pessoas de baixa qualificao. Curto e grosso: muito melhor, mais digno e rentvel ser caixa de supermercado e atendente de redes fast-food do que trabalhar em casa de famlia. A empregada domstica poder vir, no mximo, a ser a diarista de amanh. Esta uma opo mais vantajosa e recompensadora tanto para quem faz o servio quanto para quem contrata. Patricinhas e mauricinhos de hoje tero de aprender a fazer a prpria cama ao acordar nos anos que esto por vir, a jogar o lixo na lixeira e outras coisitas mais. O lar dos brasileiros no sculo XXI Homem e mulher capazes de assumir papis intercambiveis no provimento, na gesto e manuteno do lar e dos filhos, sem necessariamente serem ambos os pais biolgicos; ausncia de empregados domsticos permanentes; nmero de filhos limitado a dois, no mximo. Essa a famlia nuclear do sculo XXI. Eventualmente, com a participao de um ou mais idosos, que j no tm condies de viver independentemente ou no tm interesse em morar sozinhos. Como fisicamente esta casa, quais as funes, layout, estrutura e equipamentos? Como a operacionalidade da manuteno desta casa? Obviamente, falar de um padro de casa brasileira falar de uma abstrao. No entanto, possvel fazer uma idealizao geral que seja uma espcie de sonho de consumo, de desejo de uma maioria expressiva. Por exemplo, podemos dizer que para a classe mdia urbana dos anos 1960 at 1970, o padro era trs quartos, sala, copa, cozinha, dependncia de empregada. Dos anos 1980 em diante, foram sendo acrescentados outros componentes internos, como banheiros tipo sutes, e componentes externos, como playground, salo de festas etc. Ao longo do sculo XX, tambm foram sendo incorporadas as facilidades que so entregues a cada residncia por uma rede de concessionrias de servios pblicos: gua, energia eltrica, telefone, gs. E durante todo esse tempo os trabalhos domsticos sempre foram terceirizados medida que se subia na escala socioeconmica. Considerando a nova classe mdia que est em formao acelerada no Brasil e que ser, digamos assim, uma amalgamao das classes B, C e D, quais seriam, de forma paradigmtica, as funes e formas que devero caracterizar como sonho de consumo o espao domstico dos brasileiros no sculo XXI?4 Como j foi exposto no comeo deste captulo, no sculo XX, nos acostumamos a ver o trabalho realizado em um espao fora da residncia: o comrcio foi para as lojas, o gabinete foi para o escritrio e a oficina para a fbrica. E assim, nas ltimas dcadas do sculo passado, o espao domstico tornou-se, basicamente, um espao com funes de dormitrio, refeitrio e local de assistir televiso. Nos anos a seguir, o espao domstico dever reconfigurar-se para ser capaz de acolher outras atividades alm do descanso, a saber, estudo, trabalho e entretenimento atendendo um nmero muito mais reduzido de moradores, se comparado ao sculo que deixamos para trs. O uso cada vez mais intensivo e disseminado da tecnologia de informao
revolucionar as atividades que as pessoas podero fazer no espao domstico. Entretenimento, trabalho, telecomunicaes, abastecimento, acesso a servios, incluindo educao e sade, tudo isso ser radicalmente modificado em funo da acessibilidade que a Internet e suas verses evolutivas permitiro. Cem anos atrs, a energia eltrica revolucionou o ambiente domstico permitindo dezenas de novas convenincias impensveis para as pessoas do sculo XIX, como, por exemplo, o funcionamento de mquinas como lavadora de roupas, ferro de passar, geladeira, enceradeira, aspirador de p, aquecimento e movimentao de gua, e, claro, iluminao, rdio, televiso. A Internet est ainda em sua mais tenra infncia em termos de disseminao para a maioria da populao brasileira. No momento em que escrevo este livro, a Internet s est presente em uma em cada cinco residncias no Brasil. Mas um bom comeo. A conexo dos domiclios com a Internet vai crescer de forma epidemicamente viral com a convergncia da TV digital e da telefonia sem fio e isso vai resultar na super-rede de informao da Sociedade Digital Global. Isso para acontecer rapidssimo. Foi assim com o celular. J temos mais de cem milhes de aparelhos num pas com 185 milhes de habitantes. A TV levou quase 50 anos para chegar a um nvel de presena igual a 98% dos domiclios brasileiros. O celular levou menos de dez anos para atingir a virtual universalizao no Brasil. Provavelmente a Internet banda-larga dever ter o mesmo nvel de penetrao da TV em menos de dez anos. Mas vamos falar um pouco de outras transformaes que devero ocorrer no ligadas diretamente expanso da tecnologia de informao. O desaparecimento da dependncia de empregada A senzala que tomou o elevador dever desaparecer da planta baixa dos domiclios brasileiros. Alis, este padro j se encontra claramente em evidncia. Os arquitetos consultados a esse respeito afirmam que a tendncia o desaparecimento desse cmodo, que s dever sobreviver nos imveis de classe A. Ter empregados domsticos no Brasil em uma gerao ser igual situao na Escandinvia: s ricos podero contar com essa facilidade. Os sinais do futuro j esto a emergindo: nos imveis novos, quartos e banheiro de empregada j no existem e nos antigos, os minsculos quartos de empregada so transformados em escritrios, closets e at em cozinhas na luta por mais espao nos apartamentos. A cozinha como espao nobre de convivncia social A arquitetura domstica nas prximas duas dcadas vai consolidar a transformao da copa-cozinha em um cmodo estratgico para a convivncia da famlia, incluindo tambm as funes de convvio social mais amplo como o de recebimento de visitas. A cozinha ser, cada vez mais, um local onde ocorrer, em geral, o preparo mais rpido e simplificado e o consumo de refeies. Afinal, os congelados e prprocessados e a entrega em domiclio tornar-se-o cada vez mais abundantes e acessveis. Cozinhar no estilo do sculo XXI tambm vai se tornar virtualmente um hobby, ao
mesmo tempo relaxante e socialmente integrador. Livros de receita, cozinhas exticas, cursos de culinria para executivos, panelas e equipamentos de grife enfeitaro esses espaos. Para as pessoas nascidas l pela dcada de 2020, ser necessria uma longa explanao para faz-las entender a expresso ter um p na cozinha. Com menos frituras na dieta, com eletroeletrnicos capazes de promover melhor exausto e depurao do ar, com equipamentos e utilidades domsticas que compem o que j comea a ser chamado de cozinha de terno-e-gravata, vai ser muito mais interessante fazer as refeies e conviver socialmente integrando sala e cozinha. O home-office Trabalho ser uma dimenso mais desregulamentada em termos de tempo da vida das pessoas e no apenas um lugar onde se vai exercer a profisso ou atividades remuneradas. Com isso, reconfigurado dessa maneira, o trabalho voltar a fazer parte das atividades cotidianas das pessoas no aconchego domstico. Alm disso, a educao, no mais restrita apenas juventude dos indivduos, mas uma continuada e permanente dimenso da existncia humana, ser em boa parte distribuda atravs da grande rede (educao no presencial via Internet, videoconferncia etc.). Assim, uma casa contempornea da Sociedade Digital Global dever ter no s pleno acesso Internet, mas tambm um amplo leque de equipamentos de tecnologia de informao digital de uso individual e tambm que possam ser compartilhados pela famlia (computadores de mesa, notebooks, scanner, servidor, impressora, unidades locais de backup de memria etc., etc.). Confuso para voc? Certamente no para seu neto, filho ou irmo adolescente. Lembra-se do tempo em que os aparelhos de som eram compostos de vrios mdulos caros e complicados? Pois , viraram simplesmente o chamado trs-em-um e at domiclios muito humildes dispem desse tipo de aparelho domstico. O home-office no necessariamente ser um cmodo. Nos anos que esto por vir a conexo wireless (via rdio, portanto, sem fio) vai se tornar uma das modalidades dominantes em escritrios e casas tambm. Todos na famlia devero ter seu notebook e diversos outros computadores dedicados a funes mais especficas em uma residncia (controle de energia, gua, luz, atividades de manuteno domstica, cozinha etc.). Parte destes computadores dever estar interligada em rede sem fio e conectada via banda larga Internet, ou qualquer outro nome que a grande rede ter daqui a alguns anos. Nossas casas sero um es tranho ninho para um visitante dos anos 1900, cuja casa no tinha nenhum fio ou cano, nem gua corrente e nem tampouco energia de espcie alguma (gs ou eltrica). medida que os anos avanam no sculo XXI, tudo vai poder ser feito de dentro de casa, na hora que voc quiser, sem filas e com toda segurana: servios bancrios, abastecimento domstico, pr-consultas mdicas e odontolgicas, planos de viagem, compras de ocasio, resoluo de problemas com fornecedores domsticos, servios educacionais e muita coisa inovadora, que algum empreendedor deve estar comeando a sonhar em viabilizar. At mesmo obrigaes cvicas, como votar nas eleies,
fiscalizar polticos e o prprio governo, e tambm o acesso a servios governamentais. Alis, a rea de e-governo (servios governamentais via Internet) dever expandir de forma exponencial nos tempos que esto por vir. E tudo isso ser mais rpido do que voc pensa. O acesso a todas essas convenincias ser feito no s por meio de terminais domsticos fixos (computadores e monitores de TV digital) como tambm por aparelhos mveis (telefonia celular). Por sua vez, as tarifas de conexo grande rede devero cair a preos mais e mais acessveis, e a videoconferncia dever comear a ser uma ferramenta rotineira tanto para trabalho quanto para vida social e lazer. Entretenimento A estrutura bsica de tecnologia de informao domiciliar vai usufruir velocidades cada vez mais rpidas de conexo com a rede de informao digital global, o que vai permitir o fim do estrangulamento que hoje impede, por exemplo, que voc veja filmes na Internet em tempo real com a mesma qualidade de imagem exibida pelo DVD que voc assiste em casa. Em breve, teremos uma velocidade de acesso Internet que far com que videolocadoras no tenham mais sentido e nem tampouco a chamada grade de horrio de programao de televiso. Voc poder ver em tempo real, com qualidade, aquilo que estiver disponvel no canal da TV ou na loja de aluguel via Internet. Os indivduos que pertencerem terceira idade a pelos anos 2015 contaro aos seus netos sobre o costume que as pessoas tinham de acompanhar programas de televiso, tais como novelas e minissries, com hora certa para passar todos os dias. Ningum vai entender como as pessoas tinham pacincia para viver daquela maneira estpida. Acharo ainda mais estranha aquela histria de ir at a locadora buscar um vdeo ou DVD. Voc vai baixar da grande rede tanto o filme clssico quanto um lanamento justamente na hora que quiser, de forma to simples quanto hoje procurar algo no Google. Na verdade, sua sala de estar ser provavelmente o santurio de entretenimento coletivo onde o sistema multimdia domstico vai ficar instalado. (Ser que ainda continuaro a chamar esse equipamento de home theater? Nomezinho besta, no?) O sistema multimdia permitir ver filmes, documentrios, esportes, notcias, shows, videoconferncia com parentes do outro lado do pas (muita gente vai achar timo para diminuir a freqncia de visitas da sogra!). Por isso, Hollywood est comeando a testar lanamentos de filmes usando simultaneamente como canais de distribuio no s as grandes salas de cinema, mas tambm lojas, para vender e alugar suas produes no formato DVD, e tambm na TV a cabo, no formato payper-view. Nada de ter que esperar meses para ver um lanamento de filme passar primeiro pelas grandes salas para ento chegar a sua locadora da esquina. Os executivos da indstria do cinema, uma das maiores e mais rentveis mquinas de fazer dinheiro do capitalismo moderno, interpretaram que o espectador quem deve decidir onde e quando quer assistir. Parece que as pessoas preferem cada vez mais assistir em suas poltronas, na hora que lhes der na cabea. Isso foi percebido claramente quando, feitas as contas no ano de 2005, esses executivos viram que um filme feito por Hollywood j faturava trs vezes mais em
vendas no formato DVD (para usar o jargo dos marqueteiros) do que na exibio em salas de cinema. A sala de cinema, a enorme sala escura onde nos dias de hoje as pessoas devoram sacos enormes de pipoca e bebem baldes de refrigerantes, vai ter de mudar muito para continuar sobrevivendo como canal de entretenimento competitivo com a nossa sala de estar. Provavelmente sobrevivero salas com recursos high-tech fantsticos em termos de reproduo de efeitos especiais capazes de rivalizar com nossos sistemas domsticos; mais ou menos como so hoje as salas do tipo Imax, que s existem em Londres, Paris e Nova York. O jogo de cartas certamente vai sobreviver, porm ter como competidor games de recursos impressionantes que voc poder jogar com amigos e familiares que estejam a seu lado na sua prpria sala de estar multimdia ou em algum outro lugar do planeta. Certamente voc vai poder fazer acessos www de sua cozinha para seguir aquele tutorial de culinria, no ser preciso ir at a mesa do computador para faz-lo porque todos os cmodos vo ter algum tipo de acesso grande rede. Da mesma forma que a energia eltrica est hoje disponvel em todos os cmodos. Eletroeletrnicos, robtica, qumica avanada etc., vo cada vez mais ajudar a aliviar a canseira dos trabalhos domsticos Existem ainda outras necessidades bsicas para um lar que os fabricantes vo trabalhar duro para inovar, criar novas convenincias e inundar o mercado com elas. Sero muitas novidades, de eletroeletrnicos a novos produtos de limpeza, solues para melhorar a gesto e a manuteno domstica a sistemas capazes de melhorar a eficincia do consumo de energia, de gua e tambm de aumentar a capacidade de reclicagem nas unidades residenciais. Na casa de sua me, nos tempos em que existiam empregadas, a diversidade e qualidade dos produtos de limpeza eram bastante limitadas e ningum nunca prestou muita ateno a isso. Limpeza era coisa que precisava de vassoura, sabo, gua, os indefectveis panos de cho e pronto. De vez em quando at que saa um anncio diferente falando de detergente que no fazia mal para as mos. Mas sua me achava caro e lembrava que a empregada sempre lavava com aquele detergente baratinho e pronto. Comece a ver as coisas por outro ngulo. Os americanos e europeus ocidentais, povos que vivem h mais de dois sculos sem escravido ou servido, tiveram de desenvolver um sem-nmero de produtos para aliviar a canseira do trabalho domstico. Depois de reconstrurem suas cidades aps a Segunda Guerra Mundial, inventaram muita coisa para facilitar a labuta; sobretudo aps os anos 1980, inventaram os produtos ambientalmente corretos: mais eficazes tanto do ponto de vista bacteriolgico quanto da remoo de sujeira. V, se ainda no foi a um supermercado classe A, e gaste um bom tempo comparando os produtos. Se preferir, faa uma pesquisa pela Internet. Leia os rtulos e descubra por que ningum passa toalhas ou roupas de cama nesses pases h
dcadas. Porque os amaciantes fazem esse trabalho na prpria mquina de lavar. Veja por que ningum na Europa, no Japo, na Amrica do Norte lava pisos e banheiros com centenas de litros de gua e ainda tem de ficar torcendo infindavelmente panos de cho encardidos. Porque a qumica high-tech faz isso por voc rapidinho. Veja por que pisos e encerados no requerem mo-de-obra semi-escrava para ficarem limpos e brilhantes. Descubra tambm que os vidros da casa, o blindex do chuveiro, os espelhos podem ficar inacreditavelmente limpos durante dois ou trs meses com limpavidros que tm dispersante de gua em sua composio. Nos supermercados escandinavos, pases onde as pessoas j vivem sem senzala e servido h quase cinco sculos, encontram-se disponveis lenos umedecidos para limpeza da pia do banheiro, do vaso sanitrio etc.5 Os equipamentos, como aspiradores de p, tambm tm melhorado incrivelmente. Agora sugam gua. So mais potentes, mais eficazes e muitos tm um design espertssimo, daqueles equipamentos que sua sogra diria que nunca ia botar na mo de empregada. Nas empresas fabricantes de aparelhos eletrodomsticos, os engenheiros projetistas esto ocupados com coisas que parecem a casa dos Jetsons (voc se lembra daquele desenho animado dos anos 1970?). O aspirador de p que trabalha sozinho j est disponvel por 400 dlares. Trata-se de um pequeno rob, que primeiro passa por uma fase de aprendizado que compreende um passeio pela casa para armazenar na memria o layout e os obstculos de cada cmodo e depois entra em operao nos tempos devidamente programados. Concludo o servio, o prprio rob encosta-se junto tomada e se pluga para ficar se recarregando. Um sonho de consumo j de muita gente. O preo vai cair na medida em que a produo aumentar por economia de escala. Um dia todo mundo poder comprar esses produtos. Como geladeira. Porque no vai ter mo-de-obra to barata disponvel como nos velhos tempos e tambm porque no vamos querer gastar nosso precioso tempo com coisas que mquinas fazem de forma muito mais rpida e eficiente. A casa ambientalmente correta Nossas residncias so grandes consumidoras de energia e de gua e grandes geradoras de rejeitos na forma de lixo orgnico e inorgnico e esgoto sanitrio. Isso ter de sofrer sucessivos processos de reengenharia. Certamente, a realidade atual vai mudar muito nas dcadas que esto por vir. No mais admissvel que continuemos em um mundo que chegar a nove, talvez dez bilhes de pessoas no planeta (esta a estimativa para meados do sculo) com sistemas hidrulicos domsticos que usem a gua tratada, limpa e potvel para fins no nobres, como, por exemplo, dar descarga na privada. Na Califrnia j existem casas com sistemas que reutilizam a gua da cozinha para essa finalidade. Mas isso requer todo um outro esquema hidrulico domstico. E ns vamos ter de refazer no s nossas residncias como prdios e equipamentos pblicos e privados. Exatamente como as plantas industriais esto fazendo desde o comeo da ltima dcada do sculo XX. Por isso que fbrica no mais sinnimo de poluio. Hoje as residncias so,
na verdade, clulas de poluio que no agregado j so muito piores que o setor industrial. Qual o tamanho da poluio de 52 milhes de residncias no Brasil? E de cem milhes nos EUA? E de 125 milhes de unidades residenciais na Unio Europia? Com nove bilhes de pessoas, estaremos falando em algo como dois bilhes de residncias no planeta. Sejam estes domiclios de gente humilde, classe mdia ou rica, no podemos seguir no caminho em que estamos direcionados. Na Sociedade Digital Global, tambm as residncias devero ser ambientalmente sustentveis. Ou no teremos mais histria humana no sculo XXII. Mas no s o problema da poluio por dejetos e rejeitos. Na questo do consumo energtico residencial o desperdcio tambm grande, como se pode perceber em relao energia para iluminao, aquecimento e refrigerao. H muito que se inventar, inovar e aperfeioar. Veja no caso da iluminao: mesmo quando ainda est claro do lado de fora, h cmodos e mais cmodos que necessitam acender a luz eltrica. Por que, se existe fibra ptica para conduzir a luz solar ambiente que no exterior abunda para onde quer que ela seja necessria? Somando as economias de cada residncia qualquer economiazinha , representa, no agregado, milhes de megawatts/hora poupados que iro reduzir os impactos ambientais da gerao de energia. As nossas residncias, tanto quanto as fbricas e os escritrios e outras unidades produtivas, tero que ser totalmente reconfiguradas em termos de reengenharia, para evitar que o planeta Terra seja implodido. A gente deve e vai fazer isso nas prximas dcadas. E nossas casas, a pelo ano 2030, tero mais semelhana com a nave do Capito Kirk, aquele do Jornada nas estrelas, do que com a casa da vov de outrora. Quem viver ver.
Notas Mrio Prata, em crnica publicada no Estado de So Paulo, em 10/4/1995. Recomendo a todos que ainda no leram Casa-grande & senzala, a obra-prima do socilogo Gilberto Freire, lanada em 1933, 45 anos aps a abolio da escravatura e que permanece atual. Este um dos meus clssicos favoritos, de leitura fcil e prazerosa. Esta obra tem o mrito de tornar cristalina a compreenso de aspectos basilares da sociedade e da cultura brasileira. Snia SantAnna, Bares e escravos do caf. Uma historia privada do Vale do Paraba, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. 4 Essa forma de classificar os estratos socioeconmicos da sociedade brasileira usada correntemente por pesquisadores de mercado. A, que pode ser subdividida em A1 e A2, so os afluentes 5%, dos quais A1 so os domiclios de 1% mais ricos. Os B, que podem ser subdividos em B1 e B2, so os domiclios do que antigamente era conhecido como classe mdia. C e D seriam os domiclios populares e E os pobres. Ocorre que desde o Plano Real, quando conseguimos a estabilizao da economia, C e D vm ganhando poder de consumo rapidamente enquanto B est estagnado. Trato detalhadamente dessas questes em meu livro Pegando no tranco O Brasil do jeito que voc nunca pensou (Rio de Janeiro, Editora Senac, 2006). 5 Existe uma forte correlao entre o nmero de pessoas envolvidas em trabalho domstico e desenvolvimento de uma nao que pode ser sintetizada da seguinte maneira: quanto mais desenvolvido um pas e quanto menor a desigualdade social, menos pessoas estaro disponveis para realizar os servios domsticos de terceiros. Traduzindo: exceo dos domiclios muito ricos, em pases da Escandinvia, Holanda, Dinamarca e Japo cada um cuida do prprio banheiro, faz a prpria cama, limpa a prpria casa etc.
CAPTULO 11
Subrbios e centralidades
OS DOIS LADOS DA MOEDA DA
GEOGRAFIA DO NOSSO COTIDIANO Quando a escolha da sua geografia cotidiana se torna estratgica
Uma das questes que passam despercebidas para muita gente esclarecida que
a escolha do lugar onde voc mora e o territrio no qual seu estilo de vida faz com que voc circule no cotidiano podem proporcionar uma imensa diferena na vida de uma pessoa. comum supor que a nica escolha possvel seja a opo por mais qualidade de vida ou status. Porm muito mais do que isso a escolha do territrio cotidiano. Uma escolha inteligente e estratgica pode fazer com que o indivduo tenha muito mais controle sobre o prprio destino. Em geral, a escolha de alternativas e da deciso do local onde uma famlia vai morar , na maioria das vezes, feita seguindo um senso comum que no consegue discernir e entender racionalmente um emaranhado de questes. Se voc investir em fazer uma reflexo com sabedoria, poder aumentar consideravelmente sua capacidade e a de sua famlia de navegar os tempos turbulentos de transio da Renascena Digital. Uma deciso bem amadurecida do local de moradia e do seu territrio vale a pena. Afinal, no se muda de local de moradia com regularidade e freqncia to grande. Pelo menos, na mdia, assim com as pessoas. Quem muda muito, muda uma vez a cada quatro, cinco anos. Pessoas que mudam de forma mediana, mudam uma vez, no mximo duas, a cada dcada. Uma parte considervel das pessoas fica muito mais do que isso. Especialmente depois que se tm filhos. A tendncia que depois da idade adulta e de constituir famlia as pessoas s mudam de endereo em circunstncias extraordinrias, ou ento quando os filhos saem de casa e sobra muito espao desnecessrio, ou se o indivduo est muito idoso e necessita da proximidade de parentes. No Brasil, as pessoas tendem a ter menos mobilidade porque nossa cultura valoriza muito a posse do imvel. Mais de 70% dos brasileiros so donos do imvel que habitam, sejam pessoas de condio humilde, classe mdia ou afluentes. Uma das razes para o brasileiro ter tanta necessidade de segurana em termos de ser o proprietrio do imvel que habita pode ter, talvez, a sua explicao no fato de que nosso pas tem uma longa tradio de incertezas e instabilidade econmicas. muito recente na nossa histria um perodo de estabilidade como o que temos vivido desde o Plano Real, que foi lanado em 1 de julho de 1994. Talvez essa tradio de economia no confivel tenha acarretado essa necessidade marcante do brasileiro de ser o proprietrio do imvel onde mora. Mesmo em favelas e loteamentos vale esse padro.
interessante contrastar esse padro com a realidade de vrios outros pases, onde a cultura que se formou tem razes diferentes da brasileira. Nos EUA, por exemplo, a mobilidade muito maior porque as pessoas sempre vo atrs das oportunidades de emprego e escolaridade. Em geral, a compra da casa ou apartamento prprio representa ficar ancorado e ter desvantagens em termos de mobilidade de acompanhar a oferta de oportunidades de trabalho que o mercado oferece. Assim, as pessoas deixam para comprar imveis tardiamente e o fazem, em geral, comprometendo-se com a hipoteca do imvel, que leva 25, 30 anos para ser quitada. Na Holanda, de forma semelhante, apenas 30% optam por ser proprietrios, pois a maioria prefere ter mais mobilidade. Neste pas, existe inclusive uma tradio de o Estado (governo central ou mesmo local) ou cooperativas serem os proprietrios e a maioria das pessoas se sente mais confortvel sendo locatria. Empresas, fbricas, varejistas tm uma metodologia quase cientfica de escolha de seu territrio e gastam muito dinheiro com pesquisadores e analistas que procuram fazer a escolha mais estratgica. um processo conhecido como site selection. Uma deciso errada pode ser muito sria. No raro pode inviabilizar o crescimento dos negcios e mesmo levar bancarrota. Voc j deve ter percebido que, com relativa freqncia, trago exemplos ou comento a forma com que as empresas resolvem os seus desafios e, em seguida, sugiro que pessoas se inspirem ou, ento, at mesmo adaptem mtodos ou racionalidade usados pelas empresas no sentido de ter mais controle sobre o prprio destino. No casual. Minha larga experincia como consultor de empresas me trouxe a certeza de que existe muita cincia e sabedoria acumulada na gesto de empresas e organizaes que fazem sentido sim em serem aplicadas nossa vida pessoal. Na verdade, tomamos muito poucas decises importantssimas na vida e muitas vezes aplicamos pouca racionalidade e sabedoria nessas ocasies. O famoso ah, se eu soubesse algo que muitas vezes dizemos passados dez, 20, 30 anos. Claro que a paixo importante na vida. Afinal, esse o grande sal da existncia humana. Porm, quanto mais formos capazes de racionalizar as escolhas que devem ser racionalizadas, melhor. Nesta questo da escolha do territrio do cotidiano tenho visto muitas alternativas insensatas e equivocadas mesmo da parte de quem tem bom poder aquisitivo para comprar ou alugar escolhendo bons locais de moradia. Um exemplo caracterstico desse tipo de tomada de deciso equivocada pode ser ilustrado por pessoas que, para fugir da violncia urbana, ter mais qualidade de vida, traduzida em mais espao verde, ou ento mais status, acabam se mudando para remotos condomnios fechados. Compram uma casa que parece ser um sonho, que aparentemente no to distante em termos de tempo, pois com o carro faz-se o percurso casa-trabalho em 40 minutos. No incio tudo parece maravilhoso. Aos poucos, se descobre que os filhos so ultradependentes em termos de mobilidade, que a famlia agora gasta trs, quatro horas no trnsito. Afinal, a via expressa livre apenas fora das horas de rush. No fim de semana, ningum faz mais nada fora de casa, pois est todo mundo saturado do vaivm da semana. Reverter a deciso complicado. Afinal, aquele era o imvel no
qual foi investido quase tudo que a famlia foi capaz de mobilizar. Ah, se eu soubesse... Para a esmagadora maioria das pessoas, o territrio do cotidiano a geografia urbana. Praticamente, mais de 85% dos brasileiros vivem em um mundo urbano. O fato que aproximadamente metade dos habitantes do pas vivem em pouco mais de 350 cidades, que pertencem s nossas dez maiores regies metropolitanas. E isso acontece no restante do planeta. As cidades, sobretudo as metrpoles, so o grande e dinmico veculo que a humanidade criou para realizar com eficincia no s a vida econmica quanto a social e cultural. A regra nmero um para qualquer pas se tornar desenvolvido urbanizar-se. Pases da Unio Europia, Estados Unidos e Japo so lugares com mais de 90% de sua populao vivendo em cidades. O problema que as cidades entraram em crise de crescimento e sobretudo de mobilidade desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Se as pessoas pudessem entender melhor a dinmica e a problemtica urbana, elas tomariam decises mais sensatas e coletivamente isso poderia resultar em uma melhoria das cidades como um todo. Muita gente reclama do planejamento urbano realizado pelos governos e tambm das polticas e ofertas do sistema de transportes pblicos. Em parte verdade que governos no tm cumprido com suas obrigaes. Mas a cidade no deixa de ser o somatrio das aes de todos ns, e tambm do resultado do estilo de vida que escolhemos ou que somos muitas vezes forados a adotar. No d para ficar esperando por outra gerao at que tudo seja mudado a partir das aes do governo. O que podemos ns, minsculos seres individuais, fazer, no caso dos desafios da vida urbana, que possa transformar de forma positiva nossa vida a curto prazo? Boa parte da nfase deste livro mostrar que na Renascena Digital existe a possibilidade e a necessidade de retomarmos uma maior cota e uma melhor qualidade de responsabilidade se queremos ter maior controle sobre nosso prprio destino. Com esse objetivo, nas sees que se seguem pretendo montar um panorama das razes da crise da cidade enquanto territrio da nossa geografia do cotidiano , bem como elevar o nvel de conhecimento estratgico por meio do qual poderemos tomar decises mais racionais para adotar estilos de vidas para ento discutir sobre opes. Vamos comear tentando avaliar a seguinte questo: Como o automvel se tornou o rei das cidades? At o final do sculo XIX, a mobilidade das pessoas nas cidades s era acelerada pela trao animal. Mesmo sendo um mundo em rpido processo de urbanizao, os ps eram o meio de transporte da imensa maioria, que passava os dias dentro de um raio de pouco mais de alguns quilmetros ao redor de casa. A demanda por maior mobilidade criou oportunidades e incentivos para que inventores e empreendedores produzissem novas tecnologias, servios e solues de transporte. Em um espao de tempo de pouco mais de um sculo, trao animal, motor eltrico e finalmente motor de combusto interna foram sendo experimentados,
surgindo diferentes meios de transporte: bicicletas, bondes, nibus, metr. Finalmente apareceu o automvel quase ao final do sculo XIX, mas sua produo em massa se iniciou para valer a partir do comeo do sculo XX, atravs dos esforos de Henry Ford. At a metade do sculo XX, ocorreu o progresso contnuo dos sistemas pblicos de transportes, que permitiu que a mobilidade mdia dos cidados urbanos ampliasse significativamente seu raio de abrangncia. No mais restritos apenas aos seus ps, os cidados urbanos viram ampliar consideravelmente sua geografia do cotidiano. O declnio dos sistemas de transportes pblicos urbanos, que hoje atingem cidades de todos os pases do mundo, comeou logo aps a Segunda Guerra Mundial, a partir dos Estados Unidos. A sinergia de alguns fatores explica a rpida ascenso do automvel como o meio de transporte predominante naquele pas e como essa tendncia se espalhou em seguida pelo mundo afora. Em primeiro lugar, a indstria americana saiu da Segunda Guerra Mundial com sua capacidade produtiva industrial ampliada de forma exponencial. Essa capacidade foi redirecionada para o mercado dos tempos de paz, em particular para a produo de carros. Em segundo lugar, o governo americano entendeu que a melhor soluo para as demandas habitacionais criadas pelos mais de trs milhes de veteranos de guerra, em sua maioria homens em idade de constituir famlia, era incentivar o aproveitamento de terras mais baratas, localizadas nas periferias das grandes cidades. O acesso s mesmas era agora um problema menor em funo da massificao crescente da posse e uso de automvel. Em terceiro lugar, o governo americano passou a investir maciamente em infraestrutura rodoviria. No ano de 1954, como parte do planejamento da logstica de defesa dos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria que se iniciava e para promover a mobilidade do automvel, o governo americano aprovou o Inter State Highway Act, megaprojeto governamental de rodovias, que resultou na construo de mais de setenta mil quilmetros de auto-estradas. Isto acelerou a supremacia do automvel, tornando-o o meio de transporte dominante. Nos anos 1960, j estava plenamente montada uma das mais emblemticas equaes do american way of life (estilo americano de vida): o subrbio e o carro prprio. E nos anos 1970, j estava consolidada por todo os EUA uma nova forma de viver; um casamento entre o estilo de vida das pessoas e toda uma infra-estrutura na qual o automvel tinha papel central. Mais do que isso, o carro se tornou imprescindvel na economia e na vida das pessoas nos Estados Unidos. J h quase duas dcadas o pas tem praticamente uma taxa de motorizao de um veculo por pessoa adulta. Na realidade, s a sua frota de carros particulares tem mais de 200 milhes de unidades. No perodo entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos 1970, o transporte pblico praticamente desapareceu das cidades americanas, a ponto de hoje o mass transit (transporte pblico) ter relevncia em apenas uma dezena delas. Na hora do rush, apenas 3% das viagens motorizadas em todo aquele pas so feitas em
transportes pblicos. Alm disso, 25% de todas as viagens em transporte pblico so feitas na regio metropolitana de Nova York. Os EUA acabaram se tornando o modelo inspirador para todo o mundo. Assim, o aumento acelerado da frota motorizada individual e a decadncia do sistema pblico de transporte, que andam de mos dadas, se espalharam pelo mundo afora. Atualmente, um nmero redondo para a frota motorizada circulando sobre o planeta pode ser estimado em, aproximadamente, 800 milhes de veculos leves e pesados. O Brasil entra com 35 milhes, mas, nas reas metropolitanas como So Paulo, que tem mais de cinco milhes, os nveis de motorizao no esto to abaixo de grandes cidades dos EUA. Por sua vez, a China tinha apenas cinco milhes s vsperas do ano 2000, mas os chineses esto se esforando para se igualar aos EUA em duas dcadas. Para isso esto rasgando o pas com um programa copiado do Inter State Highway Act. Hoje, a frota mundial de veculos cresce como uma famlia de coelhos justamente nos pases emergentes. Globalmente, com o automvel se tornado o meio de transporte mais utilizado pelas classes afluentes e dominantes, tanto em termos socioeconmicos quanto culturais, as polticas pblicas que privilegiavam os investimentos em sistemas de transportes pblicos foram sendo paulatinamente negligenciadas em favor do financiamento de infraestrutura viria para meios motorizados. Certamente a reverso dessa tendncia, na forma de uma renascena do transporte pblico, poderia assegurar uma mobilidade mais eqitativa do ponto de vista social e mais sustentvel do ponto de vista ambiental. Porm esta alternativa mais racional, na prtica e no geral, no vem sendo implementada pela humanidade. Pelo contrrio, mesmo alertada e sacudida por ativistas ambientais, movimentos sociais, tcnicos com argumentao bem estruturada, por lideranas polticas responsveis, coletivamente a humanidade radicaliza o sonho de Henry Ford, que comeou h cem anos em sua fbrica, com o slogan: Um carro para cada famlia. O preo a pagar Congestionamento, poluio e segurana viria so a contrapartida a pagar pela opo da sociedade de apostar em conseguir maior mobilidade nas cidades por meio do automvel. A cronificao do congestionamento, em especial nos pases que esto se desenvolvendo mais tardiamente, poder se tornar um inferno capaz tanto de aleijar a qualidade de vida quanto a produtividade das cidades. Sem capacidade de investir em infra-estrutura viria da mesma forma que os pases plenamente industrializados, os pases emergentes obviamente tm um quadro de congestionamento muito mais grave do que aqueles. A poluio do ar resultante da queima de combustveis fsseis pelos motores dos veculos o desafio que pressiona de forma mais intensa a sociedade global, afinal, o efeito estufa mais do que uma mera hiptese. Existem evidncias conclusivas de que os gases CO e CO2 contribuem para o aquecimento da atmosfera planetria. Este
fenmeno poder provocar uma cadeia de acontecimentos ambientais desastrosos e em escala sem precedentes. Se no mudarmos o tipo de combustvel, teremos que dar um grande tranco daqui a pouco. Isso vai provocar mudanas nos sistemas de transportes, nas cidades e nos estilos de vida. J deveramos estar agindo, mas no temos lderes suficientemente sbios e responsveis para tomar a iniciativa. Desafortunadamente, as lideranas polticas no tomaram at aqui atitudes necessrias e seguem tocando como a orquestra do Titanic. No plano local, a poluio do ar nas cidades tem cobrado um preo aprecivel da sade das pessoas, sobretudo das crianas. Mas o que mais sentido pela populao o aspecto da segurana viria. Esta se aproxima cada vez mais da posio de campe da produo de mortos e feridos, superando os ndices de guerras, doenas, homicdios e catstrofes. So estarrecedores os nmeros de mortalidade ocasionada por acidentes com veculos. Por exemplo, tomem-se as estatsticas do ano de 2004 referentes a alguns pases selecionados, coligidas pela organizao internacional Drive and Stay Alive: EUA, 42.636; ndia, 90 mil; Ir, 26.280; Rssia, 34.508; Japo, 7.358; China, 107.077. interessante notar que o Brasil tem conseguido baixar os nmeros de fatalidade por acidente de trfego, apesar de a populao e a frota estarem em crescimento vegetativo. Infelizmente, o Denatran, rgo do governo federal, s tem uma srie histrica que vai at 2002 (parece que a Administrao Lula cortou as verbas destinadas atualizao dessa importante estatstica). De qualquer forma, os nmeros so: 1998, 20.020; 1999, 20.178; 2000, 20.049; 2001, 20.039; 2002, 18.877. Infelizmente, no temos uma estatstica que desagregue os acidentes que aconteceram nas estradas, em viagens intermunicipais e dentro das cidades, no cotidiano das pessoas. Como tm sido combatidos os problemas da poluio, congestionamento e segurana viria? A poluio local e o congestionamento tm recebido uma tmida tentativa de mitigao por parte dos governos locais de algumas grandes cidades de pases emergentes atravs da adoo de sistemas de rodzio. o caso de So Paulo, Cidade do Mxico e Bogot, que so exemplos de cidades onde um dia por semana 20% da frota impedida de circular em determinadas reas. No obstante, a frota continua crescendo sem qualquer tipo de restrio, e as pessoas muito freqente-mente compram um carro mais velho como seu segundo carro, que servir para circular no dia em que o primeiro carro estiver impedido pelo rodzio. Legislao mais avanada, que comea a ser aprovada em pases onde os governos e polticos sofrem uma maior vigilncia e cobrana de seus eleitores, tem provocado mudanas nos padres de emisso de poluentes dos veculos automotores. No Brasil, por exemplo, h mais de uma dcada conseguimos eliminar de nossa gasolina o chumbo tetraetila, e nossos carros saem de fbrica com catalisadores que reduzem um pouco a emisso de poluentes. Na verdade, a evoluo tecnolgica ocasionar dentro de poucas dcadas a
obsolescncia do motor a exploso. da que devero vir as boas-novas relativas reduo da poluio do ar. Por exemplo, carros hbridos, eltricos, a hidrognio, at chegarmos aos carros de emisso zero. A previso de que algumas dessas opes devero ser comercializadas em grande escala a pelo comeo da segunda dcada do sculo XXI. A evoluo tecnolgica poder ser tambm uma grande aliada na promoo da melhoria da segurana viria com a chegada ao mercado de automveis mais seguros. Todavia, o grande problema ser sempre o fator humano, que o aspecto mais determinante na ocorrncia de acidentes. Nesta questo cabe um papel relevante a ser desempenhado por governos e sociedade civil para melhor educar os indivduos a dirigirem com mais responsabilidade e mudar a tendncia atual. No entanto, o aumento conjugado da posse e do uso do automvel dever impor a agudizao do problema do congestionamento como o maior desafio a ser enfrentado. E a, qual a soluo? No existe lgica em investir mais em infraestrutura viria da forma que fizemos at aqui, isto , subsidiando a mobilidade dos grupos mais afluentes e influentes da sociedade. Precisamos de um novo tipo de polticas pblicas para a mobilidade dos indivduos que seja mais racional, socialmente mais justo e ambientalmente sustentvel. A alternativa estabelecer um novo pacto de mercado para o uso e a posse do automvel baseado em uma regra simples: usou, pagou. Comeando a cobrar o preo correto pelo uso e posse do carro: pedgio e estacionamento Voc tem reparado que o nmero de vias com pedgio tem crescido e que progressivamente estacionar de graa tem sido cada vez mais difcil? Saiba que essa uma tendncia que dever se acelerar. Se voc quiser realmente ter mais controle sobre seu prprio destino, sobre seu estilo de vida e principalmente sobre seus gastos bom comear a pensar em ter uma estratgia de vida que considere esse encarecimento do uso do carro. justamente tal encarecimento que vir mais rpido do que voc pensa. O pedgio urbano Quando as frotas de carros particulares no saturavam os espaos urbanos pblicos, isto , enquanto as cidades dispunham de muito espao e os congestionamentos no impunham um custo para a sociedade como um todo, de forma contundente, no era preciso parar e refletir sobre a necessidade de mudanas. O congestionamento uma externalidade do uso do carro que passou a nos importunar para valer nas ltimas duas dcadas do sculo XX. Os economistas sempre conheceram bem o conceito conhecido como externalidade: fenmeno externo a uma empresa ou indstria que cause aumento ou diminuio no seu custo de produo, sem que haja transao monetria envolvida. At os anos 1980, aqui no Brasil no se cogitava cobrar pelas externalidades do uso
do carro. Ou seja, a sociedade no se preocupava em cobrar um preo adicional pelo uso e posse do carro alm do imposto que hoje chamamos de IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veculo Automotivo). Assim, o indivduo que quisesse ter mobilidade usando um carro particular teria de pagar um preo formado pelos seguintes componentes: valor de aquisio do veculo, mais o valor despendido com a manuteno, valor dos seguros, valor gasto com combustvel e valor comprometido com impostos. Pago este preo, voc estaria habilitado a ir aonde quisesse, quando bem entendesse. Depois inventaram o estacionamento pago, quando este comeou a ficar escasso. E depois criaram o pedgio para alguns trechos excepcionais de infra-estrutura (ponte, tnel, via expressa). O espao ocupado pelo carro, parado ou em movimento, e o ar consumido ou inutilizado pelo motor a exploso do veculo as famosas externalidades no custavam nada e no deveriam ser cobrados por ningum. Afinal, tem preo o que escasso. Aquilo que todos podem usufruir sem ter de pagar no ocasiona a formao de um mercado. Com 800 milhes de veculos gastando e poluindo o ar e ocupando espao, torna-se evidente que mais do que chegada a hora de cobrar por essas externalidades, porque algum ter de pagar por isso. Pois bem, William Wickrey (1914-1996), economista que ganhou o prmio Nobel de Economia em 1994, desenvolveu de forma pioneira o arcabouo terico da precificao formao do preo a ser cobrado por determinado bem ou servio do congestionamento (congestion pricing) em termos de ocupao do espao virio. Essa teoria vem se tornando conhecida desde o final dos anos 1980 tambm pelo nome de road pricing. Em linhas gerais, a teoria a seguinte: cada novo carro na rua significa a reduo do espao disponvel para os outros. Portanto, deve ser cobrado do responsvel de cada automvel um preo proporcional ao custo que ele est impondo aos outros. Circulando ou estacionado, todo mundo ter de pagar. Quanto mais a prmio estiver o espao disponvel para circular ou estacionar, mais os interessados em usar o espao tero de pagar. Wickrey classificou, no caso do trfego, o que os economistas conheciam muito bem: o crescimento da demanda por algo (produto, recurso natural, servio) impe a todos a escassez. Simplificando, quer dizer que cada carro que entra na rua impe aos outros uma queda na mobilidade de todos os outros que esto se deslocando. O trabalho de Wickrey consistiu em desenvolver a teoria econmica do pedgio, que est pronta e acabada. Restava o problema de implementar essa teoria para realizar o controle de pagamento, isto , do recebimento do pedgio. O pedgio at pouco tempo s era vivel de ser cobrado forando os carros pararem em um posto de cobrana. Todo mundo sabe que praa de pedgio sinnimo de engarragamento. Ou seja, colocar os carros em fila e cobrar no soluo e ainda acaba gerando mais engarrafamento. At que, ao final dos anos da dcada de 1990, se tornou disponvel a tecnologia da informao e sensores que podem identificar os carros e que permitem tarifar e cobrar sem que eles tenham que parar em uma praa de pedgio. Exemplos
pioneiros? Cingapura, que praticamente uma cidade-estado, foi pioneira no mundo em implementar o pedgio nas ruas de acesso rea central da cidade ao final dos anos 1970. A soluo da poca era aquela mesma: o centro era cercado de praas de pedgio. Em 2001, Cingapura adotou a mais avanada das solues high-tech de tecnologia de informao digital: sensores de leitura ptica e transmissores de rdio eliminaram a necessidade de parada do carro para o controle de pedgio. Alis, atualmente essa soluo j adotada em vrias rodovias pedagiadas no Brasil. Ao fazer a troca do sistema antigo pelo sistema de tecnologia de informao de alta tecnologia, Cingapura mais uma vez saiu na frente na questo de cobrar pelo custo do uso do espao pblico pelos carros e tem hoje um sistema de road pricing totalmente operacional que controla 700 mil veculos por dia. Desse modo, ela hoje praticamente a nica grande cidade da sia livre da praga do congestionamento. O pedgio existente no Brasil est ainda limitado s rodovias. A nica exceo a Linha Amarela, uma via expressa urbana no Rio de Janeiro, que liga a regio da Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional do Galeo. O pedgio vai realmente fazer diferena no nosso cotidiano quando comear a ser implementado dentro das cidades, no meio da dinmica urbana, muito mais complexa do que os padres de deslocamento pendulares dentro das rodovias. A questo de como outras cidades poderiam fazer a adaptao do modelo de pedgio urbano de Cingapura permaneceu uma discusso entre experts de tecnologia sem chegar aos tomadores de deciso, polticos e opinio pblica. At que a realizao de um projeto pioneiro teve incio no dia 17 de fevereiro de 2003, quando o prefeito de Londres, Ken Livingstone, deu incio execuo de seu mais ambicioso projeto de campanha eleitoral: melhorar a acessibilidade ao centro de Londres, diminuir o nvel de congestionamento e melhorar a qualidade do ar. Desde aquela data todo motorista interessado em conduzir seu carro na regio central de Londres deve pagar a tarifa de cinco libras por dia, no perodo entre 7 e 18h30. A meta reduzir o nmero de carros acessando aquela rea em 10% a 15% e gerar uma receita de 130 milhes de libras anuais (pouco mais de R$ 700 milhes). Como em Cingapura, parte da receita dever ser canalizada para investimentos em transporte pblico, para torn-lo mais competitivo em relao ao transporte individual, e melhorias de infra-estrutura viria. Londres o caso exemplar que vai acabar inspirando todo mundo a dizer: por que no? Resumindo, o pedgio urbano vir cedo ou tarde, apesar de sua impopularidade. Claro, ningum quer pagar por algo que at hoje todo mundo considerou grtis! Nem eu! Mas medida que os inconvenientes do congestionamento passem de um determinado limite do suportvel, ns, contribuintes, polticos, empresrios, formadores de opinio, a sociedade, enfim, vamos comear a considerar uma mudana e repactuar um novo entendimento que incluir o pedgio. O que certo que o pedgio urbano a precificao pelo uso do espao virio a nica sada para acomodarmos o crescimento da frota motorizada e permitir a racionalizao do direito de ir e vir.
O futuro ano que vem ou daqui a 20 anos ser o seguinte: o carro vai ser um bem baratinho, acessvel a camadas cada vez maiores da populao. Como hoje a televiso: quase 100% de penetrao no mercado. Ou como o telefone que voc pede companhia telefnica para instalar na sua casa. Os custos compreendero aquisio do veculo, manuteno, seguros, taxas, combustvel; porm, a parte mais significativa ao longo da vida til do automvel ser referente composio dos custos de pedgio e ao estacionamento. Resumindo: os custos sero maiores com o uso do que com a posse. Usou, pagou. Simples, no? O pedgio urbano ser parte de nosso mercado de mobilidade do sculo XXI. Obviamente, as experincias-piloto ocorrero onde o calo estiver mais apertado, ou seja, em regies onde o acesso est muito congestionado ou em vias de assim ficar. Quer apostar que as famosas marginais do Tiet e Pinheiros em So Paulo sero as primeiras a entrarem no pacote do pedagiamento naquela cidade? procura de vaga de estacionamento medida que crescem a posse e o uso do carro, no apenas o engarrafamento que cresce, mas tambm a necessidade de mais locais para estacionar os carros. A voracidade por espao de estacionamento uma das caractersticas do crescimento do uso e da posse do automvel. Esse consumo destrutivo do espao das cidades tem dimenses que muito pouca gente se d conta. Em cidades americanas, em mdia 1/3 do solo urbano consagrado ao veculo, seja para circular, seja para estacionar. Acredito que essa j seja a proporo para So Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte. Ocorre que o automvel circula apenas uma frao do tempo total de sua vida. Algo em torno de 5% a 15%. O restante, seja em casa, na rua, no trabalho, nas compras, no lazer, um carro permanece parado. O que fazer com milhes de carros que ficam parados nas grandes cidades to crucial quanto o que fazer com o congestionamento. O problema de estacionamento j aflige, inclusive, as regies de baixa renda das grandes cidades. Ningum poderia imaginar l pelos anos 1970 ou 1980 que teramos engarrafamentos ou forte demanda por vagas gerando um mercado de estacionamento dentro das favelas. Mas saiba que h quase uma dcada entender a favela como o endereo da misria um clich obsoleto. As favelas so o endereo da baixa renda e no de miserveis. Esse segmento da populao tem progredido e cada vez se torna mais consumidor. Em vrias favelas do Rio de Janeiro a posse do carro j alcana 14% dos domiclios. Com isso, claro que o morro fica engarrafado tambm. Quando voc est ao volante certamente sente estresse tanto pelo engarrafamento quanto pela irritao da procura de vaga para estacionar. Na verdade, em nenhuma cidade do mundo existe infra-estrutura adequada e que responda satisfatoriamente s demandas de estacionamento. Onde esto as cidades que oferecem um trailer das tendncias do futuro? Garagens subterrneas
George Pompidou, presidente da Frana entre 1969 e 1974, lanou a palavra de ordem adaptar a cidade ao carro no comeo dos anos 1970, traduzindo, enquanto poltico, o que a imensa classe mdia europia elegia como o grande sonho de consumo: o carro prprio. O design das cidades europias, consolidado ao longo do milnio passado, e que sofrera um rearranjo respondendo s demandas causadas pela Revoluo Industrial, oferecia um espao reduzido para a voracidade do uso e da posse do carro como um bem de consumo massificado. Resultado: ruas, praas, caladas juncadas de automveis estacionados e vias de circulao congestionadas. Na Europa, os estacionamentos subterrneos foram uma idia experimentada inicialmente em Paris, bem como as vias rpidas subterrneas. Subseqentemente, essas propostas foram sendo copiadas e/ou adaptadas para outras cidades europias. Em geral, a engenharia institucional e financeira passou a seguir o mesmo tipo de modelo adotado pelos franceses. O governo constitua uma empresa pblica para fazer estudo, planejar, projetar um sistema de estacionamento off-street, preferencialmente subterrneo, captar recursos e estabelecer parcerias com a iniciativa privada para implementar os projetos. Paris comeou de forma sistemtica a buscar esta alternativa no final dos anos 1970 e dezenas de outras cidades europias a seguiram, como Milo, Barcelona, Estocolmo, Madri, Lisboa etc. Em suma, a tendncia do sculo XXI de que seja expandida a oferta de estacionamentos subterrneos, que sero um tipo de infraestrutura pblica feita como se fosse um empreendimento imobilirio para acomodar uma frota que cresce como ninhada de coelhos. Esses empreendimentos sero implementados na forma de concesso e parceria pblico-privada. O governo delimita e regula as reas, o tamanho e as especificaes gerais de oferta de lotes de garagens subterrneas e a iniciativa privada financia, constri e opera. Claro que o custo do estacionamento ser repassado para os usurios do mesmo. No cabe ao governo ser provedor de vaga grtis. Um veculo estacionado em via pblica sem pagar est sendo subsidiado. Alm disso, um veculo estacionado na via pblica diminui a fluidez do trnsito e, portanto, impe custos externos coletividade. Hoje, o espao para acomodar toda a frota da cidade do Rio de Janeiro seria equivalente a aproximadamente 500 edifcios-garagens do tamanho do Rio Sul, shopping carioca que tem 48.000 m2 de rea Bruta Locvel (ABL). So Paulo requereria aproximadamente trs vezes mais. Usando como medida um shopping paulistano, podemos dizer que seriam necessrios 1.500 edifcios garagens do tamanho do Morumbi Shopping para estacionar a frota apenas da cidade de So Paulo. O Rio s tem uma garagem subterrnea at agora, mas vai ter muito mais, e as outras cidades brasileiras tambm. O slogan da sociedade do sculo XXI com relao ao carro ser no free lunch, ou seja, no tem almoo grtis. Ter carro um direito como ter acesso linha telefnica; us-lo exigir cada vez mais contingenciamento, isto , a imposio de limites e quotas por parte da sociedade atravs de ao
governamental. Os lderes de nossa sociedade do sculo XXI devero fazer com seus concidados o mesmo que um pai zeloso deve fazer com seus filhos adolescentes sobre a necessidade de contingenciar o uso do celular. Da mesma forma que o atual prefeito de Londres j est fazendo com o pedgio no Centro de Londres. O real custo do carro ser usou, pagou e no mais comprou, usou. A sociedade como um todo no pode subsidiar voc ou quem quer que seja dando o privilgio de uma vaguinha aqui e ali. Muito menos para seu carro ficar estacionado 95% de 13,5 anos, que a vida mdia de um carro no Brasil. Por isso que construir e operar garagens pblicas e estacionamentos subterrneos ser um grande nicho de negcio nos tempos da Sociedade Digital Global. Espere e ver. Mas pense em racionalizar o uso do carro, seno voc vai pagar muito caro. Centralidades e subrbios Finalmente chegamos ao cerne da questo: voc deve entender que na escolha de um territrio preciso avaliar com profundidade, como um dos aspectos-chave de sua qualidade de vida, uma questo que tem dois lados: a acessibilidade e a mobilidade. Uma deciso sbia e racional sobre onde morar e viver e como se deslocar deve deixar de lado certas idias fantasiosas sobre qualidade de vida. Como o projeto de viver em um condomnio fechado em locais remotos, por exemplo. Em geral, condomnios fechados tendem a se transformar em deficitrios esquemas que tentam reproduzir aquilo que a cidade aberta oferece com mais eficincia. Condomnios fechados so construdos na maior parte das vezes em reas remotas porque as terras so mais baratas e, portanto, o empreendimento torna-se mais vivel e rentvel para o empreendedor imobilirio. Nessas regies, a densidade populacional baixa, existe muito pouca ou nenhuma oferta de servios, varejo, escritrios, equipamentos pblicos e privados como escolas, hospitais, teatros, museus etc. O que existe em geral est no shopping. Nessas regies, onde a residncia sinnimo de condomnio fechado, o estilo de vida exige que voc tenha carro. Muitas das vezes um carro para cada membro da residncia, pois sem carro, no se chega a lugar nenhum. Os acessos s reas de condomnio fechado ser cada vez mais congestionado at o momento em que chegar o pedgio, pois os contribuintes vo cobrar dos governantes que os preciosos recursos pblicos sejam alocados de forma mais eficiente do que em vias expressas de uso grtis. E ento, mesmo que voc ache muito legal morar numa casa em um condomnio de luxo, com uma estrutura tima de servios, prepare o bolso, pois o almoo grtis vai acabar ao longo da Renascena Digital. As grandes cidades americanas j esto vivendo paulatinamente uma reverso da decadncia que foi a contrapartida do florescimento dos subrbios e dos shopping centers, processo iniciado h 50 anos e que esvaziou as reas centrais de grande parte das grandes metrpoles nos EUA. Muito dos baby-boomers, aqueles nascidos aps a Segunda Guerra Mundial e que foram criados em subrbios e shoppings e que esto chegando agora aos 60 anos de idade, esto considerando a possibilidade de
voltar a ter endereo em downtown, isto , no centro. Nos centros e antigos bairros tradicionais esto sendo revitalizadas as convenincias em servios, lazer, entretenimento e vida social em territrios que podem ser cobertos por viagens a p, de txi e transporte pblico. Essas regies tornam-se novamente atraentes para aqueles que esto considerando que a vida deve continuar sendo ativa, principalmente agora que o horrio de trabalho se torna desregulamentado e que se pode levar boa parte do trabalho para casa via Internet. O que ocorre nos territrios centrais tradicionais das cidades nos EUA de certa forma comea a se configurar como uma tendncia em outros lugares pelo mundo afora. reas centrais e bairros tradicionais que decaram sobretudo em funo da tendncia da suburbanizao comeam a receber um afluxo de vida nova. Em vrias cidades onde esse processo vai se tornando visvel, os territrios mais dinmicos comeam a ser chamados de centralidades urbanas. Nessas localidades voc pode levar um estilo de vida menos dependente do carro. Pode racionalizar o custo do uso e da posse do carro e tambm dedicar menos tempo para dirigir. Afinal, morar em um condomnio que exige que voc dirija uma hora e meia para ir, outra uma hora e meia para voltar significa que voc tem que dedicar 32 dias do ano s dirigindo. Ser que isso mesmo qualidade de vida? Em vrias cidades brasileiras, muita gente que mudou dos bairros tradicionais para os condomnios remotos j comea a voltar para as centralidades. Gente que foi para Alphaville em So Paulo comea a voltar para reas tradicionais como Higienpolis, Jardins etc. Famlias que saram da Zona Sul do Rio para ir para regies remotas como Barra e Recreio j no agentam mais o movimento pendular dirio casatrabalho. Por isso, tantos esto retornando para Leblon, Botafogo, Copacabana e Flamengo, para morar perto de uma estao de metr. No momento em que o efeito estufa for embutido no preo dos combustveis, alm do tempo perdido nos engarrafamentos, quem anda muito de carro vai se ver torrando mais e mais dinheiro em combustvel, pedgio e estacionamento no insano ir-e-vir do cotidiano. E a, nestes tempos, as centralidades vo se tornar uma alternativa cada vez mais considervel tanto em termos de praticidade quanto de custo. E assim sero revitalizados centros e grandes reas tradicionais. Tudo o que foi apresentado neste captulo uma contribuio para que voc tenha uma viso mais clara e racional dos prs e contras dos dois tipos de territrios que vo predominar nos tempos de Renascena Digital: os subrbios de condomnios e as centralidades. Faam suas apostas, senhores, considerando com clareza os estilos de vida que mais se adaptam ao seu perfil.
CAPTULO 12
Private banking. Voc sabe o significado dessa expresso? Pois bem, esse um
tipo de servio bancrio e financeiro que os bancos oferecem para pessoas que tm alta renda ou ento elevado patrimnio pessoal. Rico ou simplesmente bem mais endinheirado que a mdia das pessoas, o cliente dos servios de private banking necessita de solues especiais em termos de servios financeiros e para lidar com seus bens. Ter muito dinheiro e patrimnio traz junto muito trabalho para administrar. Verdade. O cliente de private banking tem necessidades que quem vive de salrios mais modestos nem imagina. Parece engraado e contraditrio, mas um dos grandes problemas de ser rico ou simplesmente ter muito dinheiro o fato de que voc pode ficar pobre se no tomar cuidado. Alm disso, ricos no tm aposentadoria e precisam gerir com muito cuidado seus recursos e patrimnio para os seus anos menos produtivos. Ricos correm riscos maiores de decadncia do que ns, pobres mortais; muito embora, vistos assim de longe, do nosso ponto de vista, eles no aparentem estar muito preocupados com essas possibilidades. At algum tempo, os bancos costumavam identificar como clientes de private banking aqueles indivduos que tinham mais de um milho de dlares em dinheiro. Atualmente, os bancos j rebaixaram esse limite para a faixa de 50 mil dlares. Ou seja, se voc tem mais de 100 mil reais em dinheiro vivo, j pode se classificar como um cliente private banking. Voc pode ter certeza de que melhor usar esses servios do que deixar o dinheiro parado debaixo do colcho ou ento naquela conta corrente convencional. No s uma questo de um atendimento mais personalizado. muito mais. Por exemplo, no private banking possvel encontrar rentabilidade muito mais alta para as aplicaes de investimento que o banco fizer para voc. Parece ainda um sonho muito distante falar de um mundo onde os servios de private banking vo ser totalmente massificados. Mas pode ter certeza de que nos encaminhamos para esse futuro. Talvez voc que esteja lendo este livro ache que essa barreira que separa o cliente tradicional do cliente private esteja ainda muito alta, que isso ainda muito dinheiro para um indivduo. Mas veja bem que isso pode ser sua poupana de muitos e muitos anos. A tendncia que, mais e mais, ns como indivduos vamos ter que administrar, pessoalmente ou em grupo, nossas poupanas de forma a termos o p-demeia para os anos menos produtivos da velhice. Afinal, essa a coisa sensata a fazer na medida em
que todos os governos, mundialmente, devero ir reduzindo progressivamente o valor das aposentadorias dos indivduos. Portanto, se quisermos ter mais dinheiro l na frente, teremos de aumentar nossa capacidade de poupar individualmente. Essa necessidade de novos servios para ajudar os indivduos a administrarem a riqueza conquistada ao longo da vida pode ser mais bem entendida se colocada em uma perspectiva de progresso evolutivo que a humanidade vem fazendo h uns cinco ou seis sculos. Vamos resumir como foi feita essa evoluo ao longo do tempo para tornar mais claro para onde vamos. Ao longo da histria da humanidade, bem recente o fato de as pessoas comuns terem de lidar com dinheiro no dia-a-dia. At o final da Idade Mdia, tempos em que a maior parte da humanidade vivia nos campos sob a proteo dos senhores feudais, o homem e a mulher do povo passavam a maior parte de sua existncia sem colocar a mo em dinheiro vivo. Aquelas moedas grandes e pesadas estampadas com a cara dos nobres eram, na verdade, de circulao bem restrita. Mesmo entre os nobres, o dinheiro tinha baixa circulao. Os camponeses, de forma geral, praticavam o escambo, isto , a troca de coisas por eles produzidas por bens produzidos por outros. Esse sistema era tremendamente ineficiente. Como trocar um boi ou parte da sua safra por ferramentas, roupas, sabo, vela etc.? Acertar o valor das transaes, dar o troco, tudo isso era extremamente complicado e tomava muito tempo. A dificuldade do sistema de escambo fazia com que a riqueza no pudesse mudar de mo com freqncia. Riqueza sem circulao gera estagnao. Isso ficou claro nos quase 1.400 anos entre o Renascimento e a queda do Imprio Romano, quando constatamos que a riqueza dos senhores feudais era um portfolio de terras e suas salas atulhadas de tesouros. Num mundo sem dinheiro esse patrimnio tinha baixssima liquidez, isto , pouca capacidade de ser colocado em circulao. Para muitos, ainda hoje, o dinheiro uma inveno do demnio. Como pode um pedao de metal gravado com a cara de algum ou um pedao de papel impresso criar tanta confuso, justificar tantos crimes e loucuras? Pense de outra forma. O dinheiro o que possibilita a riqueza circular, isto , ter liquidez. Os economistas definem a liquidez como sendo a facilidade com que um bem ou ttulo pode ser convertido em dinheiro. Um mundo onde o patrimnio tem baixa liquidez, onde a riqueza no pode circular, um mundo travado. Numa sociedade de baixa liquidez as pessoas faro apenas o necessrio para sobreviver. O dinamismo floresce em sociedades nas quais existam mecanismos de recompensas e estmulo para que as pessoas inovem ou que produzam mais do que o estritamente necessrio para sobreviver. E, nesse contexto, tem papel fundamental a inveno do dinheiro que, como bem diz o velho ditado, faz o mundo rodar. A sacudida no mundo medieval ocorreu em primeiro lugar nas repblicas italianas, em especial nas cidades-Estado de Gnova, Veneza, Florena, que floresceram ao final da Idade Mdia e atingiram seu apogeu no Renascimento. Por qu? Foi ali que se deu a inveno e o comeo da popularizao do moderno sistema bancrio que tornou mais eficiente e dinmica a circulao de riquezas. Os homens dessas repblicas aperfeioaram um sistema econmico muito mais sofisticado do que o do mundo
feudal, onde a riqueza estava restrita posse de terras e tesouros. A inveno e o aperfeioamento combinado de instituies e ferramentas compreendendo bancos, comrcio, investimento, seguro, deram um dinamismo capacidade de circular a riqueza jamais visto anteriormente em outras civilizaes. Aps o Renascimento, mesmo a despeito da decadncia das repblicas das cidades-Estado italianas, graas acelerao do processo de urbanizao da humanidade, o dinheiro foi ganhando cada vez mais penetrao como meio de troca e, cada vez mais intensamente, fazendo parte do cotidiano das pessoas comuns. E a roda da histria continuou a rodar mais e mais rpido. No alvorecer do sculo XVII, as naes do norte da Europa tomaram o lugar das repblicas italianas como as locomotivas do sistema capitalista. A Holanda assumiu o papel de liderana nesse processo e a Sucia foi uma importante coadjuvante. Foi nesse pas que, em 1661, pela primeira vez na Europa, foram impressas cdulas de papel-moeda. Observe, portanto, que papel-moeda uma inveno que ainda no completou 350 anos. verdade que o ltimo dos grandes imperadores mongis, Kublai Khan (1215-1294), teve a mesma idia bem antes, por volta das primeiras dcadas do sculo XIII. No entanto, a circulao de papel moeda no Oriente foi muito restrita e em nada se assemelhou disseminao alcanada em poucos anos na Europa. A acelerao da circulao da riqueza passou a possibilitar um crculo virtuoso: riqueza estimula a gerao de mais riqueza. Cada vez mais rpido em um mundo em que os mercados se expandem. No incio do sculo XIX era a vez de a Inglaterra assumir a liderana como a locomotiva do capitalismo. De l para c, ao longo desses dois sculos, mesmo apesar de todas as crises, a humanidade veio assistindo a esse sistema econmico se tornar hegemnico e global. Apesar das convulses mundiais, nacionais e locais, como a crise de 1929, processos de hiperinflao como o que precedeu o nazismo na Alemanha, estagnaes, quebras, bolhas, e outras disfunes ocasionais pelo mundo afora, o capitalismo, ou economia de mercado, vem mostrando grande capacidade de se rejuvenescer e evoluir. Por outro lado, as grandes experincias alternativas sempre resultaram em fracasso. A mais importante delas foi sem dvida o regime comunista encabeado pela Unio Sovitica experincia que comeou no ano de 1917 e que teve, simbolicamente, seu atestado de bito passado em outubro de 1989 com a queda do Muro de Berlim, embora a dissoluo formal da URSS s tenha acontecido no ano de 1991. Nesse incio de sculo XXI estamos vendo a China, com seu 1,3 bilho de habitantes, acelerar sua adeso ao sistema de mercado, j sendo atualmente a quarta potncia econmica do planeta. Assim, todos os seres humanos deste nosso mundo contemporneo globalizado vo sendo confrontados com a realidade de que no possvel viver sem dinheiro, nem tampouco se abster de usar meios e ferramentas eletrnicos para lidar com a sua circulao. neste contexto econmico que somos desafiados a viver um mundo muito mais complexo que o de nossos bisavs, que poderiam muito bem passar a vida sem ter conta bancria, guardando seu dinheirinho sob o colcho.
De como vamos nos tornar cada vez mais exigentes em nossas necessidades e aspiraes de servios bancrios e financeiros No mundo do sculo XX, a maior parte das pessoas requeria pouco mais do que uma mera conta corrente, talo de cheques e uma conta poupana para atender s suas necessidades de servios bancrios e financeiros. Eram essas as ferramentas para lidar com a riqueza individual em um mundo onde o senso comum pensava na vida adulta como sendo segmentada em duas etapas: a fase produtiva e a aposentadoria. A fase produtiva era sinnimo de emprego, e isto queria dizer: dedicao exclusiva, horrio integral e com relativa estabilidade, sendo a remunerao um salrio fixo fornecido pelo empregador. A aposentadoria era a etapa da inatividade completa do indivduo e a sobrevivncia vinha do recebimento de uma quantia fixa fornecida pelo Estado atravs do sistema pblico de aposentadoria. As necessidades de servios bancrios e financeiros eram bem simples para a maioria da populao. Bastava uma conta corrente para receber o salrio ou a aposentadoria e um talo de cheques para pagar contas e retirar algum dinheiro. Uma das caractersticas da Renascena Digital a destruio criativa de diversas instituies do mundo do sculo XX. Como vimos nos captulos anteriores, o trabalho deixar de ser sinnimo de emprego, a aposentadoria virtualmente deixar de existir e o Estado dever assumir diferentes perspectivas. Na aurora da Sociedade Digital Global, esse complexo mundo novo que se antecipa na Renascena Digital, ns, como indivduos, vamos ter de assumir novas e diferentes responsabilidades. E a se incluem os desafios da gesto da riqueza que conquistarmos e construirmos ao longo de nossa vida como indivduos. nesse contexto que nossas novas necessidades de servios bancrios e financeiros vo surgindo. Na medida em que se tornarem mais delinedas essas demandas por parte dos indivduos, bancos e empresas desenvolvero inovadores produtos, servios e solues. A massificao dessa oferta ser cada vez mais rpida na medida em que bancos e empresas investirem em tecnologia de informao digital. assim que chegaremos um dia a ter como realidade acessvel a grandes massas servios que hoje so da excelncia de private banking. Olhe como isso j vem acontecendo h algum tempo e talvez a maioria das pessoas no tenha se dado conta. At o final dos anos 1980, para qualquer indivduo interessado em servios bancrios no Brasil e no mundo era necessrio ir at uma agncia bancria. Descontar cheques, sacar dinheiro, depositar ou sacar da poupana, pagar contas, negociar um emprstimo, movimentar investimentos, para todas essas necessidades tnhamos naturalmente de ir at uma agncia bancria. A partir do final dos anos 1980, os caixas eletrnicos acrescentaram um enorme grau de convenincia aos servios bancrios. A partir dessa poca, no era necessrio ir at o banco nem tampouco estar restrito aos horrios de funcionamento das agncias. Podamos sacar dinheiro a qualquer hora do dia, em qualquer ponto do pas, e mais alguns anos depois j podamos realizar isso em vrios lugares do planeta.
Por volta de 1997, os bancos inauguraram o Internet banking. Foi a partir da que qualquer computador conectado Internet tornou-se uma agncia bancria. Tudo bem que no conseguimos sacar dinheiro vivo, mas para isso tem sempre um caixa eletrnico por perto. Desde que o Internet banking apareceu, j comum muitos clientes irem ao banco apenas para abrir a conta e passar anos sem voltar agncia original onde a conta foi aberta. Mais recentemente, os bancos esto comeando a operar via telefone celular. Isso representa mais convenincia para os clientes, pois o celular pode realizar todos os servios similares aos oferecidos via Internet banking. Graas ao fato de os servios oferecidos atravs da tecnologia de informao digital terem um custo muito mais barato para os bancos do que os oferecidos na agncia, torna-se possvel ampliar o mercado.1 A capacidade de baratear servios bancrios e financeiros graas ao uso da tecnologia de informao digital vai aumentar tremendamente o pblico consumidor desses servios ao longo das dcadas que esto por vir. Todo mundo vai precisar muito mais do que depositar e sacar dinheiro na conta corrente e poupar. As pessoas, mesmo as mais humildes e mais simples, vo comear a aprender a construir um portfolio, diversificar aplicaes, analisar riscos, pedir emprstimos, realizar hipotecas etc. Alm disso, vamos precisar de servios consultivos por parte das empresas e bancos que nos ajudem a tomar decises sobre as melhores, mais seguras e rentveis alternativas para gerir nossa poupana, os investimentos e seguros para as pocas de vacas magras, para os tempos de velhice, para as ocasies em que vamos estar menos produtivos. Vamos precisar tambm, da mesma forma que as empresas j fazem hoje, de apoio para planejamento tributrio defensivo, isto , que busque minimizar a cobrana abusiva de impostos. Precisaremos mais e mais de apoio dos prestadores de servios financeiros para planejamento e solues para as diferentes fases da vida. Por exemplo, para a fase menos produtiva, no apenas na velhice. Para quando mulheres estiverem interessadas em se dedicar mais fase reprodutiva por alguns anos, sabticos para lidar com seus projetos especiais de educao continuada. Precisaremos cada vez mais de financiamento para curso superior para os filhos, pois as universidades gratuitas no sero mais disponveis daqui a alguns anos, mesmo as pblicas. Teremos maiores necessidades como indivduos de contrair emprstimos e financiamentos para abrir e tocar novos negcios prprios. Afinal, a era do fim do emprego determinar um boom de empreendedorismo no qual sero multiplicadas de forma exponencial as nano, micro e pequenas empresas. A educao universal hoje existente pretende qualificar o indivduo para ter um emprego e para ganhar dinheiro, no para administr-lo. Assim, de forma geral, as pessoas ainda tm um grau de instruo rudimentar em termos de educao financeira. Para promover uma melhor capacitao, temas como a matemtica financeira, por exemplo, devero passar a ser parte do currculo de educao fundamental para ajudar
as pessoas a entenderem melhor como funcionam juros, investimentos, o valor do dinheiro ao longo do tempo e outros conceitos importantes que faro com que o indivduo tenha mais conscincia e preparo para gerir sua riqueza. Tudo isso ajudar a formar um indivduo mais qualificado para assumir novas responsabilidades tambm no mbito da gesto econmica e financeira de sua vida. A educao que torna natural, no final das contas, uma determinada capacitao universal. No pense que isso absurdo. Um exemplo similar pode ser dado considerando o caso da alfabetizao da humanidade. Antes de Gutenberg inventar a impresso, a maior parte da humanidade na Europa podia passar a vida sem folhear um nico livro. Nos mais de mil anos de histria medieval, apenas religiosos e uns poucos nobres sabiam ler, menos ainda sabiam escrever. Em outras civilizaes, como a egpcia, ler e escrever eram ainda mais restritos, tratando-se de um ofcio de poucos. A imprensa, o barateamento do papel e a traduo da Bblia para o alemo comearam a tornar a leitura mais disseminada entre o povo. Todavia, na Inglaterra de 1841 33% dos homens e 44% das mulheres eram analfabetos. Pases europeus e da Amrica do Norte conseguiram praticamente erradicar o analfabetismo ainda no incio do sculo XX. No entanto, em termos globais, em 1970, tnhamos 45% da populao do planeta incapaz de ler ou escrever uma nica frase, e na virada do sculo, em 1998, a estimativa, segundo a Unesco, era de 18%. Compare tambm com o que aconteceu na questo da higiene pessoal. Ela foi um dos fatores que permitiu humanidade como um todo atingir uma maior expectativa de vida. Hoje, faz parte do senso comum a responsabilidade individual de lavar as mos, escovar os dentes, tomar banho. Nada disso pertencia ao senso comum de alguns sculos atrs. Na Idade Mdia, apenas algumas pessoas tomavam banho anual. Mesmo pessoas supostamente mais educadas tinham pouca educao em termos de higiene pessoal, por exemplo. Historiadores hipotetizam que D. Joo VI nunca teria se banhado no Brasil. No contexto de seu prprio tempo, as pessoas no poderiam ser consideradas porcas. Era a cultura da poca. E essa foi mudada porque higiene pessoal se tornou parte da educao j no nvel pr-escolar. A educao naturalizou costumes de higiene. Com a globalizao das pessoas, da qual trato com mais ateno no captulo 15, o indivduo tambm se torna global, vai igualmente impor a necessidade de criar novos servios e solues para realizar transaes comerciais e financeiras internacionais. Um bom exemplo o aumento exponencial da demanda por servios de remessas internacionais de dinheiro feito entre pessoas. Segundo um estudo recente das Naes Unidas, a humanidade tem hoje mais de 200 milhes de pessoas que imigraram para outros pases, a maior parte delas procurando melhores opes de trabalho e renda. Muitos devero voltar para seus pases de origem, pois mantm vnculos prximos com seus parentes e cultura local. No so como os imigrantes dos sculos passados que no tinham nossas opes de transporte (aviao civil massificada) e de telecomunicaes (ligaes telefnicas cada vez mais baratas e Internet). Sem essas alternativas, as pessoas que imigravam acabavam por perder sua relao com o pas de origem. Hoje os imigrantes, via de regra, no s falam com freqncia com seus
familiares e amigos nos pases de origem como transferem dinheiro com regularidade para os familiares que ficaram. A imigrao passa a ser vista como uma fase temporria pelos imigrantes, cujo objetivo acumular uma boa soma de dinheiro e retornar aos seus pases para abrir um negcio prprio. Isso vale tanto para turcos na Alemanha, mexicanos nos EUA, argelinos na Frana, quanto para filhos de japoneses nascidos no Brasil e que vo trabalhar no Japo, os chamados decassguis. Esses 200 milhes de imigrantes j transferem anualmente mais dinheiro para seus pases de origem do que todo o dinheiro investido no mesmo perodo pelas empresas multinacionais nos pases em desenvolvimento. Esse mercado j constitui um disputado filo por parte de bancos e empresas interessados em cobrar uma pequena taxa de servio por cada operao realizada. No Brasil, por exemplo, j temos trs milhes de brasileiros vivendo no exterior. Destes, 450 mil so decassguis, que enviam quatro bilhes de dlares em remessas anuais para o Brasil, fora o que eles guardam para trazer na viagem de volta, quando ento se lanam aqui como microempresrios. Neste contexto de dinamismo global, que no se restringe mais a alguns poucos pases, vemos surgir uma humanidade na qual os indivduos passam a ter mais dinheiro e patrimnio em suas mos. A gesto dessa riqueza estar mais e mais na mo dos indivduos, que necessitaro de inovadoras e mais sofisticadas solues, produtos e servios bancrios e financeiros que lhes tragam mais segurana, convenincia e rentabilidade. Nossos bancos brasileiros ainda no oferecem solues de forma muito massificada como o sistema europeu e norte-americano. Por aqui temos ainda dois problemas. Primeiro, precisamos bancarizar mais nossa populao, isto , precisamos estender a oferta de servios bancrios a uma maior parcela da populao. Apenas 50% dos indivduos tm conta bancria no Brasil. muito pouco. Compare-se com os EUA, onde apenas 10% da populao no bancarizada. No pense que a baixa bancarizao no Brasil ocorre por causa da dimenso da pobreza no pas. A pobreza no Brasil no to grande quanto se imagina. O governo fala em quase um tero da populao vivendo abaixo da linha da pobreza. Na verdade, a iniciativa privada estima em apenas 10%.2 O que precisamos que o setor bancrio entenda melhor que o cliente de baixa renda tem caractersticas diferentes dos clientes de mdia e alta renda. A informalidade nas relaes econmicas (trabalho, produo e consumo) que enorme e nela que est submersa mais da metade da economia do Brasil. O outro grande problema nossa cultura macroeconmica viciada em juros altos mantidos pelo governo. Os juros excessivamente altos tornam muito mais atraentes para os bancos realizar operaes de compras de papis emitidos pelo Tesouro Nacional do que ficar correndo atrs dos clientes. Isso fez com que os nossos bancos passassem a enxergar como clientes rentveis apenas o chamado topo da pirmide de renda.
A Internet ser o grande canal dos servios bancrios e financeiros para que os bancos coloquem as verses populares do private banking. Ali cada vez mais faremos consultas, simulaes, operaes que nos possibilitaro fazer-mais-com-menos. Poderemos tomar conhecimento de deseconomias e desperdcios que hoje no temos ainda conscincia. As empresas deste setor vo se tornar muito necessrias ao nosso dia-a-dia, e necessitaremos de sua assistncia por anos e anos seguidos de nossas vidas. Da mesma maneira que somos clientes de servios de sade hoje e como seremos clientes de servios de educao permanente. Se voc entrar na sua conta via Internet e gastar algum tempo pesquisando operaes e partes do seu Internet banking, vai ficar surpreso como isso evolui. A maioria dos bancos j disponibiliza um sofisticado portfolio de servios impensveis dez anos atrs. Graas Internet. Nos pases da Unio Europia, da Amrica do Norte e nos antigos Tigres asiticos (Coria do Sul, Hong Kong, Cingapura) impressionante como os bancos esto muito mais criativos em termos de gerar produtos e servios de maior valor agregado para as pessoas, tudo acessvel via Internet. Voc vai aos poucos perceber que a escolha dos seus provedores de servios financeiros e bancrios ser cada vez mais importante em sua vida. O padro private banking vai ser aos poucos acessvel aos que no so ricos nem tampouco celebridades. Mas isso no nos tirar a responsabilidade de aumentar sensivelmente nossa educao em termos de entender melhor como gerir nossa vida econmica e financeira. Isso far parte de nossa educao continuada. Porm mais e mais produtos estaro vindo ao mercado, na forma de livros, cursos, colunas de jornais, cursos a distncia, pacotes na Internet etc., destinados a tornar-nos cada vez mais proficientes em lidar com os desafios da autogesto de nossas riquezas. Uma nova educao financeira parte do desafio de construir novos estilos de vida mais sustentveis. S assim nos tornaremos mais qualificados para sermos menos dependentes passivos de empregadores e do governo e assumirmos, como indivduos, mais riscos e maiores responsabilidades para participar de forma mais ativa no jogo produtivo da Sociedade Digital Global. Notas 1 Vale a pena dar uma olhada no indicador chamado custo de transao por cliente que os bancos estimam para se ter uma idia do ganho de produtividade da aplicao da tecnologia de informao digital aos servios bancrios e financeiros. Na mdia, uma pessoa que v at uma agncia bancria custa ao banco R$ 3,19. Caso essa pessoa resolva o mesmo problema via caixa eletrnico, isso ter para o banco o custo de R$ 0,64; e via Internet banking ou celular, o custo cair para R$ 0,15. Os mitos e conceitos obsoletos a respeito do tamanho da pobreza no Brasil so
questes de que trato, extensa e aprofundadamente, em meus dois livros anteriores: Pegando no tranco O Brasil do jeito que voc nunca pensou (Rio de Janeiro, Senac, 2006) e Copo pela metade (Elsevier, 2004).
CAPTULO 13
Entretenimento
EM ALERTA PARA NO SE TORNAR VTIMA DA NOVA INDSTRIA DE NARCOTIZAO DA SOCIEDADE DIGITAL GLOBAL
Panis et Digitalis Circenses
baseado em uma pesada mquina escravocrata que concentrava excessivas energias em construes monumentais que serviriam aos interesses religiosos exclusivos dos faras acabou por se tornar insustentvel. Nos tempos mais recentes, o nazismo exemplifica bem o caso de lderes que se apresentaram como uma opo equivocada para uma gerao alem que apostou em promessas de tempos melhores atravs do monstruoso sonho do Terceiro Reich. Nesse sonho, na verdade, um medonho pesadelo misturando intolerncia e militarismo em escala jamais vista, acabou por conduzir a Alemanha aos escombros do final da Segunda Guerra. Este captulo , provavelmente, a parte deste livro que escrevo com maior apreenso. Tenho um imenso temor de que a humanidade sucumba frente frmula do po e circo. Este incio de milnio um tempo altamente positivo no que diz respeito s possibilidades de equacionar demandas relativas sobrevivncia material da humanidade. Certamente, nenhuma civilizao que nos precedeu foi to capaz quanto a nossa de preencher necessidades de alimentao, habitao e sade, mesmo diante de projees demogrficas de que poderemos atingir a marca de nove, quem sabe dez bilhes de seres humanos habitando o planeta por volta do ano 2050. Certamente a varivel meio ambiente questo crucial a ser enfrentada. No poderemos chegar l com um sistema de produo e consumo baseado no atual. Mas, nessa questo, acredito que tenhamos capacidade de engenhar solues que promovam a sustentabilidade ambiental. Meu grande receio de que no sejamos capazes de encontrar lideranas que mobilizem nossos contemporneos para que os mesmos aloquem nossas melhores energias na direo correta. Existem hoje preocupantes sinais de que a parte considervel dos lderes polticos e cvicos est ignorando que uma parte significativa da humanidade j comea a mergulhar em uma espcie de torpor hedonista misturado com preguia, mais interessada em se entreter do que viver a vida real. Se formos efetivamente nesta direo, o caminho para a Sociedade Digital Global no ser uma renascena, mas um desastre. O que exatamente me preocupa? Vou tentar ser mais explcito e detalhado nas prximas sees. A sociedade do lazer Uma queixa comum a todos ns a de que estamos sempre assoberbados de coisas para fazer. Raramente se ouve algum dizer que no tem coisas para fazer. Mesmo aposentados e crianas hoje em dia reclamam que tm menos horas no dia do que as que seriam necessrias para dar conta de todas as atividades que gostariam de realizar. Ser que as coisas so efetivamente assim ou, talvez quem saiba, temos uma percepo psicolgica equivocada? Seria o caso de procurar algum tipo de pesquisas sobre como as pessoas esto usando as limitadas 24 horas de seu dia-a-dia? Pois bem, a primeira referncia que encontrei trata da realidade dos EUA. L, como aqui no Brasil e em outras partes do
mundo, o senso comum parece concordar que cresceu a carga de horas de trabalho no cotidiano, no s no local de trabalho propriamente dito quanto em casa. Trata-se de um livro lanado em 1992 pela economista Juliet Schor, antiga professora do Departamento de Economia da Harvard University, Business School, intitulado The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure (O americano sobrecarregado: O inesperado declnio do lazer),1 no traduzido no Brasil. A autora sustenta com suas pesquisas exatamente essa percepo de que as pessoas estariam sendo cada vez mais exauridas pelo trabalho. Sua pesquisa apresenta uma base em dados que confirmaria que a carga de trabalho nas empresas estava aumentando e sendo igualada que era o padro nos tempos da Segunda Guerra Mundial. O livro parecia confirmar o que o senso comum das pessoas vive afirmando e se tornou um best-seller. No entanto outros economistas, mais recentemente, finalizaram um trabalho questionando as teses de Juliet Schor. Mark Aguiar, do Federal Reserve Bank of Boston, e Erik Hurst, da University of Chicagos Graduate School of Business, resolveram fazer diferente do que Juliet Schor fez. Seu objetivo foi constatar no o tempo dedicado ao trabalho, mas o tempo dedicado ao lazer. Na verdade, eles criticavam as premissas adotadas por Schor dizendo que ela considerava trabalho apenas aquilo que era pago pelos empregadores. Advogavam que existem tarefas pessoais, domsticas e coletivas que tambm devem ser consideradas como trabalho, a despeito de o tempo dedicado a essas tarefas no ser remunerado. E ento suas concluses foram exatamente na contramo das de Schor. Os dois economistas responsveis por esse estudo, como bons cientistas sociais, amam realizar pesquisas inquirindo as pessoas sobre seus hbitos, preferncias, estilos de vida etc., e, a partir da, construir anlises sobre padres de comportamento e tendncias de grupos sociais. No caso do estudo desses dois economistas, os dados usados foram os chamados dirios de uso de tempo coletados de forma metdica, uma vez a cada dcada, entre os anos de 1965 a 2003 por outros grupos de cientistas sociais. Para levantar esses dirios de uso do tempo, os pesquisadores pediram aos entrevistados informaes detalhadas sobre tudo o que eles fizeram no dia anterior e durante quanto tempo. Tambm realizadas na Austrlia e em vrios pases europeus, as pesquisas do dirio do uso do tempo formam um notvel tesouro scio-antropolgico acerca da vida cotidiana das pessoas nos nossos tempos, pois as mesmas cobrem as 24 horas do dia e no apenas o tempo de trabalho no emprego. Nas suas anlises dos dirios do uso do tempo, os dois economistas realizaram consideraes as mais variadas. Por exemplo, consideraram como atividades no ligadas ao lazer, portanto trabalho, o tempo que se gasta no cotidiano fazendo compras, cozinhando, abastecendo e limpando a casa, bem como outras tarefas domsticas, as quais muitas vezes acabam sendo as culpadas por nos sentirmos sobrecarregados, especialmente as mulheres que tm filhos pequenos e trabalham fora. A grande concluso que a vida dos norte-americanos, na realidade, est apresentando inesperado padro de reduo ao longo dos ltimos 40 anos do tempo
gasto com trabalho (remunerado e atividades no ligadas a lazer) e que, portanto, h sim mais tempo para o lazer. Na questo das atividades domsticas no ligadas ao lazer, aconteceu uma revoluo. Aparelhos como mquina de lavar roupa, lava-pratos, aspiradores, entrega domiciliar etc., tornaram os servios domsticos mais flexveis e produtivos. Nos ltimos 40 anos, progressivamente o aumento do tempo de lazer j atingiu em mdia entre quatro e oito horas por semana. Portanto, se voc considera que a semana de trabalho assalariado tem 40 horas semanais, esse acrscimo no tempo de lazer equivale a 5-10 semanas de frias extras. A pesquisa analisa se o padro tem validade tanto para pessoas das categorias socioeconmicas e de nveis de educao mais altos e mais baixos, homens, mulheres, casados, solteiros, com ou sem filhos, e a resposta afirmativa. A surpresa maior corre por conta da descoberta que justamente as pessoas com nvel mais baixo de educao tm uma mdia um pouco mais elevada do que a classe mdia mais alta. Infelizmente a pesquisa deixa de fora os aposentados e as pessoas com mais de 65 anos. Assim, parece que a realidade diferente da percepo. Mesmo existindo mais tempo para o lazer, as pessoas se sentem sobrecarregadas e no esto aproveitando o tempo extra para relaxamento. Por qu? Outros economistas analisaram os resultados da pesquisa e relataram, em entrevistas feitas em matria sada na revista Economist, algumas tentativas de explicar.2 Talvez, a prpria prosperidade econmica e os avanos da vida moderna nos faam sentir assim, psicologicamente mais sobrecarregados e portanto mais estressados. Por um lado, existe a popularizao de meios de comunicao como e-mail e celular, que nos faz sentir mais prximos ao ambiente de trabalho e, na medida em que a estabilidade de emprego diminui, mais tentados a nos mostrar engajados no fluxo do cotidiano do trabalho nas empresas. Alm disso, com outras oportunidades de trabalho remunerado em paralelo ao emprego estvel, uma hora de passeio no parque passa a ser mais valiosa em termos financeiros do que era antigamente e, por isso, passa a ser vista como um luxo. Os avanos da vida moderna, telecomunicaes e transportes mais rpidos, fazem com que possamos espremer mais atividades no nosso cotidiano, dando-nos a impresso de que poderamos fazer mais se fssemos mais eficientes. Da nasce um sentimento de culpa que torna difcil relaxar. Um dos economistas entrevistados faz uma provocao: quando as pessoas reclamam com ele de que esto muito ocupadas, ele diz a elas que o verdadeiro problema que elas tm... excesso de dinheiro. Parece que a percepo psicolgica nos engana sobre a realidade do relgio. Tanto que, provocativamente, a matria da The Economist tem o ttulo de Terra do lazer. Ocorre que a realidade dos EUA vai sendo replicada em todos os outros pases do planeta. O que parece acontecer que nos grandes centros urbanos, seja no Rio de Janeiro ou em So Paulo, seja em Buenos Aires ou em Cidade do Mxico, seja em Bogot, Caracas ou Campinas, Cidade do Cabo, Johannesburgo, Nova Dlhi etc., vamos todos convergindo para esse padro frentico de vida, independentemente se
so pases pobres ou ricos. Em todos os pases do mundo a renda per capita tem aumentado de gerao para gerao, mas precisamos sempre de mais dinheiro para financiar as facilidades da vida moderna e ento perdemos o controle de nossa agenda cotidiana. Noves fora zero, parece que temos de reconhecer que o problema no o excesso de trabalho, mas uma certa perda de controle psicolgico sobre o conjunto excessivo de comprometimento e prioridades que fazemos em nossa vida cotidiana. Somos pressionados assim pelo estilo de vida que vamos adotando e, sem perceber, acabamos por entender como lazer apenas o cio escapista, e a mora o perigo. Os perigos do encasulamento e do escapismo As geraes que nos precederam eram indiscutivelmente mais ocupadas que ns somos nos dias atuais. No estou considerando aqui as geraes dos tempos em que o mundo rural predominava, afinal, at 40 anos atrs, no Brasil, mais da metade da populao no vivia no mundo urbano. No campo, a vida sempre foi muito mais dura que nas cidades. Mas mesmo aqui nas cidades nossos bisavs e avs no tinham mquina de lavar roupa, chos de sinteco, aspiradores de p, as famlias eram maiores, o horrio de trabalho era muito maior. verdade que perdemos muito mais tempo no trnsito, mas temos mais frias, mais feriades, durante as noites comum as pessoas dedicarem longas horas TV, nos fins de semana ser espectador de esportes ou espetculos, vida cultural, DVDs, cinemas, computador, leituras etc. Mas as horas que coletivamente ns, enquanto humanidade, poupamos das tarefas enfadonhas ou da sobrevivncia alienada, que em geral um tipo de emprego que se detesta, no parecem estar sendo direcionadas de forma a construir grandes e maiores horizontes capazes de elevar nossa civilizao a um novo e superior patamar. Ser que estamos vivendo a ascenso perigosa de novos tempos de po & circo, em que as pessoas esto sistematicamente se alienando e sendo alienadas das questes importantes para manter seu foco no entretenimento estril? Vejamos algumas consideraes neste sentido. O vcio em TV no apenas uma expresso metafrica Quem j educou, ou ainda est em perodo de educar, filhos menores de dez anos de idade sabe que uma das coisas mais difceis conseguir limitar o tempo que uma criana se dedica a ficar congelada em frente ao vdeo vendo asneiras e desperdiando boa parte de sua infncia. Mesmo que tenha investido em TV a cabo na tentativa de filtrar o lixo que invade sua casa via TV aberta, voc sabe que no final das contas as crianas so terrveis. Em tempo de frias ns mesmos j experimentamos isso em nossa infncia! elas so capazes de ficar at 12 horas em frente ao vdeo assistindo a desenhos, filmes, documentrios etc. A TV ao longo das cinco dcadas de sua existncia mostrou-se fundamentalmente um meio de entretenimento para a sociedade global como um todo. E de baixa qualidade, importante notar. As produes dos mais diversos gneros so feitas sempre nivelando pelo mais baixo nvel; no importa se so novelas, reality shows,
esportes, filmes e desenhos. Esse contedo, entremeado por intervalos comerciais, responsvel por mais de 90% da programao, que mantm entretida uma populao de quase seis bilhes de habitantes do planeta. Ao cabo de sua vida de cinco dcadas, a TV frustrou a esperana de se tornar um meio de comunicao que nos fizesse avanar para um nvel civilizatrio superior. A TV tem sido acusada de ser uma das estimuladoras da violncia. Tentando provar ou descartar essa suposio, cientistas sociais tm estudado por dcadas se existe uma correlao entre o aumento do nvel de violncia de nossa sociedade e as centenas de crimes, assassinatos, exploses, socos e coisas do gnero que a TV exibe no dia-a-dia. A questo ainda segue sendo controversa. Porm, acredito que o problema maior o prprio hbito de assistir TV que se tornou um vcio epidmico de nossa civilizao ao longo da ltima metade do sculo passado. O ttulo desta seo foi uma adaptao de um artigo que saiu na influente revista Scientific American,3 em que os autores sustentam que a TV, na verdade, capaz de causar dependncia, tal como cigarro ou lcool. Medindo ondas cerebrais atravs de EEG, batimentos cardacos, atividade cardiovascular e outras atividades fisiolgicas, os dois pesquisadores advogam que a sensao de relaxamento que sentimos pode, aos poucos e progressivamente, criar uma condio de dependncia. Os nmeros so acachapantes. O brasileiro assiste em mdia quatro horas por dia, o europeu em torno de trs horas e os americanos 4,5 horas por dia. Dados da ONU revelam que 93% das crianas tm acesso TV e que elas passam pelo menos 50% de seu tempo mais ligadas ao aparelho do que em qualquer outra atividade noescolar. Se assistir TV se torna ou no um vcio, ainda assim esta forma de lazer tornou-se o cio por excelncia da humanidade. E um cio esterilizante, no qual se troca o precioso tempo por algo de muito pouco valor. Tomemos uma mdia mundial baixa: trs horas por dia dedicadas TV; que equivalem, portanto, a uma mdia de 45 dias por ano. E se assim for, quem viver 75 anos ter dedicado nove anos inteiros de sua vida a assistir TV. Especialistas em propaganda estimam que cada ser humano nos pases de estilo de vida mais ocidentalizado exposto a algo em torno de duzentas mil mensagens publicitrias dos mais variados tipos por ano. Somente na TV devemos absorver cerca de 26 mil comerciais por ano, sendo que quase dois anos de nossa vida sero dedicados a absorver comerciais (na TV, aberta ou a cabo). Mesmo que a TV no tenha as caractersticas de dependncia a substncias qumicas, existem evidncias de algum tipo de mecanismo de complexo pavloviano de estimulao visual que nos causa atrao e dependncia progressiva. Experimente ficar em um ambiente onde existe TV ligada. Se voc for um beb ficar logo enfeitiado e no vai mais tirar os olhos dali. Se for um adulto provavelmente vai demorar um pouco mais. Porm, mesmo os adultos tendem a apresentar um enfeitiamento diante dos efeitos de mudana rpida de quadros tpicos de edio de TV. Famlias que assistiam TV de forma costumeira e que foram privadas em experimentos conduzidos por cientistas sociais e psiclogos apresentaram verdadeiras
crises de abstinncia. Sem saber o que fazer de seu tempo livre e dependentes da TV para intermediar sua relao social, o convvio familiar e social dos indivduos deteriorou em muitos dos casos. Enfim, o processo de encasulamento nas residncias, centrado no hbito de assistir passivamente TV neste perodo de quase meio sculo, acarretou um substancial embrutecimento cultural e social das pessoas. Diferentemente dos tempos em que a TV no reinava nos lares, as pessoas tinham maior disponibilidade para a vida social, para atividades diversas de maior valor em termos de realizao e de aquisio de conhecimento: ler, tocar um instrumento, escrever cartas, jogos de salo, hobbies como pintar, fazer colees, passear, visitar parentes e amigos, atividades de voluntariado e comunitrias. Mas com a entrada do computador nos lares e com a disseminao da Web a partir da metade dos anos 1990, o tempo dedicado TV passou a ser reduzido drasticamente, especialmente em relao ao pblico mais jovem. Adolescentes nos EUA praticamente j perderam o hbito de assistir programao de TV, preferindo navegar na Web. Porm h grandes riscos no horizonte diante do que poder vir por a, no caso da utilizao do computador como canal de entretenimento. Usado com este fim, o computador poder ser ainda mais danoso que a TV para a humanidade. Tudo depender das duas primeiras geraes de heavy-users da Web nos prximos anos. Em especial no perodo em que se der a convergncia, isto , a integrao da Internet banda larga com a TV digital e com o telefone celular. Esta convergncia vai significar, na prtica, que teremos conexo praticamente universal, tanto de residncias quanto de indivduos, grande estrada da informao digital. Nessa direo, fundamental ampliar coletivamente a capacidade de usar de forma positiva as novssimas ferramentas da Sociedade Digital Global. Temos de buscar uma forma de encontrar um ponto de equilbrio no qual a maioria das pessoas seja capaz de lidar sabiamente com os novos canais de conexo e os novos contedos da super-web que est nascendo. Caso contrrio, poderemos comear a decair rapidamente como uma civilizao doente. O amadurecimento dos jovens est sendo retardado por causa dos excessos de consumo de entretenimento? So quatro da manh. O telefone celular colocado no travesseiro vibra sem fazer rudo. Daniela, 11 anos, 5a srie, boa aluna de um colgio tradicional do Rio de Janeiro, acorda e se levanta na ponta dos ps. Sem acender a luz, encaminha-se para o computador que fica na mesa prxima sua cama. Seu objetivo ter mais tempo para brincar no Neopets, um portal de divertimento da Internet no qual os participantes adotam bichinhos virtuais para cuidar. Na verdade, o Neopets muito mais do que isso. Ali, os participantes so estimulados a permanecer, podendo escolher em um extenso cardpio possveis atividades a serem desenvolvidas em torno do tema bichinhos fofos virtuais de estimao. Talvez voc se lembre do tamagochi, aquele chaveiro com um bichinho
virtual japons, o qual o dono tinha de alimentar e dar carinho para um iconezinho que simulava um ser vivo, dando bips e se contorcendo no minsculo visor do chaveiro, e que acabou se transformando numa coqueluche mundial. O Neopets uma evoluo muito mais caprichada. Ali se criou um mundo virtual, chamado Neopia, onde os participantes simulam e recriam atos da vida cotidiana tendo como objetivo conviver com misturas de animais domsticos e com criaturas fantsticas e fofas como dragezinhos verdes e rosas. Voc pode montar casas e lojas, fazer compras usando a moeda Neopontos, que se ganha vendendo e participando de diversos jogos. Voc estimulado a permanecer nesse mundo virtual, como se ele fosse auto-suficiente, o maior tempo possvel, sem necessidade de navegar o ciberespao do lado de fora do portal. , no fundo, uma insidiosa armadilha para crianas. Por exemplo, voc pode usar o prprio e-mail do Neopets, que se chama neo-mail, para se comunicar com os amigos e convoc-los a participar interativamente de games maneiros. A febre Neopets j dura meses na casa de Daniela. A ardilosa embaixatriz de Neopia conseguiu transformar as atividades Neopets em programa familiar. Seu pai ajuda-a a cumular Neopontos para comprar uma casa maior e mais equipamentos para acomodar e tratar seus neopets. Sua me, mais atenta que o pai, tenta estabelecer limites. J colocou uma planilha na parede para que Daniela anote o tempo de brincadeiras no Neopets. Um tempo limite semanal foi estabelecido. Como Daniela no pode ultrapassar esse limite, o remdio levantar de madrugada e jogar quando todos esto dormindo. E claro, esquecer de anotar na planilha. Como pr-adolescente, no princpio, Daniela ficou meio de nariz torcido para a idia de brincar em site de bichinhos quando a opo foi apresentada por Gabriela, sua colega de turma. Mas logo, logo se apaixonou. Crianas com menos de dez anos amam desde o primeiro minuto de jogo. Toda a turma de Daniela praticamente est envolvida com Neopets. Coleguinhas com freqncia se encontram on-line para jogar. Esse um retrato de uma gerao. Neopets foi retratado pelo jornalista David Kushner, em extenso artigo intitulado The Neopets Addiction (O vcio Neopets), que saiu na revista Wired,4 que trata de temas ligados Internet. Nesse artigo, Kushner reporta suas investigaes tanto sobre o perfil dos participantes em Neopia quanto sobre o lado comercial do negcio Neopets. Neopets tem 25 milhes de participantes no mundo inteiro. Esses usurios tm acesso ao portal em dez diferentes opes de lnguas e com isso atrai 2,2 bilhes de pageviews por ms. Pela mtrica do portal, Daniela est na fase heavy-user (usuria pesada), pois tem acessado mais de 12 horas por semana. Na verdade, na mdia, os usurios dedicam 6 horas e 15 minutos por ms. Isso faz com que Neopets, em termos de permanncia, esteja atrs apenas de Yahoo, MSN, AOL e e-Bay. O Google o primeiro em visita, mas no em termos de permanncia. Os portais encarniadamente disputam o tempo e a ateno dos usurios. Da mesma forma como Coca-Cola Company disputa a sede das pessoas com seu leque de produtos que vai de sucos a gua mineral, passando, claro, pelos diversos tipos de Coca. O grande trunfo de Neopets ter o foco demogrfico muito bem definido, que torna
esse portal o sonho dos marqueteiros de produtos e servios infantis: quatro de cada cinco usurios tm menos de 18 anos; e dois em cinco tm menos de 13 anos. Neopets foi criado por um casal e foi crescendo, crescendo, crescendo at ser vendido para a Viacom, a mesma empresa de comunicao que hoje dona da MTV, Nickelodeon e Paramount Pictures. A empresa Neopets tem hoje valor de mercado de 160 milhes dlares. Queremos estar onde as crianas esto e Neopets est repleto delas, afirma Jeff Dunn, presidente da Nickelodeon. O grande lance de Neopets que ele parece um local isento de propaganda onde os pais podem deixar suas crianas sem problemas. Negativo. De acordo com Kalle Lasn, editor da revista Adbusters, que procura vigiar os abusos da indstria de publicidade e propaganda, o Neopets usa um modelo chamado marketing imersivo. Nesse modelo, no se faz propaganda ou merchandising da forma tradicional nem tampouco da forma subliminar primitiva como se fazia antigamente na TV, onde os produtos na mesa da novela apareciam todos com os rtulos arranjados e voltados para a cmera. No Neopets no se fazem arengas com as crianas do tipo compre-isso-compre-aquilo. No sentido de zelar pelos filhos pequenos afinal ali freqentam mais de meio milho das crianas de menos de oito anos os pais tentam entender melhor qual o tipo de negcio que Neopets vende, anuncia, como esse portal se sustenta financeiramente. Tarefa dura, no to fcil de descobrir. Parte do faturamento do Neopets vem do pagamento de marcas famosas que esto nos produtos que as crianas compram na base do faz-de-conta para mimar os neopets. Kalle Lasn dispara: Neopets encoraja as crianas a despender horas em frente do monitor recrutando-as desde cedo para a sociedade de consumo da forma mais insidiosa possvel, confundindo-lhes a cabea. James McNeal, professor de marketing na Universidade de Texas A&M e autor do livro O mercado das crianas: mitos e realidades (no traduzido no Brasil), atesta: Antes dos oito anos as crianas ainda no esto preparadas para se defender de mecanismos persuasivos de venda. Susan Linn, diretora do Centro de Mdia para Crianas (Judge Baker Childrens Center) concorda que quando a questo de obesidade infantil est sendo reconhecida como um dos maiores problemas de sade pblica, que moral, tica e justificativa social pode apoiar uma iniciativa para que as crianas ganhem pontos interagindo com comerciais produzidos na base do marketing imersivo de cereais aucarados? Para seu esquema de marketing imersivo, o qual procura no chatear as crianas com os esquemas de pregao tradicionais que as aborrecem e que deixam os pais confortveis, pois no apresenta sinais evidentes de estmulo consumista, a empresa Neopets tem como clientes Atari, Lego, Mcdonalds, Disney, e muitas outras grandes transnacionais. Um participante pode ganhar 300 neopontos se responder pergunta que os pesquisadores de marketing plantaram l: Quando foi a ltima vez que voc foi ao Wal-Mart? A fbrica Neopets funciona 24 horas com 110 empregados em Los Angeles e outros 20 em Cingapura. Tradutores, artistas e desenvolvedores de programas, em especial, de minigames so recrutados na prpria Internet e orquestrados por Doug Dohring, presidente da Neopets. Orgulhoso de sua estratgia, Doug afirma: Usamos a
Internet para criar Neopets, da atingir escala global, e ento traz-la para o mundo real. Isto o oposto do que todo mundo faz. E assim que, alm de jogar horas e horas, seu filho vem lhe pedir roupas, tnis, cadernos e recomendar produtos e servios descobertos em Neopia. assim que vem outra parte do faturamento da Neopets: licenciamento da imagem de seus produtos para fabricantes de roupas, calados etc. Por essas e outras, que todos ns devemos alertar e acompanhar de perto as crianas na navegao da Web. O ciberespao to perigoso quanto a prpria rua. Voc deixaria seu filho pequeno andar sozinho na rua? Pessoalmente, gosto muito de ter acesso a pesquisas de mercado realizadas por empresas tentando entender os estilos de vida, os hbitos de consumo das pessoas. Deixando de lado o objetivo primeiro dessas iniciativas, que procurar pistas para vender mais produtos e servios, existe uma forma de olhar mais rica, pois essas pesquisas so conduzidas por cientistas sociais que criam uma verdadeira tela de radar de 360 graus sobre o ser humano e suas motivaes. Lendo com cuidado as pesquisas possvel tentar deduzir tendncias e perspectivas futuras lembra-se da arqueologia reversa do futuro? Recentemente, encontrei estudos de mercado que qualificam a gerao que nasceu entre 1975 e 1985 como Gerao MTV, por causa da influncia mundial que esses jovens receberam durante sua adolescncia pelos clipes e programas da MTV. Claro que muito restritivo identificar uma gerao inteira por apenas uma dimenso como essa, ou seja, o consumo de um nico produto. Mas isso ocorre. Porm encontrei outras conversas marqueteiras preocupantes, como o dilogo entre dois pais de filhos da gerao MTV registrado em um blog:5 Os jovens de 26 anos dos dias de hoje parecem ter a maturidade emocional que ns tnhamos aos 21 anos e a maturidade emocional que nossos pais tinham aos 16 anos. Por que voc diz isso? Porque os jovens, no lugar de interagirem com questes prticas da vida, esto aprisionados em uma espcie de vcio em entretenimento. Por que voc acha que isso estanca o processo de desenvolvimento da maturidade emocional? Porque as pessoas desenvolvem sua maturidade emocional no processo de interagir com outras pessoas e ao tomarem decises sobre questes prticas da vida. No lugar de aprenderem a ler as pessoas, os jovens passam boa parte do seu tempo jogando games, vendo filmes e no vivenciam os resultados de suas decises. Eles tm dificuldades em encarar processos de tomada de deciso. Isso ruim? Isso pior ainda. Os pais acrescentam mais ao problema superprotegendo os filhos das dificuldades inerentes da realidade; eles protegem os filhos das
conseqncias de suas prprias ms decises. Voc quer dizer que o resultado de superproteo das conseqncias das aes encher o mundo de tolos? Exatamente. Mas existem muito mais coisas que podem contribuir para fomentar um estilo de vida encapsulado e negativamente narcotizado das novas geraes, e isso pode ter conseqncias graves do ponto de vista de nosso futuro como civilizao... Na fronteira entre o entretenimento e a heroinaware: os games Em meados dos anos 1980, Luciana e Ronaldo, pais de um menino de seis anos, finalmente decidiram se separar aps alguns anos em que os seus desentendimentos foram em um crescendo que destroou o cotidiano da pequena famlia. Durante esse processo, Guilherme, o menino, passou a encontrar lenitivo nos videogames que naquela poca ainda eram jogados usando a TV como monitor. Ronaldo se tornou ausente do dia-a-dia da criana, deixando toda a responsabilidade pela educao e cuidado do pequeno em mos de Luciana, que entrou em depresso que se arrastou por meses a fio. Guilherme, fora do horrio da pr-escola, s tinha praticamente o videogame como atividade. Em alguns dias era capaz de jogar durante quase oito horas. Sua inteligncia emocional acabou sendo prejudicada de forma permanente tanto pela ausncia da me e do pai como educadores quanto pela imerso em um mundo de fantasia onde o objetivo era subir de nvel enfrentando os inimigos e vencendo obstculos. Hoje, aos 26 anos, Guilherme um adulto imaturo e com grandes limitaes para encarar de forma pragmtica os problemas de desenvolvimento e emancipao pessoal. Sua escolha profissional foi tornar-se programador. Formado, no encontra estgio ou emprego para se sustentar e por isso continua vivendo na casa da me. O computador plugado na Internet sua zona de conforto. O ciberespao o mundo no qual se sente verdadeiramente feliz e seguro. De acordo com a revista poca, que realizou extensa reportagem sobre games, a indstria de games, j h mais de dez anos, fatura mais do que Hollywood. No ano de 2005, no mundo todo, a indstria de games faturou US$ 10,5 bilhes enquanto a indstria do cinema faturou US$ 7,4 bilhes.6 Estaramos nos encaminhando para um tipo de civilizao em que o entretenimento on-line vem se tornando um Coliseu da Sociedade Digital Global? Construdo no ano 70 d.C., o Coliseu, capaz de abrigar 70 mil espectadores, em um tempo em que Roma ainda tinha menos de 900 mil habitantes, includos os escravos, que eram a maioria da populao, era apenas um dos vrios equipamentos destinados ao entretenimento dos romanos de ento. Mas ele no foi sequer o nico nem o primeiro dos equipamentos do entretenimento ligado frmula panis et circenses. Essa tradio nasceu com o Circus Maximum, que foi sendo expandido sucessivamente ao longo de dois sculos antes de
Cristo, at receber sua forma definitiva por ocasio das reformas feitas por Jlio Csar, por volta de 50 a.C. Com essas reformas, a capacidade de acomodar pblico elevou-se para meio milho de espectadores; 250 mil pessoas sentadas e outras 250 mil em p, sendo capaz de acomodar mais da metade de toda a populao de Roma. Alm do Coliseu e do Maximum, foram construdos outros circa como o Flaminium, Nero, Maxentius e outros. Era nos circa que se passavam para muitos romanos os momentos mais eletrizantes de suas vidas, vendo corridas de cavalos, bigas, lutas de gladiadores, os jogos. O resto de seu tempo parecia ser to desmotivante que Roma acabou por se tornar presa de civilizaes muito menos desenvolvidas que foram, como onda aps onda, solapando toda a antiga grandiosidade do Imprio Romano. At que a decadncia atingiu um ponto sem retorno. Hoje restam dos circos as magnficas runas espalhadas como um lembrete para as geraes futuras pelos quatro cantos da Roma atual. Alcanar um objetivo no jogo, como ganhar uma guerra ou prmio por matar um monstro, um prazer enorme, afirma um dos entrevistados da citada matria da revista poca, um bilogo de 44 anos residente no Rio de Janeiro. De fato, parecem existir evidncias de que muita gente comea a preferir a existncia no mundo do ciberespao, a ponto de ter ali a sua Second Life, nome de um dos mais populares games on-line. MMORPG um acrnimo de significado difcil de memorizar: jogo de interpretao on-line e massivo para mltiplos jogadores (massiva multiplayer on-line role-playing game), mas basicamente um termo que designa a atual gerao de jogos de faz-deconta em que os jogadores, a maioria dos quais nem se conhece no mundo real, se juntam na Web, interagindo a partir de seus personagens criados para realizar coletivamente as mais estranhas fantasias. Avatares, drages, heris e viles medievais, histrias fantsticas ou estelares, que misturam fico cientfica e contos de fadas tornam-se o mundo onde milhes e milhes de adultos e adolescentes so capazes de empenhar cada vez mais e mais horas de sua existncia. Para muitos dos jogadores, os games se transformam numa analogia perfeita ao que foi relatado na trilogia cinematogrfica intitulada Matrix. Esses filmes contam a histria de um mundo no qual os humanos se tornaram fontes de energia para seres de inteligncia artificial, que foram criados pela humanidade. Os humanos so mantidos vivos, porm em sono profundo, confinados em casulos cibernticos. Para que os seres humanos possam produzir a energia que ir alimentar os seres artificiais, a atividade onrica estimulada em rede, de tal forma que, apesar de imobilizados em seus casulos, os humanos tm a impresso de viverem. Os humanos vivem assim em uma realidade simulada plugados em uma gigantesca matriz como se fosse uma central de gerao de energia. Alguns humanos, tendo conseguido escapar dos casulos, articulam um movimento de resistncia. De tempos em tempos, invadem a matriz onde esto os casulos e libertam outros humanos. Esses novos membros so treinados para compreender e enfrentar a realidade, que diferente do mundo irreal no qual os seres aprisonados na matriz esto imersos. O roteiro tem suas razes de inspirao entre outras obras no
livro do filsofo francs Jean Baudrillard, Simulacros e simulaes. Nesse livro, Baudrillard, profundamente pessimista com os rumos que nossa civilizao tomou, advoga que nossa sociedade trocou toda a realidade e significado real por uma simulao fundamentada em smbolos de cultura e mdia (um mundo extremamente negativo, saturado de imagens, sons, e propaganda).7 EverQuest, The Sims, Ragnorak so nomes de jogos atuais muito conhecidos em um mercado no qual j embarcam mais de 25 milhes de pessoas. Alguns cientistas esto estudando seriamente o que quer dizer esse mercado que cresce sem parar. Existem aqueles que estudam porque j se torna necessrio acudir os que no esto apenas se entretendo, mas que j se encontram em um processo de imerso txica8 no mundo desses games, como o caso da acadmica e psicloga clnica dra. Maressa Orzack, do McLean Hospital e membro da Harvard Medical School. A dra. Orzack fundadora e coordenadora do Servio de Atendimento a Viciados em Computadores que atende pessoas, tanto crianas quanto adultos, que apresentam distrbios comportamentais por causa da excessiva dedicao a games e entretenimento em computadores. Um dos mais intrigantes estudos feitos at o presente o conduzido pelo economista Edward Castronova a partir de suas observaes feitas sobre o EverQuest. Por questes pessoais, quando estava atravessando uma m fase em sua vida pessoal, vivendo solitariamente em um subrbio no interior dos EUA, Castronova passou a jogar todas as noites o EverQuest, um dos tais tipo de jogo MMORPG. (Repetindo para que o leitor no tenha de voltar pginas: jogo de interpretao on-line e massivo para mltiplos jogadores. Argh!) Esse um daqueles jogos on-line em que voc paga US$ 10 por ms para jogar simultaneamente com 450 mil jogadores espalhados pelo mundo. Tendo escolhido seu personagem, ou no jargo de gamers, seu avatar (essa palavra vem do hindu e significa encarnao), voc comea no nvel um. Em um cenrio de fantasia de mundo medieval, com direito a drages, cavalheiros, magos, elfos etc., voc poder acumular pontos em tarefas feitas solitariamente ou com outros personagens que toparem se associar em guildas com voc. Claro que o objetivo tornar-se rico e/ou poderoso. O jogo foi lanado em 1999. Castronova comeou a jogar em 2001, e com isso encontrou jogadores veteranos que tinham acumulado muita riqueza na forma de tesouros de peas de platina. Ocorre que, um belo dia, Castronova viu no portal de leiles e-Bay o oferecimento de personagens e tesouros acumulados por jogadores do EverQuest. Repetindo para ficar mais claro para os que no entenderam. O e-Bay um mercado livre na Internet onde so anunciadas coisas de segunda mo. um verdadeiro sucesso e mais de 65 milhes de norte-americanos j utilizaram-no para transacionar alguma coisa. O e-Bay est provocando mudanas socioculturais profundas no american way of life. Voc se lembra de ter visto em filmes norteamericanos aquela coisa de garage sale , na qual adolescentes, em geral, colocam na porta da garagem todo o tipo de cacareco para os vizinhos interessados arrematarem? Pois , as garage sales esto acabando porque o e-Bay uma forma muito mais produtiva de leiloar. Fechado o negcio, s despachar pelo correio para
qualquer lugar dos EUA, ou do planeta, se voc enviar como presente, pois coisa de segunda mo, em geral, no precisa de nota fiscal. Pois bem, jogadores veteranos do EverQuest que se cansaram do jogo, ou que simplesmente precisavam de dinheiro, estavam negociando pontuaes e personagens, isto , suas propriedades no mundo virtual, para outros interessados. Quem eram os compradores do mundo virtual de EverQuest? Gente interessada em subir rpido na hierarquia. Gente interessada em no perder tempo tendo que sair do nvel 1, matar coelhinhos e coisas de menor monta, e ir direto para o crculo dos VIPs do EverQuest. Gente em busca de status e poder no EverQuest. Castronova viu a uma oportunidade de pesquisa social. Reuniu os dados disponveis no e-Bay acerca de leiles e transaes efetuados por jogadores e interessados no EverQuest e chegou concluso de que existia uma relao entre o valor das peas de platina (moeda usada no jogo) e o valor da transao em dlar no e-Bay. Pensando como economista e pesquisador social, Castronova assumiu que os jogadores de EverQuest estavam criando uma ligao, um link, entre um mundo fantasioso e a realidade usando riqueza, e isso poderia render bons estudos econmicos. Fazendo aquelas contas que os economistas adoram fazer, Castronova concluiu que os jogadores trabalhando juntos estavam criando riqueza como se fossem um pas. Atravs de suas pesquisas adicionais, envolvendo contatos e questionrios com 3.500 jogadores, Castronova concluiu que as pessoas com idade mdia de 24 anos, estavam, tambm na mdia, destinando 20 horas semanais ao jogo, sendo que os mais dedicados registravam mais de seis horas por dia. Na verdade, essas pessoas estavam se dedicando a uma segunda vida. Considerando o padro de vida das pessoas, sua renda mdia e o tempo dedicado ao jogo, e de olho nos valores de transao no e-Bay, Castronova props que, considerando que a cada hora dedicada ao jogo o jogador deixava de ganhar na vida real US$ 3,42, ento o pas EverQuest teria um PIB. Isto mesmo: um Produto Interno Bruto. O suficiente para colocar EverQuest na posio de pas nmero 77 considerando o ranking de PIBs das naes do planeta Terra. Mas a coisa no pra a. Levando em conta o nmero de jogadores, ele estimou a renda per capita de EverQuest e obteve um nmero estrondoso. Apesar de ser o PIB de um pequeno pas, os habitantes de EverQuest eram quase to ricos quanto os habitantes da Rssia em termos de renda per capita. Castronova entrou na crista da onda como acadmico quando seu artigo foi publicado na Internet trazendo essa desconcertante viso dos games. Imediatamente ele se tornou uma celebridade, afinal os games on-line esto se transformando em um dos mais quentes produtos de entretenimento com a expanso da Internet banda larga. Castronova, como acadmico procurando aumentar ainda mais o charme de suas proposies, prefere categorizar os MMORPG como mundos sintticos, isto , mundos imersivos digitais que hospedam milhares de usurios on-line de forma persistente. As pessoas engajadas em games MMORPG so absolutamente pessoas comuns. A diferena em relao aos que no jogam que elas tendem a valorizar inclusive monetariamente o que ocorre no ciberespao. Gente que chega ao nvel 57, na forma, por exemplo, de um nobre guerreiro reconhecido por suas faanhas na comunidade
EverQuest, avalia que tem um bem que pode ser transacionado a qualquer hora por 15 mil dlares ou mais no e-Bay. Pesquisas realizadas junto a comunidades de usurios de MMORPG do conta de que at 20% das pessoas envolvidas nessas atividades j sustentam que seu mundo do game, onde sua tribo est, o seu verdadeiro local de residncia. A Terra o lugar onde elas dormem e se alimentam. A geografia de maior significado de suas vidas est no ciberespao. Como em Matrix. Herona virtual eletronificada? A prxima fronteira de avanos tecnolgicos que est chegando em breve ao mercado possibilitar a imerso sensorial que permitir aos jogadores sentir e trocar sensaes tteis, sonoras e visuais tridimensonais atravs de sensores e eletrodos ajustados em seu corpo. Desnecessrio dizer que a indstria porn on-line tem o maior interesse nesse tipo de avano tecnolgico. O que mais me intriga e o que me parece mais ameaador o fato de que tanta gente prefira se ausentar do nosso mundo real justamente onde as sociedades so mais afluentes. Com a TV, a humanidade trocou algumas poucas horas de seu cotidiano por entretenimento frvolo; com o ciberentretenimento, bilhes de seres humanos podero realizar imerses cada vez mais prolongadas, at que, coletivamente, acabemos por destruir o significado da vida. Matrix ? No podemos subestimar a nossa responsabilidade em encontrar uma forma sbia de lidar com esse desafio. O ciberentretenimento pode ser muito mais destrutivo para nossa espcie do que qualquer outra tecnologia blica jamais inventada. A massificao irresponsvel do cyber-hedonismo pode nos levar para bem perto do colapso da civilizao. Notas Juliet Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure, Basic, 1992. Opinies colhidas na revista The Economist, no artigo The Land of Leisure, 2/2/ 2006. O artigo em questo se intitula Television addiction is not a mere metaphor e foi produzido pelos professores Robert Kubey e Mihaly Csikszentmihalyi. Kubey atualmente professor na Rutgers University e diretor do The Center for Media Studies (www.mediastudies.rutgers.edu). Csikszentmihalyi professor de psicologia da Claremont Graduate University e fellow da American Academy of Arts and Sciences. 4 Davi Kushner, The Neopets Addiction, Wired, dezembro de 2005. 5 Entertainment addiction is dumbing down a generation posted y Seth Barnes. 6 Voc e seu clone virtual, revista poca, nmero 419. 7 Jean Baudrillard, Simulacres et simulations, 1981.
Esta uma expresso criada pelo economista e acadmico Edward Castronova, estudioso de jogos em seu livro Synthetic World, University of Chicago, 2005.
CAPTULO 14
Dizem que duas coisas so certas e inevitveis na vida: a morte e os impostos. Pois
bem, olhando o futuro nossa frente, fique certo de que mais uma coisa inevitvel: nossa vida ser cada vez mais complexa e interdependente. Calma. Ser mais complexo e mais interdependente no significa, necessariamente, que marchamos rumo a um mundo pior. Apesar de existerem pessoas que pensam dessa maneira. E no so poucas. Para explicar meu ponto de vista, necessito de uma breve retrospectiva. Acompanhe-me. A inveno da comunicao oral Iniciemos nosso flashback por volta de 100 mil a.C. Focalizemos um grupo de homindeos vivendo como caadores e coletores nmades que perambulam pelo continente africano. Sua existncia no muito diversa da de outros grupos de mamferos que tambm caam em bandos, como gorilas, chimpanzs etc. O cotidiano gira em torno de uma dura batalha por sobrevivncia, na qual os indivduos tm uma vida curta, subnutrida, sob constante estresse. De fato, pouca diferena havia entre esses nossos antepassados e os outros grupos de animais. At que alguns dos indivduos descobriram que uma habilidade natural comum a todos a articulao de uma grande multiplicidade de sons usando a garganta, a boca e o aparelho respiratrio poderia ser usada de uma forma altamente no natural. Sons especficos poderiam ser associados a objetos, coisas, situaes. Se boa parte dos indivduos do grupo concordasse em usar os mesmos sons para designar de forma consensual os mesmos objetos, coisas e situaes, poderiam se entender melhor para caar, para fugir, para pedir coisas. Alguns dos indivduos eram mais sbios e hbeis na capacidade de criar e assimilar a codificao de sons e coisas. Essa minoria criativa instigou a maioria do grupo a explorar as possibilidades dessa rudimentar comunicao em seu cotidiano. Assim, evoluindo de uma base simples, como a linguagem de Tarzan muito bem ilustra no clebre dilogo: mim Tarzan, voc Jane, esse grupo de homindeos liderado pela talentosa minoria criativa passou a diferenciar-se dos outros grupos de mamferos. Imagine a revoluo para os velhos indivduos do grupo da poca ao serem apresentados quela engenhosa criao da comunicao verbal. Quem no era capaz
de aprend-la estava fora das caadas, seria vtima mais fcil dos predadores, no conseguiria entender instrues para obter alimento e abrigo, e outras desvantagens do gnero. Mas o progresso continuou clere com os descendentes desses pioneiros criando cada vez mais complexidades em termos de linguagem. Os intelectuais, artistas, engenheiros e empreendedores da poca inventavam a gramtica, expandiam o vocabulrio de forma vertiginosa, criavam tempos verbais para poder apropriadamente expressar o que era passado e o que ainda seria futuro etc. Certamente foi a linguagem verbal que permitiu aos humanos primitivos darem o salto que foi ento, progressivamente, nos distinguindo, para sempre, dos nossos irmos animais. Mesmo que macacos, gorilas, chimpanzs, golfinhos e baleias tenham l uma linguagem, comparada que fomos desenvolvendo, a dessas espcies infinitamente menos sofisticada, portanto de um nvel de complexidade muito menor. A inveno da agricultura Nossos humanos primitivos conseguiram atravs da conquista da linguagem inventar um novo processo de sobreviver quando descobriram que poderiam cultivar espcies vegetais e domesticar animais. Graas intermediao da linguagem oral, que permitia classificar e explicar o como, quando e onde de cada tarefa a ser feita. Isso possibilitou uma forma mais eficiente de viver. A torturante fome, a crnica subnutrio foram vencidas exatamente pelos grupos de homindeos que, graas comunicao, se distanciavam mais e mais da vida natural dos outros animais. Mais segurana alimentar e mais tempo para outras tarefas. Mais tempo para reflexo, inveno ou simplesmente para a preguia. A inveno do comrcio Nesse contexto dos grupos que foram se fixando e produzindo de forma mais eficiente, comearam a se destacar indivduos mais inquietos que se dedicavam a pensar sobre novas e interessantes coisas que poderiam ser conseguidas de outros grupos sem a estressante violncia dos combates de saque. Esses indivduos notaram que existiam coisas que poderiam ser simplesmente trocadas de forma amigvel. Vencendo o medo e a desconfiana, arriscando na comunicao com estranhos ao seu grupo, esses indivduos tentaram trocar aquilo que em sua tribo era produo excedente. Nascia o comrcio baseado no escambo, isto , troca direta de mercadorias sem intermdio de dinheiro, que representou um enorme salto de complexidade na vida de nossos antepassados. O conforto de ter sobras para trocar trazia o desafio de negociar com outras tribos e grupos. Ponha-se no lugar dos escolhidos para ir ao mercado, para encontrar representantes de tribos e grupos, muitos deles com enorme grau de diversidade, para discutir como trocar peles, sementes, vasos etc. Lembre-se que tudo isso era feito sem dinheiro e sem apelar para as armas, portanto a linguagem se diversificava e se sofisticava cada vez mais. Mundo complexo aquele, no? Imagine
o pnico dos indivduos mais velhos, que nunca aprenderam completamente a comunicao com sons, ao ver os jovens negociando com estranhos. A inveno das cidades Alguns espertinhos resolveram ficar no local onde se realizava com certa freqncia o mercado de trocas e no retornar para o acampamento onde se fixavam os demais membros da tribo. Esses espertinhos sabiam que poderiam ter boas recompensas intermediando as operaes de escambo, sobretudo se conseguissem aumentar o nmero de grupos que convergiam para aquelas atividades. Isso. Voc adivinhou. Esses caras estavam inventando a cidade. E veja bem: a cidade foi, depois da agricultura e da linguagem oral, o terceiro grande salto da espcie humana. E a por volta de 10 mil a.C. tnhamos ento uma primeira grande cidade da humanidade: Ur, localizada no atual Iraque. Descoberta em 1687 esteve virtualmente fechada nos ltimos 20 anos aos visitantes e mesmo estudiosos pelo regime do ditador Saddam Hussein , Ur est sendo redescoberta desde 2004 graas a mtodos arqueolgicos que usam recursos de alta tecnologia pela primeira vez. Tudo leva a crer que Ur foi realmente o local onde se erigiu a primeira grande metrpole da humanidade, a qual, no perodo entre 2030 a.C e 1980 a.C., chegou a abrigar uma populao de 65 mil habitantes. Ur teria declinado a partir de 550 a.C. e, provavelmente, fora abandonada por volta do ano 500 a.C., talvez por questes de mudana climtica, isto , por causa da seca. As cidades foram a grande inveno da humanidade que permitiu aos humanos darem um salto civilizatrio. S o espao das cidades a chamada fbrica urbana poderia nutrir, fomentar e permitir a criao de sinergias de inovaes e aperfeioamento reunindo a ao colaborativa de milhares de seres humanos. As cidades, diferentemente do campo, traziam para o mesmo espao cotidiano talentos e recursos difceis de reunir no mundo rural no qual a agricultura era a mais desenvolvida das atividades. A inveno da linguagem escrita Foi no espao urbano que se deu um novo salto civilizatrio dos humanos, quando finalmente nossos antepassados comearam a criar a linguagem escrita. At ento, todo o conhecimento tinha de ser passado de forma verbal de gerao para gerao. Tudo leva a crer que foram os egpcios, o mais urbanizado e brilhante dos povos da Antiguidade, que, por volta de 3200 a.C., criaram e aperfeioaram o primeiro sistema de comunicao de linguagem escrita. Imagine quanta confuso. A complexidade da linguagem escrita criou um grande abismo entre os que sabiam ler e os que no sabiam, tendo vigorado durante quase quatro mil anos, indo at meados do sculo XIX, quando ento comearam os esforos dos governos para massificar entre seus cidados a habilidade de ler e escrever. Mas por que demorou tanto tempo a massificao da linguagem escrita? Simples. Os livros, ou seus antecessores, eram objetos carssimos, produzidos todos, sem
exceo, artesanalmente. Mesmo at a Idade Mdia, livros eram objetos de luxo feitos pelos copistas encerrados em mosteiros e abadias medievais. Saber ler era um privilgio, algo s justificado e acessvel para os nobres e religiosos. Tudo comeou a mudar quando, em 1447, Johannes Gutenberg (cerca de 1390-1468), um inventor e metalrgico alemo da cidade de Mainz, criou uma coisa chamada tipos mveis, que permitia reproduzir textos de forma muito mais rpida e mais barata do que a empregada pelos copistas. Os ventos do Renascimento A inveno da imprensa escrita chegou a acontecer na China quase 250 anos antes do feito de Gutenberg, mas sua massificao s ocorreu no contexto do Renascimento e foi sinergizada pelo florescimento do capitalismo ocidental e da expanso dos mercados. Na China Imperial daquela poca, as inovaes no eram processos validados pelo mercado ou por um conjunto maior de pessoas. Era um complicado processo autocrtico dependente da aprovao direta do imperador. E, no caso da impresso, o imperador no viu tanta vantagem em abrir um privilgio de poucos que estavam satisfeitos com os produtos dos copistas e, portanto, no via tantas vantagens no processo no artesanal de reproduo da linguagem escrita. No caso da Europa, a inveno de Gutenberg coincidiu com o esprito do Renascimento, com a acelerao da urbanizao, que criou o mercado consumidor da poca. Adicionalmente, a ocorrncia da Reforma Protestante criou uma demanda com sua poltica de incentivar as pessoas a lerem a Bblia em latim vulgar. At o Renascimento, a vida cotidiana da humanidade naquele mundo medieval era uma vida rural. No existia educao fora do mbito religioso ou da nobreza. As pessoas comuns, a grande massa, eram constitudas de camponeses que gravitavam 365 dias por ano em espaos geograficamente muito reduzidos. Pouqussimos eram os indivduos que se afastavam do entorno de suas casas, seja no dia-a-dia ou mesmo ao longo de toda sua existncia. Sobrevivendo de forma muito simples e frugal em comunidades praticamente auto-sustentveis, esses camponeses viviam num mundo onde a Igreja Catlica e a nobreza os amparavam e, ao mesmo tempo, os exploravam. Mas sua vida seguia presa em um tempo circular, marcado fundamentalmente pelo ciclo das estaes do ano. A mesma existncia, dia aps dia, dcada aps dcada, quase sculo aps sculo. Por mais de mil anos. At que comearam a soprar os ventos do Renascimento, os tempos que se seguiram ao final da Idade Mdia e que precederam a Reforma Protestante. Para operar nesse mundo, a grande maioria da humanidade no necessitava de novas informaes nem tampouco o dinheiro fazia parte das operaes de troca. Nesse contexto histrico, o estoque de conhecimento que o homem e a mulher comuns necessitavam era muito reduzido, se comparado aos tempos que se seguiram. Enfim, o mundo fechado cede lugar ao dinmico mundo urbano
A urbanizao e a quebra do monoplio religioso sobre o conhecimento so duas das principais foras que marcam a transio do mundo medieval para o mundo moderno que nos precedeu. Para operar no mundo das cidades, os humanos dos novos tempos necessitavam sempre aumentar seu estoque de informaes. Foi com o Renascimento que a percepo do senso comum acerca da passagem do tempo deixa de ser circular e passa a ser linear. A idia de progresso comea a tomar corpo. As cidades-Estado do norte da Itlia, Gnova, Florena, Veneza, inventam o capitalismo como forma de aumentar e circular a riqueza. Assim, comea a se delinear um mundo mais complexo e mais interdependente onde, para operar, necessrio ter mais informao e conhecimento. Para circular nesse meio ambiente humano de forma eficaz muito mais conveniente a informao na forma escrita. nesse ambiente que floresce a inveno de Gutenberg, como o computador. Dinheiro que circula cria riqueza. De forma anloga, informao que circula permite aumentar o estoque de conhecimento. Conhecimento que se amplia torna o ambiente humano mais complexo. Maior complexidade, maior necessidade de informao para operar. A simplicidade da vida medieval ficou para trs e o mundo rural ia cedendo lugar ao mundo das cidades onde tudo girava mais rpido. Adicionalmente inicia-se a poca das grandes navegaes, que permite humanidade descobrir um mundo muito maior e mais diverso do que se supunha. Porm, ainda assim, a maior velocidade com que a informao podia trafegar ainda era a velocidade da trao animal ou das caravelas impulsionadas pelos ventos martimos. A transmisso de informaes rompe a barreira da velocidade da trao animal e dos ventos Em 1825, mais uma vez o mundo dos humanos experimentou uma nova acelerao quando os limites da velocidade saltaram as barreiras da trao animal e dos ventos graas conjuno de trs grandes inovaes: a mquina a vapor, chamada locomotiva, o leito com trilhos de ao e as rodas de ao flangeadas (a flange a aba que tm as rodas dos carros ferrovirios). Foram essas criaes que deram origem ao sistema trem e estrada de ferro. Foi no dia 27 de setembro daquele ano que comeou a operar de forma comercial a primeira estrada de ferro projetada para transportar passageiros e carga em horrios regulares. Aquele foi um grande marco para a humanidade. Pela primeira vez, a Locomotiva n 1 da Stockton & Darlington Railway passou a cobrir, vrias vezes por dia, a distncia de 15 km entre Stockton-on-Tees e Darlington, na Inglaterra, em apenas 65 minutos, atingindo em alguns trechos a alucinante velocidade para aquela poca de 39 km/hora, puxando seis carros de carvo e mais 21 carros nos quais se distribuam 450 passageiros. Em poucos anos, a operao exitosa da primeira ferrovia foi sendo copiada e aperfeioada mundo afora. Isso significava que a informao poderia agora viajar de forma mais rpida e em maior volume; portanto, mais complexo e mais interdependente se tornava o mundo que nossos antepassados estavam nos legando.
As ferrovias foram o smbolo por excelncia da inovao e do progresso nos anos que se seguiram, por isso, no foi nenhuma coincidncia que a prxima grande inovao diruptiva acontecesse em contato com as estradas de ferro. Em 9 de abril de 1839 era inaugurado o primeiro telgrafo em Londres interligando por cabos as estaes de Paddington e West Drayton. Porm a promessa do telgrafo (fuso dos radicais gregos tele, distncia, e grafo, escrito) foi plenamente realizada atravs dos aperfeioamentos feitos pelo norte-americano Samuel Morse (1791-1872), que implementou, digamos assim, o hardware do telgrafo original e escreveu um novo software que convertia a linguagem escrita para um cdigo mais fcil para a transmisso eltrica. O primeiro telegrama de Morse foi em 1844, enviado de Washington, DC para Baltimore, com a mensagem: Que obra Deus fez? (What hath God wrought?). O feito se tornou ainda mais espetacular quando a primeira transmisso telegrfica transcontinental entre as Amricas e a Europa foi realizada com xito no dia 27 de julho de 1866. Antes disso, qualquer informao entre o Velho e o Novo Mundo por mar tinha sua velocidade limitada velocidade dos navios. At ento transporte e comunicao eram virtualmente sinnimos. Com o telgrafo, pela primeira vez na histria da humanidade, a velocidade da informao se descolava definitivamente, e para todo o sempre, dos limites prprios dos meios de transporte. Alm disso, pelo fato de a circulao da informao poder ser bidirecional, tinha-se da para frente a possibilidade de comunicao interativa a longa distncia em tempo real. Os numerosos sistemas pblicos e privados de pombos-correios existentes podiam finalmente ser aposentados. O aparecimento da primeira mdia de massa para a transmisso de informaes Como resultado das transformaes ao longo do sculo XIX, o mundo se tornava assim ainda mais complexo e interdependente. E mais populoso tambm, pois de acordo com estimativas feitas por demgrafos teramos cruzado a barreira do primeiro bilho de seres humanos vivendo sobre o planeta Terra no ano de 1802. (O patamar do segundo bilho foi atingido no ano de 1927.) Este primeiro bilho estava assim distribudo: 203 milhes na Europa, apenas sete milhes na Amrica do Norte, 809 milhes na sia, 110 milhes na frica e 24 milhes na Amrica Latina. As pessoas, sobretudo na Europa e na Amrica do Norte, demandavam, de forma crescente, informaes para poderem operar nesse ambiente de intensa inovao, pleno tanto de riscos quanto de oportunidades. Foi nesse contexto que apareceram e floresceram os jornais dirios, a primeira grande mdia de massa. O perodo entre 1860 e 1910 considerado por historiadores da mdia como sendo a era de ouro dos jornais. Por qu? O mercado de jornais cresceu naquela poca como cresce em nossos dias o mercado de computadores e acesso Internet. Esse crescimento era a combinao explosiva tanto de oferta quanto de demanda. Por um lado, a capacidade de oferta crescia graas aos avanos da tecnologia em impresso e comunicao e tambm por causa do aprimoramento e profissionalizao dos recursos humanos. Os primeiros
jornais eram no mais das vezes destinados a vocalizar a opinio poltico-partidria dos seus donos. Com a profissionalizao e especializao dos recursos humanos, a qualidade do produto aumentou drasticamente. Do lado da demanda, existia um crescente interesse das pessoas por mais informaes que lhes permitissem participar ativamente do admirvel mundo novo da industrializao da sociedade e conhecer os fatos e tendncias relevantes em economia, sociedade, poltica, bem como entretenimento, incluindo fofocas sobre celebridades internacionais, nacionais e locais. Mas no eram apenas as oportunidades econmicas e de negcios, nem as inovaes tecnolgicas e demogrficas que excitavam o interesse pblico trazendo cada vez mais e mais pessoas a demandar informaes para poder viver melhor. As melhores condies de vida e o poder aquisitivo das pessoas faziam com que essas desembarcassem em massa no mercado consumidor. Neste sentido, foram muito importantes os movimentos sociais, em especial os de cunho socialista e socialdemocrata, que foram progressivamente se fortalecendo a partir das revoltas de 1848 que se alastraram pela Europa. No processo de novos direitos conquistados, de melhoria dos rendimentos, foi emergindo aquilo que passaramos a designar como classe mdia. Esta se tornou o ator central do mercado de massa que cresceu de maneira vigorosa ao longo da primeira metade do sculo XX. A transmisso de informaes passa a no necessitar mais de um meio material No entanto, apesar de rpida, a transmisso da informao ainda era feita sempre por meio fsico, isto , o telgrafo ainda necessitava de um cabo para interligar os pontos de recepo e transmisso. Os sinais de inovao e de nova acelerao comeam a ficar visveis quando o engenheiro italiano Guglielmo Marconi (1874-1937) e o fsico alemo Karl Ferdinand Braun (1850-1918) so agraciados com o Prmio Nobel de Fsica em 1909 por suas contribuies ao desenvolvimento do telgrafo sem fio. O naufrgio do Titanic no ano de 1912 faz com que todos os navios passem a ser equipados com o telgrafo sem fio. O prximo salto ocorreu com as transmisses comerciais de rdio, que tiveram incio pela primeira vez na Argentina, no ano de 1920, com fins de entretenimento. Nesse mesmo ano, no dia 31 de agosto, foi transmitido o primeiro noticirio na cidade de Detroit, no estado de Michigan, EUA. Estava quebrado definitivamente o monoplio dos jornais como canal de mdia de massa. A mdia deixava assim de ser sinnimo de imprensa, que etimologicamente vem de imprensar, isto , imprimir graficamente. Estava inaugurada a era da mdia eletrnica. O avano da eletrnica, inicialmente cristalizado na vlvula, a qual passou a ser o elemento mais importante na massificao dos receptores de rdio, veio finalmente acalentar a idia de que seria possvel transmitir imagens em movimento da mesma forma que a voz humana era transmitida pelo rdio. A primeira transmisso de TV foi realizada em Londres, no ano de 1936, porm at 1945 existiam apenas sete mil receptores de TV em todos os EUA. Foi s aps o fim da Segunda Guerra Mundial que efetivamente se iniciou a era da TV. A partir da ocorreu um crescimento exponencial
do nmero de aparelhos de TV, primeiro nos EUA, e a seguir em todo o planeta. Hoje, mesmo em locais considerados pobres, o nmero de televisores maior do que o de geladeiras. A TV tornou-se o grande veculo de massa a fornecer informaes para que as pessoas passassem a participar desse nosso admirvel mundo novo. O telefone na histria da comunicao A comunicao pessoal entre os indivduos era tradicionalmente restrita alternativa de cartas, enviadas pelo correio ou atravs de um portador privado, at a inveno do telefone, que permitiu aos indivduos se comunicarem a distncia e em tempo real. Esse meio de comunicao foi patenteado por Alexander Graham Bell no ano de 1870, porm os primeiros sistemas s vieram a entrar em operao a partir de 1877. Mas j em 1880 existiam 47.900 aparelhos em funcionamento nos EUA. A partir da, a malha de servio de telefonia foi sendo expandida e mais tarde integrada globalmente usando links de tecnologias mais recentes, como microondas e satlites. Foram transcorridos mais de cem anos para que uma nova tecnologia de telefonia chegasse ao mercado: a tecnologia celular. Introduzida no mercado de massa nos anos 1990, seu crescimento tem sido to avassalador que o nmero de aparelhos celulares dever ultrapassar ainda nesta dcada o nmero de aparelhos conectados ao sistema fixo (cabo) de telefonia. Os fabricantes de celular estimam que em 2015 sero 4,5 bilhes de celulares no planeta. Entra em cena a grande rede A Guerra Fria teve incio logo aps o final da Segunda Guerra Mundial e reuniu, de um lado, sob a liderana dos EUA, os pases democrticos do Ocidente favorveis economia de mercado; e de outro, sob o comando da URSS, os pases formalmente favorveis ao socialismo. Felizmente, o desfecho desse conflito no foi a conflagrao nuclear que toda a humanidade temia: no dia 9 de novembro de 1989 caiu o Muro de Berlim, data simbolicamente considerada como o final da Guerra Fria. A partir da at a dissoluo da URSS em 1991, povos de todas as naes sentiram-se aliviados e ento foram sendo liberadas enormes quantidades de recursos oramentrios mobilizados por governos e energias da humanidade, sobretudo o talento de inventores, tcnicos, fsicos, engenheiros nos EUA e outros pases da Europa que vinham sendo canalizados para desenvolver tecnologias aplicveis indstria blica e de defesa. A relocao desses recursos para criar novos produtos e servios deslanchou nos anos da dcada de 1990. Essa foi uma dcada de indescritvel progresso tecnolgico, de inovao e de empreendedorismo que ainda no foi reconhecida como tal. Nessa dcada, grandes pensadores, como Peter Drucker, autor e consultor de administrao, perceberam que a humanidade estava comeando a deixar o mundo da civilizao ps-industrial e a ingressar em uma nova etapa a qual comearam a chamar de Sociedade do Conhecimento. Por qu? At os anos 1980, o computador era uma tecnologia acessvel apenas a grandes corporaes, universidades e governos. As potencialidades do uso do computador
estavam distantes das pessoas, das pequenas e microempresas, que so na verdade as grandes geradoras de empregos e postos de trabalho de qualquer sociedade, mesmo nos pases mais ricos. Foi com o advento do PC, computador pessoal, no comeo dos anos 1980, que o computador comeou a fazer sua entrada no cotidiano da sociedade e, de forma vertiginosa, em meados dos anos 1990, tornou-se ubquo em nossas vidas. Simultaneamente ao impulso que a informtica tomou nos anos 1990, juntou-se o progresso das aplicaes em telecomunicaes que foram relocadas da Guerra Fria para as aplicaes no mercado corporativo civil. Da integrao da informtica com telecomunicaes apareceu essa ferramenta fantstica que passamos a chamar de Tecnologia da Informao. Por sua vez, o processo de interligao do computador pessoal com a capilaridade da estrutura telefnica, amadurecido na segunda metade dos anos 1990, levou a Internet at ento uma rede ligando pesquisadores acadmicos, rgos de governos e empresas para dentro de nossas vidas de uma forma avassaladora. O aparecimento da World Wide Web, ou simplesmente Web, se tornou visvel para a sociedade como um todo a partir de 1996. No imediatamente, mas aos poucos foi ficando claro para uma parte da humanidade que um novo salto estava sendo dado em termos civilizatrios. A Tecnologia da Informao, para o bem e para o mal, abria novos e admirveis tempos. Hoje, similarmente ao encontro que se deu entre informtica e telecomunicaes, estamos no limiar de uma nova convergncia tecnolgica que far com que virtualmente todos os 6,5 bilhes de seres humanos estejam muito prximos de ter acesso a essa grande rede: a superestrada digital da informao. Essa convergncia se dar com a integrao da rede de computadores que j navega a Web com, simultaneamente, os canais provedores e os receptores de televiso digital e os operadores e aparelhos de telefonia celular. Isso acontecer de forma extremamente rpida ao longo da presente dcada. Quando essa imensa rede estiver toda conectada, o acesso Web ser praticamente possvel para todos os seres humanos em seu cotidiano. Evidentemente este ser j na verdade! um mundo infinitamente mais complexo e interdependente do que o que nossos pais e nossos avs nos legaram. Passaremos a ser todos, simultaneamente, consumidores e produtores ativos de informao. Mais do que isso: de conhecimento. Como foi relatado, a Renascena se deu quando as pessoas saram dos campos e foram para as cidades, quando o conhecimento deixou de ser monopolizado pelos mosteiros, pelos religiosos e pelos nobres. O mundo medieval fechado, de tempo cclico e virtualmente esttico, implodiu e deu lugar a um horizonte de incertezas e mudanas aceleradas. O comeo de algo muito grande: a Renascena Digital como uma exploso cambriana de criatividade De forma anloga, parece que estamos embarcando em uma nova Renascena. Qual a melhor designao para essa era na qual estamos ainda nos portais?
Sociedade do Conhecimento? Era de Aqurios? Sociedade Digital Global? As oportunidades so incomensurveis. Porm os riscos so igualmente tremendos. Tendo como principal estrutura a superestrada digital de informao, estaremos avanando tremendamente como civilizao caso tenhamos a sorte de desenvolver um nvel produtivo mais sustentvel do ponto de vista ambiental e que tambm oferea s pessoas, independentemente de raa, credo, nacionalidade ou posio social, maior acessibilidade em termos de oportunidade de realizaes, tanto em termos de mercado quanto de interesse e significado pessoal. Se entendermos o que uma rede de comunicao e acessibilidade pode fazer por um pas, poderemos antever o que a grande rede digital far com nossa sociedade global. Um bom exemplo neste sentido foram as observaes feitas h quase dois sculos por Alexis de Tocqueville (18051859), o grande pensador e historiador francs, em seu clssico A democracia na Amrica. Escrito com base em suas observaes ao visitar os Estados Unidos em 1831, Tocqueville afirmou: A Amrica o pas que goza da maior soma de prosperidade at agora atribuda a uma nao, tambm um pas que, proporcionalmente a sua idade e meios, realizou os maiores esforos para tornar a comunicao fcil... uma das primeiras coisas realizadas em um novo Estado estabelecer os meios para a chegada do correio. Nas florestas do Michigan no existe uma cabana to isolada, um vale to selvagem, que no receba cartas e jornais pelo menos uma vez por semana. Testemunhamos isso... [Os americanos so] empreendedores que sentem a necessidade de meios de comunicao com vivacidade, e os utilizam com ardor (...). De todos os pases do mundo a Amrica um dos que o movimento de pensamento e da atividade humana o mais contnuo e rpido. Ao comparar os estados sulistas com o restante dos EUA, Tocqueville afirmava que onde a comunicao menos fcil, [por isso os estados sulistas] so menos vigorosos se comparados aos demais [estados do norte]. 1 Sucessivas levas civilizatrias do Homo sapiens tm elevado tanto o nvel de complexidade quanto de interdependncia do convvio humano. Fizemos uma longa jornada desde os tempos em que ramos parte de uma espcie diversa na forma de bandos de homindeos at os dias do comeo da implementao da superestrada digital de informao e conhecimento. Temos uma infra-estrutura que ainda vamos aprender coletiva e individualmente a usar. A Renascena Digital o portal de entrada da Sociedade Digital Global. O uso de e-mail, de blogs, wikis, de portais e sites que tornam possvel o compartilhamento de bases de dados, de informaes e conhecimento contendo textos, imagens, sons digitalizados crescer exponencialmente e de forma ininterrupta, como j vem acontecendo desde a dcada de 1990. Isto ir acelerar processos de criao participativa independentemente da localizao geogrfica das pessoas e organizaes com uma fora e um vigor extraordinrios, s possibilitados pelo aparecimento da Internet. Para onde vamos exatamente muito cedo ainda ousar afirmar. Mas ser um mundo mais complexo e mais interdependente. Alguns autores fazem predies preocupantes e negativas. Outros se mostram cnicos ou cticos. Porm alguns autores visionrios arriscam a fazer previses
auspiciosas, como, por exemplo, o consultor e estrategista Paul Saffo.2 Paul um dos diretores do Instituto para o Futuro, uma instituio tipo think-tank (tanque-de-pensar) sediada na Califrnia que lana mo de uma analogia para afirmar que, nas prximas dcadas, a humanidade dever experimentar uma exploso cambriana de criatividade. A Era Cambriana, explica ele, foi um perodo da histria da Terra, ocorrido 539 milhes de anos atrs, no qual ocorreu a mais intensa proliferao de espcies biolgicas, uma florescncia de expressiva diversidade. O Cambriano foi justamente o perodo em que a vida biolgica no planeta, enquanto processo evolutivo, deu um tremendo salto tanto em termos de complexidade quanto de diversidade. Tudo leva a crer que foi nesse perodo que apareceram os organismos multicelulares. At ento, acreditam os cientistas, o mundo era povoado apenas por formas monocelulares. Por essa razo, a chamada exploso cambriana exerce uma enorme fascinao no s sobre os cientistas, mas tambm sobre qualquer um que dela oua falar. Fazendo uso dessa analogia, Paul Saffo ousa afirmar que estamos entrando numa era de riqueza cultural e abundante de escolhas como nunca vimos antes na Histria da Humanidade, sobretudo pela capacidade de fomentar intensamente a emergncia de uma cultura participativa. Um exemplo? Voc provavelmente j ouviu falar da Wikipedia, uma fantstica enciclopdia na Internet na qual as pessoas so os prprios editores. A Wiki viria das iniciais da frase em ingls What I Know Is... (O que eu sei ...) ou, de acordo com outras fontes, viria da palavra wiki em havaiano, que significa rpido. A Wikipedia j deixou longe a Encyclopaedia Britannica em termos de tamanho e cresce exponencialmente, e hoje um dos mais consultados portais da Internet. A qualidade tambm tem sido auditada por fontes confiveis e constatou-se que a Wikipedia, por causa do permanente uso de dezenas de milhes de pessoas que a consultam e corrigem, tem apenas um tero a mais que as incorrees anotadas na prpria Britannica. Sendo assim, vale a pena correr os riscos. Os milhes e milhes de usurios tm seus territrios de monitorao permanente para detectar inexatides e fraudes. Mas a Wikipedia um exemplo de um gnero colaborativo existente na Internet. Centenas de outros wikis esto em andamento e outros sendo iniciados na Internet como processos de criao coletiva participativa e de compartilhamento intelectual. Esses colaborativos renem o conhecimento de milhares de experts que operam, nutrem e criam novos bancos de conhecimento humano disponibilizados online. Acessvel a qualquer leigo. Sem muralhas. Sem pagamento de ingresso. Sem horrios de funcionamento. Cada vez mais, no nosso dia-a-dia, precisaremos de mais informaes, dados e conhecimento estocado em algum canto da Web. Mesmo as antigas e confiveis fontes, como os jornais, revistas especializadas e enciclopdias esto tendo que se reinventar para no se tornarem fontes estagnadas, e todos esses veculos procuram acertar o passo com a Web. Quem no se conectar no sobreviver. Alm dos wikis, os blogs so outro tipo de comunidades da Internet que esto se disseminando como cogumelos no campo depois de chuva de vero. Os blogs tambm
traduzem o incio dessa gigantesca transformao social: o desejo de participar e no meramente mais assistir passivamente, como nas eras de ouro de TV, jornal e rdio. Essa transformao vai arrombar a cidadela do sistema de massificao que teve seu auge entre as dcadas de 1960 e 1990, cujo principal cone era a TV. E isso vai revolucionar nossa civilizao. Quer ver por qu? O esprito da transio na Renascena Digital: em busca do equilbrio entre a massificao e a fragmentao At antes do advento da Web, nos tempos em que a TV reinava soberana entre todos os veculos de mdia, parecia haver poucas dvidas de que a humanidade seguiria inexoravelmente uma vocao massificao, tendncia apresentada pelas modernas sociedades de consumo de padronizar gostos, hbitos, opinies, valores. No entanto, quando a Web comeou a ganhar visibilidade pblica na metade dos anos 1990, parece ter havido um ponto de inflexo na massificao que a humanidade foi progressivamente vivenciando ao longo do sculo XX. O monitor de TV ainda ubquo, mas o tempo que se consagra a assistir passivamente TV, absorvendo as mensagens emitidas pelos grandes produtores de contedo massificado, vai sendo substitudo por outros hbitos: a navegao individualizada e interativa. Quanto mais novo o indivduo, menos tempo dedicado TV e mais tempo dedicado Internet. E com isso a mdia de massa, que desenvolveu e prevaleceu no sculo XX, vai sendo substituda pela mdia pessoal. Parece que o consumo de contedo homogneo e homogeneizador, tpico dos tempos da TV soberana, era aceito pela imensa maioria por no existirem muitas alternativas. Com a infinidade de canais de navegao existentes na Web, cada um elege um leque de opes muito mais personalizado. Alm disso, no obstante a diversidade de opes de contedo, a Web vai se tornando cada vez mais participativa e colaborativa. As pessoas no se limitam a ser espectadores, consumidores passivos de informao e contedo. Na Web, voc participa do show. Cada vez mais as pessoas so produtores e criadores. O mundo do sculo passado em termos de comunicao tinha a seguinte configurao: de um lado estavam os poucos e grandes emissores de mensagem; de outro, aqueles bilhes de seres humanos, na condio de passivos consumidores de contedo. Esse mundo est em metamorfose e vai se transformando cada vez mais aceleradamente. Milhares e pequenos em rede estaro se associando para produzir e criar mais contedos, conhecimento e valor. Grandes emissores continuaro existindo, porm tm que entender a nova lgica de um mundo onde os indivduos no esto passivos. Pelo contrrio. Os grandes emissores se sentiro como se estivessem jogando xadrez de bruxo. Neste jogo, sabem aqueles que leram Harry Potter, as peas tm vontade prpria. Portanto, o jogo um complexo colaborativo. A propenso massificao comea a ser compensada pela fragmentao. Mas
isso, por si s, no necessariamente bom. A massificao exagerada um problema, pois gera empobrecimento cultural ao homogeneizar excessivamente o pblico. Mas tem tambm o lado positivo: a criao de uma base comum para a humanidade. Essa base comum, ou commons, como dizem os cientistas sociais, o patrimnio compartilhado pela comunidade dos humanos que nos d proximidade. Da mesma forma que respeitamos como bem comum uma rua ou uma praa como espao pblico, ou ento o meio ambiente, como mares, rios, e temos um sistema de responsabilidade e manuteno de um bem que, se destrudo, todos sero prejudicados. A fragmentao que estamos comeando a experimentar, por outro lado, se extremada, produzir a destruio dos commons e far com que revertamos ao estado tribal, em que os grupos se estranhavam mais do que cooperavam. Vamos ter de achar um meio-termo entre a massificao e a individualizao, para que criemos mundos com pontos de contato entre os diversos territrios. Nos anos que esto por vir vai ser como andar no fio da navalha. A travessia em direo Sociedade Digital Global deve ser o caminho que conduz Sociedade do Conhecimento. A Sociedade do Conhecimento uma associao global de pessoas com interesses similares que procuram fazer uso efetivo do conhecimento especfico de sua rea de interesse ou expertise e, atravs de um processo de interao com outras pessoas de reas e expertise diversas, produzem mais conhecimento. Dentro desse contexto, estamos condenados a demolir todos os muros que possam colocar em isolamento indivduos, sejam em guetos, classes sociais, tribos, naes. Outra rota leva provavelmente barbrie. Na biologia no existem indivduos blindados. Vida processo de troca, de simbiose. As membranas que envolvem as clulas tm um grau de permeabilidade, sem essa capacidade de troca, ocorre a morte. Para navegarmos os tempos mais complexos do futuro que se abre nossa frente, eu, voc, cada indivduo vai precisar se alimentar de informaes de maneira especializada e diversa. Cada indivduo dever ter que buscar montar a sua dieta individualizada de conhecimento. Claro que teremos necessidade de commons, porm os graus de diversidade de estilos de vida, de anseios de realizao pessoais sero extremamente diversos. Assim, no nos bastar assistir TV ou ler jornais para nos informar sobre as diversas facetas do meio ambiente artificial resultante da vida humana em sociedade: a poltica, a economia, minha cidade, meu bairro, o tempo (meteorologia), como devo planejar meu progresso na educao, meus destinos de frias, a diversificao de minhas economias, a gesto de meu bem-estar e sade etc., etc. Para montar meu pacote de conhecimento, precisarei estabelecer minha dieta de informao. E, para isso, necessitarei de montar minha mdia pessoal. Terei de acessar os provedores de informao, base de dados e de conhecimento, pblicos, privados, ONGs, imprensa tradicional, redes, experts etc. assim que vamos em direo a um futuro. Mais global, predominantemente mais digital, infinitamente mais complexo e mais interdependente. O mundo cada vez mais parecido com a catica Internet. E a Internet cada vez mais parecida com a cara de
nosso mundo e de cada um de ns. Apavorado? No fique! apenas uma nova era. O quadro abaixo retrata esquematicamente as caractersticas das duas sociedades entre as quais estamos transitando na Renascena Digital. Faz sentido para voc?
Notas Alexis de Tocqueville, A democracia na Amrica, So Paulo, Itatiaia, 1998. 2 Conforme entrevista concedida revista The Economist, no suplemento especial A Survey of new media, 22 de abril de 2006. 3 Esse quadro tem inspirao em proposta originalmente concebida por Paul Saffo, em texto de sua autoria disponvel em seu site www.saffo.com, intitulado Farewell Information, its a Media Age, e que incorpora minhas prprias concepes. 4 No dia 30 de abril de 1993, O CERN, Organizao Europia para a Pesquisa Nuclear, tornou pblicos a arquitetura e protocolos em hardware e software para serem adotados de forma voluntria por todos aqueles, indivduos e organizaes, pblicas e privadas, sem restries geogrficas, interessados em participar da rede de computadores interligados globalmente.
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CAPTULO 15
chamado popularmente de TGV (train grand vitesse), que permite velocidades operacionais de 320 km/hora, vem sendo utilizado mais e mais como um transporte cotidiano. Segundo a SNFC, empresa ferroviria estatal que administra o TGV, dezenas de pessoas moram em Lyon e trabalham em Paris, pois com esse meio de transporte possvel realizar esse trajeto de 463 km em apenas duas horas. O TGV entrou em operao em 1981 e vem conquistando desde ento uma reputao de meio de transporte de massa extremamente rpido e seguro, que at hoje no registrou uma nica vtima fatal. O servio vem sendo progressivamente estendido a outras regies da Frana de maneira tal que muitos especialistas em planejamento urbano e de transporte costumam dizer que com o TGV criou-se um novo anel de suburbanizao no entorno de Paris com um raio entre 200/300 km. Esta regio seria a Paris Metropolitana do sculo XXI. De forma similar, o deslocamento pendular cotidiano casa-trabalho para indivduos mais singulares, em termos de renda e de necessidades profissionais, como artistas e executivos, pode ser realizado de forma ainda mais eficiente por meio do transporte areo. Desde os anos 1990, no so mais to incomuns os viajantes que realizam deslocamentos cotidianos nas linhas de ponte area, isto , nas rotas de menos de uma hora de vo em que o servio corre continuamente em hor rios regulares. Mesmo em pases emergentes isso j freqente. Por exemplo, existem muitos indivduos que fazem com regularidade quase cotidiana o deslocamento entre Rio de Janeiro e So Paulo, distantes 450 km de distncia, em 35 minutos. Os avies e os trens de alta velocidade, ao se transformarem em ferramentas de mobilidade de muita gente, esto esticando ainda mais o mapa do cotidiano da espcie humana. Este mapa tem um raio impensvel para os indivduos do sculo XIX. Guardadas as devidas propores, seria to espantoso quanto hoje pensarmos em morar em NY e trabalhar em Paris. No entanto o tempo no pra e o operoso Homo sapiens tornou disponvel e vem popularizando desde a virada do sculo a mais extraordinria das ferramentas de comunicao: a Web. A Internet, mesmo ainda na infncia da grande rede que ir maturando ao longo da Renascena Digital, j substitui muitas das necessidades de mobilidade fsica pela inacreditvel capacidade de acessibilidade virtual. Com a Web mais e mais pessoas vo percebendo que uma nova dimenso vai sendo incorporada ao cotidiano humano no planeta Terra. Essa geografia chamada por muitos de ciberespao e, com essa nova dimenso, nossa geografia do cotidiano passa a ter a prpria extenso do planeta. A nova geografia criada pelo ciberespao Enquanto escrevo este captulo, na tela do computador em quetrabalho j piscaram os alertas de diversos e-mails que me chegaram de diferentes partes do mundo. Amigos e colegas de trabalho que residem ou esto em trnsito em outras partes do mundo interagem comigo, enquanto estou sentado em minha mesa de trabalho no Rio de Janeiro. Chegam tanto mensagens relacionadas ao meu trabalho, quanto relacionadas s minhas relaes pessoais e afetivas. Podem ser de colegas das Naes Unidas que trabalham na Monglia, ou mensagens de clientes empresariais da
Coria do Sul. Podem ser amigos de Amsterd ou, quem sabe, conhecidos franceses que gostariam de permutar seu apartamento de Paris com o meu no Rio de Janeiro no perodo de frias escolares de nossos respectivos filhos. Tudo isso compe um mapa novo de minha geografia humana que seria impensvel antes do advento da Internet. A possibilidade de ter informaes de longas distncias era um privilgio de reis e de nobres at bem pouco tempo atrs. Uma das melhores ilustraes da fora desse tipo de privilgio o que teria sucedido a Nathan Rothschild (1777-1836). Este era um dos membros da famosa, rica e legendria famlia europia-judia de banqueiros da qual se dizia em 1841 que s existe um grande poder na Europa e este Rothschild. Nathan teria feito um aumento considervel de sua fortuna por ter apostado especulativamente em ttulos do governo ingls, porque teve em primeira mo, atravs de seu sistema de pombo-correio particular, a notcia da vitria do Duque de Wellington (1769-1852) sobre Napoleo (1769-1821) na batalha de Waterloo, realizada no dia 18 de junho de 1815. Se esse fato ou no verdico, pouco importa. Ele apenas ilustra que saber o progresso dos acontecimentos a algumas centenas de quilmetros era uma prerrogativa de um diminuto grupo de seres humanos sobre o planeta Terra. Ao longo de sculo XX, as pessoas que moram em grandes cidades pelo mundo afora, para operacionalizar sua vida cotidiana, se acostumaram a mentalizar os mapas de suas metrpoles dando um destaque especial rede de transporte. Por exemplo, os mapas de metr de Londres, Paris e Nova York esto impressos tanto na mente dos moradores dessas cidades quanto em cartes-postais ou t-shirts, por exemplo, que os turistas gostam de levar como suvenir. Dificilmente quem mora em cidade que tem metr desconhece a estao mais prxima de sua residncia. Porm novos mapas de cotidianos esto se formando, em especial com o advento da Internet banda larga. Desde ento, muita gente j no se referencia e nem se condiciona pelas barreiras da distncia da geografia fsica em termos de cotidiano, trabalho e vida pessoal. No estamos mais agrilhoados dimenso geogrfica do planeta Terra. O aumento da penetrao da Internet banda larga nas empresas, governos e residncias vai implodindo essas barreiras. A geografia humana, tanto no plano individual quanto coletivo, vai sendo reorganizada. Como analogia, talvez estejamos fazendo com nosso universo humano algo semelhante ao que foi feito por Einstein ao implodir o espao euclidiano e propor uma nova compreenso completamente no intuitiva de espao-tempo representada pela concepo de universo baseada em geometria no-euclidiana. A Web est trazendo uma nova dimenso para a civilizao humana no planeta Terra da mesma forma que pioneiros como o veneziano Marco Polo (1254-1324), que trouxe para os europeus que emergiam dos tempos imveis da Idade Mdia uma perspectiva mais ampla de mundo apontando para um Oriente cheio de vitalidade, riquezas e diversidade. Como conseqncia da praticidade e das vantagens do uso dessa geografia que mistura mobilidade e acessibilidade, mais e mais de nosso tempo seja trabalhando, nos divertindo ou simplesmente socializando com amigos e conhecidos ser despendido na frente da tela do computador ou de outros dispositivos de acesso Internet. um sistema de navegao simples para o usurio,
apesar de alta complexidade do ponto de vista da navegao que bits e bytes realizam no ciberespao fazendo viagens velocidade da luz atravs de uma sofisticada e complexa infra-estrutura compreendendo fibras pticas, satlites, microondas, servidores, roteadores, cabos e centrais telefnicas. A facilidade e o barateamento do uso da Internet traro nas prximas duas dcadas toda a humanidade para um convvio cotidiano virtual. Afinal, a Internet quebra e quebrar mais e mais barreiras tambm para os indivduos, da mesma forma que as empresas transnacionais j no vem barreiras entre pases. Vamos descobrir que fazemos parte, como jamais houve, de uma humanidade que habita uma comunidade global tambm no dia-a-dia. nesse novo mundo, no qual estamos entrando como pioneiros, que vivero, inteiramente vontade, nossos netos. O mundo da Sociedade Digital Global. Com a Web, os indivduos passam a cultivar as relaes internacionais pessoais e profissionais e assim tornam sua vida globalizada Neste comeo de milnio, temos uma populao de 6,5 bilhes de habitantes, dos quais aproximadamente um bilho faz parte da Unio Europia e da Amrica do Norte, Austrlia, Nova Zelndia e Japo. Essas regies funcionam como plos atratores de pessoas interessadas em melhores oportunidades de trabalho e aperfeioamento, tendo atrado at o momento um montante de 200 milhes de imigrantes egressos de pases emergentes.1 Atravs da histria da humanidade, o fenmeno da migrao tem representado a corajosa expresso de vontade individual de vencer a adversidade e buscar uma vida melhor.2 Quem dentre os moradores dos pases emergentes ou dos pases menos desenvolvidos no ter tido, pelo menos por um breve momento em sua vida, um pensamento, ainda que rpido, uma cogitao, acerca de imigrar para os plos atratores? Os desequilbrios e assimetrias entre povos, naes e continentes sempre existiram. No entanto, por causa da comunicao global, as pessoas tm conhecimento de novas oportunidades e de vantagens que esto disposio, em especial para aqueles que vivem nos plos atratores. Com isso, a presso migratria tender a aumentar ainda mais. Essa tendncia altamente problemtica tanto para as sociedades dos plos atratores quanto para os pases que so deixados para trs. Este aumento, nas dcadas que esto por vir, poder acarretar srios problemas. Precisamos reverter essa assimetria e dar melhores condies de prosperidade s sociedades dos pases emergentes e dos pases em desenvolvimento. No ser por meio de legislao xenfoba ou de muros que reverteremos a atual presso migratria. A Internet, como um meio de acessibilidade virtual somado ao desenvolvimento da logstica e transporte, poder estabelecer uma nova geografia capaz de reverter essa presso migratria e permitir que a humanidade globalizada encontre um ponto de equilbrio mais sustentvel, tanto do ponto de vista dos indivduos quanto do das sociedades nacionais e regionais.
A humanidade, na forma de coletividades nacionais, vem aprendendo ao longo dos sculos a conviver internacionalmente. verdade que a duras penas. Porm temos feito avanos importantes. Empresas se vem cada vez mais como atores transnacionais, e os pases terminaram, de forma praticamente unnime, por adotar uma perspectiva multilateral ao longo do sculo XX. Temos, sim, perspectivas positivas de aumentar a interdependncia entre sociedades, naes e negcios. A humanidade da metade do sculo XXI dever ser uma sociedade de indivduos de atitude e expresso fortemente globalizadas, em termos pessoais, sociais e profissionais, para os quais as fronteiras nacionais devero ser como so hoje as fronteiras entre cidades e estados dentro de um pas: demarcaes as quais pouca gente se d conta quando cruzam. Efetivamente os indivduos que se prepararem desde cedo para serem atores globalizados devero colher recompensas maiores do que aqueles que se sentem desconfortveis em reconhecer o mrito desta nova perspectiva. Pagaro caro os indivduos relutantes, os que tm mais dificuldade em apreender essa nova dimenso da humanidade, aqueles que no procurarem se reciclar e se preparar para essa nova perspectiva. Sero como os que se recusavam a aprender a ler quando a alfabetizao de massa comeou a ser impulsionada na metade do sculo XX pelos governos. Quanto mais indivduos despreparados para exercer plenamente uma atitude globalizada, mais perderemos espao para a intolerncia, para o terrorismo, para lderes demaggicos; e menos capacidade teremos de resolver os graves desafios ambientais que desconhecem barreiras abstratas criadas pela humanidade. Como nos preparar para uma tarefa de tal envergadura? A primeira barreira a superar a da lngua. Neste sentido, o esperanto foi uma tentativa bem-intencionada que no deu certo. Proposta e criada em 1887 por Ludwig Lazar Zamenhof (18591917), um mdico polons visionrio, como uma lngua artificial concebida para ser aprendida de forma rpida e simples, o esperanto jamais conseguiu ser mais do que uma gota dgua na Babel lingstica planetria. O ingls tornou-se o esperanto que deu certo. E se voc no se tornou fluente, procure pelo menos ler e escrever o suficiente para usar a Internet. Nas dcadas a seguir, os puristas de suas lnguas procuraro criar barreias e mais barreiras, temerosos da contaminao que o ingls possa infligir s suas lnguas e culturas nativas. Ser intil. Em termos lingsticos, o mundo dever caminhar para uma realidade semelhante existente hoje na Holanda, onde cada pessoa domina pelo menos duas lnguas: a local, o holands no caso, e a internacional, o ingls, evidentemente. Pessoas encapsuladas em apenas uma nica lngua sero cada vez em nmero mais reduzido. Muitas das relaes de trabalho, em especial aquelas mais rentveis, sero progressivamente descorrelacionadas da geografia local. Com a disseminao das conexes banda larga, o seu endereo que importa seu e-mail ou IP (Internet Protocol address), que o nmero que sinaliza sua localizao quando conectado Internet. Por exemplo, muitos dos anncios classificados de oportunidades de trabalho e mesmo empregos da revista The Economist, a mais influente das revistas corporativas internacionais, j procuram candidatos at mesmo para cargos de diretoria para trabalharem sem especificar
qualquer exigncia de residncia. Os servios exigiro muito deslocamento sem padro de regularidade, e o mais importante, alm da disponibilidade para os mesmos, a alta proficincia no uso de computador com acesso Internet banda larga. No importa onde o candidato ir morar, apenas espera-se que ele cumpra as metas e os objetivos estabelecidos. Outros exemplos? Desde metade dos anos 1990, algumas das grandes empresas de consultoria transnacionais j no designam sequer salas para seus executivos. Esses profissionais trabalham a maior parte do tempo em suas prprias casas e em escritrios de clientes. Com seus notebooks e acesso rpido Internet, esto sempre conectados com suas empresas e seus colegas. Quando precisam trabalhar alguns dias na sede da prpria empresa, devem fazer reserva antecipada e check-in ao se apresentar nas empresas, como se as mesmas fossem hotis. Nos anos que esto por vir, como contraponto diminuio do emprego tradicional como vnculo dominante de relacionamento indivduos organizaes, veremos surgir uma enorme diversidade de estilos de vida e de contrato entre pessoas e organizaes. E as oportunidades de trabalho no devero conhecer barreiras. Se as empresas encontram toda a sorte de facilidade para se globalizarem, por que, ento, os indivduos devero enfrentar uma situao diversa? Os terceirizados, os part-time, iro crescer em nmero explosivo. Dever aumentar o exrcito dos bingeworkers, isto , os trabalhadores que tm jornada de trabalho ultraflexveis e no se incomodam de varar as noites no escritrio, nem tampouco trabalhar meses seguidos sem tirar frias. Alis, esses profissionais no so na verdade workaholic (viciados em trabalho). Os bingeworkers buscam padro de satisfao de vida pessoal alto e no so meros freelancers. Procuram mais realizao do que mera remunerao. So uma espcie de comandos. Quando terminam uma misso, saem de frias por perodos mais longos e vrias vezes por ano.3 Por tudo isso, precisamos descontruir as fronteiras. interessante notar que os imigrantes desse comeo de sculo da infncia da Sociedade Digital Global j no so mais isolados e distantes de suas comunidades de origem como antigamente. Pelo contrrio. Com os custos da telefonia se tornando cada vez mais baixos, com os vos areos mais baratos, regulares e convenientes, o contato com parentes e amigos no mais uma barreira quase intransponvel que levava as pessoas a se distanciarem e a perder seus elos. Mais do que antigamente, os imigrantes atuais cultivam a esperana e os planos de voltar em condies melhores para, por exemplo, abrir seu prprio negcio. Mas no apenas o trabalho uma fora que leva as pessoas a se globalizarem. Em termos de vida pessoal, j existe muita gente que cultiva uma comunidade global de amigos e colegas. A Internet permite que surjam novos focos de interesse comum que podem ser desenvolvidos e nutridos sem que haja necessidade de deslocamento freqente. Antigamente nossa comunidade era o nosso bairro. Hoje, alm de nosso bairro, nossas comunidades so os nossos interesses coletivos com outros seres humanos, estejam onde estiverem. Nossa geografia ser definida pelo estilo de vida e pelos temas em torno dos quais desejamos construir mais significado em nossa existncia.
De certa forma todos esses grupos sociais e pessoas so ainda pioneiros. Representam uma tendncia altamente positiva de estimular uma sociedade global mais capaz de confraternizar independentemente de etnias, nacionalidades, governos e credos religiosos. Esses pioneiros costumam se sentir em casa em qualquer lugar do planeta. So uma espcie de embaixadores dos novos tempos da Sociedade Digital Global. Fazem parte ativa de uma vanguarda capaz de transformar os desafios da crescente complexidade e interdependncia em um caminho vivel para a humanidade nas dcadas que esto por vir. So como novos Marcos Polo ajudando a tornar o planeta Terra em um mundo onde as foras negativas que causam dissenso e desinteligncia sejam muito menores do que as foras positivas de coeso e que podem ajudar a tornar a Renascena Digital o ureo tempo do florescimento da tolerncia e do respeito pela diversidade humana.
Notas 1 Essa uma estimativa do relatrio International Migration and Development, apresentado pelo secretrio-geral das Naes Unidas na Assemblia Geral realizada no dia 18 de maio de 2006. 2 Uma das lcidas colocaes contidas no documento acima referido. 3 O termo bingeworker foi criado por Tim Osrbor Jones, professor de recursos humanos e liderana da Henley Management School College, Oxford, Inglaterra. Binge, do ingls, significa bebedeira, porre, e foi criado fazendo analogia com bingedrinking, que significa passar dias sem beber, porm tirar um dia para faz-lo e encher a cara para valer. A revista poca, n. 428, 31/7/2006, trouxe uma matria sobre bingerworkers.
CONCLUSO
civilizao. Arnold Toynbee (1889-1975), o clebre historiador ingls, dizia que as civilizaes morrem por suicdio, no por assassinato. Toynbee afirmava que como seres humanos, ns somos dotados de liberdade de escolha e ns no podemos atirar a nossa responsabilidade sobre os ombros de Deus ou da Natureza. Ns devemos assumi-la. Essa nossa responsabilidade. A autoridade de Toynbee para falar comparativamente de civilizaes se apia de forma consistente na sua obra maior realizada em vida, Um estudo de Histria,1 alentada e titnica realizao em 12 volumes que considerou e analisou 21 das 23 maiores civilizaes criadas pela humanidade. Entre outras, foram analisadas, de forma meticulosa, as civilizaes egpcia, sumria, andina, maia, grega, romana, iraniana, rabe, yucatec, mexicana, hindu, do Extremo Oriente (Japo e Coria), babilnica, otomana, polinsia, hitita, ortodoxa russa etc. Como todo grande pensador, Toynbee provoca reaes adversas por parte daqueles que no aprovam suas idias. No seu caso, uma grande torrente de crticas sobre as concluses e anlises de sua obra se concentra no argumento de que ele enfatiza extraordinariamente o papel das religies como motor do destino das civilizaes. Segundo Toynbee, as civilizaes progridem como resposta a um conjunto de desafios de extrema dificuldade, quando uma minoria criativa projeta solues novas que reorientam toda a sociedade. Quando a civilizao responde positivamente aos desafios, ela evolui. Quando falha, entra em declnio. Toynbee entendia a sociedade como uma rede de relaes sociais e no como uma mquina inaltervel ou intangvel. Quando essa rede de relaes sociais capaz de tomar e implementar decises de forma sbia ou insensata pode tomar caminhos virtuosos ou ter o desastre como seu destino. Apesar de ter sido um otimista durante toda sua existncia, Toynbee no era um otimista da mesma natureza que os marxistas, que julgam que estamos fadados ao progresso humano como espcie simplesmente como resultado de leis da Histria. Encalacrados nesses nossos tempos, nos quais a mudana rpida e vertiginosa se tornou a regra, devemos encarar o nosso futuro, o futuro da espcie humana, com otimismo ou com pessimismo? Com esperana ou com desespero? Na verdade, nem o ceticismo, nem maktub, nem o cinismo podero nos lanar em uma direo que faa com que o perodo que estamos vivendo seja a Renascena Digital. Nas dcadas que esto por vir poderemos estar desenhando e construindo caminhos que podero desembocar em direo diversa de tempos de ouro para a humanidade. A Sociedade Digital Global pode ser uma poca de profundas divises, de sectarismos, de terrorismo, de falta de confiana mtua na qual a humanidade retroaja barbrie. O thos do homem medieval, isto , o esprito caracterstico e predominante nas atitudes e sentimentos daqueles tempos, era de que o homem era a criatura favorita de Deus e que por isso o planeta Terra era o centro do universo. Dentro daquele contexto, apesar de serem as criaturas favoritas de Deus, as pessoas eram vistas e viam a si prprias como um rebanho de fiis conduzidos na existncia terrena pela Santa Madre Igreja. Os pioneiros do tempo daquela poca, a minoria criativa daqueles tempos, foram os indivduos que ousaram deixar os campos e ir para as cidades. Foram inventores e cientistas que ousaram ver a Natureza com outros olhos, como espiar os
cus pelos recm-criados telescpios e dizer que a Terra no era o centro do universo, mas um planeta. Foram artistas que ousaram criar novas experimentaes para alm dos recorrentes temas religiosos. Foram indivduos empreendedores que resolveram criar bancos, financiar navegaes, explorar novos mundos. Essa minoria criativa trouxe um novo tempo que ficou conhecido na Histria da humanidade como Renascena. Nos nossos tempos atuais, a nossa minoria criativa quase em sua totalidade ainda no se auto-reconhece. talvez uma dupla de centena de milhes de pessoas dentre os quase sete bilhes que habitam a Terra. Porm, cabe a esta minoria assumir a responsabilidade de forjar uma nova atitude coletiva que pode delinear um novo esprito dos tempos, um novo thos. Esses pioneiros do tempo esto mudando suas prprias vidas, seus estilos de vida e com isso contribuem para mudar o mundo e a sociedade em que vivemos. O novo esprito coletivo que pode emergir pode ser um amlgama reunindo o livre-arbtrio, o noconformismo, o gosto pela inovao e reinveno furiosa, e tudo isso temperado por uma enorme capacidade de tolerncia e de convivncia com a diversidade da espcie humana, independentemente de raa, sexo, nacionalidade, religio. Se assim for, podemos ter a esperana de que nossos tempos sejam de fato a Renascena Digital. Essa minoria criativa deve procurar mais e mais os indivduos talentosos, aquelas pessoas capazes de resolver com criatividade questes complexas. A Internet tem sido o canal por excelncia onde se d o dilogo desta minoria criativa. Essa ferramenta um veculo neutro no qual tm trafegado tanto contedo virtuoso quanto corrupto. Mas isso so escolhas individuais de seres que compartilham essa notvel infra-estrutura e no a natureza da prpria ferramenta. Amaldioar a criao da Internet seria como amaldioar a criao do dinheiro. Ambas so ferramentas que podem servir indistintamente tanto ao bem quanto ao mal. Mas, como outras vezes na Histria da humanidade, a escolha a fazer no apenas entre maktub e livre-arbtrio. Dentro dessa perspectiva, a minoria criativa no pode ignorar que o que est em jogo no so apenas caminhos individuais de sobrevivncia. H uma segunda escolha. Temos tambm de escolher entre a vida e a morte de nossa espcie, uma escolha entre Eros, o deus do amor, e Tnatos, o deus da personalizao da morte na mitologia grega. No h nada escrito que o futuro ser desta ou daquela forma. Se no nos julgarmos antecipadamente condenados ao fracasso ou morte da nossa civilizao, poderemos operar a grande transformao. Se optarmos simultaneamente pelo livre-arbtrio e pelo amor generoso, estes nossos tempos sero conhecidos no futuro como a era da Renascena Digital. Renascena Digital uma trilogia. E os trs volumes tm em comum a minha busca por iluminar as inovaes e experimentaes que podem fazer a diferena em termos de apontar para o que pode dar certo. Resolvi dedicar o primeiro volume dessa trilogia reflexo sobre as pessoas e mudanas de estilos de vida porque julgo que so os indivduos que mudam, em primeiro lugar, suas prprias vidas, os que impulsionaro progressivamente as mudanas nas organizaes e na sociedade como um todo. Do seio da minoria criativa devero emergir aqueles indivduos que lideraro a mudana das nossas organizaes, que no final das contas so as formas coletivas de
interao dos seres humanos para realizar determinados objetivos que individualmente no seriam possveis, como so as empresas e as ONGs, por exemplo. Portanto, as organizaes inovadoras sero o tema do segundo volume desta trilogia. Dentre os pioneiros do tempo devero emergir novas lideranas apaixonadas pela grande arte da Poltica (com p maisculo); homens e mulheres que traro novas respostas para os desafios de criar formas de governo mais democrticas, ao mesmo tempo mais eficientes, mais sofisticadas e mais humanizadas. Assim, o terceiro e ltimo volume desta trilogia procurar refletir e amadurecer questes relativas ao reencantamento da poltica e da reinveno do setor pblico. Neste volume, estaremos de frente para o desafio de desenhar novos governos que, sem sufocar a individualidade, sero provedores de servios mais eficientes no mbito das naes e localidades e ao mesmo tempo capazes de responder globalizao da humanidade da forma mais ampla e positiva, em termos de segurana econmica, social, militar e ambiental. A minoria criativa ainda est em gestao. Mas se voc procurar ao redor com cuidado e ateno, poder encontrar muitos deles em ao, ou pelo menos evidncias desse tipo de comportamento e atitude. Talvez, seguindo algumas de minhas reflexes, voc mesmo possa comear a se auto-reconhecer como um pioneiro do tempo. Civilizao no um lago parado, mas uma criao humana em processo. Como to bem afirmou Toynbee: civilizao um movimento, no uma condio; uma viagem e no um porto seguro. Sero extraordinrios e desafiadores os tempos que esto por vir. Mas para aqueles que souberem vencer o medo e a incerteza, que procurarem extrair de seu crebro, corao e alma aquilo que ns humanos somos capazes de produzir da forma mais positiva e que forem capazes de ser ousados, tenho certeza, valer a pena a jornada. Nota A. Toynbee, Um estudo da histria, So Paulo, Martins Fontes, 1986.