Processo Histórico Do Trabalho em Saúde

O Processo Histrico do Trabalho em Sade
FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Buss Vice-Presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico Jos Rocha Carvalheiro Coordenador da rea de Fomento e Infra-Estrutura Win Degrave Coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade Pblica (PDTSP) Mirna Teixeira ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO Diretor Andr Malho Vice-Diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico Isabel Brasil Pereira Vice-Diretor de Desenvolvimento Institucional Sergio Munck
Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade Coordenadora Mrcia Valria G. C. Morosini
Esta publicao contou com o apoio do PDTSP/Fiocruz

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O Processo Histrico do Trabalho em Sade

Organizadoras Anglica Ferreira Fonseca Anakeila de Barros Stauffer
Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Marcelo Paixo Capa Gregrio Galvo de Albuquerque Diego de Souza Incio Reviso Janaina de Souza Silva Soraya de Oliveira Ferreira Reviso Tcnica Anakeila de Barros Stauffer Anamaria DAndrea Corbo Anglica Ferreira Fonseca
Catalogao na fonte Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio Biblioteca Emlia Bustamante F676m Fonseca, Anglica Ferreira. O processo histrico do trabalho em sade / Organizado por Anglica Ferreira Fonseca e Anakeila de Barros Stauffer. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. 211 p. : il. ; - (Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade, 5). Coordenadora da coleo Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini. ISBN: 978-85-98768-25-0 1. Agente Comunitrio de Sade. 2. Trabalho e Educao. 3. Sade. 4. Sade da Famlia. 5. Educao Profissional. 6. Sistema nico de Sade. 7. Livro Didtico. I. Ttulo. II. Stauffer, Anakeila de Barros. CDD 362.10425
Autores
Ana Lcia Abraho
Enfermeira sanitarista, doutora em Sade Coletiva na rea de Gesto e Planejamento em Sade pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora e pesquisadora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Anamaria DAndrea Corbo

Odontloga, especialista em Educao Profissional pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio/ Fiocruz, mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e docente da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Ctia Guimares
Jornalista, especialista em Comunicao e Sade pelo Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica em Sade (Cict/ Fiocruz), mestranda em Comunicao e Cultura pela Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), editora da revista RET-SUS e assessora de comunicao da Secretaria Tcnica da Rede de Escolas Tcnicas do SUS.
Denise Elvira Pires

Enfermeira, mestre em Sociologia Poltica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutora em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ps-doutora pela University of Amsterdam, docente do Centro de Cincias da Sade, Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Edilza Maria Ribeiro

Enfermeira, mestre em Enfermagem na Sade do Adulto pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutora em enfermagem
EDUCAO E SADE
pela UFSC e docente vinculada ao Grupo de Assistncia Ensino e Pesquisa em Enfermagem (Gapefam) do Programa de Ps Graduao em Enfermagem da UFSC.
Isabel Brasil Pereira

Biloga, doutora em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz) e professora da Faculdade de Educao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Jlio Csar Frana Lima

Enfermeiro-sanitarista, mestre em Educao pelo Iesae/Fundao Getlio Vargas (FGV), doutorando do Programa de Ps Graduao em Polticas Pblicas e Formao Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/Uerj) e professor e pesquisador da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Mrcia Valria G. C. Morosini

Psicloga, especialista em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), especialista em Educao Profissional pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), mestranda em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Marise Nogueira Ramos

Licenciada em Qumica, Mestre e Doutora em Educao pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora Adjunta da Faculdade de Educao e do Programa de Polticas Pblicas e Formao Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/Uerj), professora e pesquisadora do programa de Ps-Graduao da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Mnica Vieira
Sociloga, mestre em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), doutora em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Vera Lcia Guimares Blank

Enfermeira, mestre em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), PHD em Medicina Social pelo Instituto Karolinska, Sucia, e docente voluntria do Departamento de Sade Pblica do Centro de Cincias da Sade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
EDUCAO E SADE
Sumrio
Apresentao da Coleo Apresentao do Livro Conceitos Bsicos sobre Trabalho Marise Nogueira Ramos Bases Histrico-Conceituais para a Compreenso do Trabalho em Sade Jlio Csar Frana Lima A Temtica do Processo de Trabalho em Sade como Instrumental para Anlise do Trabalho no Programa Sade da Famlia 11 23 27
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Edilza Maria Ribeiro, Denise Elvira Pires e Vera Lcia Guimares Blank
Tecnologia: conceito e relaes com o trabalho em sade Ana Lcia Abraho As Polticas de Gesto do Trabalho no Sistema nico de Sade e o Agente Comunitrio de Sade Mnica Vieira Histrico da Educao Profissional em Sade Isabel Brasil Pereira O Agente Comunitrio de Sade no mbito das Polticas Voltadas para a Ateno Bsica: concepes do trabalho e da formao profissional Mrcia Valria G. C. Morosini, Anamaria DAndrea Corbo e Ctia Guimares
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EDUCAO E SADE
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Apresentao da Coleo
Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do Agente Comunitrio de Sade A coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do Agente Comunitrio de Sade, organizada pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), dirigida aos docentes das instituies responsveis pela formao dos agentes comunitrios de sade, em particular s Escolas Tcnicas do Sistema nico de Sade (ETSUS). Estas escolas pblicas da rea da sade, majoritariamente ligadas s Secretarias de Sade dos estados e municpios, dedicam-se educao profissional dos trabalhadores de nvel mdio e tcnico do SUS, estando organizadas em mbito nacional, desde 2000, na Rede de Escolas Tcnicas do SUS (RETSUS), da qual a EPSJV faz parte. A idia de uma coleo de textos de referncia bibliogrfica para os docentes que se dedicam educao dos ACS surge do reconhecimento da necessidade de sistematizar e socializar os saberes fundamentais formao desses profissionais, saberes estes que transcendem o nvel local e conformam uma base comum ao trabalho. A coleo buscou tambm contemplar o entendimento de que o ACS realiza um trabalho complexo, cujas bases tcnicas no podem ser descontextualizadas das relaes sociais e polticas que as atravessam e condicionam. Tal premissa marca a concepo de educao profissional promovida pela EPSJV/Fiocruz, que entende o trabalho como princpio educativo e a formao docente como um processo contnuo no qual pesquisa e ensino se articulam em objetos de trabalho e investigao permanentes. As discusses abordadas nos livros que compem a coleo emergiram dos debates realizados com docentes, ACS, gestores e especialistas (representantes das coordenaes municipais e estaduais da Sade da Famlia) em oficinas regionais desenvolvidas em trs escolas da Retsus no Centro de Formao de Pessoal para os Servios de Sade Dr. Manuel da Costa Souza (Natal-RN), na Escola Tcnica em Sade Maria Moreira da Rocha (Rio BrancoAC) e na Escola Tcnica de Sade de Blumenau (Blumenau-SC) , contemplando as trs macrorregies geoeconmicas do pas, respectivamente, Nordeste, Amaznia e Centro-Sul. Nestas oficinas, participaram tambm o Centro
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O PROCESSO HISTRICO DO TRABALHO EM SADE
de Formao de Pessoal Caetano Munhoz da Costa, do Paran, a Escola de Formao em Sade de Santa Catarina e o Centro de Formao de Recursos Humanos da Paraba. Nesses encontros, almejou-se reconhecer as condies do trabalho dos ACS, buscando a interlocuo necessria construo da coleo. Esse processo se deu no mbito do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: melhoria da qualidade na Ateno Bsica, coordenado pela EPSJV/Fiocruz, realizado em parceria com Escolas Tcnicas do SUS, e financiado pelo Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade Pblica: Sistema nico de Sade (PDTSP-SUS) da Fiocruz, edital 2004. A coleo foi viabilizada, assim, pelo dilogo j constitudo no interior da Rede, apresentando-se, desta forma, tambm, como uma contribuio ao seu fortalecimento e ao processo de colaborao e parceria entre estas escolas. Para melhor localizarmos a coleo no contexto da formao tcnica dos ACS, devemos, ento, remetermo-nos, em primeiro lugar, s questes relativas ao seu trabalho e sua profissionalizao e, em segundo lugar, ao projeto do qual a coleo resulta, incluindo suas concepes sobre trabalho, conhecimento e material didtico. A Formao do ACS e a Relevncia desta Coleo Em meados de 2004, o Ministrio da Sade e o Ministrio da Educao publicaram o Referencial Curricular do Curso Tcnico de Agente Comunitrio de sade, instituindo a formao tcnica deste trabalhador e trazendo uma contribuio fundamental regulamentao desta profisso, estratgica para a reorganizao da ateno bsica no SUS, por meio da Sade da Famlia. Entretanto, a operacionalizao da formao em nvel tcnico dos ACS no constitui tarefa simples. Esta operacionalizao se depara com as complexidades inerentes prpria configurao da atividade dos ACS, no que diz respeito natureza inovadora da atividade, fragilidade de sua identidade profissional e regulamentao incipiente. Alm disso, a formao dos ACS transcende o setor da sade. Reconhecidamente o trabalho do agente comunitrio de sade lida com questes relativas cidadania, poltica, s condies de vida e organizao dos grupos e suas relaes, incluindo a famlia. Assim, exige o aporte de conhe12
cimentos que extrapolam o campo da sade, e que precisam estar sistematizados na formao dos ACS, alm dos saberes especficos que perpassam a prtica cotidiana da sua atuao. Independentemente da realidade local em que o ACS se encontra, estes eixos so estruturantes para o desenvolvimento de um trabalho com qualidade no campo da sade. A produo de material didtico no est descolada desta complexidade. Porm, o material produzido para apoiar a capacitao dos ACS, que se desenvolveu predominantemente em servio, vem-se caracterizando predominantemente por centrar-se no desempenho das atividades e atribuies especficas desses trabalhadores. Este tipo de material, embora tenha uma aplicao justificada em algumas circunstncias especficas de qualificao, pode, por outro lado, reforar a simplificao do trabalho do ACS e reduzi-lo sua dimenso operacional, no contemplando, de forma satisfatria, a abrangncia requerida por uma formao tcnica congruente com a complexidade congruente com a complexidade inerente s diversas etapas do trabalho em sade. O nvel tcnico, em nossa perspectiva, introduz a oportunidade de elaborao de um projeto poltico pedaggico que fundamente o saber sobre o trabalho e recupere as bases tcnicas que o estruturam e o qualificam, constituindose na possibilidade de domnio pelo trabalhador do conhecimento cientfico construdo pela humanidade. Este conhecimento permite ao sujeito a apropriao dos fundamentos tericos e tcnicos do seu trabalho, ampliando-lhe a compreenso do processo em que se insere. A partir da atuao das ETSUS na formao tcnica dos agentes comunitrios, estas escolas iniciaram a produo de material didtico dirigido para tal formao. A diretriz que prevaleceu foi que este material deveria ser sensvel realidade local em que se desenvolve o trabalho e a formao do ACS, em ateno s diferenas regionais. Entretanto, de se considerar que tais diferenas expressam tambm desigualdades socialmente produzidas e que se ater a elas pode implicar a sua reproduo. Alm disso, mesmo se considerando que h contextos e prticas culturais particulares, partimos do princpio que h conhecimentos que constituem uma base comum para a produo da sade, e, portanto, para o trabalho e a formao do ACS. Neste cenrio, coloca-se a pertinncia e a necessidade da presente proposta. Primeiro, por objetivar constituir um referencial bibliogrfico sistematizado e tematizado a partir de um projeto formativo norteado por diretrizes
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nacionais. Segundo, por buscar articular as diretrizes nacionais realidade local, atravs da integrao das escolas tcnicas que concebem os planos de curso orientados pelas diretrizes nacionais e que realizam a formao dos ACS locais. Terceiro, por visar o docente que participa dessa formao tcnica e que participar ativamente da elaborao do prprio material, ensejando um duplo processo de qualificao desse docente: no prprio processo de produo do material e na sua utilizao posterior.
Concepes Terico-Metodolgicas de Construo do Material Didtico Quanto aos referenciais terico-metodolgicos, destacamos a orientao de pautar a produo do material didtico pela considerao dos diferentes discursos em disputa histrica sobre temticas centrais formao dos agentes comunitrios: trabalho, educao e sade. A concepo aqui defendida a de que no h forma de tratar tais temticas sem problematizar as noes, scio-historicamente produzidas, a respeito destas. A metodologia experimentada no est circunscrita adaptao dos conhecimentos das tecnologias de base fsica e organizacional para a realidade dos agentes comunitrios de sade. Em certa medida, tal adaptao poderia significar o reforo da concepo de processo de trabalho como soma de funes executadas e do agente comunitrio como ltimo nvel na hierarquia da diviso social e tcnica do conhecimento. Assim, na perspectiva da presente coleo, uma forma de colocar em xeque a diviso social e tcnica do trabalho colocar os conceitos acima apontados em sua historicidade via noes em disputa no discurso dos docentes, dos ACS, dos trabalhadores da sade da famlia, enfim, em todos os sujeitos envolvidos na configurao da formao e do trabalho do ACS. Ou seja, o conhecimento no neutro; o conhecimento se define como tal porque implica formas de ao e de existncia no caso, dos trabalhadores da sade. Neste sentido, a diversidade de temas e questes tratadas pela presente coleo ao longo dos seis volumes no constitui um adendo ou uma busca de iluminar os docentes atuantes na formao dos ACS. Parte-se do princpio que a historicidade do conhecimento que passa por analisar
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suas condies de produo e de disputa est no cerne da compreenso e da construo do trabalho e da formao do ACS, tanto quanto o conhecimento mais imediatamente associvel prtica desse trabalhador. Note-se tambm que a compreenso de material didtico, construda no mbito dessa coleo, no se confunde com aquela que concebe este tipo de texto unicamente como instrumento in loco do processo ensino-aprendizagem. Ao contrrio, compreende o processo ensino-aprendizagem de forma ampliada, abrangendo a formao do docente e a concepo do docente como um investigador. Destarte, nosso material didtico formata-se como textos de referncia que articulam ensino e pesquisa como dimenses indissociveis da educao profissional, podendo constituir-se em uma biblioteca de consulta. Est tambm presente em nossa concepo de material didtico a necessidade de considerar e colocar em confronto a realidade cotidiana dos servios e o conhecimento socialmente acumulado como ponto de partida da formao da classe trabalhadora. Entendemos esse confronto entre os significados como uma dinmica profcua, na medida em que os contextos diferenciados, quando em interao, estabelecem uma relao no apenas de justaposio ou de indiferena, mas, sobretudo, de interao e conflito. Nesta relao pode-se estabelecer o dilogo, havendo tantas significaes possveis quantos os projetos histrico-sociais em disputa. Neste sentido, a construo do material didtico de apoio aos docentes atuantes na formao dos agentes comunitrios de sade orienta-se pela idia de dilogo como condio de linguagem, dilogo entendido aqui como a inexorvel inscrio de sujeitos e discursos na histria para que se produza sentido, conhecimento, saber. Logo, o dilogo, na perspectiva aqui adotada, constitutivo da prpria linguagem e do conhecimento. No entanto, esta condio de linguagem chamada por ns aqui de dilogo se realiza e se manifesta historicamente nas mais diferentes formas, inclusive naquela que busca negar sua prpria existncia: ou seja, aquela que tenta reprimir, na superfcie do texto, o carter histrico e social dos conceitos. O resultado disto, no mbito do material didtico, a idia de que o conhecimento ali apresentado e construdo se confunde com o real. A presente coleo almeja alcanar o horizonte oposto, buscando incorporar a noo de livro didtico como um processo e um texto em que mltiplas vozes esto representadas e, algumas vezes, em conflito. Alm da prpria for15
ma de implementao do projeto de pesquisa do qual este material didtico emerge, este atravessamento de temticas no trabalho do ACS ganha materialidade no tratamento editorial da coleo, no qual buscou-se explicitar, atravs de notas remissivas cruzadas em cada texto, a abordagem de conceitos e noes tratadas por outros textos tambm publicados na coleo. Esta direo constitui um dos passos para construir os contedos curriculares centrais formao do agente comunitrio e para colocar como questo o resgate e a produo de conhecimento envolvidos neste trabalho. Nesta perspectiva, portanto, entendemos o livro didtico como um artefato que tambm pode potencializar que os sujeitos-leitores vivenciem a leitura como um ato que permita a compreenso da dimenso histrica da produo do conhecimento, abrindo espao para o questionamento e a resignificao do texto. Enfim, entendemos o material didtico como uma tecnologia educativa que pode problematizar a naturalizao de conceitos e noes que atravessam o trabalho e a formao do ACS, entendendo que estes tambm so fruto de um processo em que o trabalhador foi subalternizado e expropriado da criao do trabalho. Mais que uma devoluo, no entanto, os textos aqui publicados consistem de um questionamento direto da invisibilidade e da simplicidade deste trabalho, explicitando sua inevitvel inscrio histrica nas prticas e nos saberes do trabalho em sade. Mrcia Valria G. C. Morosini Carla Macedo Martins
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Equipe do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: melhoria da qualidade na ateno bsica Coordenao do Projeto:
Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini Laboratrio de Educao Profissional em Ateno Sade EPSJV/Fiocruz
Equipe de pesquisa: Integrantes da equipe no mbito da EPSJV/Fiocruz:

Laboratrio de Educao Profissional em Ateno Sade: Ana Lcia Pontes Anglica Ferreira Fonseca Carla Macedo Martins Gustavo Corra Matta Laboratrio de Educao Profissional em Gesto em Sade: Adriana Ribeiro Rice Geisler Valria Lagrange Vice-direo de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico: Isabel Brasil Pereira Secretaria Tcnica da RET-SUS: Renata Reis Assessoria da Vice-direo de Ensino e Informao: Anakeila de Barros Stauffer Coordenao da Cooperao Internacional: Anamaria DAndrea Corbo
Integrante do projeto em outra instituio:

Universidade Federal Fluminense Faculdade de Enfermagem Ana Lcia Abraho Secretaria administrativa do projeto: Glucia Martins 17
Relao dos colaboradores, participantes das oficinas regionais do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: Melhoria da Qualidade na Ateno Bsica, etapa fundamental para a construo da pauta de temas dos livros da Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade1.
Participantes da Oficina em Blumenau SC:

Alade Maria Correa Agente Comunitrio de Sade Secretaria Municipal de Sade Blumenau Arlete Barzenski Enfermeira Coordenadora pedaggica do Curso Tcnico de ACS Centro Formador de Recursos Humanos Caetano Munhoz da Rocha (CFRH Curitiba) PR. Cludia Vilela de Souza Lange Pedagoga Coordenadora Geral Escola Tcnica de Sade de Blumenau (ETS Blumenau) SC Ktia Lcia Brasil Pintarelli Cirurgi Dentista ETS Blumenau SC Lorete Margarida Bernardes Pedagoga Coordenadora Administrativa ETS Blumenau - SC Luis Carlos Kriewall Veterinrio SMS Blumenau Maria de Ftima Campos Enfermeira Coord. CursoTcnico de Enfermagem ETS Blumenau - SC Maria de Lourdes dos Santos Enfermeira Coordenadora PSF SMS Blumenau SC Nanci Aparecida da Silva Enfermeira Coordenadora PSF SMS Blumenau SC Nuria da Silva Guimares Pedagoga da ETS Blumenau SC Nilcia Bastos dos Santos Agente Comunitrio de Sade SMS Blumenau SC Rosana A. Antunes Nunes Pedagoga Escola de Formao em Sade (EFOS) SC Rosete de Jesus Rosa Boenner Assistente social Coordenadora Regio Garcia SMS Blumenau - SC Sandra Marli Buttei Assistente Social ETS Blumenau SC Solange Melo de Liz Agente Comunitrio de Sade SMS Blumenau SC 18
Stella Maris Duarte Enfermeira Gerente PSF/UAS SMS Blumenau SC Susana Maria Polidrio dos Santos Pedagoga EFOS SC Tereza Miranda Rodrigues Enfermeira Coordenadora pedaggica do Curso Tcnico de ACS CFRH Curitiba PR Coordenadores da oficina em Blumenau: Marcia Valria Guimares Cardoso Morosini; Ana Lcia Abraho; Anamaria D Andra Corbo; Anakeila de Barros Stauffer; Renata Reis Cornlio (EPSJV/Fiocruz)
Participantes da Oficina em Natal - RN:

Aldeci Padilha Honrio Pedagoga Coordenadora pedaggica do Curso Tcnico de ACS Centro de Formao de Pessoal para os Servios de Sade Dr. Manuel da Costa Souza (Cefope) RN Ana Dilma da Silva Agente Comunitria Secretaria Municipal de Sade de So Gonalo do Amarante RN Aura Helena Gomes Dantas de Arajo Enfermeira Coordenadora pedaggica de Curso de Auxiliar de Enfermagem CefopeRN Brbara C. S. Farias Santos Dentista PSF Secretaria Estadual de Sade Pblica RN Carolene de Ftima O. Estrela Pedagoga Coordenadora Pedaggica Centro Formador de Recursos Humanos (Cefor RH) PB Divaneide Ferreira de Souza Enfermeira Coordenadora Pedaggica do Curso de Aux. Enf. Cefope RN Francisco Djairo Bezerra Alves Agente Comunitrio de Sade SMS Natal RN Maria das Graas Teixeira Sociloga - SMS Natal RN Ivaneide Medeiros Nelson Pedagoga Asessora CefopeRN Jacira Machado Alves Arajo Dentista Docente do Curso de Formao de ACS Cefor RHPB Jeovanice Borja da Silva Agente Comunitria de Sade SMS Natal Lda Maria de Medeiros
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Dentista Coordenadora do Curso de THD e do Curso Tcnico de ACS CefopeRN Marco Aurlio Azevedo de Oliveira Dentista PSF SMS Natal docente CefopeRN Maria Bernadete Almeida Cavalcanti Enfermeira Coordenadora Pedaggica do Curso de formao de ACS CeforPB Maria da Assuno Rgis Enfermeira Coordenadora pedaggica dos Cursos de Qualificao do ACS - Cefope-RN Maria da Conceio Jales de M. Guedes Enfermeira SMS de So Gonalo do Amarante RN Maria das Graas Leite Rebouas Enfermeira Coordenadora do Curso de Aux.Enfermagem CefopeRN Maria dos Remdios de Oliveira Macedo Agente comunitria de sade PACS SMS de So Gonalo do Amarante RN Maria Luciene B. da Costa Agente comunitria de sade SMS Natal RN Maria Neusa da Nbrega Almintas Enfermeira Coordenadora pedaggica do curso de Enfermagem e Hemoterapia Cefope-RN Neuma Lucia de Oliveira Dentista - PSF SMS Natal Docente Cefope-RN Maria das Graas da Silva Lucas Historiadora Tcnica do Setor de Desenvolvimento de Pessoal SMS Natal RN Maria das Neves M. Maia (Nevinha) Administradora Coordenadora pedaggica da formao do ACS Cefope-RN Solane Maria Costa Enfermeira Coordenadora local dos ACS PACS/PSF Secretaria Estadual de Sade Pblica RN Assessora do COSEMS RN Uiacy Nascimento de Alencar Assistente social Coordenadora do PSF/PACS Estado-RN Secretaria Estadual de Sade Pblica RN Vera Lucia da Silva Ferreira Enfermeira Diretora Cefope-RN Vernica Maria e Silva Enfermeira Coordenadora pedaggica do curso de Aux. Enfermagem Cefope-RN Coordenadores da oficina em Natal: Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini; Anglica Ferreira Fonseca; Anamaria D Andra Corbo; Anakeila de Barros Stauffer (EPSJV/Fiocruz)
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Participantes da oficina em Rio Branco AC:

Analdemira da Costa Moreira Enfermeira rea Tcnica de Leishmaniose Superviso das U.S.F. SEMSA Coordenao Local do PROFAEAcre Escola Tcnica de Sade Maria Moreira da Rocha ETSMMR Aurlio Fernandes de Lima Bilogo mediador ETSMMR Secretaria de Estado de Sade do Acre SESACRE Elza Fernanda Leo de Assis Biloga/Enfermeira mediadora ETSMMR rica Fabola Arajo da Silva Enfermeira rea Tcnica de Tabagismo Supervisora das U.B.S. SEMSA mediadora ETSMMR Francisca Lima do Nascimento Pedagoga Assessora Pedaggica Francisca Viana de Arajo ACS PSF Secretaria Municipal de Sade de Rio Branco SEMSA Gerncia de Educao Profissional GEPRO Secretaria de Estado de Educao Glacimar Alves de Nazar Pedagoga assessora pedaggica ETSMMR Herleis Maria de Almeida Chagas Enfermeiro coordenadora de Sade Comunitria (PACS/PSF) - SEMSA Jarderlene Borges de Matos ACS PACS SEMSA Joo Batista Francalino da Rocha Enfermeiro Gerncia de Aes Bsicas de Sade (GABS) SEMSA Joo Bosco Moreira Martins Pedagogo Assessor Pedaggico ETSMMR Ldia Maria Lopes da Silva Licenciada em Letras mediadora Assessora de Portugus ETSMMR Maria Estela Livelli Becker Enfermeira mediadora ETSMMR Maria Zulnia da Silva Sousa ACS SEMSA Marlene Campos dos Reis Enfermeira rea Tcnica Hipertenso e Diabetes SEMSA mediadora ETSMMR Marlene da Silva de Oliveira Pedagoga Coordenadora de Aprendizagem ETSMMR Mirtes da Silva Andrade Ribeiro Enfermeira mediadora ETSMMR 21
Neidiany Vieira Jovarini Psicloga mediadora ETSMMR Patrick Noronha Dantas Enfermeiro mediador ETSMMR Raimundo Jesus Pinheiro Enfermeiro Coordenador Local ETSMMR Rosa Maria da Silva Costa Rocha Biloga sanitarista Coordenadora Tcnica do Curso de Agentes Comunitrios de Sade ETSMMR Roseane da Silveira Machado Enfermeiro ETSMMR SESACRE Rosinei de Queiroz ACS PSF SEMSA Silene Ferreira da Silva ACS PSF SEMSA Associao dos Agentes Comunitrios de Sade de Rio Branco Simone Maria de Souza do Nascimento ACS Associao dos Agentes Comunitrios de Sade de Rio Branco Talita Lima do Nascimento Enfermeira Coordenao Geral ETSMMR Valria Cristina de Moraes Pereira Histria Coordenao de Recursos Administrativos ETSMMR Vnia Maria Lima da Silva Enfermeira Coordenadora Tcnica da rea de Enfermagem PROFAE Acre Coordenadores da Oficina em Rio Branco: Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini; Anakeila de Barros Stauffer; Carla Macedo Martins; Gustavo Corra Matta.
Os crditos institucionais referem-se situao dos colaboradores poca da realizao das oficinas.
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Apresentao do Livro
O livro O Processo Histrico do Trabalho em Sade o quinto da coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade, composta de seis volumes voltados para os docentes do Curso Tcnico de Agentes Comunitrios de Sade (ACS). Os temas deste livro emergiram nas oficinas, sobretudo a partir da discusso do eixo Processo de Trabalho em Sade. Podemos dizer que o esforo de tratar teoricamente e contextualizar historicamente os diversos temas deste livro foi motivado pela necessidade de discutir questes tais como o trabalho em equipe, a diviso e fragmentao do trabalho e projetos de qualificao, que se fizeram presentes nos debates de todos os oito eixos que orientam a produo da coleo. Assim, podemos dizer que o objeto de estudo o trabalho, no cenrio do Programa de Sade da Famlia (PSF), e as suas relaes com a educao e a sade. O primeiro texto Conceitos bsicos sobre o trabalho, escrito por Marise Nogueira Ramos, aborda o trabalho em sua dimenso ontolgica e histrica. Pautando-se na concepo marxista, a autora percorre conceitos como trabalho concreto, trabalho abstrato, trabalho assalariado, trabalho intelectual, trabalho manual, complexidade do trabalho e trabalho simples. Auxilia-nos, ainda, a pensar o trabalho em sade, analisando em que medida este se constitui como um elemento produtivo ou improdutivo ao capital. No que tange aos ACS, a autora explicita que pensar a formao deste segmento de trabalhadores de extrema relevncia na medida em que confronta os saberes produzidos em seu processo de trabalho diante das agruras e possibilidades que as condies materiais de vida das comunidades em que se inserem se lhes apresentam e os saberes produzidos pelas cincias. O texto de Jlio Csar Frana Lima, intitulado Bases histrico-conceituais para a compreenso do trabalho em sade, traz a dimenso ontolgica do trabalho, afirmando a relao histrica e inextrincvel entre as necessidades de sade e a constituio do trabalho em sade. O autor traa um percurso histrico destacando que, a partir da consolidao da sociedade capitalista, o homem compreende-se como produtor de sua prpria existncia, tornando seu corpo o depositrio de sua fora de trabalho. A partir desta lgica, o trabalho em sade se organiza pensando e intervindo no somente nos corpos individu23
ais, mas tambm no corpo social, criando um discurso normativo e disciplinar sobre a sade/doena. Diante disto, afirma o autor que o trabalho em sade ultrapassa a questo puramente tcnica, tendo em vista que se institui como uma prtica social que deve manter e reproduzir a fora de trabalho, buscando controlar as tenses e antagonismos sociais produzidos pelo capitalismo, possibilitando a manuteno/reproduo da fora de trabalho, assim como a produo da mais-valia. Em A temtica do processo de trabalho em sade como instrumental para anlise do trabalho no Programa Sade da Famlia, de Ribeiro, Pires e Blank, as autoras buscam analisar as caractersticas atuais do trabalho do ACS tendo por referncia trs eixos de discusso terica: o processo de trabalho, o setor de servios e o trabalho em sade. O artigo faz um percurso no qual apresenta uma reviso histrica sobre conceitos dos trs eixos, que subsidiam a discusso sobre o contexto atual do trabalho no PSF, evidenciando sua interface com os prprios modelos, a partir dos quais se estruturam o cuidado em sade. Perpassa todo o texto a preocupao das autoras em no dissociar a dimenso macropoltica da organizao de sistemas de sade e das prticas de gesto. Ao discutir especificamente o trabalho do ACS, o texto nos incita a refletir de modo crtico sobre as caractersticas desse trabalho e os elementos que o tornam consoante e dissonante com a proposta de transformao do modelo de ateno. Em dilogo estreito com a temtica do artigo anterior, Ana Lcia Abraho, em Tecnologia: conceito e relaes com o trabalho em sade, inicia sua discusso enfatizando as caractersticas que permitem entender o trabalho em sade como trabalho vivo, ressaltando a presena de elementos materiais e no-materiais empregados na elaborada teia do processo de trabalho em sade. a partir dessa argumentao que a autora desenvolve uma discusso em torno do uso do conceito de tecnologia no campo da sade. Ao trazer as referncias tericas que nos conduzem ampliao do entendimento sobre tecnologias em geral limitadas a tecnologias de base fsica , a autora nos prope perceber a articulao entre os saberes profissionais e as prticas cotidianas que se produzem no cuidado em sade como dispositivo que conforma diferentes tecnologias neste campo. Apoiada pela categorizao das tecnologias em leve, leve-dura e dura (Mehry), e, sobretudo, investindo nas potncias das tecnologias leves, Abraho nos convoca a pensar sobre as transformaes possveis e necessrias no fazer em sade.
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O texto As polticas de gesto do trabalho no Sistema nico de Sade e o agente comunitrio de sade, de autoria de Mnica Vieira, tem por intuito analisar, do ponto de vista macropoltico, algumas questes primordiais que permeiam o campo da gesto do trabalho no SUS. A partir de uma retrospectiva histrica, a autora analisa como foi-se conformando a rea de Recursos Humanos em Sade at chegarmos contemporaneidade, onde, a partir da instaurao das polticas neoliberais, no concretizamos o intento de um projeto de proteo social em nosso pas, acentuando-se as desigualdades econmicas e sociais. Compreendendo que vivemos um fosso entre o SUS constitucional e o SUS real, so-nos apresentados dados recentes sobre a fora de trabalho no SUS, enfocando, sobretudo, a situao de precarizao e de luta do ACS como trabalhador estratgico na reordenao da Ateno Bsica em nosso pas. Reafirma-se, pois, que a insero e a formao do ACS vm-se constituindo como um lcus de disputa entre distintos sujeitos coletivos que lutam por projetos de sociedade diferenciados, configurando-se, assim, uma relao dialtica entre questes que pautam a formao destes trabalhadores e a gesto do trabalho no SUS. O estudo de Isabel Brasil Pereira, Histrico da educao profissional em sade explicita, desde o seu incio, que a histria ser tratada como continuidade e rupturas de idias e projetos. Do ponto de vista terico, so as relaes entre os conceitos de trabalho, qualificao e educao profissional que a autora privilegia, enfatizando suas marcas no modo de produo capitalista. Ao historicizar a profissionalizao e a qualificao dos trabalhadores de enfermagem, a autora nos ajuda a entender como se produz a diviso social e tcnica do trabalho desse segmento, refletindo sobre o significado desse processo para o campo da sade. Pereira recupera ainda a legislao sobre educao profissional e a histria das instituies de formao de trabalhadores de nvel mdio na sade e de projetos de qualificao de porte nacional, convocando-nos a uma reflexo sobre interaes concretas entre os campos da educao e da sade. Ao longo do artigo, a autora mantm em evidncia o questionamento sobre a naturalizao do trabalho de nvel mdio na sade, sustentando a idia de que possvel e necessrio construir projetos contra-hegemnicos nos quais a formao de trabalhadores figure no sentido da transformao da sociedade. No texto de Morosini, Corbo e Guimares O agente comunitrio de sade no mbito das polticas voltadas para a ateno bsica: concepes do
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trabalho e da formao profissional as autoras, privilegiando as polticas oficiais de profissionalizao e formao do ACS, recuperam a histria desses profissionais no mbito da estratgia de sade da famlia. Para tal, desenvolvem anlise articulada das polticas de educao profissional e gesto do trabalho, por meio dos processos polticos desenvolvidos, das estratgias implantadas, das normatizaes estabelecidas e da legislao produzida. O artigo oferece ainda uma nfase na reflexo sobre a formao de ACS em nvel tcnico e traz elementos para pensarmos o papel desempenhado pelo Ministrio Pblico do Trabalho nesse processo e os desafios presentes no cenrio poltico do movimento organizado desses trabalhadores, especialmente a Confederao Nacional dos Agentes Comunitrios de Sade, visando efetiva realizao da formao tcnica. Os autores dos textos, todos docentes que atuam diretamente na formao de trabalhadores da sade, dialogam com as questes do cotidiano do trabalho do ACS e constroem anlises histricas a partir das quais afirmam o lugar do trabalhador de nvel mdio como sujeito crtico, com potencial de intervir no campo da sade. De modo plenamente consoante com os demais livros da coleo, o textos que compem essa obra expressam a recusa minimizao dos saberes propostos para a formao desses trabalhadores e assim se estabelece como projeto que assume a qualificao, nesse caso em nvel tcnico, como espao de valorizao do trabalho e do trabalhador. Anglica Ferreira Fonseca Anakeila de Barros Stauffer
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Conceitos Bsicos sobre o Trabalho

Marise Nogueira Ramos Introduo Este texto aborda o trabalho, experincia estruturante de nossas vidas, sobre a qual certamente temos muito o que contar. Mas quantos de ns paramos para pensar sobre o que o trabalho? Ou, por que trabalhamos? Ou, ainda, refletimos se haveria outras formas de organizarmos nosso cotidiano? Por que encaramos o trabalho como obrigao? E por que temos que dispor tanto tempo para o trabalho e to pouco para o lazer e o descanso? Se no fazemos essas perguntas freqentemente, esperamos que este texto nos provoque a faz-las, qui, a respond-las. Isto porque vamos analisar, primeiramente, que essa forma que o trabalho assume de obrigao, de imposio, s vezes, de sacrifcio, contraditria com o potencial de criao, de satisfao e de produo que o ser humano possui e que se realiza pelo trabalho. De fato, o ser humano um ser de necessidades, pois ele precisa produzir sua prpria vida. Como diria o professor Frigotto (2005), somente se ns nos transformssemos em anjos que poderamos parar de trabalhar, pois no h como suprirmos nossas necessidades, desde as mais bsicas, vindas do corpo (a fome, o frio, a proteo etc.), at as necessidades do esprito (o desejo, o prazer e a esttica, por exemplo), se no produzirmos os meios para faz-lo. Mas a superao de necessidades potencializa tambm a liberdade, pois quando satisfazemos uma necessidade, libertamo-nos dela e conquistamos condies para realizarmos outras coisas. Ou seja, o ser humano um ser de necessidades, mas superando-as que conquistamos a liberdade. E pelo trabalho que esse movimento de passagem da necessidade para a liberdade acontece. Quando falamos de liberdade, no falamos do tempo de lazer que nos reservado, normalmente, nos fins de semana, aps uma jornada semanal de trabalho. Este no um tempo de liberdade. um tempo imposto e determinado por outrem. Sob esse tipo de relao ns no temos autonomia nem produzimos para satisfazer diretamente nossas necessidades e, assim, conquistarmos tempo de liberdade. Produzimos para satisfazer as necessidades de outras pessoas, que no tm, para ns, rosto, nome ou histria. Isto , no nos iden27
tificamos com ela. O que queremos dizer que, na sociedade gerida pelo capital, trabalhamos para satisfazer as necessidades do capitalista, qual seja, a de gerar lucro e de apropriar-se do produto de nosso trabalho para acumular riqueza. Nossas necessidades ficam reduzidas aos bens e servios que nos mantm vivos e em condies de trabalhar, os quais temos que comprar na forma de mercadorias com o nosso salrio. O descanso, o programa com a famlia, uma distrao com o cinema, o futebol ou o passeio tambm acabam sendo meios exclusivamente voltados para nos manter vivos como fora de trabalho, j que ningum conseguiria, fsica e psicologicamente, trabalhar seguidamente sem esses intervalos. Somente devido nossa capacidade criativa e de transformar nossas experincias em oportunidades interessantes, prazerosas e virtuosas, que nos identificamos positivamente com esses momentos. Mas eles no representam, ainda, tempo real de liberdade, posto que no nos pertence. Este tempo pertence, na verdade, queles que nos pagam por ele. O tempo realmente de liberdade dos trabalhadores , ainda, uma utopia a ser atingida pela reapropriao de todos os meios e capacidades de produzirmos diretamente nossa existncia e deixarmos de subordin-la a outrem. Com a crise do emprego, o tempo que acaba nos sendo imposto no o da obrigao do trabalho ou o do lazer programado, mas o tempo de misria, de angstia, de desespero. Nessas condies, ns, trabalhadores, nos vemos privados at mesmo de vender a nossa fora de trabalho e podermos receber um salrio para adquirir os bens bsicos que nos mantm vivos. Este tempo s cinicamente, pode ser chamado de tempo livre, ou de cio. Enfim, com a finalidade de enfrentarmos essas contradies que estudaremos esse texto. Pretendemos que os esclarecimentos aqui apresentados nos forneam elementos que nos ajudem a compreender porque vivemos o tempo de angstia produzido pela ameaa ou pela experincia do desemprego, se a humanidade chegou a um estgio de produo de tantas maravilhas cientficas e tecnolgicas, que possibilitariam que todos ns trabalhssemos menos, e, assim, se reduzisse o tempo de necessidade aumentando o tempo de liberdade. Vamos estudar, ento, os conceitos bsicos sobre o trabalho. Veremos a dupla face do trabalho, no sentido de ser inerente vida humana dimenso ontolgica , mas de apresentar-se em formas diferentes ao longo da histria, e sob o capitalismo, como tempo explorado. Analisaremos o trabalho concre28
CONCEITOS BSICOS SOBRE O TRABALHO
to, quando nos reconhecemos no produto de nosso trabalho e o trabalho abstrato, quando, ao contrrio, somos alienados desse produto. A partir disto, situaremos a gnese do trabalho assalariado. Vamos procurar entender tambm como a diviso do trabalho adquire especificidades no sistema capitalista, separando trabalho intelectual e trabalho manual e reduzindo a complexidade do trabalho a trabalho simples. Esses fenmenos tm implicaes histricas sobre o significado e as finalidades de formao dos trabalhadores, e a isto dedicaremos algumas reflexes. Finalmente, perguntaremos se o trabalho em sade pode ser reduzido mercadoria, o que quer dizer se ele produtivo ou improdutivo para o capital. Concluiremos o texto apresentando o desafio de resgatar o sentido do trabalho em sade como produtor de vidas humanas em sua plenitude, e no somente como produtor de mercadorias, resgatando, desse modo, o sentido ontolgico do trabalho em sade. A Dupla Determinao do Trabalho: ontolgica e histrica Consultando no dicionrio o verbete trabalho, escrito por Liedke (1997: 268), encontraremos, inicialmente, a seguinte abordagem: como categoria abstrata, o trabalho pode ser entendido, estritamente, como esforo fsico ou mecnico, como energia despendida por seres humanos, animais, mquinas ou mesmo objetos movidos por fora da inrcia. Notemos que o trabalho, nessa definio, aparece como esforo realizado ou energia despendida por humanos e no-humanos. De fato, por vezes falamos em colocar a mquina para trabalhar ou pensamos em abelhas e formigas, naturalizando idias de que elas, ao construrem suas casas, ou ao transportarem seus alimentos, esto trabalhando. A descrio do verbete busca avanar em relao primeira definio quando afirma que a energia colocada em movimento (o trabalho) tem por resultado a transformao dos elementos em estado de natureza ou, ainda, a produo, manuteno e modificao de bens ou servios, necessrios sobrevivncia humana (Liedke, 1997: 268). Assim, s poderia ser considerado trabalho o dispndio de energia cujas finalidades so humanas. Neste caso, abelhas e formigas no trabalhariam, porque o resultado de seus esforos no se destina ao ser humano (ainda que este possa se apropriar do mel produzido pelas abelhas). Mas um cavalo, ao puxar uma carroa, trabalha? Para dirimir
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essa dvida definitivamente seria melhor perguntarmos: algum desses animais planeja despender esforos para a satisfao de suas necessidades? A resposta obvia: no! Notemos, ainda, a afirmao de que o trabalho tem como resultado e poderamos dizer, a finalidade a transformao do objeto, do meio, ou da situao a ele submetido. O processo de satisfao de necessidades humanas, condio necessria para que a vida humana se reproduza, , ento, um processo de transformao. Transformao essa, primeiramente, da prpria natureza que se torna cada vez mais humanizada e do prprio ser humano. George Lukcs nos ajuda a compreender a especificidade do trabalho como base do pensamento e da atividade humana quando afirma:
para que possa nascer o trabalho, enquanto base dinmico-estruturante de um novo tipo de ser, indispensvel um determinado grau de desenvolvimento do processo de reproduo orgnica (...). A essncia do trabalho consiste precisamente em ir alm dessa fixao dos seres vivos na competio biolgica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatrio constitudo no pela fabricao de produtos, mas pelo papel da conscincia, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenmeno da reproduo biolgica: o produto, diz Marx, resultado que no incio do processo existia j na representao do trabalhador, isto , de modo ideal. (Lukcs, 1978: 4-5)
Com essas afirmaes o autor nos quer dizer: a) o trabalho transforma, ao mesmo tempo, a natureza e aquele que trabalha; b) s existe trabalho quando a ao e o produto da ao so projetados conscientemente por quem trabalha. Essa capacidade exclusiva aos seres humanos, que so seres sociais. Portanto, o trabalho inerente produo da vida humana. Vejamos o que Karl Marx nos fala sobre o sentido geral do trabalho como produo humana, nos seus Manuscritos Econmico-Filosficos, de 1844. Diz ele que o ponto de partida que tanto o homem como o animal, para viverem, dependem de uma base fsica. Trata-se da natureza inorgnica, pois os seres so tambm natureza: uma natureza orgnica. Uma vez que o homem mais universal do que o animal, tambm mais universal a esfera da natureza inorgnica em que ele vive. No plano fsico, o homem vive apenas dos produtos naturais, na forma de alimento, calor, vesturio ou habitao etc. A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgnico, primeiro como imediato meio de vida; depois como objeto material e instrumento da sua atividade vital. O homem vive da
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natureza, com a qual tem de manter-se em permanente intercmbio para no morrer (Marx, 2001: 116). O trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, o nico meio que satisfaz uma necessidade primeira, a de manter a existncia fsica. A vida produtiva do ser humano, ento, , inicialmente, a prpria criao da vida. No tipo de atividade vital est todo o carter de uma espcie, o seu carter genrico; e a atividade livre, consciente, constitui o carter genrico do homem (Marx, 2001: 116). Enquanto o animal no se diferencia de sua atividade vital, o homem faz da atividade vital o objeto de sua vontade e conscincia. A vida para ele um objeto. Por este motivo a sua atividade surge como atividade livre. O animal tambm produz, por exemplo, ergue um ninho, uma habitao, como as abelhas, os castores, as formigas etc., mas s produz o que absolutamente necessrio para si ou para os seus filhotes; produz apenas numa s direo, ao passo que o homem produz universalmente. O animal produz somente sob a dominao da necessidade fsica imediata, enquanto o homem produz quando se encontra livre da necessidade fsica e s produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas se produz a si, ao passo que o homem reproduz toda natureza; o produto da espcie animal pertence imediatamente ao seu corpo fsico, enquanto o homem livre diante do seu produto. O animal constri apenas segundo o padro e a necessidade da espcie a que pertence, ao passo que o homem sabe como produzir de acordo com o padro de cada espcie e sabe como aplicar o padro apropriado ao objeto; assim, o homem constri tambm em acordo com as leis da beleza. Desse modo, o trabalho em geral e o seu produto como trabalho passado, objetivado so criadores de riqueza e produtores de vida humana em qualquer tempo ou lugar, o que equivale dizer que o trabalho humano tem uma determinao ontolgica.1 Marx, entretanto, insiste na determinao tambm histrica da natureza do trabalho:
at as categorias mais abstratas precisamente por causa de sua natureza abstrata , apesar de sua validade para todas as pocas, so, contudo, na determinidade desta abstrao, igualmente produto de condies histri1
Ontologia quer dizer o conhecimento do ser enquanto ser, considerado em si mesmo, independentemente do modo pelo qual se manifesta.
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cas, e no possuem plena validez seno para estas condies e dentro dos limites destas (...). O desenvolvimento histrico repousa em geral sobre o fato de a ltima forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu prprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente capaz de fazer a sua prpria crtica, e isso em condies bem determinadas concebe-os sempre sob um aspecto unitateral. (Marx, 1988: 120)
Explicitamos, ento, a dupla determinao do trabalho: ontolgica produo da vida humana independentemente do modo como se manifesta e histrica, o que quer dizer que, ao longo de sua histria, o ser humano organizou relaes sociais de produo da vida que proporcionou o surgimento de diferentes formas de trabalho, por exemplo, o trabalho primitivo, o servil, o escravo e o assalariado. Este ltimo prprio do modo de produo capitalista na moderna sociedade burguesa e entra em crise desde meados do sculo XX. sobre a gnese e o desenvolvimento do trabalho assalariado que vamos nos debruar para compreendermos a diferena entre trabalho concreto e trabalho abstrato. Analisaremos esta diferena no item a seguir. Trabalho Concreto e Trabalho Abstrato Conforme vimos no item anterior, o ser humano precisa trabalhar para viver. Essa idia parece no representar muita novidade, uma vez que ela faz parte de nosso cotidiano desde crianas. Algumas frases talvez ocupem nossas lembranas: quem no trabalha morre de fome; se voc no trabalhar vai virar ladro ou mendigo. Ocorre que essas lies esto encharcadas de julgamentos morais, por um lado, e vazias de realidade, por outro. Moralmente elas se associam ao mito de que o trabalho dignifica o homem. Na verdade, h que se ver em que condies e sob que relaes sociais a dignidade humana preservada ou mutilada. Tais afirmaes dizem respeito ao emprego como sinnimo do trabalho e acabam ignorando ou menosprezando o significado, por exemplo, do trabalho domstico, da me que cuida do filho, da mulher que limpa a casa, prepara a comida, costura uma roupa. Ouvindo essas afirmaes talvez no nos lembremos do homem do campo que ara a terra para plantar o que lhe ser a alimentao; da criana que auxilia o pai na plantao. Ou, ainda, do cuidado que tem uma parteira com a grvida ao dar luz.
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Provavelmente, o pensamento mais freqente que nos vem quando pensamos que temos de trabalhar para viver seja o de obter um emprego, de preferncia de carteira assinada, ganhar um salrio ao final do ms, e, com ele, comprarmos o que precisamos. Pode ser um emprego na indstria, no comrcio ou nos servios. Pode ser em instituies pblicas ou privadas. Trabalho, muitas vezes, considerado sinnimo de emprego. Mas todas as atividades de que falamos at agora so trabalho. Algumas so trabalho concreto; outras, trabalho abstrato. Este ltimo equivale a uma forma histrica do trabalho que aparece na moderna sociedade burguesa quando a produo da existncia humana se d sob o modo capitalista. Vimos que o trabalho ou as atividades a que as pessoas se dedicam so formas de satisfazer as suas necessidades. Portanto, fazemos comida porque temos fome; costuramos uma camisa para o uso porque precisamos nos vestir; cuidamos das crianas porque elas no podem faz-lo por si prprias; assistimos a um doente ou a um idoso tambm porque eles tm necessidades que exigem o cuidado do outro. Um artista, quando pinta um quadro, compe uma msica, toca um instrumento, dana etc., age satisfazendo necessidades emocionais, simblicas e estticas. Enfim, necessidades que no so somente do corpo, como as situaes anteriores, mas do esprito. Portanto, o trabalho humano efetiva-se, concretiza-se em coisas, objetos, formas, gestos, palavras, cores, sons, em realizaes materiais e espirituais. Em todos os exemplos que demos foram produzidas coisas, formas e gestos etc. para serem usados. Ou seja, o valor dos produtos determinado exclusivamente por sua utilidade. Dizemos, ento, que foram produzidos valores de uso. Tambm nesses produtos esto a marca, a lembrana, a expresso de nossas necessidades, esforos e habilidades. Ns nos percebemos concretamente no ato e no produto desse tipo de trabalho. Falamos at aqui de trabalho concreto. Na sociedade capitalista, entretanto, o trabalho contido no produto possui duplo carter: trabalho concreto e trabalho abstrato. O trabalho concreto corresponde utilidade do produto (valor de uso), dimenso qualitativa dos diversos trabalhos teis. Porm, esse produto no se destina apenas satisfao de necessidades de quem o usar. Ele tem um outro
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valor, a saber: o valor de troca. E quando assim se constitui deixa de ser exclusivamente produto do trabalho humano para ser mercadoria. Para tornar-se mercadoria o produto no pode ser produzido como meio de subsistncia imediato para o prprio produtor. Sob que circunstncias os produtos tomam forma de mercadoria? Isso s ocorre em um modo de produo bem especfico, o capitalista. A representao do produto como mercadoria supe uma diviso de trabalho to desenvolvida dentro da sociedade, de tal modo que haja a completa separao entre valor de uso e valor de troca. Como explica Marx (1988: 45-53), a mercadoria , antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espcie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estmago ou da fantasia, no altera nada na coisa (desejo inclui necessidade; o apetite do esprito e to natural como a fome do corpo). Aqui tambm no se trata de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se imediatamente, como meio de subsistncia, isto , objeto de consumo, ou se indiretamente, como meio de produo. A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Esse seu carter no depende de se a apropriao de suas propriedades teis custa ao homem muito ou pouco trabalho. Os valores de uso constituem o contedo material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta. Na forma da sociedade capitalista, eles constituem, ao mesmo tempo, os portadores materiais do valor de troca. Devemos salientar que uma coisa pode ser til e produto do trabalho humano sem ser mercadoria. Quem, com o seu produto, satisfaz sua prpria necessidade cria valor de uso, mas no mercadoria. Para produzir mercadoria ele no precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social. Para tornar-se mercadoria, preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca. Para que algum venda mercadorias, tem que possuir naturalmente meios de produo, por exemplo, matria-prima e instrumentos de trabalho. Precisa, alm disso, de meios de subsistncia. Se a pessoa no possui os meios de produo, s pode contar com sua fora de trabalho. Neste caso, ao invs de poder vender mercadorias em que seu trabalho se tenha objetivado, precisa, muito mais, oferecer venda sua prpria fora de trabalho como mercadoria , que s existe em sua corporalidade viva.
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Pessoas desprovidas dos meios de produo no existem somente no capitalismo. O servo e o escravo tambm dispunham de sua fora de trabalho produzindo para os seus senhores em troca meios de subsistncia. Tambm a existncia do dinheiro no define, em si, esse modo de produo, mas somente que a troca de mercadorias atingiu um certo nvel. As formas especficas de dinheiro, que pode ser definido como o equivalente de mercadoria ou meio circulante ou meio de pagamento, tesouro ou dinheiro mundial, apontam, de acordo com a extenso e a predominncia relativa de uma ou de outra funo, para estgios muito diferentes do processo de produo social. J o capital, este s surge onde o possuidor de meios de produo e de subsistncia encontra o trabalhador livre como vendedor de sua fora de trabalho no mercado. Por isto, o nascimento do capitalismo pressups a superao do modo de produo feudal e da escravido. Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre em um duplo sentido: primeiro, porque ele dispe, como pessoa livre, de sua fora de trabalho como sua mercadoria; segundo, porque ele no tem outras mercadorias para vender. O que, portanto, caracteriza a sociedade capitalista que a fora de trabalho assume, para o prprio trabalhador, a forma de uma mercadoria que pertence a ele, e que, por conseguinte, seu trabalho assume a forma de trabalho assalariado. Entretanto, s a partir desse instante se universaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho. A partir de ento, as relaes de produo constituem relaes de produo de mercadorias (valores de troca), tendo em vista a acumulao de capital. Mas preciso salientar: a natureza no produz, de um lado, possuidores de dinheiro e de mercadorias e, de outro, meros possuidores das prprias foras de trabalho. Essa relao no faz parte da histria natural, nem tampouco comum a todos os perodos histricos. Como valores de uso, as mercadorias so, antes de tudo, de diferente qualidade, mas, como valores de troca, s podem ser de quantidade diferente. Esta quantidade ser a base que se paga pela mercadoria. Essa base corresponde quantidade de trabalho socialmente necessrio para
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produzir a mercadoria nica propriedade que resta a ela quando se abstrai o valor de uso. Ento, quando um produto do trabalho se transforma em valor de troca, todas as suas qualidades sensoriais se apagam. Deixa de ser mesa, ou casa, ou fio, ou qualquer outra coisa til. Tambm j no o produto do trabalho do marceneiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o carter til dos produtos do trabalho, desaparece o carter til dos trabalhos neles representados, e desaparecem tambm, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade igual a trabalho humano, o trabalho humano abstrato. O trabalho abstrato corresponde ao valor de troca da mercadoria, independentemente das variaes das caractersticas particulares do trabalho e da pessoa que o produziu. O trabalho abstrato alude ao dispndio de energia humana, sem considerar as mltiplas formas em que empregada. nessa qualidade de trabalho humano abstrato que o trabalho cria valor das mercadorias. Os produtos do trabalho abstrato representam apenas que em sua produo foi despendida fora de trabalho humano, ou seja, o conjunto das faculdades fsicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem, e que ele pem em movimento toda vez que produzir valores de qualquer espcie. Trabalho abstrato e diviso do trabalho Pelo que vimos at este momento, trabalho abstrato o trabalho voltado para a produo de mercadorias (valores de troca) e pressupe um certo tipo de diviso social do trabalho. isto que vamos examinar. Marx vale-se de uma nota para explicar a diviso do trabalho, conforme transcrevemos a seguir:
Encontramos nos povos que alcanaram certo grau de civilizao trs espcies de diviso do trabalho: a primeira, que chamamos de geral, leva distino dos produtores em agricultores, manufatores e comerciantes, correspondendo aos trs ramos principais do trabalho nacional; a segunda, que se poderia chamar especial, a diviso de cada ramo de trabalho em espcies (...) a terceira diviso do trabalho, finalmente, que se deveria designar de diviso da operao de trabalho ou diviso do trabalho propriamente dita, a que se estabe36
lece nos ofcios e profisses separados (...) e que se estabelece na maioria das manufaturas e das oficinas. (Marx, 1988: 264)
A diviso do trabalho no todo de uma sociedade existe nas mais diferentes formaes socioeconmicas, mesmo nas mais primitivas, o que no difcil de compreender, posto que comunidades diferentes encontram meios diferentes de produo e meios diferentes de subsistncia em seu meio ambiente natural. Seu modo de produo, modo de vida e produtos so, portanto, diferentes. essa diferena naturalmente desenvolvida que, ao entrar em contato as comunidades, provoca o intercmbio recproco dos produtos e, portanto, a transformao progressiva desses produtos em mercadorias. O intercmbio no cria a diferena entre as esferas de produo, mas as coloca em relao e as transforma assim em ramos mais ou menos interdependentes de uma produo social global. Aqui surge a diviso social do trabalho por meio do intercmbio entre esferas de produo originalmente diferentes, porm independentes entre si. Na produo capitalista, a diviso manufatureira do trabalho exige o amadurecimento da diviso social do trabalho at certo grau de desenvolvimento, vindo a se basear na diferenciao dos instrumentos de trabalho e dos ofcios que produzem esses instrumentos. O que caracteriza essencialmente a diviso manufatureira ou tcnica do trabalho que o trabalhador parcial no produz a mercadoria, mas somente uma parte dela que, em si mesma, no tem valor ou utilidade. Por isso, o trabalhador no pode dizer: isto meu produto, isto quero para mim (Marx, 1988: 266, nota 58). Portanto, somente o produto comum dos trabalhadores parciais transforma-se em mercadoria. A diviso do trabalho no interior da sociedade mediada pela compra e venda dos produtos de diferentes ramos de trabalho, enquanto a conexo dos trabalhos parciais na manufatura feita pela venda de diferentes foras de trabalho ao mesmo capitalista, que as emprega como fora de trabalho combinada. A diviso manufatureira do trabalho pressupe concentrao dos meios de produo nas mos de um capitalista; a diviso social do trabalho, fracionamento dos meios de produo entre muitos produtores de mercadorias, independentes entre si. Alm disso, a diviso manufatureira do trabalho pressupe a autoridade incondicional do capitalista sobre seres humanos transformados em simples membros de um mecanismo global que a ele pertence. Com isto, os
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trabalhadores ficam ligados por toda a vida a uma operao parcial da produo e subordinados incondicionalmente ao capital, como uma organizao do trabalho que aumenta a fora produtiva. Esse tipo de diviso do trabalho uma criao totalmente especfica do modo de produo capitalista, que nos permite compreender que o trabalho final condensado na mercadoria a combinao dos trabalhos parcelares do conjunto dos trabalhadores: o trabalho abstrato. 2 Trabalho assalariado e emprego Vimos que, na sociedade capitalista, o trabalho assume a forma de trabalho assalariado, o que significa dizer que a fora de trabalho tornou-se mercadoria. Esta mercadoria a nica que pertence originalmente ao trabalhador, a nica que este dispe livremente para vender ao capitalista. Vimos que Marx discute a compra e venda da fora de trabalho em O Capital, Livro 1, Cap. 1, e demonstra que, para vender sua fora de trabalho como mercadoria, o trabalhador deve ser livre proprietrio de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Trabalhador e capitalista se encontram no mercado e entram em relao um com o outro como possuidores de mercadorias iguais por origem, s se diferenciando por um ser comprador e o outro vendedor, sendo, ento, ambos pessoas juridicamente iguais. O prosseguimento dessa relao exige que o proprietrio da fora de trabalho s a venda por determinado tempo, pois, se a vende em bloco, de uma vez por todas, ento ele vende a si mesmo, transforma-se de homem livre em um escravo, de possuidor de mercadoria em uma mercadoria. Como pessoa, ele tem que se relacionar com sua fora de trabalho como sua propriedade e, portanto, sua prpria mercadoria, e isso ele s pode medida que ele a coloca disposio do comprador apenas provisoriamente, por um prazo de tempo determinado, deixando-a ao consumo, portanto, sem renunciar sua propriedade. Como todas as outras mercadorias, a fora de trabalho tem um valor. Seu valor determinado tal como o de toda outra mercadoria, a saber: pelo tempo de trabalho necessrio produo e reproduo desse artigo especfico. Enquanto valor, a prpria fora de trabalho representa apenas determinado quantum de
Lembremos que anteriormente afirmamos que o trabalho concreto o que cria valor de uso e que a parte da mercadoria produzida pelo trabalhador parcelar no tem utilidade para ele. Isto explica o desaparecimento do trabalho concreto em uma transmutao em trabalho abstrato.
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trabalho social mdio nela objetivado, representado pelo que o trabalhador e sua famlia precisam para se alimentar, vestir, morar, evitar ou curar doenas etc., posto que a fora de trabalho s existe como disposio do indivduo vivo. Assim, dada a existncia do indivduo, a produo da fora de trabalho consiste em sua prpria reproduo ou manuteno. Para sua manuteno, o indivduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistncia. O tempo de trabalho necessrio produo da fora de trabalho corresponde, portanto, ao tempo necessrio produo desses meios de subsistncia, ou o valor da fora de trabalho o valor dos meios de subsistncia necessrio manuteno do seu possuidor e de seus substitutos, isto , seus filhos, os quais garantiro a perpetuao da fora de trabalho no mercado de mercadorias. Alm dos custos da subsistncia bsica, o desenvolvimento da fora de trabalho para finalidades especficas criadas pelas transformaes e avanos da produo, de tal modo que ela alcance habilidade e destreza em determinado ramo de trabalho, tambm demanda determinada formao ou educao, que por sua vez, custa uma soma maior ou menor de equivalentes mercantis. Esses custos de aprendizagem, ainda que nfimos para a fora de trabalho comum, entram no mbito dos valores gastos na sua produo. Em todos os pases com modo de produo capitalista, a fora de trabalho s paga depois de ter funcionado durante o prazo previsto no contrato de compra. assim que se estabelece a relao salarial, sendo o salrio o quanto o capitalista paga ao trabalhador por sua fora de trabalho. O trabalhador adianta ao capitalista o valor de uso da fora de trabalho; ele deixa consumi-la pelo comprador, antes de receber o pagamento de seu preo; por toda parte, portanto, o trabalhador fornece crdito ao capitalista. O preo da fora de trabalho est fixado contratualmente, ainda que ele s venha a ser realizado depois. A fora de trabalho est vendida, ainda que ela s seja paga posteriormente. Esta relao salarial disciplinada por um contrato constitui o emprego. A Diviso entre Trabalho Intelectual e Trabalho Manual e a Converso de Trabalho Complexo em Trabalho Simples A produo de qualquer valor destinado satisfao das necessidades humanas por meio do trabalho um processo de apropriao, transformao, criao e recriao da natureza, proporcionando, ao mesmo tempo, a compre39
enso de sua constituio pelo ser humano, bem como das potencialidades e dos limites a serem superados para que ela possa ser apropriada e transformada humanamente. Portanto, alm de bens e servios, o trabalho tambm produz conhecimentos, que podemos definir como resultados de um processo empreendido pela humanidade na busca da compreenso e transformao dos fenmenos naturais e sociais. Conhecimentos desenvolvidos e apropriados socialmente para a transformao das condies naturais da vida e a ampliao das capacidades, das potencialidades e dos sentidos humanos, constituem o processo histrico de produo cientfica e tecnolgica. Cincia e tecnologia so, portanto, foras produtivas. A origem do trabalho dos agentes comunitrios de sade (ACS) est exatamente nos conhecimentos produzidos pelo trabalho das comunidades, realizado em nvel local, voltado para a promoo da sade e para a preveno de agravos. Essas aes produziram conhecimentos que contriburam para os cuidados da sade dos prprios membros da comunidade. Os conhecimentos gerados nessas experincias no podem ser considerados, imediatamente, como cientficos, posto que no so produtos de um estudo ou de uma investigao realizada com base em um problema e um mtodo formulados com este fim. Tais conhecimentos so, de fato, cotidianos. Isto, porm, no os fazem menos importantes que aqueles produzidos pela cincia. Mas deve-se reconhecer que sua validade pode ser restrita s situaes particulares daquela comunidade; por vezes, podem ser incompletos ou mesmo contraditrios com os princpios da cincia. Neste ltimo caso, ou eles provocam um questionamento aos prprios conhecimentos considerados cientficos at ento, levando a cincia a se colocar novos problemas; ou eles devem ser refutados e, assim, superados por conhecimentos e prticas validadas pela cincia. Em outras palavras, os conhecimentos produzidos por prticas cotidianas e culturais de uma comunidade, que podem ser chamados tambm de conhecimentos populares, no tm validade universal, salvo quando legitimados socialmente pela mediao cientfica. neste ponto que o trabalho dos ACS adquire significativa relevncia. Com afirma Nogueira (apud Brasil, 2004: 11), este trabalhador desempenha um papel de mediador social, sendo considerado um elo entre (...) o conhecimento popular e o conhecimento cientfico sobre sade. Para isto, fundamental que o ACS tenha uma slida formao geral e
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profissional que o possibilite reconhecer e compreender as necessidades e as prticas das comunidades, dialogar com seus conhecimentos e, confrontandoos com a cincia, contribuir para a garantia do direito a sade. Reconhecendo, ento, que o trabalho produz conhecimentos, precisamos analisar o processo histrico e social de apropriao e utilizao desses conhecimentos. Nas sociedades pr-capitalistas, em que os produtos e servios necessrios populao eram realizados por trabalhadores autnomos o arteso e o campons, por exemplo , os conhecimentos envolvidos no trabalho eram exigidos e desenvolvidos diretamente por esses trabalhadores. Na produo capitalista, porm, esses conhecimentos passam a ser exigidos apenas pela produo combinada em seu conjunto, separando-se do trabalhador individual, assim como dele se separa o prprio produto e seu valor de uso. Ocorre, ento, a diviso entre as esferas do conhecimento e da produo; da cincia e da tcnica; da teoria e da prtica. Em outras palavras, o trabalho se divide entre trabalho intelectual e trabalho manual. O trabalhador, ao invs de sujeito de conhecimento, de reflexo e imaginao, passa a ser considerado como parte das mquinas:
as potncias intelectuais da produo ampliam sua escala por um lado, porque desaparecem por muitos lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se no capital com que se confrontam. um produto da diviso manufatureira do trabalho opor-lhes as foras intelectuais do processo material de produo como propriedade alheia e poder que os domina. Esse processo de dissociao comea na cooperao simples, em que o capitalista representa em face dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social do trabalho. O processo desenvolvese na manufatura, que mutila o trabalhador, convertendo-o em trabalhador parcial. Ele se completa na grande indstria, que separa do trabalho a cincia como potncia autnoma de produo e a fora a servir ao capital. (Marx, 1988: 270-271)
De fato, o parcelamento do trabalho em tarefas simples realizadas pelos trabalhadores individuais, relacionados entre si pelo trabalho abstrato, se consolida com essa diviso fundamental entre trabalho intelectual e trabalho manual. Esse parcelamento reduz a complexidade da produo de uma mercadoria ou de um servio completos o trabalho complexo ao conjunto de tarefas simples destinadas a produzir as respectivas partes. Por isto, do trabalhador no so exigidos mais conhecimentos do que aqueles estritamente necessrios para realizar operaes simples e para proporcionar uma adaptao psicofsica a essa nova forma de dividir o trabalho.
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O trabalho simples, portanto, aquele reduzido indiferena de quem o realiza, j que, para isto, no so exigidos mais do que conhecimentos elementares, como ler, escrever e contar, alm de rudimentos tcnico-procedimentais para o exerccio das tarefas. J o trabalho mais complexo se realiza por uma fora de trabalho na qual entram custos mais altos de formao, cujo valor mais elevado do que a fora de trabalho simples. Se lembrarmos que o ACS compe uma equipe multiprofissional formada por um mdico, um enfermeiro (profissionais de nvel superior) e um auxiliar de enfermagem (profissional que deve ter concludo, pelo menos, o ensino fundamental), veramos que a diviso do trabalho na sociedade capitalista reservou aos primeiros o domnio dos conhecimentos cientficos, proporcionado pelo acesso aos nveis superiores de ensino e ao mundo da cincia. A estes, na maioria das vezes, compete o trabalho intelectual, como, por exemplo, a anlise das situaes, a realizao de diagnstico, a proposio e/ou a prescrio de solues, o planejamento e a gesto do trabalho, dentre outras. Aos auxiliares, por terem uma formao de nvel intermedirio, competem as tarefas tambm intermedirias, que compreendem saberes procedimentais e alguns saberes tericos instrumentais aos procedimentos. Por fim, sob esta lgica, aos ACS competiriam as tarefas mais elementares determinadas por seus superiores. Esta uma clssica diviso do trabalho que configura o trabalho abstrato. Por mais que as atividades de alguns trabalhadores sejam mais complexas do que outras, nenhum deles sujeito pleno da totalidade do processo de trabalho. Este a soma dos trabalhos mais ou menos simples dos seus trabalhadores. Mesmo o trabalho do mdico e do enfermeiro, sendo de carter intelectual, ao ser submetido a essa diviso, acaba tendo uma complexidade relativa, pois eles no se apropriam do conjunto do trabalho desde a sua concepo at a sua execuo. A complexidade desse processo de trabalho, de fato, s se encontra no produto final, neste caso, a promoo, a proteo e a recuperao da sade de indivduos e famlias, de forma integral e contnua (Brasil, 2004: 10). Ainda que se logrem os objetivos do Programa da Sade da Famlia, os trabalhadores que contriburam para isto, se submetidos a esta lgica, tambm no se realizam integralmente como sujeitos. A diviso do trabalho, na verdade, tambm os divide. A superao disto s pode ocorrer se todos se apropriarem, no plano da
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conscincia e da materialidade das relaes de produo, dos objetivos e razes sociais e tico-polticos de suas aes, bem como dos fundamentos cientficotecnolgicos que fundamentam a totalidade do processo de trabalho em que esto inseridos, mesmo que, profissionalmente, sejam diretamente responsveis por determinadas atividades especficas. Este o horizonte que define o sentido da formao bsica e profissional dos ACS. Mas as contradies a serem enfrentadas diante da hegemonia da diviso social e tcnica do trabalho so muitas. o que vamos discutir a seguir. Implicaes da diviso do trabalho para a educao dos trabalhadores Adam Smith, economista clssico que viveu no sculo XVIII, reconhecia a necessidade de o Estado oferecer o ensino popular classe trabalhadora, a fim de evitar a degenerao completa da massa do povo. Mas ele recomendava que esse ensino ocorresse, prudentemente, em doses homeopticas. O economista justifica a necessidade de educao em funo dessa diviso parcelar do trabalho, considerando conveniente que o Estado facilitasse, encorajasse e at mesmo impusesse a quase toda a populao a necessidade de aprender aqueles conhecimentos elementares. Podemos ento perceber que a educao da classe trabalhadora, desde o final do sculo XVIII, j considerada como fator de racionalizao da vida econmica, da produo, do tempo e do ritmo do corpo. Em outras palavras, a educao do trabalhador, no capitalismo, subsumida necessidade da reproduo da fora de trabalho como mercadoria. A educao de carter geral, clssico e cientfico, destinava-se formao das elites dirigentes e dos que exercero o trabalho intelectual. Interessante notar que, considerada exclusivamente do ponto de vista do parcelamento e da simplificao do trabalho, a educao escolar do trabalhador no seria imediatamente necessria, j que as tarefas podiam ser rapidamente aprendidas no prprio posto de trabalho. Mas a perspectiva de formar os filhos dos trabalhadores, seus futuros substitutos, que incita a instalao de escolas destinadas menos ao ensinamento de tcnicas de trabalho e mais adaptao dessas crianas rotina e ao ritmo de trabalho com disciplina e docilidade. So as workhouses (casas de trabalho), que se converteram em
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Schools of Industry (escolas da indstria) ou Colleges for Labour, surgidas primordialmente na Inglaterra, no sculo XVIII, que introduziram na cultura ocidental a prtica da formao para o trabalho. O avano das relaes capitalistas de produo levou tambm ampliao das finalidades da escola, j que a proliferao da indstria passou a exigir um novo tipo de trabalhador. J no bastava que este fosse piedoso e resignado (qualidades desenvolvidas pela religio), embora isto continuasse sendo necessrio. Era preciso tambm aceitar trabalhar para outro e faz-lo nas condies que este outro lhe impusesse. a educao oferecida desde a infncia que formar as crianas (os adultos das geraes seguintes) desde cedo, de acordo com as necessidades da nova ordem capitalista e industrial, as novas relaes de produo e os novos processos de trabalho. Ao mesmo tempo, a tendncia de universalizao de um conjunto de tcnicas bsicas entre indstrias de ramos diferentes foi gerando na populao a necessidade de dominar uma certa quantidade de conhecimento e de destrezas para desenvolver-se em qualquer trabalho. A aprendizagem, portanto, j no podia ocorrer diretamente ou, exclusivamente, no prprio local de trabalho, voltando-se s escolas, que, aos poucos, passaram a assumir o papel no s de socializao, mas tambm de transmisso do saber tcnico. As tcnicas que compem um processo produtivo, medida que se aprimoraram, condensaram-se em alguns ofcios parciais desse mesmo processo e passaram a se constituir como bsicas mesmo em indstrias de ramos diferentes. Um novo tipo de saber menos complexo do ponto de vista do produto acabado, como no caso do artesanato, mas suficiente para garantir ao trabalhador alguma mobilidade entre as diferentes indstrias e mesmo no interior delas vai-se constituindo e adquire, aos poucos, carter especializado relacionado ao domnio de um ofcio. Isso, alm de tudo, permite ao capitalista estabelecer parmetros mnimos para a definio do perfil do trabalhador necessrio na produo. Assim sendo, o ensino levado a cabo pelas escolas destinadas a formar trabalhadores j no visava somente ao ato de disciplinar, mas conferir ao trabalhador o domnio de um ofcio. A formao para o trabalho passou a significar a formao profissional, enquanto as profisses passaram a ser classificadas de acordo com o seu nvel de complexidade que, por sua vez, mantm relao com o nvel de escolaridade necessrio para o desenvolvimento de cada uma delas.
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A emergncia das profisses modernas se constitui, ento, em conseqncia da diviso manufatureira e social do trabalho, hierarquizadas de acordo com os grupos sociais a que se destinam operrios, tcnicos, engenheiros, cientistas, e assim por diante. Esse o pice da diviso entre trabalho manual e intelectual que se verifica tanto na sociedade quanto no interior da produo. A poltica de profissionalizao dos trabalhadores do Sistema nico de Sade (SUS), por se instaurar em uma sociedade capitalista na qual concepes e prticas formativas se centram nos princpios da diviso do trabalho no conseguir, de imediato, promover rupturas definitivas com essa hegemonia. No obstante, alguns preceitos enunciados instigam-nos a pensar que um novo sentido pode ser dado formao dos trabalhadores da sade em geral e aos ACS em particular. O Referencial Curricular para o Curso Tcnico de Agente Comunitrio
de Sade (Brasil, 2004: 11 grifos do original), por exemplo, afirma que a profissionalizao desses trabalhadores deve considerar as novas perspectivas delineadas para a educao profissional no Brasil, que apontam para
a elevao da escolaridade e para uma concepo de formao que proporcione compreenso global do processo produtivo, com a apreenso do saber tecnolgico, a valorizao da cultura do trabalho e a mobilizao dos valores necessrios tomada de decises.
Este mesmo documento argumenta que tal concepo de formao caracteriza a necessidade de elevao da escolaridade e dos perfis de desempenho profissional. Compreendemos, neste contexto, que a elevao de escolaridade dos ACS no se limita satisfao de exigncias de requisitos formais para a formao profissional tcnica de nvel mdio. Muito alm disto, trata-se de reconhecer a educao bsica como um direito de todos os trabalhadores e tambm como uma condio sine qua non para concretizar uma formao que possibilite
o aumento da autonomia intelectual dos trabalhadores, o domnio do conhecimento tcnico-cientfico, a capacidade de auto-planejamento, de gerenciar tempo e espao de trabalho, de exercitar a criatividade, de trabalhar em equipe, de interagir com o usurios dos servios, de ter conscincia da qualidade e das implicaes ticas do seu trabalho. (Brasil, 2004: 12)
Notemos que essas caractersticas, sob a lgica da diviso parcelar do trabalho, nos pareceriam, a princpio, se destinarem no a trabalhadores tcnicos que supostamente executariam um tipo de trabalho simples, predominan45
temente manual, mas especialmente a profissionais de nvel superior, que exercem o trabalho intelectual, este sim considerado, pelo pensamento hegemnico, um trabalho complexo. Ocorre, porm que, seja devido ao princpios tico-polticos que orientam o SUS,3 seja pelas transformaes atuais do mundo do trabalho, a diviso tcnica e social do trabalho e a formao que visa simplesmente a ela adequar o trabalhador, historicamente so frontalmente criticadas pela classe trabalhadora por alienar o trabalhador do processo e do produto de seu trabalho. O avano tecnolgico e os novos modelos de gesto do trabalho tm levado, contraditoriamente, o prprio capital a questionar a lgica taylorista-fordista que organiza a diviso parcelar do trabalho e, com ela, a formao restrita, elementar e tecnicista. Abre-se espao, portanto, para a luta por uma educao bsica e profissional de carter integral de todos os trabalhadores. A anlise do perfil profissional dos ACS nos demonstra que, mesmo se colocando na base da hierarquia profissional definida pela diviso do trabalho em sade, seu trabalho de modo algum pode ser considerado simples. Como diz o referencial curricular para o curso tcnico de ACS, ele atua na interface da assistncia social, educao e meio ambiente, desenvolvendo aes de promoo da sade, privilegiando o acesso s aes e servios de informao e promoo social e de proteo e desenvolvimento da cidadania, no mbito social e da sade (Brasil, 2004: 18). Mesmo como membro da equipe da sade, suas funes transcendem este campo, na medida em que, para serem realizadas, requerem ateno a mltiplos aspectos das condies de vida da populao, situados no mbito daquilo que se convenciona chamar de ao intersetorial (Nogueira et al. apud Brasil, 2004: 16). Essa dimenso intersetorial do trabalho do ACS nos remete necessidade de este trabalhador compreender a totalidade do processo de trabalho de promoo, preveno e recuperao da sade das pessoas. Esta necessidade se confronta fortemente com o pensamento hegemnico que associa o trabalho complexo exclusivamente ao pice da pirmide funcional que hierarquiza as funes e os trabalhadores segundo a histrica diviso tcnica e social do trabalho e, disto, deduz os respectivos nveis educacionais, na linha que Adam Smith
Sobre os princpios do SUS, ver Matta, texto Os princpios e diretrizes do Sistema nico de Sade, no livro Polticas de Sade: a organizao e a operacionalizao do SUS , nesta coleo. (N. E.).
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defendeu ainda no sculo XIX (ao trabalho simples e manual, nveis educacionais elementares; ao trabalho intelectual e complexo, nveis educacionais avanados). Como no considerar complexo o trabalho do ACS? Como no compreender que, tanto por direito humano quanto por necessidade do processo de trabalho, ao ACS caberia nveis educacionais avanados? Somente em conflito brutal com os princpios do SUS e com o direito vida poderamos deixar de defender a escolarizao e profissionalizao dos ACS. O Trabalho em Sade como Mercadoria: trabalho produtivo ou improdutivo Para refletirmos se a fora de trabalho empregada no processo de trabalho em sade uma mercadoria tal como a fora de trabalho empregada na indstria, temos que, primeiro, compreender o que o trabalho diretamente produtivo para o capital e o trabalho no diretamente produtivo ou trabalho improdutivo. Para isto, teremos que visitar o conceito de mais-valia. Sabemos que o valor de toda mercadoria determinado pelo quantum de trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessrio sua produo. Assim, conforme vimos, o valor da fora de trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessrio sua produo e reproduo (comer, vestir, morar etc.), que pago na forma do salrio. A mais valia produzida quando o trabalhador realiza uma jornada maior do que aquela paga pelo capitalista para garantir a produo e a reproduo de sua fora de trabalho. Com isto, ele agrega mercadoria um valor maior do que aquele correspondente ao valor pago pela sua fora de trabalho. essa a diferena que gera a mais-valia; ou seja, a mais-valia extrada do trabalho realizado no pago. A esta mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho, Marx (1989: 237) chama de mais-valia absoluta. No obstante, revolues tcnicas e sociais do processo de trabalho aumentam a fora produtiva, reduzindo o tempo de trabalho socialmente necessrio para produzir a mercadoria. Com isto, reduz-se tambm o valor da fora de trabalho. Esse tipo de maisvalia, a qual Marx chama de relativa, no decorre do aumento da jornada de trabalho, mas sim do aumento da capacidade de trabalho no pago. Dessa anlise, podemos concluir que o produto por excelncia da produo capitalista a mais-valia. Ento, somente produtivo para o capital aquele
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trabalho que seja consumido diretamente no processo de produo com vista valorizao do capital. Em outras palavras, s produtivo para o capital o trabalhador que possua capacidade de trabalho diretamente produtor de mais-valia. Marx (1969: 109-110) esclarece ainda que, do ponto de vista do processo de trabalho em geral, trabalho produtivo aquele que se realiza em um produto, mais concretamente em uma mercadoria. Do ponto de vista do processo capitalista de produo, junta-se uma determinao mais precisa: produtivo aquele trabalho que valoriza diretamente o capital o que produz mais-valia. Trata-se, portanto, de trabalho que serve diretamente ao capital como instrumento da sua autovalorizao, como meio para a produo de mais-valia. Como vimos, quando analisamos o trabalho abstrato, o agente real do processo de trabalho capitalista no o trabalhador individual, mas sim o trabalhador coletivo massa de trabalhadores da qual o trabalhador individual somente um elo. Sendo assim, so diversas foras de trabalho que se articulam e participam diferentemente no processo produtivo em seu conjunto. Alguns assumem mais o manejo tcnico de ferramentas; outros elaboram o projeto do que deve se produzido; outros supervisionam a produo; outros a dirigem etc. De fato, so cada vez em maior nmero as funes da capacidade de trabalho includas no conceito imediato de trabalho produtivo, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral em seu processo de valorizao e de produo. Por isto, Marx nos diz que, se consideramos o trabalhador coletivo, a sua atividade combinada realiza-se materialmente e de maneira direta em um produto total que, simultaneamente, uma massa total de mercadorias, sendo absolutamente indiferente que a funo deste ou daquele trabalhador esteja mais prxima ou mais distante do trabalho manual direto. Importa que a atividade desta capacidade de trabalho coletivo promove diretamente a valorizao do capital. Existem, porm, vrias atividades que no promovem tal valorizao diretamente. o caso dos servios. Quando se compra o trabalho para o consumir como servio e no para coloc-lo no processo capitalista de produo, o trabalho no produtivo e o trabalhador assalariado no trabalhador produtivo. O seu trabalho consumido por causa do seu valor de uso e no como trabalho que gera valores de troca.
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Neste ponto, as situaes citadas por Marx so expressivas dessa diferena. Diz ele:
uma cantora que canta como um pssaro uma trabalhadora improdutiva. Na medida em que vende o seu canto uma assalariada ou uma comerciante. Porm, a mesma cantora contratada por um empresrio que a pe a cantar para ganhar dinheiro uma trabalhadora produtiva, pois produz diretamente capital. Um mestre-escola que contratado com outros para valorizar, mediante o seu trabalho, o dinheiro do empresrio da instituio que trafica com o conhecimento um trabalhador produtivo. (Marx, 1969: 115 grifo do autor)
A concluso sobre se os servios so ou no so produtivos para o capital a seguinte: os trabalhos que s se desfrutam como servios no se transformam em produtos separveis dos trabalhadores, embora possam ser explorados de maneira diretamente capitalista. o caso, por exemplo, dos trabalhadores de sade vinculados a instituies privadas. Este tipo de trabalho produtivo porque produz diretamente capital para o proprietrio da instituio, porm tem uma especificidade diferente da fora de trabalho empregada na produo industrial posto que o produto do trabalho no se separa do trabalhador como as outras mercadorias que podem ser consumidas independentemente dele. Se esses trabalhadores se vinculam a instituies pblicas, financiadas pelo Estado e, portanto, por um fundo pblico, esse trabalho no produz capital. , portanto, um trabalho improdutivo. Esta anlise demonstra que, por mais que a privatizao dos servios de sade submeta o processo de trabalho mesma lgica capitalista, a ateno e o cuidado em sade no podem se transformar em mercadorias diretamente valorizveis para o capital, a no ser no estrito limite de que esse trabalho atua tambm na reproduo da fora de trabalho e, portanto, influencia no seu valor. Esta uma das razes, a propsito, pela qual os servios de sade tendem a ser pblicos ou providos diretamente pelos empregadores, fornecendo aos trabalhadores, por exemplo, planos de sade. O custo pela manuteno da sade do trabalhador destinado reproduo de sua fora de trabalho, desta maneira, ao invs de ser ressarcido diretamente ao trabalhador no montante de seu salrio, pago indiretamente por meio dos sistemas pblicos ou planos privados de sade. Isto um exemplo do que chamamos de salrio indireto, e, se reconhecidos como direitos sociais, so assumidos pelo Estado. A contradio de considerar a
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sade como direito ou como mercadoria est no cerne da concepo e do modelo de Estado: se de direito ou se neoliberal. Este, porm, um assunto a ser abordado em outro texto. 4 Trabalho Prescrito e Trabalho Real Vimos que a diviso do trabalho no capitalismo transcende a dimenso social para se realizar no interior da produo. Na verdade, a possibilidade de extrao de mais-valia relativa tem relao direta com a forma como se divide e se organiza o trabalho na produo, no sentido de aumentar a fora produtiva e reduzir o tempo de trabalho socialmente necessrio para produzir a mercadoria. O sistema de organizao do trabalho mais elaborado nesse sentido foi o taylorismo. Ele se baseia na separao das funes de concepo e planejamento das funes de execuo, na fragmentao e na especializao das tarefas, no controle de tempos e movimentos e na remunerao. Um dos princpios bsicos do taylorismo a separao programada entre concepo e planejamento das tarefas de execuo. Para isto, o administrador expropria o mximo do saber do trabalhador, reordenando-o a fim de atender s necessidades de acumulao do capital. As iniciativas e o trabalho intelectual so banidos das oficinas e centrados na administrao superior. A esse princpio se soma a intensificao da diviso do trabalho, proporcionada pelos estudos de Taylor5 dos tempos e movimentos do trabalho. Esse princpio corresponde decomposio do trabalho em parcelas elementares e simplificadas mediante as quais se desenvolvem maneiras mais rpidas e eficientes de execut-las. Neste caso, cada tarefa corresponde a um posto de trabalho ao qual se adapta um trabalhador considerado adequado para ocup-lo. O terceiro princpio do taylorismo corresponde ao controle permanente dos tempos e movimentos de trabalho, com o objetivo de eliminar os tempos mortos ou a porosidade da jornada de trabalho e, assim, tornar sua execuo mais produtiva. Henry-Ford empregou os princpios tayloristas em sua fbrica Ford Motor Co., em 1913, introduzindo inovaes tcnicas e organizacionais baseadas
Sobre os modelos de Estado, ver Pereira e Linhares, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo. (N. E.). 5 Friedrick Taylor (1856-1915) foi um engenheiro norte-americano que desenvolveu os princpios de racionalizao produtivista do trabalho. A obra principal de Taylor, publicada em 1911, chama-se Princpios da Administrao Cientfica.
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na linha de montagem. A linha da montagem evita o deslocamento dos trabalhadores e mantm um fluxo contnuo e progressivo das operaes, proporcionando eficincia para produzir em massa. Os princpios tayloristas-fordistas foram aplicados de tal maneira generalizada e intensiva, que configuraram o modelo explicativo de acumulao do capital no perodo compreendido desde o final da Primeira Guerra Mundial at meados dos anos de 1970. O trabalho baseado nesse modelo tornou-se extremamente repetitivo, parcelado e montono, sendo sua velocidade e ritmo estabelecidos independentemente do trabalhador, que o executa atravs de um rgido controle e disciplina. Ao trabalhador cabe, ento, somente seguir o protocolo de trabalho, executando suas funes exatamente como so prescritas, sem qualquer autonomia para propor ou realizar qualquer tipo de alterao nessa prescrio. Estudos sobre o trabalho indicaram, porm, que, mesmo sob forte controle, o trabalhador interage com seu objeto de trabalho exercendo sempre algum nvel de criatividade em face do trabalho prescrito. Essa interao, normalmente, tende a aprimorar a qualidade e a eficincia do trabalho. Dela podem advir alteraes provenientes da capacidade analtica e crtica do trabalhador em relao ao protocolo de trabalho, e, por vezes, tais alteraes servem para gerar tempos ociosos dos quais o trabalhador tira certa vantagem, desde que essas alteraes no sejam incorporadas no protocolo. Isto comprova que, por mais que a gesto do trabalho se baseie na separao entre trabalho intelectual e trabalho manual, h sempre uma dimenso intelectual em todo trabalho, pelo simples fato de a conscincia ser uma caracterstica humana. Os saberes que os trabalhadores constroem e mobilizam nessa interao com o seu objeto de trabalho, promovendo alteraes sobre o que estava prescrito e, desta forma, aprimorando o processo de trabalho e facilitando tambm seus procedimentos, so chamados de saberes tcitos. Esse nome se deve ao fato de tais saberes serem exclusivos dos trabalhadores e no se explicitarem em nenhum protocolo. Ao contrrio, eles ficam guardados ou silenciados com quem os detm, inclusive como forma de preservar uma relativa autonomia que a gesto taylorista-fordista visa reduzir completamente. Os saberes tcitos so o que diferencia um trabalhador de outro, mesmo que esses tenham que seguir o mesmo protocolo de trabalho. Por isto, eles servem tambm ao trabalhador como um trunfo nas relaes de trabalho, com vistas sua pre51
servao e a do seu emprego. O trabalho real, assim, corresponde ao trabalho prescrito modificado pelos saberes tcitos dos trabalhadores. O reconhecimento dos saberes tcitos pela gesto do trabalho tem gerado mudanas organizacionais que visam fazer com que esses saberes sejam explicitados e, assim, incorporados aos protocolos de trabalho. Esse investimento tende, por um lado, a conferir maiores nveis de autonomia ao trabalhador, mas, por outro, a expropriar os trabalhadores de seus saberes tcitos. O processo de valorizao dos saberes tcitos dos trabalhadores adquire maior relevncia quando a rigidez da diviso tcnica e do controle do trabalho sob os moldes tayoristas-fordistas vai dando lugar a processos flexveis de produo. Nesses processos so enfatizadas as capacidades de os trabalhadores enfrentarem, com autonomia e responsabilidade, situaes imprevistas ou eventos. Os eventos podem ser entendidos como aquilo que ocorre de maneira particularmente imprevista, surpreendente, vindo perturbar o desenvolvimento normal do sistema de produo. Podem ser compreendidos tambm como questes inditas postas pelo ambiente e que mobilizam as atividades de inovao. Trabalhar flexivelmente implicaria, ento, atentar vigilantemente a esses eventos, em torno dos quais se recolocariam as intervenes humanas mais complexas e mais essenciais. A noo de eventos sustenta a noo de competncia na gesto do trabalho, que no poderia ser fechada nas pr-definies de tarefas a efetuar no posto de trabalho, ou depender do trabalho prescrito, principalmente porque a competncia pertence essencialmente ao indivduo. A competncia deveria, face a um evento, ser automobilizada pelo indivduo na situao concreta. Uma organizao preparada para gerir eventos modifica-se conforme as seguintes caractersticas: exigiria uma parte de iniciativa do prprio indivduo, independentemente dos prescritores ou da hierarquia administrativa; valorizaria o saber e a ao no s do indivduo singular, mas a rede de saberes mobilizados para o enfrentamento de eventos mais complexos; compreenderia o trabalho como uma srie de eventos, de situaes singulares que se entrechocam, relacionando-se uns com os outros, num regime de modificao (e no de repetio) da maneira de produzir; modificaria a maneira de examinar as aprendizagens profissionais e de avaliar a experincia
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de um trabalhador pelo fato de essas se ordenarem em torno do enfrentamento de eventos; trataria de analisar os eventos, critica e sistematicamente, quando possvel, antecipando-os preventivamente (Ramos, 2001: 177-178). Para que o trabalhador possa agir dessa maneira, preciso que ele disponha de um modelo mental sobre seu processo de trabalho e de possveis aprimoramentos a serem feitos. Isto depende de uma formao terica sobre o processo de trabalho, de um bom conhecimento espacial dos ambientes em que ele se realiza e dos objetivos da produo. Essa necessidade incompatvel com a diviso do trabalho intelectual e manual e com as relaes de produo que alienam o trabalhador do produto de seu trabalho. Como a superao dessa diviso no de interesse do capital, podemos concluir que as tendncias de flexibilizao do trabalho e de valorizao do trabalho real, mais do que o prescrito, so eivadas de contradies que podem ser enfrentadas pelos trabalhadores ou pelo capital, respectivamente, na perspectiva da emancipao ou da intensificao da explorao. O capital no tem um interesse ingnuo na valorizao da autonomia e no reconhecimento dos saberes tcitos dos trabalhadores. Ao contrrio, o que se pretende um permanente processo de apropriao seus saberes como forma de garantir as constantes melhorias que precisam ser inseridas na produo de bens e servios para intensificar a extrao de mais-valia. Este um tema, portanto, que se coloca no terreno das disputas entre capital e trabalho, o que justifica a pertinncia de prosseguirmos, nos espaos de realizao do trabalho e de organizao poltica, com a reflexo sobre seus limites e potencialidades. O Resgate da Dimenso Ontolgica do Trabalho em Sade Por serem social e historicamente determinadas e construdas, as necessidades de sade de uma populao so atendidas por polticas que expressam os princpios, os valores e as normas de sociabilidade prprios de determinadas fases de desenvolvimento do modo de produo capitalista. Portanto, as aes voltadas para o atendimento dessas necessidades se realizam conforme a organizao dos servios de sade, configuradas politicamente segundo os modelos de Estado.
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Em contrapartida, as necessidades sociais so historicamente produzidas pelas relaes que os homens desenvolvem para produzir sua existncia material e espiritual. Visto pelo prisma ontolgico, a ateno em sade poderia ser compreendida como a ao humana destinada ao cuidado do/ com o outro. Se, por esse sentido, o trabalho no uma mercadoria, mas a mediao primeira na produo da existncia humana, o trabalho em sade seria o meio pelo qual a existncia produzida e mantida como bem-estar fsico, mental e social. A transformao do trabalho em mercadoria sob o modo de produo capitalista, entretanto, tambm reconfigura o trabalho em sade como produtor de um bem-estar definido pelos padres de produo. medida que o ser humano se coisifica, sendo obrigado a transformar sua fora de trabalho em fator de produo, reduzido em sua humanidade. Nessas condies, o trabalho em sade se reduz produo e manuteno de vidas objetivadas e reduzidas tambm a fatores de produo. A integralidade da ateno sade, uma das diretrizes bsicas do SUS, que o diferencia, como diz Mattos (2001), de toda a tendncia mundial na rea da sade, recoloca o sentido que tem o trabalho em sade na subjetivao da vida. Ou seja, na reconstituio da humanidade das pessoas em face das suas necessidades de sade. Desse modo, o trabalho em sade resgata seu sentido ontolgico, pois a ateno integral em sade se volta para as necessidades do ser humano como sujeito e no como objeto do capital. Discutindo os sentidos que o conceito assume, Mattos (2001) demonstra que a integralidade, alm de uma caracterstica da atitude dos profissionais de sade, pode ser compreendida como a articulao entre assistncia e preveno e, assim, da assistncia com as prticas de sade pblica, envolvendo todos os profissionais e espaos de sade. Algumas condies necessrias para isto so: a) a existncia de uma certa horizontalizao de modelos que eram, at ento, verticais; b) envolvimento e redefinies radicais da equipe de sade e de seus processos de trabalho. Nesse caso, a integralidade passa a ser uma marca no modo de organizao do processo de trabalho. Por trs desses sentidos deve estar o princpio do direito universal ao atendimento das necessidades de sade. Precisamos perguntar, porm, se em uma sociedade cindida em classes podem determinadas pessoas receber a ateno integral em sade como direito vida, e para outras prevalecer a finalidade restrita de sua reproduo com
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fora de trabalho. A integralidade da ateno depende, portanto, da igualdade, da eqidade e da universalidade no acesso aos servios de sade. Como afirma Cecilio (2001: 113), no h integralidade e eqidade possveis sem a universalidade do acesso garantida. Disto decorre um pressuposto condicionante da integralidade, qual seja: o carter pblico dos servios de sade e, portanto, um modelo de Estado comprometido com polticas sociais pblicas e universais. O carter contraditrio do trabalho em sade nos leva discusso da integralidade como atributo das prticas dos profissionais de sade e das organizaes dos servios (Mattos, 2001). Isto nos remete a outra contradio prpria do modo de produo capitalista, que a diviso tcnica, conforme vimos, entre trabalho intelectual e trabalho manual, trabalho simples e complexo. Tal diviso distingue dirigentes e dirigidos e se objetiva na distribuio de tarefas e responsabilidades aos membros de um grupo de trabalho, de acordo com a natureza e o grau exigido de qualificao. qualificao correspondem critrios de classificao de cargos, salrios, funes e atribuies. Diante disto, perguntamos finalmente: como possvel superar as caractersticas dos processos de trabalho em sade que reproduzem essas separaes e resgatar o sentido ontolgico do trabalho em sade? Referncias BRASIL. Ministrio da Sade. Ministrio da Educao. Referencial Curricular para o Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade . Braslia: Ministrio da Sade, 2004. CECILIO, L. C. O. As necessidades de sade como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqidade na ateno em sade. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. (Orgs.) Os Sentidos da Integralidade na Ateno e no Cuidado Sade. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, 2001. FRIGOTTO, G. Concepes e mudanas no mundo do trabalho e o ensino mdio. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. & RAMOS, M. (Orgs.) Ensino Mdio Integrado: concepo e contradies. So Paulo: Cortez, 2005. LIEDKE, E. R. Trabalho (verbete). In: CATTANI, A. D. (Org.) Trabalho e Tecnologia: dicionrio crtico. Petrpolis: Vozes, 1997. LUKCS, G. As bases ontolgicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Cincias Humanas, 4: 1-18, 1978. MARX, K. O Capital. Resultados do Processo de Produo Imediata. So Paulo: Editora Moraes, 1969. (Captulo VI, indito)
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Bases Histrico-Conceituais para a Compreenso do Trabalho em Sade

Jlio Csar Frana Lima Introduo Podemos dizer que o trabalho em sade surge a partir do momento em que o homem procura dar respostas s suas necessidades de sade. Precisamente, a partir do momento em que comea a se perguntar sobre seus carecimentos e as possveis formas de resolv-los, e quando, com a resposta, funda e enriquece esse tipo de trabalho com as mediaes que articula para satisfazer tais carecimentos. Essas necessidades variam de sociedade para sociedade e dentro de uma mesma sociedade em distintos momentos histricos, configurando aos poucos uma estrutura de normatividade em que os homens vo definindo o que normal e patolgico para a vida social e individual. Essa dimenso ontolgica necessria para a reproduo dos homens em sociedade fundamenta toda atividade laborativa, e, por isso, Lukcs (1978) diz que se pode designar o homem que trabalha como um ser que d respostas e que tanto a pergunta como a resposta so produtos da conscincia. isto que distingue o trabalho humano de todos os outros tipos de trabalho: o papel ativo e decisivo que joga a conscincia no processo de produo da existncia, na medida em que o produto um resultado que no incio do processo existia j na representao do trabalhador, isto , de modo ideal (Lukcs, 1978: 4). Nessa medida, o carecimento material, para esse autor, o motor do processo de reproduo individual e social (p. 5). Por isso, podemos dizer, que a satisfao das necessidades de sade um dos elementos fundamentais para a sobrevivncia dos homens em sociedade. A capacidade de os homens responderem aos seus carecimentos acompanha o prprio desenvolvimento social, e, para que a satisfao ocorra, eles devem mobilizar no s o complexo do trabalho como tambm uma cadeia de mediaes que, do ponto de vista ontolgico, apontam para a possibilidade tanto do desenvolvimento do trabalho em nveis cada vez mais complexos, no sentido do seu aperfeioamento, quanto do desenvolvimento dos prprios homens que trabalham. J no se trata, ento, de uma adaptao passiva ao
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ambiente, meramente reativa, mas de uma adaptao ativa, que transforma consciente e ativamente o mundo circundante. Portanto, as necessidades de sade, assim como as respostas que os homens mobilizam para satisfaz-las, devem ser entendidas na sua historicidade e na sua articulao com a totalidade social da qual emergem e fazem parte. Em outras palavras, a re-produo das necessidades de sade e a constituio do trabalho em sade devem ser entendidas em suas conexes com os modos histricos de produo da existncia.1 No presente artigo, o objetivo analisar a re-configurao, o desenvolvimento e a organizao do trabalho em sade com a emergncia da sociedade capitalista. Com o advento desse novo modo de produzir a vida, o corpo humano adquire um novo significado social, como sede da fora de trabalho, o que torna o trabalho em sade um elemento estratgico tanto para o capital, pelo controle das tenses sociais a partir do aumento do consumo das classes subalternas, quanto para os trabalhadores, pelas perspectivas abertas de ampliao efetiva dos direitos sociais, constituindo, assim, novas e contraditrias necessidades de sade. Esta anlise ser realizada a partir da indicao metodolgica de Foucault (1981), que, ao historicizar o nascimento da medicina social no Ocidente, identifica trs modalidades: a medicina de Estado, a medicina urbana e a medicina da fora de trabalho. Essas formas de organizao do trabalho em sade no se excluem mutuamente, pelo contrrio, se superpem no tempo e em espaos scio-histricos diferenciados; influenciam e so influenciadas pelo processo de constituio do capitalismo na Alemanha, Frana e Inglaterra, respectivamente. Antes, porm, com base em Luz (1988) e Mendes Gonalves (1992), discutimos o desenvolvimento da racionalidade mdica, entendendo-a como parte integrante e produtiva da racionalidade moderna, que se instaura sob o capitalismo, com profundas implicaes na disciplina do corpo individual e na disciplina do corpo social. Essa medicina racionalista, profundamente influenciada no seu incio pelo mecanicismo, vai tornar-se a estrutura epistemolgica do trabalho em sade, ao mesmo tempo que vai erigindo o corpo individual como seu objeto de trabalho privilegiado, sem deixar de ser tambm uma disciplina do social.
Sobre necesssidades de sade, ver Batistella, texto Sade, doena e cuidado: complexidade terica e necessidade histrica, no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena, nesta coleo (N. E.).
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BASES HISTRICO-CONCEITUAIS
A Constituio da Racionalidade Mdica Moderna Mendes Gonalves (1992) identifica o trabalho do xam, feiticeiro ou paj como uma das formas mais antigas de trabalho social que se organizou ao redor do que se tenderia a compreender como necessidades de sade. Essas necessidades e as intervenes geradas para respond-las no podem ser pensadas como certas ou erradas, mas como scio-historicamente determinadas, e o significado destas s pode ser entendido no conjunto da sociedade em que o xam vive e trabalha a sociedade comunitria primitiva. Nessa sociedade, a concepo de doena prevalecente tem sua base em um pensamento mgico, que associa o mal presena de certas entidades, coisas animadas que se apossam do indivduo ou que se agregam a ele, fazendo-o sofrer. Diferentemente do pensamento religioso, o xam concebe essas entidades no mesmo plano da realidade imediata onde esto todas as outras coisas, manipulandoas atravs de rituais, com o objetivo de exorciz-las e expuls-las do corpo do homem. Atravs de muitas particularizaes, de muitas mudanas de sentido e de objetos aparentes, segundo Mendes Gonalves, pode-se dizer que durante toda a histria das sociedades ocidentais at praticamente o final do sculo XVIII os objetos de trabalho postos nos processos de trabalho em sade tiveram sempre a caracterstica de entidades (Mendes Gonalves 1992: 31 grifos meus). Com isso, o autor aponta que, com exceo da Grcia Clssica, onde se desenvolve a medicina hipocrtica,2 o que predomina durante todo o perodo da Idade Mdia at o sculo XVIII a concepo de doena desenvolvida pelo cristianismo.
A medicina hipocrtica rompe com a estrutura mtico-religiosa do saber cotidiano e constitui as bases do conhecimento sistemtico da natureza de carter filosfico-cientfico, no qual a doena deixa de ser, durante alguns sculos, uma entidade com vida prpria. Ela se desenvolve na Grcia para satisfazer as necessidades de sade dos cidados livres da plis, to proprietrios quanto o mdico do saber filosfico geral sobre a natureza, no se destinando a atender s necessidades dos escravos ou dos pequenos artesos livres, denotando a o seu carter de classe. A concepo de natureza como estado de equilbrio dinmico da realidade, dentro da qual o homem se inclui, leva concepo de doena como reao espontnea natural (da natureza) ao desequilbrio, com intenes de cura. Dado o lugar do homem dentro da natureza, essa concepo de doena est subordinada a uma concepo positiva da sade, no como um estado neutro e silencioso do qual est ausente o desequilbrio, mas como objetivo a ser alcanado atravs da compreenso e da adeso s regras verdadeiramente naturais. A doena aqui no um ser, mas um estado qualitativo da natureza e, ao mesmo tempo, no do homem, mas apenas est nele, medida em que ele parte da natureza. Ver Mendes Gonalves (1992: 31-33).
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Para o pensamento religioso, a doena uma provao, o preo a ser pago para alcanar o paraso, e as entidades no esto na realidade imediata como no pensamento mgico do xam, esto para alm dela. Assim sendo, o ncleo central da atividade teraputica desloca-se, paradoxalmente, da interveno para a expectncia, isto , para o acompanhamento solidrio do transe do sofrimento para a morte e para a vida eterna. Com isso, para Mendes Gonalves, tem-se duas conseqncias importantes para o trabalho em sade, at o desenvolvimento e consolidao da sociedade capitalista. A primeira, que por ser expectante e passiva, essa medicina crist suscita um desenvolvimento tecnolgico relativamente escasso, opondo, assim, religio e tecnologia. Em segundo lugar, a organizao do trabalho em sade sob a forma de assistncia, incentivada pelo trabalho religioso, se difunde e fica como herana para o processo de trabalho em sade, com as assimetrias, hierarquias e poderes a implicados. Esse reino sobrenatural do pensamento religioso comea a ser abalado e, posteriormente, abolido, com o desenvolvimento e constituio da denominada racionalidade cientfica moderna, contempornea do Renascimento no sculo XVI. Esse momento histrico, segundo Luz (1988), no deve ser visto como a passagem para a racionalidade, no sentido de uma travessia das trevas para a luz, mas compreendido como uma poca de transformaes sociais e de ruptura de viso-organizao do mundo, uma fase de snteses e continuidades. Uma poca que contesta os limites do que se pode pensar e daquilo que se deve crer, mas tambm do que pode ser e do que se deve fazer. Tanto para Luz quanto para Mendes Gonalves (1992), a racionalidade mdica parte integrante e produtiva da racionalidade moderna, que tambm no deve ser identificada com a idia weberiana de um tornar-se progressivamente racional, mas deve ser vista como o avano histrico de uma forma especfica de racionalismo. Um racionalismo filosfico, verdade, mas tambm social, que funciona como estrutura epistemolgica de explicao e ordenao dos seres e do mundo, e como princpio moral das relaes entre os homens e as coisas, e dos homens entre si (Luz, 1988: 29). Sendo assim, a cincia moderna mais que uma forma de desvendamento do mundo, ela , sobretudo, uma forma de ordenao do mundo; uma forma de decodificao do significado das coisas e eventos, mas principalmente de atribuio de ordens de sentidos, atravs da prtica sistemtica de um conjunto de operaes que constituem o mtodo cientfico.
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HISTRICO-CONCEITUAIS
A partir dessa poca, foi sendo moldada uma estrutura de explicao do mundo e do ser humano que, para Luz, mantm at os dias de hoje dois traos estruturais. Em primeiro lugar, a atitude antropocntrica ativa que caracteriza o Renascimento. Ou seja, trata-se da afirmao do homem proprietrio da natureza, da ciso entre a ordem divina e a ordem humana e entre esta e a ordem natural; trata-se da representao da alteridade da natureza face ao humano e o correspondente carter de estranheza e de objetividade da Natureza face ao homem. Alteridade com a consistncia de objeto cognoscvel e que vai produzindo uma profuso de imagens e metforas da Natureza como engenho, mquina, autmato, cujos mecanismos devem ser expostos. Ao ser coisificada, a Natureza torna-se objeto e a razo torna-se sujeito do conhecimento. Esta a condio epistemolgica e ontolgica para que o homem possa conhec-la e mold-la, para que coloque sobre a Natureza o selo da razo. O segundo trao estrutural que nasce dessa atitude pragmtica e crtica em relao ao saber constitudo, da busca sistemtica de ordens de sentido a partir de evidncias empricas e da construo artesanal de mtodos para a produo de novos saberes, o experimentalismo, atravs do mtodo cientfico moderno. Um novo modo de produzir verdades, fundamentalmente utilitrio, na medida em que se volta para a soluo de problemas imediatos impostos pela realidade estabilizao da produo agrcola, domnio dos ventos e oceanos para possibilitar os descobrimentos nuticos e a conquista de novas terras, o controle das revoltas populares, das guerras e das doenas venreas, pestes e outras epidemias , e, ao mesmo tempo, exploratrio, interventor e desbravador. Seu carter exploratrio se evidencia pela busca de novas explicaes para coisas e eventos e pela proposio de novas ordens de significados dessas mesmas coisas e eventos, a partir da experimentao de novos modelos de observao, da construo de engenhos e autmatos e da elaborao de linguagens capazes de expor esses eventos, das quais firma-se como a mais importante a matemtica, a linguagem da razo. A criao de instrumentos de observao emprica expressa a dimenso interventora baseada no experimentalismo, dando incio era da tecnologia da cincia e ajudando a fazer da racionalidade moderna, cada vez mais, um modo especfico de produo de verdades especficas atravs das disciplinas cientfi61
cas. Por ltimo, o carter desbravador evidencia-se tendo em vista que o experimentalismo se constitui como estratgia de desvelamento das coisas ocultas na Natureza, sejam elas de ordem material ou de ordem intelectual. Se hoje a metfora da mquina, to bem expressa no mecanismo do relgio, no mais levada a srio nas disciplinas mais avanadas, como a fsica, a qumica, astronomia e em certos ramos da biologia, a tendncia metodolgica a decompor o objeto em elementos, a comparar esses elementos entre si e orden-los em uma totalidade racionalmente montada e hierarquicamente recomposta, permanece dominante na base da maioria das disciplinas, sobretudo nos grandes ramos das cincias mais prximas da vida humana: a biologia e a medicina, ou melhor, uma certa medicina racionalista e mecanicista. Mas, se essas foram as condies para tornar a Natureza objeto da cincia e fora produtiva, a ruptura mais significativa da racionalidade moderna, para Luz, a ruptura do prprio sujeito do conhecimento o homem , que ser dividido em vrios compartimentos: razo, paixes, sentidos e vontade. Esta compartimentalizao, que se afirmar entre a segunda metade do sculo XVII e o final do sculo XVIII, com a emergncia do capitalismo industrial, que cria as condies histricas para tornar o homem, tal como a Natureza, objeto da cincia, isto , para naturaliz-lo, torn-lo coisa passvel de interveno, de transformao, de modelao e de produo. Se o reino sobrenatural foi abandonado pela cincia como improdutivo para o conhecimento, o mesmo no ocorreu com o reino humano, o mundo das relaes sociais e dos indivduos. O processo de racionalizao social que se desenvolveu na Europa, principalmente na Frana, com Montesquieu e Rousseau, no sculo XVIII, apia-se exatamente na realidade da vida social. As guerras, as epidemias, a fome e a misria, o banditismo, a agiotagem, a loucura, a prostituio e seu corolrio, as doenas venreas, forneceram a matria-prima da interveno e a motivao terica para as instituies e os discursos disciplinares sociais que tentaro, com algum sucesso, desde ento, racionalizar os comportamentos e administrar moralmente o caos social. Entre esses discursos incluindo o da educao que no ser de menor importncia no sentido de mudar a natureza humana e fortalecer a natureza do indivduo est o discurso mdico. neste sentido, que Luz (1988) e Mendes Gonalves (1992) afirmam que as prticas de sade foram uma das frentes mais importantes da constituio da racionalidade moderna, o que reafirma a tese de Donnangelo (1976), de
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que o trabalho em sade uma prtica social e no somente uma prtica tcnica. E isso no se deveu exclusivamente ou mesmo fundamentalmente a um movimento de natureza intelectual, mas decorreu, antes, da capacidade, demonstrada na prtica, de dar conta de forma mais efetiva das novas necessidades sociais de sade, emergentes com o capitalismo. Ao mesmo tempo, tal qual a Natureza, a idia do homem como um autmato superior, como um grande engenho cujo conjunto de peas encaixam-se ordenadamente e se movem segundo uma lgica articuladora, caracterstico do modelo mecanicista, est na base do desenvolvimento dos diversos ramos da medicina, principalmente fisiologia e anatomia, que tiveram um efeito produtivo de verdades teorias e conceitos e de tecnologia inveno de instrumentos de pesquisa. Harvey, em 1628, demonstra a circulao do sangue, com base em uma srie de imagens mecnicas, como bombas, vlvulas, canais, foles, extradas do modelo de engenharia hidrulica da poca; Leeuwenhoek, em 1673, inventa o microscpio; Malpighi, em 1688, descreve a pequena circulao nos capilares sanguneos com o auxlio do microscpio, inaugurando a era da microantomo-fisiologia; Sartrio (1561-1638) mediu, durante anos, sistemtica e experimentalmente, os eventos fisiolgicos, tendo inventado, para ajud-lo em suas observaes, o termmetro clnico; Cowper, em 1694, descreve o sistema muscular; Lzaro Spallanzani (1729-1779) realizou com animais experincias sobre reproduo, circulao e respirao (animal e humana), apoiando as teorias da qumica mecanicista de Lavosier e contrariando as teses vitalistas da gerao espontnea dos germes, atravs de experincias com lquidos aquecidos; Morgagni, no mesmo perodo, utilizou sistematicamente a dissecao de cadveres para suas investigaes clnicas, estabelecendo as bases da anatomia patolgica no sculo XVIII, ponto de partida da anatomoclnica. O mecanicismo ser um trao constitutivo da racionalidade mdica moderna, assim como foi para todas as cincias naturais, e Luz defende a idia de que a lgica mecanicista que supe o homem como uma grande mquina antecede o perodo ureo do mecanicismo clssico (segunda metade do sculo XVII e a primeira metade do sculo XVIII). Para a autora, o imaginrio mecnico chega medicina antes que nas disciplinas nobres da racionalidade cientfica moderna, como a fsica e a astronomia, com a instituio da moderna anatomia e da nova fisiologia, a partir das obras de
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Leonardo da Vinci (1452-1519) e de Andr Veslio (1514-1564), respectivamente, que rompem com as velhas concepes do organismo humano. Apesar desse progressivo conhecimento, a incorporao tecnolgica ao trabalho em sade ocorreu muito lentamente, decorrente talvez da oposio entre o modelo religioso de assistncia ou da medicina crist e o desenvolvimento tecnolgico, como nos indica Mendes Gonalves(1992). Para Singer et al. (1981), essa lenta assimilao do conhecimento pelo trabalho em sade anloga ao atraso da incorporao das conquistas da fsica e da qumica pelo trabalho industrial, o que s ocorreu com a Revoluo Industrial, no final do sculo XVIII. Os autores chegam concluso de que h razes para acreditar que a verdadeira exploso de conquistas no campo mdico, que se verifica a partir da segunda metade do sculo XIX, tambm se explica pelas transformaes scio-econmicas ento ocorridas (p. 20). Mas, para o mecanicismo se realizar no nvel do saber mdico e da prtica clnica, foi necessrio tambm construir um sistema classificatrio das doenas que podiam danificar essa mquina humana, constituindo-se assim a patologia, que se organiza a partir do modelo da botnica e depois da histria natural. Em um primeiro momento, o efeito desse processo, ao nvel do saber, transformar a medicina em um discurso disciplinar sobre a doena e, com a reorganizao dos hospitais, em uma cincia das entidades patolgicas . Assim, a patologia detm sobre a prtica clnica a liderana da teoria e o privilgio da cincia sobre a arte, obtendo-se, dessa forma, uma dupla objetivao: do corpo humano, que se torna a sede das doenas, e das doenas que se tornam entidades patolgicas. Desse ponto de vista, a questo epistemolgica fundamental para Luz que sade, vida e cura tornar-se-o, progressivamente, at o sculo XVIII, questes metafsicas, portanto suprfluas para o conhecimento. Ao desconsiderar a questo da vida, a medicina, aos poucos, ver, na observao dos indivduos doentes, homens vivos, uma fonte de confuso, de des-conhecimento. Essa tendncia exacerba-se com a anatomoclnica do sculo XIX, com a prtica da autpsia. A partir de ento, para a medicina moderna, o conhecimento anatomopatolgico dos rgos, tecidos e sistemas componentes do organismo humano, como sedes das doenas, ser o objeto de conhecimento privilegiado. A sade passar a ser vista cada vez mais no como afirmao da vida, mas como ausncia de doenas.
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BASES
Atravs das categorias de: doenas, entidade mrbida, corpo doente, organismo, fato patolgico, leso, sintomas etc, elaboradas no perodo clssico, a medicina instaurar-se- como discurso sobre objetividades, discurso que institui: a doena e o corpo como temas de enunciados positivos, cientficos. (Luz, 1988: 92)
Nesse processo, a medicina, que antes era a cincia das entidades patolgicas, vai tornando-se progressivamente a cincia do normal e do patolgico, categorias com profundas implicaes na disciplina do corpo doente individual (medicina) e na disciplina do corpo social (sociologia). Portanto, para Luz (1988), a medicina uma disciplina do social (ou cincia social), no por ser portadora de um discurso sobre a sociedade como produtora de doenas, mas pelos efeitos sociais do discurso natural sobre o corpo doente. No se trata de tematizar, como o faz a medicina social, a partir do sculo XIX, como veremos adiante, a realidade social opressora do capitalismo como origem, causa, ou, determinao das doenas. , pelo contrrio, por produzir um discurso natural sobre uma realidade social: o corpo do homem, seu sofrimento, sua morte, atravs da doena (p. 94 grifos da autora). Dessa forma, o trabalho em sade, protagonizado pelo avano da medicina em torno das categorias de doena e organismo, no s integra como parte produtiva da racionalidade moderna uma prtica social e no somente uma prtica tcnica. Mercantilismo e a Medicina de Estado Antes que a clnica se torne soberana entre as prticas de sade, o trabalho em sade comea a ser organizado mais marcadamente na segunda metade do sculo XVIII, pela extenso do campo de normatividade da medicina (Donnangelo, 1976: 47). Isto , o que se generaliza no o cuidado mdico, mas a interferncia da medicina na organizao das populaes e de suas condies gerais de vida, a partir do desenvolvimento da noo de polcia mdica, que emerge no mbito das diferentes sociedades europias, nomeadamente Alemanha, Frana e Inglaterra, configurando um novo modo de articulao das prticas de sade com as estratgias polticas e econmicas da nova estrutura da produo capitalista. a partir da dimenso coletiva do fenmeno sade e doena, ou do trabalho de sade pblica, como ser conhecido mais tarde, que o trabalho em sade se organiza, o que vai contribuir para o prprio desenvolvimento e sistematizao da epidemiologia ou, na sua acepo mais restrita, da higiene, como
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uma rea do saber e da interveno do setor sade no mbito do social, como veremos adiante. A preocupao central que se manifesta nos primrdios do mercantilismo controlar a ocorrncia das doenas, isto , evitar a incapacidade para o trabalho, e no tanto recuperar a fora de trabalho incapacitada pela doena. Isto porque ainda no estavam dados todos os elementos para transformar o hospital em instrumento teraputico, ou seja, com a finalidade de curar os homens. Para isso, ter que esperar o desenvolvimento da fisiologia e da patologia, como instrumentos capazes de realizarem o diagnstico; o advento da era dos micrbios, com o desenvolvimento da bacteriologia e da teoria dos germes; assim como o desenvolvimento do arsenal teraputico farmacolgico, das tcnicas de cirurgia muito limitadas antes do aparecimento da anestesia ; e a profissionalizao do pessoal de enfermagem. Esse hospital comea a ser inventado no final do sculo XVIII, no contexto da I Revoluo Industrial, na Inglaterra, mas s se realiza no incio do sculo XX. Entre 1775-1780, tanto nesse pas como na Frana, mdicos especialmente designados comeam a desenvolver uma nova prtica, a visita e a observao sistemtica e comparada dos hospitais (Foucault, 1981: 99), determinando, com os inquritos hospitalares, um amplo programa de reestruturao do trabalho hospitalar. At ento, os hospitais que funcionavam na Europa desde a Idade Mdia no eram, de modo algum, nem uma instituio mdica com finalidade teraputica, nem a medicina era uma prtica hospitalar. O hospital geral era essencialmente uma instituio de assistncia aos pobres, de separao e excluso no s dos doentes, mas tambm dos loucos, devassos, prostitutas etc., em que a funo mdica no aparece. Era considerado um morredouro, um lugar para morrer, e no um lugar destinado a realizar a cura. O personagem ideal do hospital, at o sculo XVIII, no o doente que preciso curar, mas o pobre que est morrendo (p. 101), que pode ser perigoso para a sociedade em decorrncia do possvel contgio. Em contrapartida, o pessoal hospitalar religioso ou leigo , fazem a uma obra de caridade, procurando assegurar, com isto, a salvao da alma do pobre no momento da morte, ao mesmo tempo que a prpria salvao ao cuidar do pobre. Portanto, a funo essencial do hospital a assistncia espiritual mais do que a material, oferecendo aos doentes os ltimos cuidados e o ltimo sacramento na tran66
BASES
sio da vida para a morte, aliada funo de separao dos indivduos perigosos para a sade geral da populao. Rosen (1980), tal qual Foucault, aponta para essa funo do hospital medieval e renascentista. Entretanto, Donnangelo (1976), chama a ateno para outra funo que a assistncia cumpriu: a de controle das tenses sociais, particularmente na Inglaterra. Quando esse pas sai da Idade Mdia, um dos resultados imediatos do desaparecimento da ordem feudal foi o aumento da pobreza, que passa a ser considerada um perigo potencial para a segurana do Estado.
desintegrao das estruturas feudais e liberao em diferentes graus, nas distintas sociedades, de massas de indivduos desprovidos de meios de subsistncia e de integrao a qualquer coletividade territorial, correspondeu o desenvolvimento de mecanismos de assistncia, tanto pblica quanto privada, que revestem o carter de uma tutela da sociedade sobre tais massas. Essa tutela no implica a elaborao de qualquer idia de direito assistncia mas equivale a uma reao frente insegurana latente gerada pela presena de grupos altamente mveis e vistos como perigosos sociedade, no enquanto categoria social mas como vagabundos e criminosos potenciais. (Donnangelo, 1976: 61)
Da que, aos mtodos violentos de preveno da vadiagem e da mendicncia vm logo agregar-se, naquele pas, o reconhecimento oficial do pauperismo e a formalizao da assistncia, com a aprovao, em 1601, da Lei dos Pobres, que torna cada parquia a menor unidade de governo responsvel pela administrao e gesto dos recursos, com baixa interferncia do poder central. Essa posse ou a reteno geogrfica do pobre foi um mecanismo importante, durante o crescimento gradual da produo manufatureira e industrial, para a conteno das presses que a grande massa desempregada, uma vez efetivamente livre no mercado, poderia exercer sobre a ordem econmica e social. At a reforma dessa lei, em 1834, a pobreza, na Inglaterra, era uma categoria ampla e imprecisa, e o pobre se definia pelo no-trabalho, mas este no-trabalho entendido como indigncia ou mendicncia, jamais como desemprego. O trabalhador pobre era concretamente simbolizado pela figura do indigente, na prtica sinnimo de pessoa comum ou todo aquele que estivesse em estado de necessidade. Em 1696, surge a primeira workhouse que se popularizaria no sculo XVIII , em Bristol, onde, tal qual em um centro de manufatura, os pobres aprenderiam a trabalhar e a se sustentar. Sua funo primria foi a tentativa de transformar o pobre em elemento economicamente produti67
vo (Donnangelo, 1976: 65). Nesse pas, a ideologia do individualismo e do liberalismo econmico antecipou-se em relao s outras sociedades europias, e a pobreza a representa no a manifestao de efeitos negativos da estrutura social, mas uma incapacidade puramente individual e, portanto, um fato de responsabilidade tambm individual. Nesse contexto, a assistncia representou, para Donnangelo, uma das principais condies que impediram a emergncia, na cena poltica, do problema da pobreza como questo social, chegando mesmo a considerar, diferentemente de Rosen, que o carter local e predominantemente privado da Lei dos Pobres, bem como sua nfase discriminatria em relao ao indigente, teria permitido, na Inglaterra, uma assistncia mais regular e uma medicalizao 3 mais efetiva e contnua que em outras sociedades. Rosen no deixa de apontar que, no decorrer dos setecentos, houve um reconhecimento crescente da necessidade de assistncia mdica a certos grupos da populao. Foi nesse perodo, particularmente entre 1714 e 1790, que foram criados dispensrios, hospitais gerais e hospitais para grupos especficos de pacientes em Londres e nas provncias (Rosen, 1980: 210), construdos principalmente por contribuies da iniciativa privada (filantrpica), dado os limites de ao do governo local. Dessa forma, a legislao de 1601 vai representar, durante mais de dois sculos, um mecanismo importante de controle social, introduzindo na histria da medicalizao um princpio de interveno mdica que corresponde tanto a uma forma de permitir que a pobreza tenha acesso em algum grau ao cuidado mdico quanto a uma modalidade de defesa econmica e poltica da sociedade (Donnangelo, 1976: 64).4 Sendo assim, duas preocupaes centrais dominam os debates dos ento incipientes Estados nacionais: o combate pobreza, que ser controlada pela assistncia, e o crescimento da populao, que ser incentivado
Por medicalizao, Donnangelo entende a extenso da prtica mdica a setores cada vez mais amplos da sociedade. Isso ocorre em dois sentidos: o primeiro pela ampliao quantitativa dos servios de sade e a incorporao crescente das populaes ao cuidado mdico; o segundo, pela extenso do campo de normatividade da medicina por referncia s representaes ou concepes de sade e dos meios para obt-la, bem como s condies gerais de vida. Mas, para essa autora, esse processo de medicalizao no foi um fenmeno simples e linear de aumento de consumo; pelo contrrio, representa uma complexa dinmica econmica e poltica na qual se expressaram os interesses e o poder de diferentes classes sociais. 4 Sobre aspectos histricos da cidadania na Inglaterra, ver Reis, texto Cultura de direitos e Estado: os caminhos (in)certos da cidadania no Brasil, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).
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pelo controle da ocorrncia de doenas, ou pelo que mais tarde ser reconhecido como o trabalho de sade pblica, e eventualmente pelo estmulo ao casamento e procriao. Como parte da nova estratgia poltico-econmica impe-se pensar a populao, registr-la, control-la e formular os princpios de sua relao com o poder do Estado, a quantidade de populao fundamental para que o Estado possa repousar sobre bases econmicas e polticas slidas (Donnangelo, 1976: 49). Por outro lado, torna-se fundamental para dar conta da expanso de um capitalismo que cada vez mais penetra na produo, tornando-se manufatureiro. Assim, a preveno de danos populao torna-se condio primordial para aumentar a capacidade produtiva, que possibilite a acumulao de riqueza, a constituio dos exrcitos e, conseqentemente, o aumento da fora do Estado e do poder das monarquias absolutistas, que, no continente europeu, apoiavam a expanso do capital mercantil ou manufatureiro. Portanto, qualquer diminuio da produtividade do trabalho causada por doena ou morte era um problema econmico significativo. Conseqentemente, as medidas destinadas a preveni-las eram objeto de profunda considerao, e o trabalho em sade devia ser capaz de remover todos os obstculos para aumentar a populao apta para o trabalho produtivo. Da decorre principalmente a necessidade de calcular a fora ativa das populaes, de definir as condies de seu crescimento e de implantar medidas capazes de favorec-lo. Para o capital mercantil, a produo industrial torna-se cada vez mais central na atividade econmica, e a economia poltica clssica passa a considerar o trabalho como a principal fonte de riqueza, elemento essencial para o enriquecimento nacional. Nesse contexto, comea a se desenvolver uma nova concepo de trabalho, no mais ligada noo de tripalium,5 que, do ponto de vista educativo, tem como base o aprimoramento das habilidades manuais e a represso a qualquer movimento de criatividade dos trabalhadores, mas noo de labor, que se difunde, apoiada na idia de que o desenvolvimento da mquina significava a liberao do homem do trabalho penoso, e que iria representar e consolidar a enorme fora revolucionria da ordem burguesa ento
Instrumento feito de trs paus aguados, algumas vezes munidos de pontas de ferro, utilizado por agricultores para bater o trigo, as espigas de milho e o linho, com o objetivo de rasg-los e esfiap-los. Entretanto, mais conhecido como instrumento de tortura, e com esse sentido que a palavra trabalho significou por muito tempo e ainda significa algo como sofrimento, padecimento e cativeiro, conforme Nosella (1987) e Albornoz (1986).
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nascente. A mquina passa a significar a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho para transformar o homem escravo em cidado poltico, culto e artista, emulando o desejo de que suas mos pudessem dispor de tempo para a poisis, isto , para as aes criativas, sociais e polticas.
O drama do Prometeu acorrentado ainda a imagem mais plstica e expressiva da luta do homem para a libertao do trabalho como instrumento de tortura. O novo fogo que o herosmo humano roubar do Olimpo da razo sem dvida ser a moderna forma de organizar o trabalho produtivo, isto , a nova diviso do trabalho e, sobretudo, a mquina. Pelas mquinas, as mos do homem, conforme pensavam os cientistas do Renascimento, ficariam cada vez mais longe da terra e livres. A partir dos sculos XV e XVI o trabalho exige do homem cada vez menos habilidades das mos e cada vez mais a livre disponibilidade do corpo. [...] O trabalhador da modernidade, em funo do trabalho manufatureiro e industrial, e como conseqncia do xodo rural, sente-se livre como pssaros, dir Marx. (Nosella, 1987: 31-32).
Albornoz (1986), contudo, destaca outro aspecto associado a essa nova viso do trabalho, que tem na reforma protestante a sua base. Com Lutero, o trabalho sofre uma reavaliao dentro do cristianismo, deixando de ser visto como uma punio para o pecado, que servia aos fins ltimos da caridade, e passa a ser entendido como a base e a chave da vida. Nesse sentido, todo aquele capaz de trabalhar tinha o dever de faz-lo, e o trabalho torna-se uma virtude, um modo de servir a Deus e caminho religioso para a salvao, ao mesmo tempo em que o cio passa a ser encarado como antinatural e pernicioso. Para esse cristianismo, a diviso do trabalho e a diferenciao dos homens em camadas e profisses [...] parece ser o resultado da vontade divina (p. 55). Da que a pobreza no s abominada como suas causas so atribudas falta de vigor moral e labuta sistemtica. Assim, pouco a pouco, o corpo humano passa a ter um significado social novo e original, ele passa a ser a sede da fora de trabalho. Agora, no interessa mais escravos e servos fixados nas terras e feudos, mas homens livres para um mercado de trabalho em expanso, onde podero dispor de sua fora, de seu corpo, e livremente comercializ-la com o capitalista em troca de salrio. Dada natureza dessa relao social, na qual proprietrios de riqueza empregam o trabalho de no-proprietrios para produzir mais riqueza, essa mercadoria especial, que produz valor, deve ser comprada e vendida no mercado de trabalho como qualquer outra mercadoria. Essa fora de trabalho livre, pronta para ser vendida e consumida nos processos de trabalho, por um lado, deve ser
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educada e aprimorada, no sentido de torn-la mais adequada s novas funes nas fbricas e nos servios modernos. Segundo Nosella (1986), a educao burguesa, to bem refletida na Ilustrao francesa, no sculo XVIII, ao invs de cultuar as habilidades manuais, vai reforar o nivelamento cultural, o amor ao trabalho que liberta, o amor disciplina, transmitir informaes bsicas de cincias naturais e mecnicas, difundir uma religio natural, defender o esprito laico e o individualismo civil. 6 Todavia essa fora de trabalho deve estar disponvel em quantidades e qualidades adequadas nova dinmica da produo social, muito mais vulnervel sua carncia relativa (Mendes Gonalves, 1992: 35). De incio, a populao era relativamente escassa, e entre os fatores responsveis por essa escassez incluam-se as condies sanitrias ento vigentes. Durante o sculo XVII e desde antes, os pases europeus eram freqentemente acometidos por epidemias de peste, difteria, tuberculose, sarampo e febre tifide. As primeiras estatsticas vitais compiladas nesse perodo, como as de William Petty (1623-1687), mdico ingls, chamaram a ateno para as altas taxas de mortalidade infantil. De acordo com sua aritmtica poltica,7 os problemas de doena e de sade da populao deviam ser prioritrios dado sua importncia para a fora poltica e econmica do Estado e, nesse mbito, era fundamental o controle das doenas transmissveis, principalmente a peste, e a diminuio da mortalidade infantil.
Foucault (1979) relata que a Frana normalizou primeiro os canhes, a fim de assegurar a utilizao por qualquer soldado de qualquer tipo de fuzil e a reparao de qualquer canho em qualquer oficina, e depois normalizou seus professores. As primeiras Escolas Normais, destinadas a dar a todos os professores o mesmo tipo de formao e, por conseguinte, o mesmo nvel de qualificao, data de 1775, antes de sua institucionalizao em 1790. A Alemanha, ao contrrio, normalizou primeiro seus mdicos, no mesmo perodo. 7 William Petty considerado pioneiro no estudo quantitativo dos fenmenos sociais, atravs do uso dos mtodos estatsticos na sade pblica. Rosen (1980) diz que as propostas de Petty refletiam o ideal de vida da ascendente classe mdia inglesa, inspiradas no utilitarismo, no individualismo e na filosofia experimental. Sua aritmtica poltica um mtodo de anlise funcional e de medio, com o objetivo de tratar os problemas econmicos e sociais. Para ele, no interessava o clculo por si mesmo, mas sua relao com os problemas poltico, econmico ou social, a partir dos quais deveriam tomar as medidas necessrias que acarretassem o aumento do poder e da riqueza nacionais. Pioneiro no uso da estatstica, comeou a procurar regularidades matemticas em acontecimentos como nascimentos e mortes, incidncia de doenas e outros. Essa tendncia de matematizar os fenmenos sociais e, especificamente, o desenvolvimento da estatstica, est associada ao desenvolvimento da capacidade de formalizao matemtica do raciocnio abstrato, prprio da racionalidade cientfica moderna; ao uso do conhecimento matemtico na busca de regularidades no mundo fsico; sua influncia nos campos poltico e econmico; e necessidade crescente da populao em aprender a calcular e medir.
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Era essencial tambm conhecer o nmero da populao total de homens e mulheres do pas, a distribuio por idade, causas de morte, nmero de nascimentos etc. Mas era importante conhecer principalmente o valor do povo, isto , o nmero dos grupos da populao considerados mais produtivos, tais como fazendeiros, manufatureiros, comerciantes, marinheiros e soldados, da sugerindo estudos especficos sobre a morbidade e mortalidade nas diferentes profisses. Para Donnangelo (1976), a diferenciao do trabalho em sade e, mais especificamente, da prtica mdica conforme se destine aos diferentes grupos sociais no um fenmeno histrico que se instaura com o capitalismo. O que novo nesse novo modo de produo da vida que essa diferenciao adquire especificidade como decorrncia da forma pela qual nele se projetam o fator trabalho e as relaes de classe. Assim que, concomitante progressiva medicalizao da sociedade capitalista, verifica-se, de um lado, a seleo de grupos sociais a serem incorporados ao cuidado mdico, conforme o seu significado para o processo econmico e poltico, e de outro, uma diferenciao das instituies de sade voltadas para diferentes tipos de aes e clientelas. Essa aritmtica poltica visa essencialmente retirar os obstculos ao pleno desenvolvimento da prosperidade nacional e aumentar o poder do Estado, mais do que melhoria das condies de sade da populao, e ocorre especialmente na Inglaterra, Frana e Alemanha, durante os sculos XVII e XVIII. Em todos esses pases estabelecem-se programas para o clculo da populao atravs de estatsticas de nascimento e de mortalidade, bem como polticas eventuais de estmulo aos casamentos e nascimentos. Mas foi na Alemanha que a idia de aumentar e controlar a populao, e particularmente o nvel de sade desta atravs da ao mdica, mais se desenvolveu, a partir da noo de Medizinichepolizei ou polcia mdica (1764),8 con8 O termo polcia deriva do termo grego politeia, que significa constituio ou administrao de um Estado. Ao final do sculo XVIII, a cincia da polcia, como refere Rosen (1980), se constitui como um sistema de pensamento e comportamento administrativo que referia todas as atividades ao bem-estar do Estado alemo absoluto e mercantilista. O ponto de partida desse sistema eram as condies prticas de segurana, abrangendo os problemas de sade e bemestar, considerados responsabilidade do Estado. O termo polcia mdica popularizou-se em 1764, com o livro de Wolfang Thomas Rau, mas foi a partir dos trabalhos de Johann Peter Frank, publicados em 1779, que vai exercer influncia na Europa e Estados Unidos at o final do sculo XIX. Para uma sntese da discusso em torno da noo de Staatswissenschaft ou cincia do Estado e do processo de estatizao da medicina que ocorre na Alemanha, consultar Foucault (1981: 80-83).
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siderado um marco no pensamento das relaes sociais da sade e da doena. Um conceito abrangente que, com o desenvolvimento do mercantilismo, busca dar solues para uma srie de preocupaes dos Estados nacionais, particularmente a Alemanha, em torno de diversos aspectos da vida social, tais como populao, estatstica vital, organizao da medicina, sade da me e da criana, moradia, vesturio, nutrio, acidentes, ocupao, recreao etc. Segundo seus princpios: a) o Estado deve zelar pela sade da populao; b) os mdicos so responsveis no apenas pelo tratamento dos doentes, mas tambm pelo controle e manuteno da sade da populao; c) esse controle deve atingir todos os aspectos da vida dos indivduos. Para isto, impe-se, restringir o exerccio da medicina a pessoal mdico competente, produto de uma educao regular e eficiente; supervisionar o funcionamento dos hospitais; e promover a educao do povo em matria de sade.
Tais princpios marcaram acentuadamente a prtica mdica na Alemanha e implicaram, em fins do sculo XVIII e princpios do sculo XIX, na implantao de um sistema complexo de observao e registro de nascimentos, de mortes, da morbidade, da ocorrncia de endemias e epidemias, bem como na instaurao de uma srie de mecanismos de controle, pelo poder poltico, da formao do mdico, do exerccio da prtica mdica, dos efeitos dessa prtica sobre o estado de sade das populaes. Implicaram, enfim, em um esquema de disciplinarizao da medicina pelo Estado e em uma correspondente funo de controle atribuda medicina sobre a vida social. Medicina de Estado a forma pela qual Foucault designa essa modalidade de redefinio social da prtica mdica na Alemanha. (Donnangelo, 1976: 51)
Isso significa que at a constituio de uma medicina da fora de trabalho, o corpo que trabalha no objeto de trabalho da medicina, mas o corpo dos indivduos como constituintes do Estado. a fora estatal, em suas dimenses poltica e econmica, que a medicina deve aperfeioar e desenvolver, por meio do controle da doena em escala social e de sua participao no processo mais geral que reorganiza os elementos da vida social na constituio da estrutura de produo capitalista. Portanto, as medidas referentes ao enquadramento da populao no processo de reorganizao social durante o mercantilismo constitui o elemento imediato de uma reestruturao do trabalho em sade, ao mesmo tempo em que o define como prtica social. Rosen (1980) tambm aponta nessa direo, e, para ele, o cameralismo, verso alem do mercantilismo, mais que uma poltica de poder, cujo objetivo supremo era colocar a vida econmica e social a servio dos poderes polticos do
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Estado, mas tambm uma concepo de sociedade, na qual o bem-estar social est intimamente relacionado ao bem-estar do Estado. Na medida em que o poder era considerado como o primeiro interesse do Estado, a maioria dos elementos da poltica mercantilista era explicada e justificada pelo fortalecimento do poder do reino. Politicamente, raison detat era o fundamento da poltica social (p. 146). Desse ponto de vista, o combate ao charlatanismo mdico e a sua contraparte a formao de mdicos competentes foram uma das peas fundamentais para a consolidao da prtica mdica e para o fortalecimento do poder do Estado. A temtica do charlatanismo, j presente na proposta de combate aos prticos desde William Petty, em 1648, e a conseqente necessidade de regular a educao e o exerccio profissional em sade, to recorrente durante a segunda metade do sculo XVIII, foi justificada pela necessidade de promover a sade e aumentar a populao. Segundo Rau (apud Rosen, 1980: 165),
o valor dessas atividades [tratar dos doentes e supervisionar a sade da populao], no que se refere profisso mdica, em grande parte eliminada pelas aes odiosas e nefastas de charlates e curandeiros (...) Para se dispor de um pessoal mdico competente, necessrio decretar um regulamento de polcia mdica que regular a educao mdica, supervisionar boticas e hospitais, prevenir epidemias, combater o charlatanismo e possibilitar o esclarecimento da populao.
Assim toma impulso, no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, a aprovao dos regulamentos mdicos em diversos Estados alemes. Em sua maioria, diziam respeito s qualificaes e deveres do pessoal mdico, ao controle de epidemias, superviso do abastecimento alimentar, ao controle da prostituio e superviso de hospitais. Portanto, uma das aes mais contundentes da poltica de sade no perodo foi, de um lado, a disciplinarizao da medicina pelo Estado; de outro, a funo poltica que a partir da lhe atribuda a disciplinarizao da vida social. Dessa forma, a prtica mdica vai sendo reorientada para estar cada vez mais vinculada s exigncias da acumulao capitalista e da centralizao do poder. Entretanto, Rosen, assim como Donnangelo, chamam a ateno de que, ainda que o conceito de polcia mdica tenha exercido forte influncia nos pases europeus, quando adotado fora da Alemanha pas com forte centralizao de poder e relativo atraso econmico quando comparado Inglaterra e Frana , despojado de seu sentido de amplo controle sobre as condies de vida das populaes e sobre a prpria prtica mdica. A tendncia foi limit-lo s reas
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em que a interveno governamental era aceita com mais facilidade, como no controle das doenas transmissveis, saneamento do meio-ambiente, organizao e superviso do pessoal mdico, e oferta de cuidados aos indigentes. Mesmo na Alemanha, durante o sculo XIX, o conceito de polcia mdica vai perdendo o carter criativo e inovador que teve quando da sua criao, dado que o grau de liberdade e iniciativa individual aumentou socialmente. De todo modo, destaca Donnangelo, as discusses em torno dos princpios de uma poltica nacional de sade representaram o incio de um processo de formulao sistemtica das relaes entre sade e condies de vida nas sociedades europias, que se utilizando de noes como pobreza, trabalho e produtividade retiravam progressivamente a doena do mbito exclusivo do natural ou do biolgico, ao mesmo tempo em que articulavam as prticas de sade aos projetos de reorganizao social. A expresso mais elaborada dessa articulao o desenvolvimento do conceito de medicina social, que emerge em um contexto absolutamente diferente do de polcia mdica, na em medida que expressa a forma pela qual se desenvolveu a luta poltica e a questo social a partir da Revoluo Francesa. Medicina: uma cincia social? Apoiada amplamente sobre vrias classes e camadas sociais, a ascenso da burguesia ao poder poltico na Frana trouxe, com a Revoluo, um princpio poltico-ideolgico inteiramente novo em relao ao trabalho em sade: o princpio da igualdade. E aqui no se est dizendo, como chama a ateno Mendes Gonalves (1992), que as sociedades capitalistas sejam igualitrias, muito ao contrrio, possvel demonstrar que nessa sociedade a desigualdade bsica estrutural. Entretanto, ela se baseia na aceitao da idia de que a igualdade no s desejvel como possvel, e essa ideologia se mantm, durante a maior parte do tempo, s custas do consenso provisrio arduamente construdo, s vezes apenas graas ao recurso fora fsica.
A obteno do consenso acerca das virtudes potenciais dessa forma de organizao social (...) no pode se basear apenas em palavras (...), mas passa necessariamente por conflitos e negociaes em que as concesses feitas so aceitas, ao menos durante um certo tempo, como provas suficientes daquelas virtudes. E as prximas negociaes que vierem a ocorrer se daro sempre em um patamar renovado de realidades objetivas, que deve caracterizar-se enquanto se mantiver a estrutura bsica dessas sociedades, pela manuteno daquela desigualdade bsica e ao mes75
mo tempo por ganhos efetivos das partes mais desiguais. (Mendes Gonalves, 1992: 36)
Nessa dinmica poltico-ideolgica derivada do princpio da igualdade, ampliaram-se, gradativamente, em escala quantitativa e qualitativa, os direitos garantidos s classes subalternas. Mas, alm da ideologia de liberdade e igualdade poltica formais dos cidados sob um Estado baseado no interesse geral do povo, a Revoluo introduziu tambm a questo social, representada pela presena da pobreza no campo poltico.
A doutrina da assistncia pobreza elaborada nos anos que se seguiram Revoluo de 1789 foi inteiramente nova por referncia aos mtodos usuais de tratamento da questo. caridade religiosa deve suceder-se uma laicizao da assistncia, ao fundamento religioso do direito ao cuidado ope-se agora um fundamento social o dever de assistncia da coletividade nacional frente aos cidados que necessitam de auxlio. O direito ao auxlio afirma-se como substituto do direito ao trabalho que a sociedade tem por obrigao assegurar. (Donnangelo, 1976: 54-55)
Esse processo de reforma poltica e social baseado no irrompimento da grande massa do povo na vida poltica implicou novas atribuies para o trabalho em sade, que foi sendo progressivamente reestruturado nos oitocentos, no s na Frana, mas tambm na Inglaterra e Alemanha, como forma de ampliar efetivamente os direitos e o consumo das classes subalternas. Do ponto de vista da prtica mdica, sucedem-se, particularmente na Frana, os projetos de reforma mdica, as medidas visando assistncia obrigatria e gratuita aos enfermos e reestruturao dos hospitais no mais como lugar de confinamento da pobreza, mas como lugar de cura. Do ponto de vista poltico, o engajamento da medicina nas discusses em torno da correo dos males sociais, da opresso e da pobreza, entre outros. A concepo de medicina social, que encontra sua forma mais acabada na primeira metade do sculo XIX, desenvolve-se na Frana tendo como suporte no a estrutura do Estado, como na Alemanha, mas o progressivo fenmeno da urbanizao. Ela se intensifica, na segunda metade dos setecentos, exigindo a organizao das grandes cidades de modo coerente, homogneo, com um poder nico e bem regulamentado, ou, como sintetiza Foucault (1981: 86), pela necessidade de constituir a cidade como unidade. Isso decorrente de razes econmicas, tendo em vista que a cidade um lugar de produo de mercadorias e de mercado, que unifica as relaes comerciais, exigindo, por isso, mecanismos de regulao homogneos e coerentes. Mas tambm por razes polticas, pois o desenvolvi76
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mento da industrializao acompanhado pelo crescente aparecimento de uma populao operria pobre que se vai tornar, no sculo XIX, o proletariado urbano, aumentando as tenses polticas no interior da cidade. So freqentes e cada vez mais numerosas as agitaes e sublevaes urbanas, decorrentes da alta de preos dos alimentos ou da baixa dos salrios, que se no eram um fenmeno novo, ganham em intensidade, conduzindo s grandes revoltas contemporneas da Revoluo Francesa. Desenvolve-se, com isso, tambm o que Foucault denomina medo urbano: medo das oficinas e fbricas que se esto construindo, do amontoamento da populao, medo dos esgotos, das epidemias urbanas e dos cemitrios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade etc. Da a necessidade de um poder poltico capaz de esquadrinhar esta populao urbana. No um poder que exclua os homens desse espao, como no caso da lepra, mas um poder que consiste em distribuir os indivduos uns ao lado dos outros, isol-los, individualiz-los, vigi-los e constatar o estado de sade de cada um, que foi um modelo de organizao do trabalho em sade suscitado pela peste ou morte negra, como era conhecida. Um modelo no mais de excluso, mas de internamento; no mais de agrupamento fora da cidade, mas de anlise minuciosa da cidade e de registro de todos os fenmenos; no mais um modelo religioso, mas militar. Para Foucault, essa medicina urbana tinha essencialmente trs grandes objetivos. Em primeiro lugar, analisar os lugares de acmulo, de confuso, de perigo e amontoamento de tudo que, no espao urbano, pode provocar doena lugares de formao e difuso de epidemias e endemias, como os cemitrios, que, a partir de 1780 comeam a ser removidos e construdos nas periferias das grandes cidades, assim como os mortos passam a ser enterrados em caixes individuais. O segundo objetivo o controle da circulao das coisas, essencialmente da gua e do ar. Isso porque, poca, a concepo do ar como causa ou simples veculo de doenas impregna a teoria miasmtica,9 predominante at o apareci9
Para essa teoria, os miasmas no se originam nem do calor, nem do frio, nem da umidade, nem da secura. Eles dependem de misteriosas e inexplicveis alteraes nas entranhas da terra. Pelos seus eflvios, a atmosfera torna-se contaminada, e os organismos dos homens so predispostos e determinados. Certas partculas atmosfricas insinuam-se entre os sucos do corpo, desagregando-os, misturam-se ao sangue e finalmente contaminam todo o organismo (Barata, 1985: 17). No Brasil, a interveno no espao urbano-social caracterstico do projeto de medicina social que se implanta aqui no sculo XIX, mas j est presente desde o final do sculo XVII, e tem como pressuposto a teoria miasmtica (ver Machado et al., 1978).
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mento da bacteriologia na segunda metade do sculo XIX. Alm disso, as qualidades do ar frio, quente, seco ou mido em demasia, e/ou uma ao mecnica direta do ar sobre o organismo, eram consideradas como grandes fatores patgenos. Para desbloquear o ar, torn-lo sadio e de qualidade, era necessrio arejar as cidades, abrindo grandes avenidas no espao urbano, destruindo tudo que impedisse a sua circulao. Criam-se, assim, grandes corredores de ar, como tambm os corredores de gua, entendendo-se que a gua devia, com sua corrente, lavar a cidade dos miasmas que, sem isso, a permaneceriam. Por ltimo, essa medicina urbana intervm na organizao das fontes de gua limpa e no esgotamento sanitrio, consideradas uma das principais responsveis pelas epidemias que assolavam as cidades, particularmente Paris. Sob o impacto da crescente urbanizao dos pases europeus e da consolidao do sistema fabril, sucedem-se com fora crescente durante toda a primeira metade do sculo XIX, e sob a influncia dos movimentos revolucionrios, na Frana e Alemanha, as afirmaes do vnculo entre sade, medicina e sociedade, que reiteram duas temticas principais: a identificao sistemtica das condies de vida social como fonte de enfermidade e a postulao da medicina como instrumento de reorganizao social. Nesse momento, a questo do direito sade comea a ser colocada pelos movimentos revolucionrios como um direito social. entendido fundamentalmente como um direito coletivo e no como um direito de assistncia mdica individual; evocado como um direito vida e no como um direito ao cuidado mdico, como mais tarde vai se expressar com o desenvolvimento e consolidao da prtica hospitalar.
Nas primeiras dcadas do sculo XIX surgem numerosos inquritos oficiais e particulares sobre as condies de vida das diferentes classes sociais, sobre as condies de trabalho ou sobre os efeitos dos nveis de renda, nutrio e condies de moradia e saneamento para o estado de sade, revelando claramente que as taxas de morbidade e mortalidade estavam relacionadas situao social dos diferentes grupos sociais. Os estudos de Villerm, em especial o referente s condies de sade dos trabalhadores txteis, levantam a opinio pblica e provocam a elaborao da primeira legislao sobre o trabalho, na Frana, em 1841, regulando o trabalho de crianas nas fbricas. (Donnangelo, 1976: 56)
A Frana o bero desse pensamento inovador, e quando o termo medicina social foi forjado por Jules Gurin, em 1848, condensava um longo processo de elaborao das relaes entre sade e condies de vida e trabalho. Donnangelo chama a ateno que esse conceito proposto no momento do
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processo revolucionrio em que novamente as diferentes classes sociais se aglutinavam na realizao do projeto poltico da burguesia francesa, mas no qual, j ento, o proletariado desempenhou papel poltico ativo e tentou a implantao de sua repblica social, ainda que, para tanto, no dispusesse de condies objetivas. A emergncia desse pensamento inovador no se circunscreveu Frana. Estendeu-se aos demais pases europeus e, particularmente, Alemanha, onde esse conceito se desenvolve de forma mais precisa a partir da concepo de causao social da doena, isto , das relaes entre as condies de vida e trabalho das populaes e o aparecimento das doenas, e que tem, na revoluo de 1848, a sua origem. Mendes Gonalves (1994) destaca que o primeiro fato que caracteriza o conceito de medicina social na Alemanha o seu alcance, pois no se tratava de subordinar as prticas de sade ao Estado em funo da acumulao da riqueza nacional, como propunha o conceito de polcia mdica, mas de subordinar o Estado ao projeto mdico de reorganizao completa da sociedade, e que pode ser sintetizado na frmula de Virchow de que a medicina uma cincia social e a poltica nada mais do que a medicina em grande escala (apud Mendes Gonalves, 1994: 75). O segundo fato diz respeito ao estatuto lgico do saber que se estrutura em torno da dimenso coletiva do fenmeno sade/doena,10 propondo a superao de sua fase intuitivo-normativa para uma fase cientfica, isto , as relaes entre as condies econmicas e sociais e a sade e a doena deviam ser investigadas. Essa proposio deriva da experincia histrica com as epidemias e do desenvolvimento da capacidade de formalizao matemtica do raciocnio abstrato prpria da racionalidade cientfica moderna. Observou-se que, contando os casos de doena e relacionando-os com o tempo, o espao e com as caractersticas dos doentes e dos ambientes em que eles viviam, podiam-se tirar duas concluses: de que era possvel prever quantos casos ocorreriam em uma prxima unidade de tempo e em um espao geogrfico e demogrfico delimitado; e era possvel verificar a associao entre a ocorrncia de doena e um ou vrios fatores presentes no homem ou no ambiente.
10 Sobre o processo sade/doena, ver Monken e Barcellos, texto O territrio na promoo e vigilncia em sade, no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena, nesta coleo (N. E.).
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Por ltimo, essa concepo caracterizou-se pela sua politizao concreta, que a identificou com posies sociais que, tendencialmente, iam alm dos limites da consolidao do capitalismo, na medida em que, potencialmente, negavam a estrutura social e pelo esforo para sua superao. No limite, isso significava que, para produzir sade, era preciso mudar a sociedade. Rudolf Virchow e Salomon Neumann partiam de trs princpios: 1) a sade do povo um objeto de inequvoca responsabilidade social. A sade e a educao so condies necessrias para gozar uma existncia saudvel;11 2) as condies econmicas e sociais tm um efeito importante sobre a sade e a doena e que tais relaes devem ser submetidas investigao cientfica; 3) que deviam ser tomadas as providncias necessrias para promover a sade e combater a doena, e que essas medidas deviam ser tanto sociais como mdicas (Rosen, 1980). Para Virchow, as causas das doenas, eram tanto sociais, econmicas e polticas quanto biolgicas e fsicas. Para ele, era possvel apontar como causas as condies atmosfricas e/ou as mudanas csmicas gerais, com base na teoria miasmtica, mas em si e por si estes problemas no eram a origem das epidemias. Estas eram produzidas onde, devido s condies de pobreza, o povo vivia durante muito tempo em situao anormal. Neumann, por sua vez, estava convencido de que, se a pobreza, a fome e a misria no eram idnticas morte, doena e ao sofrimento crnico, eram, junto com o preconceito, a ignorncia e a estupidez, fontes inesgotveis de seu aparecimento. A partir dessas idias, Virchow desenvolve a teoria scio-histrica das doenas epidmicas, diferenciando-as em natural e artificial, e onde a cultura ocupa um lugar importante entre o homem e a natureza. Para ele,
as condies de vida so tanto naturais quanto artificiais, dependendo da situao espacial e temporal do indivduo. O desenvolvimento da cultura, multiplicando as relaes entre os indivduos, tambm complexifica as condies de vida (...). Conseqentemente, as epidemias so naturais ou artificiais dependendo se as mudanas das condies de vida ocorrem espontaneamente (atravs de acontecimentos naturais) ou artificialmente (devido ao modo de vida) (apud Rosen, 1980:84).
As epidemias naturais tinham origem em acontecimentos, tais como mudanas de estao, de tempo etc. Elas retornavam com freqncia ou per11 Sobre a relao entre educao e sade, ver Morosini, Fonseca e Pereira, texto Educao e sade na prtica do agente comunitrio, no livro Educao em Sade, nesta coleo (N. E.).
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maneciam, na medida em que as condies externas se mantinham inalteradas, ou quando a grande massa no se protegeu por meios artificiais (...). Fluxos, febres intermitentes e pneumonia sempre tm surgido sob a forma epidmica (Virchow apud Rosen, 1980: 84). Porm, atravs da definio das epidemias artificiais que o carter scio-histrico da teoria de Virchow fica mais explicito. Para ele, estas eram atributos da sociedade, produtos de uma falsa cultura ou de uma cultura no acessvel a todas as classes. As epidemias de tifo, escorbuto e tuberculose, entre outras, eram indicativas da desordem poltica e social, e conseqentemente afetavam predominantemente aquelas classes que no participavam dos benefcios da cultura.12 Neste sentido, elas no s eram produtos das contradies sociais, mas tambm manifestaes significativas do processo histrico.
A histria mostrou mais de uma vez (...) como os destinos dos maiores imprios foram decididos pela sade de seu povo e de seu exrcito; no h mais dvida de que a histria das doenas epidmicas deve ser uma parte inseparvel da histria cultural da humanidade. (...) As doenas epidmicas, exibindo um carter at agora desconhecido, aparecem e desaparecem depois que novos perodos de cultura comearam freqentemente sem deixar traos. Como casos tpicos tomemos a lepra e o suor ingls. A histria das epidemias artificiais a histria de alteraes sofridas pela cultura do homem. Irrupes violentas de epidemias nos assinalam os momentos em que a cultura muda de direo. Toda verdadeira revoluo cultural seguida de epidemias, pois uma grande parte do povo s gradualmente penetra no movimento cultural e dele comea a se beneficiar. (Virchow apud Rosen, 1980: 85)
A elaborao dessas idias foi suscitada pelo processo de industrializao e urbanizao pelo qual passava a Alemanha. Apesar do ritmo mais lento desse processo, se comparada com a Inglaterra e a Frana, por volta de 1848, o nmero crescente de indigentes, a existncia de uma classe assalariada, a presena do proletariado industrial, no podiam ser negados. A utilizao de mo-de-obra feminina e infantil era uma realidade e cada vez mais ficavam evidentes as pssimas condies de vida e trabalho da populao, campo frtil para a ecloso das epidemias. Como na Inglaterra e na Frana, a industrializao foi acompanhada de uma matana de inocentes. Os que sobreviviam ao bero eram abandonados aos ternos cuidados da fbrica e da mina (Rosen, 1980: 87).
Sobre a discusso entre cultura e sade, ver Pedrosa, texto Cultura popular e identificao comunitria: prticas populares no cuidado sade, no livro Educao em Sade, nesta coleo (N. E.).
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Neumann, coerente com os princpios esboados anteriormente, elabora e submete, em 1849, Sociedade Berlinense de Mdicos e Cirurgies, um projeto de Lei de Sade Pblica no qual esboa um amplo programa de reforma sanitria. 13 Entre as medidas propostas est a organizao de servios mdicos pblicos para os pobres, incluindo a escolha livre de mdicos, acompanhada do direito do cidado ao trabalho; um programa de higiene industrial, com nfase na regulao legislativa das condies de trabalho; a proibio do trabalho infantil antes dos quatorze anos; a reduo do dia de trabalho nas profisses consideradas perigosas; a proteo das mulheres grvidas; o estabelecimento de padres para a ventilao dos locais de trabalho e a preveno do envenenamento industrial atravs da utilizao de materiais no-txicos. Defende tambm a regulamentao do exerccio profissional da medicina e o reconhecimento da estatstica como instrumento importante na investigao das relaes causais entre condies sociais e os problemas de sade. Para Neumann, no se tratava de uma estatstica mdica em sentido estrito, mas de uma estatstica social, ponto de vista que ir desenvolver nas suas investigaes posteriores. Virchow tambm afirmava que a estatstica era um padro de medida: comparemos vida com vida e veremos onde h maior densidade de mortes, se entre os trabalhadores ou entre os privilegiados (apud Rosen, 1980: 88). Mas as opinies de Virchow e seus colaboradores no frutificaram poca. Com a derrota da revoluo de 1848, o movimento pela Reforma Sanitria rapidamente chegou ao fim. Se durante a ltima metade do sculo XIX, na Alemanha, essa concepo social no desapareceu, a reforma se transformou em um programa mais limitado. Ao mesmo tempo, afirma Rosen, a extraordinria rapidez com que as cincias naturais se desenvolviam deu a elas enorme prestgio junto medicina. nesse perodo que surge a bacteriologia, que parecia ser a resposta ao problema da causao da doena. Sob tais condies, no foi difcil passar o doente e seu ambiente para um plano secundrio e estabelecer uma relao de causa e efeito entre germe e doena.
Sobre o movimento pela Reforma Sanitria no Brasil, ver Braga, texto Sociedade civil e as polticas de sade no Brasil dos anos 80 primeira dcada do sculo XXI, no livro Sociedade, Estado e Direto Sade, nesta coleo (N. E.).
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Com a chegada da dcada de 1880, anunciou-se a idade de ouro das descobertas bacteriolgicas e a era dos micrbios, 14 como demonstra o Quadro 1 a seguir. Resulta, a partir da, que as aes de sade pblica se efetivassem, ignorando cada vez mais as relaes entre doena e condies sociais. Emil Behring, por exemplo, em 1893, em um ensaio em que trata da terapia etiolgica das doenas transmissveis, proclama, apaixonadamente, a bacteriologia como a verdade mdica definitiva e Robert Koch como seu profeta. Faz restries associao causal entre a misria social e doena, assim como necessidade de uma ampla reforma social, tal qual proposta por Virchow. Assinala que a sugesto tinha seus mritos mas que de acordo com o procedimento de Robert Koch, o estudo das doenas infecciosas podia ser levado adiante sem a necessidade de um desvio para consideraes e reflexes sociais sobre poltica social (Rosen, 1980: 78-79). Quadro 1 Descobertas mdico-sanitrias entre os anos 1880-1900
Fonte: Rosen, 1994: 245.

A era dos micrbios comea com Louis Pasteur, quando este inicia seus estudos sobre o clssico processo de fermentao, em 1856, envolvendo a produo de vinhos e cervejas no norte da Frana, concluindo sobre a dependncia desse processo da presena de certos organismos. Mais tarde, na dcada de 1860, estudando a doena do bicho da seda, dessa vez sob encomenda dos industriais franceses de txteis, consolida a possibilidade da relao causal entre germes e doena. Mas foi com Robert Koch, em 1876, que a origem microbiana de uma doena passa a ser demonstrada e sua origem biolgica imediatamente elucidada, com seus estudos sobre o bacillus do antraz. Da por diante, enquanto os estudos de Koch aprofundam e indicam tcnicas para o cultivo e estudo das bactrias, Pasteur volta-se para os mecanismos de infeco e desenvolve conhecimentos de preveno e tratamento das doenas transmissveis, estabelecendo com isso o princpio da imunizao antibacteriana e antitxica.
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A derrota do movimento revolucionrio de 1848 e, posteriormente, o desenvolvimento da bacteriologia, assinalam a primeira morte da medicina social e da sua concepo social das doenas, tal como era considerada na Frana e Alemanha. Por outro lado, assinala Mendes Gonalves (1994), esse momento marca, por oposio, o nascimento definitivo do sanitarismo, cujo melhor exemplo a Inglaterra, e da epidemiologia como rea do saber que se estrutura em torno da dimenso coletiva do fenmeno sade e doena, mas comprometida, em suas linhas gerais, com a reproduo da ordem social. A Medicina da Fora de Trabalho e o Nascimento da Epidemiologia A partir da segunda metade do sculo XVIII, o ritmo e o carter da vida econmica na Inglaterra comeam a mudar profundamente em decorrncia do que se convencionou chamar de I Revoluo Industrial. O que caracteriza esse processo a substituio, na produo de mercadorias, da fora fsica do homem pela energia das mquinas, liberando uma fora produtiva nova e mais adequada ao processo de valorizao do capital. A introduo do trabalho morto sob a forma de mquinas no lugar do trabalho vivo gera uma nova capacidade de extrao de mais-valia, a mais-valia relativa, que se define pela reduo do tempo de trabalho socialmente necessrio para produzir a mesma quantidade de valores de uso, sem que isso signifique o abandono da extrao da mais-valia absoluta, que se d pela ampliao (intensiva e extensiva) da jornada de trabalho (Bottomore, 1988). Da por diante, a extrao de mais-valia pode ocorrer atravs do aumento simultneo da produtividade, com a introduo incessante de inovaes tecnolgicas, e da intensidade do processo de trabalho. A grande indstria, no entanto, s se firmou e criou uma base tcnica adequada quando se apossou de seu meio caracterstico de produo, a prpria mquina, e comeou a produzir mquinas por meio de mquinas. Isso s foi possvel com a descoberta, no incio do sculo XIX, do slide-rest,15 dispositivo mecnico que veio substituir a mo humana na produo e que teve duas conseqncias imediatas: o aperfeioamento e barateamento de todas as mquinas, estimulando invenes e aperfeioamentos ulteriores, e a emancipao do
Marx se refere aqui segunda mquina a vapor de Watt de 1784, tambm chamada de mquina de ao dupla. A base de carvo e gua, foi o primeiro motor a produzir sua prpria fora motriz, possibilitando o total controle humano sobre sua potncia energtica. Ver Marx (v II, 1988: 9).
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processo de produo no s dos limites da fora humana como tambm dos limites de outras foras naturais, tais como a animal, a hidrulica e a elica, permitindo assim a concentrao da produo nas cidades. um processo que marca o incio da aplicao consciente das cincias da natureza no processo de produo de mercadorias. A cincia, de produto intelectual do desenvolvimento social, a partir desse momento passa a ser incorporada como fora produtiva do capital, ao mesmo tempo em que provoca tambm a revoluo urbana, com o acelerado crescimento das cidades industriais, e o desemprego. As ferramentas especiais do cardador, do batedor, do torcedor e do fiandeiro das manufaturas de l, por exemplo, vo-se transformando em outras tantas mquinas especiais. Os trabalhadores comeam a perceber assim que as mquinas no estavam a seu favor, como os iluministas apregoavam poca.
A jornada de trabalho nas indstrias no diminua para os trabalhadores; muito pelo contrrio, aumentava, pois s a jornada lucrativa do dono da mquina era beneficiada. Perceberam os trabalhadores que as mquinas tinham vnculos e compromissos polticos com o capital e, por causa disso, acabavam sendo hostis a eles. Enfim, perceberam que as mquinas eram relaes humanas, eram polticas e, portanto, comearam a depositar suas esperanas de libertao no tanto nessas mquinas capitalistas, e sim em seus companheiros, os trabalhadores. Surgiram os sindicatos. (Nosella, 1987: 33)
Essa nova compreenso de que a relao produtiva uma relao social subverte toda a explicao tecnicista, mecnica e funcional da relao de trabalho. E isso vai colocar para o movimento socialista a necessidade de superar a concepo de trabalho como labor, pela de poisis, que visa relacionar a mquina com o homem universal e eliminar a separao entre trabalhadores das mos e trabalhadores da inteligncia (Nosella, 1987: 37). Uma concepo essencialmente marcada pelo conjunto das atividades sociais que buscam superar a diviso entre teoria e prtica, e pela idia de que para se relacionar com a mquina necessrio possuir conhecimentos cientfico, tecnolgico e poltico ter uma formao politcnica. Nesse contexto de acentuado desenvolvimento da economia inglesa, de alterao do quadro poltico com a consolidao da hegemonia poltica das fraes industrial e financeira da burguesia, e da emergncia das organizaes operrias, representadas pelas Trade Unions, que a reteno geogrfica dos pobres nas parquias, tal como estabelecia a Lei dos Pobres de 1601, j no
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atendia s novas necessidades de acumulao do capital, o que exige a sua reforma em 1834. Do mesmo modo, leva tambm formalizao legal da sade pblica ou sanitarismo, verso inglesa da medicina social, que a encontra seu mximo desenvolvimento por comparao s demais sociedades europias da poca (Donnangelo, 1976). Para o novo industrialismo, a mobilidade dos trabalhadores era exigncia essencial para a civilizao industrial que ento surgia. A fora de trabalho precisava estar disponvel em quantidade adequada nos locais que fosse mais necessria e, conseqentemente, os industriais pediam um mercado de mode-obra aberto ao jogo livre da oferta e da procura. Por outro lado, diz Rosen (1980), a doutrina da necessidade filosfica, baseada na crena na ordem natural da sociedade, a economia poltica de Smith, Malthus e Ricardo, e a filosofia administrativa de Bentham, esto na base das propostas sobre o fim da assistncia aos pobres capazes. A pobreza e a ociosidade deviam ser reguladas pela razo e pela necessidade e no por uma proviso legal dirigida a eles, o que iria somente agir como incitamento ociosidade. Os pobres deviam ser compelidos a se defenderem sozinhos e estimulados a se ajudarem sendo econmicos. A Lei dos Pobres de 1601, nesse sentido, era um obstculo auto-ajuda, ao progresso individual e social. De outro lado, aceitava-se como princpio bsico que a empresa privada livre era a mola principal do progresso social. Sendo assim, a lei tambm era um obstculo, um impedimento social a ser removido para libertar o potencial da iniciativa individual. A ao do indivduo visando ao seu prprio benefcio faria mais para melhorar a condio do pobre que qualquer assistncia legal.16 Finalmente, para manter a ordem econmica e a harmonia entre os homens era necessrio considerar a mo do legislador como a mo invisvel que guia o homem em sua ao econmica e social (Rosen, 1980: 230). nesse contexto que aprovada o Ato de Emenda Lei dos Pobres, em 1834, que incorpora e implementa os princpios do relatrio elaborado por Edwin Chadwick, radical filosfico e membro da Comisso Real para investigar a administrao e o funcionamento da Lei dos Pobres de 1601. O principal objetivo da lei de 1834 foi criar um mercado livre de mo-de-obra, transform-la em
Sobre a discusso da ao estatal sobre a pobreza, ver Pereira e Linhares, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo, no livro Sociedade, Estado e Direto Sade , nesta coleo (N. E.).
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uma mercadoria livre das amarras paroquiais, ao mesmo tempo em que restringiu o atendimento ao pobre, considerado da em diante como o mais miservel dos miserveis fora das casas de trabalho. Portanto, esse movimento significou uma ruptura com o estatuto da pobreza, revelando sob essa categoria a fora de trabalho que se torna necessria produo industrial.
O ncleo dessas disposies encontra-se no fato de que, admitindo a assistncia a velhos e doentes, exclua contudo desse direito as pessoas aptas ao trabalho, juntamente com suas famlias, a menos que se sujeitassem ao internamento nas workhouses. (...) Trata-se, portanto, antes de mais nada de reduzir a massa de incapacitados aparentes ao seu limite mnimo e liberar para o mercado de trabalho aumentando ao mesmo tempo a competio neste mercado o volume disponvel de fora de trabalho adequado aos interesses do capitalismo industrial competitivo. Isso implica a correspondente exigncia de desarticular em definitivo os laos anteriormente estabelecidos entre o pobre e a freguesia a que pertence, de forma tal que ele possa irromper e circular livremente no mercado. (Donnangelo, 1976: 65-66)
Mas, alm do sentido econmico, essa nova legislao tambm tem um sentido poltico, consubstanciada na transformao do antigo pobre em proletariado industrial, o que coloca em evidncia um novo tipo de pobreza.
A pobreza continuar a expressar-se pelas vrias formas de carncia e enfermidade mas no se identifica com o no-trabalho, diz respeito agora a uma categoria social claramente discernvel, que pode ser e ser doravante mais freqentemente remetida forma que assume o processo de acumulao de capital. Ademais, o proletariado industrial, diferentemente dos pobres de parquia, introduz na vida poltica novas formas de organizao em especial os sindicatos e, atravs delas, associaes voluntrias de assistncia, passveis de expressar a solidariedade de classe. (Donnangelo, 1976: 66-67)
E so as condies do proletariado urbano-industrial que fazem emergir a questo da sade pblica, imediatamente aps a reforma da Lei dos Pobres. A economia de mercado, as novas fbricas e o ambiente urbano moderno comeam a produzir problemas de sade, exigindo novos meios de proteo da sade e preveno das doenas. Desde o final do sculo XVIII e entrando pelo sculo XIX, comea a ocorrer, com freqncia cada vez maior, febres epidmicas, tifo etc., decorrentes da superlotao de fbricas e das jornadas de trabalho de 13 a 16 horas, inclusive para mulheres e crianas; das moradias superlotadas e insalubres; dos baixos salrios, da ausncia de servios sanitrios bsicos etc. O aumento na taxa de mortalidade geral da populao acompanha
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o crescente nmero de habitantes das grandes cidades, tais como Bristol, Leeds, Liverpool, Londres, Manchester etc. Na dcada de 1830, as taxas de mortalidade da populao urbana so superiores ao crescimento populacional das cidades. Em 1832, uma epidemia de clera que comeou em Paris, se propaga por toda a Europa, cristalizando em torno da populao proletria uma srie de medos polticos e sanitrios. Cada vez mais a Inglaterra vivia em cidades e trabalhava em fbricas e, medida que esta nova forma de vida se difundia, as condies de sade pioravam, tornando insuficiente qualquer esforo voluntrio e gradual para enfrentar o problema (Rosen, 1980: 233). A necessidade de controlar, por razes econmicas e polticas, a ao dos fatores que acarretavam os elevados ndices de enfermidades e mortes, vai exigir a adoo de medidas capazes de atingir coletivamente a populao. Nesse mbito, Chadwick vai exercer um papel importante, pois, segundo Rosen, ele considerava que a pobreza era conseqncia muitas vezes de doenas pelas quais o indivduo no podia ser responsabilizado e tinha a convico de que a sade era afetada pelo estado do ambiente social e fsico. Em 1842, lana um documento fundamental da sade pblica moderna no qual aponta sem deixar margem a dvidas, que a doena estava relacionada a condies ambientais ruins causadas por falta de esgoto, suprimento de gua e meios para remover o lixo das casas e ruas (Rosen, 1980: 236). Essas questes receberam uma ateno maior com a adeso dele teoria miasmtica, fazendo com que a sade pblica fosse definida mais como um problema de engenharia do que de medicina, em decorrncia das aes, tais como drenagem, limpeza das casas e ruas, melhor abastecimento dgua e melhor sistema de esgotos, alm da retirada eficiente de todo o lixo das cidades. Entretanto, Foucault (1981) tambm aponta para o que considera uma iniciativa inovadora do sanitarismo ingls: a idia de uma assistncia controlada. Isto , de uma interveno mdica que tanto uma maneira de ajudar os pobres a satisfazer suas necessidades de sade quanto um controle pelo qual a burguesia ao assegurar a sade dos pobres tambm se protege. Um cordo sanitrio autoritrio estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo no serem vtimas de fenmenos epidmicos originrios da classe pobre (p. 95). Para Foucault, a partir da legislao mdica contida na Lei dos Pobres de 1834, v-se claramente a transposio do grande problema poltico da burguesia poca: a que preo, em que condies e como assegurar sua segurana poltica.
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Singer et al. (1981), na sua anlise, tambm apontam para essas iniciativas de cordo sanitrio, bem como para as preocupaes em torno da segurana poltica da burguesia, tendo em vista que os problemas de sade suscitados pela Revoluo Industrial no afetavam apenas os trabalhadores, mas tambm as classes dominantes. Isto porque, a) estas no ficavam imunes s epidemias que grassavam nos novos centros industriais; b) as ms condies de vida e sade reduziam significativamente a produtividade do trabalho, conseqentemente o lucro; c) a situao dos operrios era terreno frtil para movimentos de revolta, que punham em perigo a ordem burguesa constituda. Em sntese, era preciso intervir para remediar essa situao, de modo a garantir condies mnimas para a reproduo da fora de trabalho e para que a capacidade de trabalho dos operrios fosse preservada. O Estado devia intervir no s criando leis trabalhistas que limitassem a explorao do trabalho, principalmente infantil, como tambm servios de sade que pudessem garantir a reproduo da fora de trabalho. Em um primeiro momento, portanto, essas aes privilegiam as medidas de saneamento do meio, que efetivamente contriburam para a reduo das taxas de mortalidade por doenas transmissveis na Inglaterra. Em um segundo momento, em torno de 1870, segundo Foucault (1981), com a organizao de um servio no de cuidados mdicos, mas de controle mdico da populao. Trata-se dos sistemas de health service ou health officers que tm incio na Inglaterra em 1875, chegando ao final do sculo XIX com quase mil unidades. Sua funo compreendia o controle da vacinao obrigatria, a organizao do registro das epidemias e doenas com riscos epidmicos e localizao dos lugares insalubres e eventual destruio desses focos de insalubridade. Esses servios tinham como caracterstica atingir o conjunto da populao, isto , o objeto de interveno era a populao em geral e no os indivduos, os cuidados eram coletivos e no individuais. a partir desse objeto que a epidemiologia se desenvolve como rea do saber que se estrutura em torno da dimenso coletiva do fenmeno sade e doena. Entretanto, no mais comprometida com a mudana social, mas com a reproduo da ordem social. Ao redor dela, desenvolvem-se as diversas disciplinas da higiene, como saberes de estrutura normativa que procuraro traduzir os conhecimentos gerados para perspectivas aplicadas e aspirando ao estatuto de puramente tcnicas. Essa estruturao, inicialmente, deve ser compreendida como resposta s necessidades expressas explicitamente no plano coletivo, seja uma certa quantidade e produtividade da populao, seja um padro igualitrio de sade ou de
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condies ambientais de vida. Em seguida, esse saber deve constituir um objeto passvel de interveno nesse mesmo plano, isto , dever compreender a sade e a doena como expresso de um fenmeno essencialmente supra-individual. Finalmente, a tal objeto coletivo, esse saber dever fazer corresponder instrumentos de trabalho adequados, tanto para sua apreenso como para a manipulao, tais como o desenvolvimento das estatsticas de populao e o amplo conjunto de aes higinicas. Assim, o saber epidemiolgico ir caracterizar-se, primeiramente, pela progressiva codificao da investigao sobre as dimenses coletivas da sade e da doena nos moldes do mtodo cientfico, inspirado no positivismo,17 derivando da a extrema restrio em captar a historicidade do seu objeto: os corpos coletivos investidos socialmente. Em segundo lugar, e, por conseqncia, foi sendo erigido como nico mtodo capaz de explicar o seu objeto, bloqueando enfoques alternativos como no cientficos, mais por razes polticas do que cientficas. Em terceiro lugar, historicamente, a epidemiologia passou a se referir s delimitaes da doena, realizadas no interior da clnica fisiopatolgica como elementos invariantes, ou seja, ficou presa formalizao biolgica da estrutura anatomofisiolgica do corpo individual produzida por esta, excluindo, assim, toda a diversidade e historicidade de seu objeto.18 Por ltimo, ao tomar a doena como invariante e atributo individual, a epidemiologia obrigada pela lgica indutivo-quantitativa a tomar toNo sentido amplo, o positivismo refere-se teoria do conhecimento proposta por Francis Bacon, John Locke e Isaac Newton, a qual afirma a primazia da observao e a busca da explicao causal por meio da generalizao indutiva. Nas cincias sociais, ficou associado a trs princpios afins: o princpio ontolgico do fenomenalismo, no qual o conhecimento s pode fundamentar-se na experincia, que no limite a fetichizao dos fatos; o princpio metodolgico da unidade do mtodo cientfico, o qual proclama que os procedimentos da cincia natural so diretamente aplicveis ao mundo social com o objetivo de estabelecer leis invariantes ou generalizaes semelhantes a leis sobre fenmenos sociais; e o princpio axiolgico da neutralidade, que se recusa a conceder aos enunciados normativos o status de conhecimento e mantm uma rgida separao entre fatos e valores (Bottomore & Outhwaite, 1996: 592-593). Referindo-se ao positivismo no mbito das cincias da vida, Canguilhem (apud Mendes Gonalves, 1994: 98, nota 22) diz que, uma teraputica cientfica [] superior a uma teraputica mgica ou mstica. verdade que conhecer melhor do que ignorar quando necessrio atuar, e, nesse sentido, o valor da filosofia da ilustrao e do positivismo, inclusive o cientificista, indiscutvel. A questo que se coloca que o seu objeto foi no apenas captado em suas caractersticas biolgicas, mas com exclusividade, o que quer dizer que foi captado por desqualificao das demais caractersticas do mesmo corpo, ou ainda, de outras determinaes. 18 Sob esse aspecto, Donnangelo (1976: 24), nos ajuda a entender que no conjunto complexo de relaes que mantm com elementos externos a ele que o corpo se elabora e reelabora, de maneira tal a s realizar-se, mesmo como estrutura anatmica e fisiolgica, atravs das qualificaes ou determinaes que adquire no plano da existncia material e social. Portanto, o corpo dos homens no pode ser visto como homogneo, invarivel e a-histrico, ele relao social.
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dos os possveis aspectos fenomnicos da realidade que queria hipoteticamente contrastar com aquela invariante, sob a forma de variveis atributivas dos mesmos indivduos (Mendes Gonalves, 1994: 79). Portanto, essa radical mudana de concepo do objeto da epidemiologia corresponder a equivalentes mudanas no nvel dos instrumentos de interveno na realidade. A sade e a doena, de fenmenos essencialmente sociais, em Virchow, tornam-se fenmenos biolgicos, cujas probabilidades de ocorrncia so tambm, mas no apenas, e no necessariamente, socialmente determinadas. Sendo assim, a sua interveno incide no no social diretamente, mas nos efeitos do social sobre os indivduos. Em vez de propor mudanas nas condies que resultam em habitaes precrias e insalubres e nutrio deficiente, propor o isolamento das fontes de infeco, a correo das condies de infraestrutura das habitaes e a educao sanitria e nutricional da populao. 19
medida que a clnica lograr difundir a idia da doena como atributo individual, complementarmente a epidemiologia estar instrumentalizando as prticas que, institucionalizadas progressivamente nos aparelhos estatais de sade pblica, cumprem a funo de mitigar os efeitos acidentalmente danosos que a forma de organizao social da vida acarreta para os indivduos. (Mendes Gonalves, 1994: 80)
nesse sentido, que Luz (1988) diz que a medicina uma disciplina do social, no por ser portadora de um discurso sobre a sociedade como produtora de doenas, mas por produzir um discurso natural sobre uma realidade social, por naturalizar os fenmenos sociais sobre o corpo individual e social, o que tem um efeito poltico contribuir para a ordenao social e econmica de indivduos e classes sociais na histria moderna. Para essa autora, o discurso e as propostas mdicas sociais radicais sobre o conceito de sade, protagonizadas pela medicina social, no tiveram espao de legitimao como verdadeiro no contexto epistemolgico e poltico da cincia das doenas. O espao social e epistemolgico desse ramo minoritrio das cincias mdicas ser destinado s teorias de normalizao de grupos, instituies e classes sociais. Da mesma forma, Mendes Gonalves ressalta a dominncia das concepes, teorias e categorias higienistas, com profundas implicaes moralizadoras, dentro de um processo racionalizador civilizatrio.
Sobre esta discusso, ver Gondim, texto Do conceito do risco ao da precauo: entre determinantes e incertezas, no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena , nesta coleo (N. E.).
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Essa concepo ser includa na racionalidade mdica moderna de forma subordinada, no sentido do controle das doenas e da constituio de sujeitos sadios, de acordo com os princpios da normalidade mdica, at os nossos dias. Guisa de Concluso O desenvolvimento e a reorganizao do trabalho em sade, ou, se preferirmos, a reestruturao produtiva desse trabalho, s pode ser compreendida quando se descobre a prpria natureza da realidade social na qual se inscreve e que a redefine historicamente. Isso o que demonstram os estudos de Donnangelo (1976), Rosen (1980), Luz (1988) e Mendes Gonalves (1994), que, ao recolocar o trabalho em sade como prtica social, caminham no sentido oposto dos estudos que o definem como uma prtica tcnica neutra, interessada apenas no bem-estar e na extenso dos servios de sade para toda a populao. Ao contrrio, afirmam a sua integrao e produtividade na consolidao da prpria racionalidade moderna e, mais que isso, o seu comprometimento com a manuteno e reproduo da fora de trabalho e participao no controle das tenses e antagonismos sociais. Para isso, lana mo da progressiva extenso dos servios de sade populao. Inicialmente, as prticas de sade tomam como objeto de trabalho o corpo coletivo investido socialmente, produzido pela medicina social e sistematizado, mais tarde, pela epidemiologia, para, em seguida, subordin-lo ao corpo individual, produzido pela clnica. A partir de ento, ao privilegiar progressivamente a concepo de doena como alterao morfolgica e/ou funcional do corpo humano, aliado ao enorme prestgio que as cincias naturais tiveram no seu interior, o trabalho em sade participa mais diretamente do processo de reproduo das condies para a acumulao de capital, entre as quais, a reproduo da fora de trabalho, na medida em que toma o corpo individual como seu objeto de trabalho privilegiado. As prticas de sade se, por um lado, fazem parte do processo de produo da vida, tambm criam e recriam as condies materiais necessrias produo econmica ao definir a capacidade fsica e ao normatizar as formas de utilizao do corpo. Ao mesmo tempo, nesse processo, o trabalho em sade participa tambm da determinao do valor de uso da fora de trabalho, situando-se, portanto, para alm dos objetivos tecnicamente definidos. Dessa forma, essas prticas colaboram para aumentar a produtividade do trabalho ou a produ92
BASES
o de mais-valia relativa, dado que a melhoria das condies de sade do trabalhador contribui para a obteno de um mximo de produtos em menor tempo de trabalho (Donnangelo, 1976). Em contrapartida, o desenvolvimento da bacteriologia, do arsenal teraputico farmacolgico, e o aparecimento da anestesia, aliados organizao das tcnicas de cirurgia e profissionalizao do pessoal de enfermagem, foram condies fundamentais para que o trabalho em sade se organizasse coletivamente no interior dos hospitais, no final do sculo XIX. Inicia-se, nesse momento, a segunda reestruturao do trabalho hospitalar. Os estudos de Foucault (1981) indicam que a primeira reestruturao produtiva dessa modalidade de trabalho em sade ocorre ao final do sculo XVIII, a partir dos inquritos hospitalares realizados na Frana e Inglaterra, que determinam uma importante reorganizao administrativa e poltica, ou um novo esquadrinhamento do poder no seu interior. Entretanto, buscou-se, naquele momento, adotar as medidas necessrias para anular os efeitos negativos e a desordem do hospital, mais do que realizar uma ao positiva do hospital sobre o doente ou a doena. Uma desordem que diz respeito tanto aos efeitos patolgicos das doenas, que podiam acometer as pessoas internadas e espalhar-se pela cidade onde estivesse situado, quanto dimenso econmicosocial, isto , como local de intenso trfico de mercadorias, objetos preciosos, matrias raras, especiarias etc., trazidos das colnias pelos soldados, que escapavam ao controle econmico da alfndega e eram reclamadas pelas autoridades financeiras. Da que, para Foucault, a reestruturao do trabalho hospitalar, nesse primeiro momento, foi realizada no a partir de uma tecnologia mdica, mas a partir de uma tecnologia poltica a disciplina. Ao contrrio, podemos dizer que, sem abandonar essa tecnologia poltica, no final do sculo XIX, a reestruturao do trabalho hospitalar toma como ponto de partida as cincias da vida e suas tecnologias, assim como o modo taylorista de organizao do trabalho, isto , baseada nas potencialidades que essas cincias demonstram para prolongar a vida humana e na sua capacidade de repor mais rapidamente a mercadoria fora de trabalho em circulao, o que as tornam produtivas para o capital. nesse momento que o hospital se realiza como mquina de cura, o que pode ser demonstrado pelo exemplo americano, j que so nesses hospitais que os cuidados funcionais so organizados como meio de trabalho da enfermagem.
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Assim como na grande indstria, os hospitais so invadidos pelos conceitos de administrao cientfica e racional aplicados aos cuidados. Um tipo de organizao na qual a preocupao central no dar conta das necessidades de sade, mas dar conta da grande demanda de cuidados, em conseqncia do maior fluxo de pacientes, com o objetivo de diminuir o tempo de internao, aumentar a rotatividade, e com isso os lucros das empresas de sade, ento em formao. Starr (1991) demonstra que, nos Estados Unidos, entre 1870 e 1910, os hospitais se tornaram o centro da educao e do trabalho em sade, passando de 178 para 4.000 estabelecimentos neste perodo, concentrando, no seu interior, as tecnologias que permitiram o avano da assistncia de enfermagem e da cirurgia mdica, e, conseqentemente, o atendimento em massa dos trabalhadores. Do ponto de vista da educao profissional em sade, ocorre que da em diante no basta a experincia prtica. A tendncia ser a progressiva exigncia do aumento da escolaridade e da formao profissional, particularmente, dos(as) trabalhadores(as) tcnicos de enfermagem. A incorporao de tecnologias mdicas outra face do trabalho em sade que se exacerba com o desenvolvimento do capitalismo. Donnangelo (1976) chama ateno para o fato de que o trabalho em sade no apenas contribui para a produo de mais-valia relativa do trabalho industrial com a manuteno/reproduo da fora de trabalho, mas tambm realiza a mais-valia produzida em diferentes setores, ao consumir as tecnologias das indstrias farmacuticas e de equipamentos mdicos, instaurando, assim, um vnculo direto e especfico entre sade e economia. Esse desenvolvimento tecnolgico e de capital na sade, para a autora, est na base tanto da superao da clnica como meio bsico de trabalho na medida em que o toque e o olhar sobre o corpo so substitudos por uma infinidade de exames diagnsticos de custos cada vez mais elevados quanto da criao de novas modalidades de organizao da produo dos servios de sade, bem como do assalariamento mdico e do conjunto dos trabalhadores de sade. Com isso, o desenvolvimento tecnolgico e a entrada de capitais no setor introduzem uma contradio importante nesse tipo de trabalho: a elevao progressiva dos custos do cuidado em sade, decorrente da incorporao dos custos dos produtos industriais ao valor do cuidado, acaba tornando-se uma barreira sua efetivao e principalmente sua universalizao. Essa contradi94
BASES
o est na base das diversas iniciativas de racionalizao do trabalho, tais como a proposta de medicina comunitria analisada por Donnangelo. Entendemos que todas as questes aqui esboadas so fundamentais e indicam que, para avanar na consolidao do Sistema nico de Sade 20 no pas, se impe, antes de tudo, a compreenso da natureza das mudanas societrias que ocorrem na atualidade e suas repercusses no trabalho em sade. Um dos principais desafios que o SUS continua a enfrentar a garantia de acesso e sua universalizao para toda a populao. Isso particularmente importante em um contexto de ofensiva neoliberal, que busca recuperar os servios sociais para as empresas privadas, propondo a remercantilizao de tais servios. Ainda que pequena, a contribuio que podemos dar continuar a compreender esse processo, tentar desvendar os interesses que esto em jogo, com o compromisso de um pensamento crtico a favor da sade pblica. Referncias ALBORNOZ, S. O Que Trabalho. 2.ed. So Paulo: Brasiliense, 1986. BARATA, R. A historicidade do conceito de causa. In: ABRASCO & ENSP (Orgs.) Textos de apoio. Epidemiologia 1. Rio de Janeiro: PEC, Ensp, Abrasco, 1985. BOTTOMORE, T. Dicionrio do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. BOTTOMORE, T.; OUTHWAITE, W. Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p.592-593. DONNANGELO, M. C. F. Sade e Sociedade. So Paulo: Duas Cidades, 1976. FOUCAULT, M. Microfsica do Poder. Traduo de Roberto Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. LUKCS, G. As bases ontolgicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Cincias Humanas, 4: 1-18, 1978. LUZ, M. T. Natural, Racional, Social: razo mdica e racionalidade cientfica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988. MACHADO, R. et al. Danao da Norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. MARX, K. O Capital. 3.ed. So Paulo: Nova Cultural, 1988. v.II. MENDES GONALVES, R. B. M. Prticas de Sade: processos de trabalho e necessidades. So Paulo: Cefor, 1992.
Sobre o SUS, ver Matta, texto Princpios e diretrizes do Sistema nico de Sade, do livro Polticas de Sade: a organizao e a operacionalizao do Sistema nico de Sade , nesta coleo (N. E.).
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MENDES GONALVES, R. B. M. Tecnologia e Organizao Social das Prticas de Sade: caractersticas tecnolgicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de sade de So Paulo . So Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco, 1994. NOSELLA, P. Trabalho e educao. In.: GOMES, C. M. et al. (Orgs.) Trabalho e Conhecimento: dilemas na educao do trabalhador. So Paulo: Cortez: Autores Asociados, 1987. ROSEN, G. Da Polcia Mdica Medicina Social: ensaios sobre a histria da assistncia mdica. Traduo de ngela Loureiro de Souza. Rio de Janeiro: Graal, 1980. ROSEN, G. Uma Histria da Sade Pblica. Traduo de Marcos Fernandes da Silva Moreira. So Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Editora da Universidade Estadual Paulista, Abrasco, 1994. SINGER, P. et al. Prevenir e Curar: o controle social atravs dos servios de sade. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1981. STARR, P. La Transformacin Social de la Medicina en los Estados Unidos de Amrica. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1991.
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A Temtica do Processo de Trabalho em Sade como Instrumental para Anlise do Trabalho no Programa Sade da Famlia1
Edilza Maria Ribeiro Denise Elvira Pires Vera Lcia Guimares Blank Introduo O Programa Sade da Famlia (PSF) foi formulado pelo Ministrio da Sade no ano de 1993, e no final do ano de 2005 j estava implantado em 4.986 municpios brasileiros, contando com 24.600 equipes de sade da famlia e efetuando a cobertura de 78,6 milhes de pessoas (Brasil, 2006). 2 Em virtude da importncia que o PSF adquire por sua expanso e difuso, pelo seu potencial de incluso de parcelas crescentes da populao brasileira na assistncia em sade e pelo considervel contingente de trabalhadores envolvidos, busca-se, neste artigo, refletir sobre o trabalho das equipes do programa, utilizando-se como referncia a teorizao sobre o processo de trabalho em sade. O Trabalho no Setor de Servios e o Trabalho em Sade Os estudos de Braverman (1981), Mills (1979), Offe (1991) e Pires (1994, 1998, 2000a, 2000b) contribuem para o entendimento do processo de trabalho em sade como parte do setor de servios com o qual tem identidade, mas tambm tem especificidades que estimulam estudos em profundidade. O trabalho em sade hoje, majoritariamente, um trabalho coletivo que se desenvolve com caractersticas do trabalho profissional e, tambm, da diviso parcelar ou pormenorizada do trabalho e da lgica taylorista de organizao e gesto do trabalho.
Este texto uma verso adaptada para publicao na srie Educao profissional e docncia em sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade do artigo A teorizao sobre processo de trabalho em sade como instrumental para anlise do trabalho no Programa Sade da Famlia, de autoria de Ribeiro, Pires e Blank (2004), publicado nos Cadernos de Sade Pblica. 2 Sobre aspectos histricos do PSF, ver Corbo, Morosini e Pontes Sade da famlia: histria recente da reorganizao do modelo de ateno sade no Brasil, no livro Estratgia Sade da Famlia, nesta coleo (N. E.).
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Diversos autores tm apontado que o conjunto de atividades que no fazem parte da produo industrial e que no esto no setor primrio da economia tem crescido, progressivamente, desde a Revoluo Industrial. Tais atividades constituem o chamado setor de servios; muitas dessas aes, anteriormente feitas no mbito da empresa, passaram a ser desenvolvidas por servios especializados fora da empresa. Da mesma forma, cresceu o conjunto de atividades comerciais, de servios de educao, de sade, de segurana pblica, dentre outros. No incio do sculo XX, os resultados da aplicao dos princpios da gerncia cientfica, baseados nas formulaes de Taylor, comeam a ser conhecidos e ampliados, influenciando no s o trabalho industrial, mas tambm o trabalho no setor de servios. Surgem estudos sobre o tempo de execuo das tarefas, registros das quantidades de trabalho desempenhado, rotinizaes, reorganizao fsica dos ambientes de trabalho para diminuio dos tempos gastos sem produo etc. Para aumentar a produtividade, expandem-se a diviso parcelar do trabalho e a mecanizao da produo (Braverman, 1981). Com o aumento do fluxo de trabalho e a aplicao de novos mtodos de gerncia, o processo dividido em operaes mnimas, e os trabalhadores perdem a compreenso da totalidade do processo de trabalho. O tempo empregado na atividade est sob constante exame e controle. O trabalho pensante fica restrito a um pequeno grupo, esperando-se da maioria a execuo das atividades delegadas de cunho manual (Braverman, 1981). Braverman participa do debate sobre as caractersticas da sociedade ps-Segunda Guerra Mundial e defende a tese de que, apesar do grande crescimento dos setores no envolvidos diretamente com a produo material, a tendncia no de ampliao de uma outra racionalidade diferente da encontrada no trabalho industrial. Os trabalhadores deste setor, apesar de apresentarem certa diferenciao salarial que lhes permite um afastamento dos piores aspectos da situao do proletariado, no possui qualquer independncia econmica ou ocupacional; empregado pelo capital e afiliados; no possui acesso algum ao processo de trabalho ou meios de produo fora do emprego e deve renovar seus trabalhos para o capital incessantemente a fim de subsistir (Braverman, 1981: 341). O trabalho no setor de servios faz aumentar o capital e, nesta relao, embora predomine a subordinao autoridade e submisso explorao, es98
A TEMTICA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SADE
ses trabalhadores tanto tm prerrogativas e privilgios do capital como comungam caractersticas da condio proletria, avanando, porm, na direo do proletariado (Braverman, 1981). De acordo com Braverman (1981), essas camadas mdias de emprego incluem, dentre outros, trabalhadores especializados, como engenheiros, enfermeiros, tcnicos, empregados de vendas, da administrao financeira e organizacional e assemelhados. Os trabalhadores deste extrato esto submetidos a variadas condies de trabalho, e o excedente de mo-de-obra permite no s a diminuio dos salrios como tambm a piora das condies de trabalho. Mills (1979), ao estudar a realidade americana dos anos 50, afirma que os profissionais liberais foram os que mais se modificaram na passagem da antiga para a nova classe mdia. Muitos deixaram de exercer suas atividades de forma independente e passaram condio de empregados. De possuidores de amplo conhecimento transformaram-se em especialistas, e suas atividades fragmentaram-se, passando a requerer complementaridade de atividades parcelares e rotineiras de outros grupos de trabalhadores. No setor sade, os mdicos, majoritariamente, ocupam espaos de deciso e mantm certa independncia no que diz respeito ao seu trabalho, e poucos dependem unicamente do assalariamento. No que diz respeito aos trabalhadores de enfermagem, a maioria assalariada, e apenas uma pequena parcela de enfermeiros atua de forma independente, fora do trabalho coletivo institucional. Segundo Offe (1991), as sociedades ocidentais, a partir das ltimas dcadas do sculo XX, tm sido chamadas de sociedades de servios, dado o importante aumento destes. Uma caracterstica distintiva dos servios a dificuldade de planejamento em relao ao custo/benefcio, uma vez que muitos deles necessitam estar disposio da sociedade e h incerteza de quando as necessidades sero demandadas, como o caso dos servios de ateno sade, dos servios de proteo e os de consumo em redes comerciais. H incerteza em relao ao volume, ao tipo, ao momento e em relao s necessidades do cliente. Isso faz com que o planejamento conte com dados menos precisos do que na produo material. Esse mesmo autor destaca ainda que, diferentemente do setor da produo material industrial, onde produtos no rentveis podem deixar de ser fabricados, muitos servios no podem parar, mesmo em instituies no lucrativas economicamente, como o caso dos servios de sade.
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O Processo de Trabalho em Sade na Conjuntura Atual Estudos de autores ligados sade coletiva, tais como os de Campos (1997), Merhy (1999), Pires (2000a, 2000b), S (1999), Schaiber et al. (1999), Soares (2000), Almeida e Rocha (1986), entre outros, tm possibilitado o dilogo, que vem sendo desenvolvido no PSF, entre a teorizao sobre processo de trabalho em sade e realidade do trabalho. Para Pires (1999, 2006), o ato assistencial em sade pode ser realizado de forma autnoma, numa relao direta entre profissional de sade e usurio/ cliente, mantendo caractersticas do trabalho profissional e da pequena produo. No entanto, na atualidade, face complexidade dos problemas, dos conhecimentos acumulados no campo da sade e do instrumental envolvido no ato assistencial, desenvolve-se por meio do trabalho coletivo de diversos profissionais de sade e de outros grupos de trabalhadores um conjunto de aes que resultam no cuidado aos seres humanos. Essa assistncia/cuidado em sade ocorre em instituies pblicas ou privadas, em espaos intra ou extra-hospitalares de complexidade diversa. O assistir/cuidar em sade resulta de um trabalho coletivo no qual possvel identificar duas caractersticas bsicas as da diviso tcnica ou parcelar do trabalho e as do trabalho do tipo profissional. A mesma autora (1999) afirma que trabalho profissional diz respeito ao trabalho especializado e reconhecido socialmente como necessrio e portador de caractersticas semelhantes s do trabalho artesanal das corporaes de artfices da Idade Mdia. No artesanato, os produtores tinham controle sobre o processo, o ritmo e o produto do trabalho; eram proprietrios dos instrumentos, bem como tinham controle sobre a produo e reproduo dos conhecimentos relativos ao seu trabalho. O trabalho dos profissionais de sade, no mbito do trabalho coletivo, aproxima-se destas caractersticas, uma vez que dominam os conhecimentos e tcnicas especiais para assistir indivduos ou grupos populacionais com problemas de sade ou com risco de adoecer (Pires, 1998: 159) e cooperam entre si com relativa autonomia para a realizao do cuidado. Apesar dos constrangimentos institucionais e das diferenas de poder entre os grupos profissionais, existe certo espao de autonomia para o planejamento, avaliao e organizao da assistncia. Os profissionais envolvidos dominam os conhecimentos para o exerccio das atividades especficas de sua qualificao profissional (Pires, 1998: 89), no
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entanto, os mdicos, no mbito do trabalho coletivo institucional,

ao mesmo tempo que dominam o processo de trabalho em sade, delegam campos de atividades a outros profissionais de sade como enfermagem, nutrio, fisioterapia etc. Esses profissionais executam atividades delegadas mas mantm certo espao de deciso e domnio de conhecimentos, tpico do trabalho profissional. (Pires, 2000a: 89)
Este trabalho coletivo, apesar de direcionar-se para o mesmo objeto, que o ser humano portador de carncia de sade, desenvolve-se, predominantemente, de forma compartimentalizada, ou seja, cada grupo profissional se organiza e presta parte da assistncia de sade separado dos demais, muitas vezes duplicando esforos e at tomando atitudes contraditrias (Pires, 2000a: 89). Ao mesmo tempo, o trabalho coletivo em sade aproxima-se da diviso tcnica do trabalho quando os participantes da equipe de sade distanciam-se do entendimento da finalidade do seu trabalho e ficam mais submetidos s decises gerenciais. Quanto maior o controle sobre o processo de trabalho mais prximo do trabalho do tipo profissional; e quanto menor o domnio sobre o processo de trabalho maior aproximao com a diviso tcnica ou parcelar do trabalho (Pires, 2006: 95). Internamente a algumas profisses da sade, como, por exemplo,
enfermagem, fisioterapia, farmcia, nutrio e, tambm, em certas prticas da odontologia, o trabalho desenvolvido por trabalhadores com graus diferenciados de escolaridade. A coordenao do trabalho, dentro do grupo profissional, exercida pelos profissionais de nvel superior que concebem o trabalho e delegam atividades parcelares aos demais participantes da equipe. (Pires, 2006: 95)
Pires, Gelbcke e Matos (2004) identificam, no trabalho da enfermagem, algumas caractersticas da diviso tcnica e da organizao taylorista do trabalho, conhecida como Organizao Cientfica do Trabalho (OCT). Estas se evidenciam quando o mesmo organizado com base no chamado modelo funcional no qual o foco a realizao da tarefa, distanciando o trabalhador do controle do seu processo de trabalho e da interao com o sujeito cuidado. O trabalho mais repetitivo, com pouca autonomia e pouco espao para aes criativas e para participao no processo decisrio do cuidar. Aos enfermeiros e enfermeiras cabe o gerenciamento da assistncia de enfermagem, com maior aproximao e controle sobre a concepo e o processo de cuidar; e aos demais trabalhadores que compem a equipe cabe a execuo de tarefas delegadas.
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No modelo dos cuidados integrais, cada membro da equipe de enfermagem presta todo o conjunto diversificado de cuidados que o sujeito necessita, considerando-se os cuidados prescritos por mdicos e enfermeiros(as) para cada dia de trabalho. Este modo de organizao do trabalho possibilita uma maior aproximao do trabalhador do entendimento e do controle sobre o processo de cuidar, assim como uma relao mais criativa e humana entre o cuidador e o sujeito cuidado (Pires, 2000a, 2000b; Pires; Gelbcke & Matos, 2004). Considerando a teorizao de Offe (1991) sobre as alternativas de racionalizao empreendidas quando algum servio se torna invivel economicamente, Pires (1998) aponta que, nos servios de sade, diversas sadas so possveis, como a introduo de inovaes tecnolgico-organizacionais, a reduo da fora de trabalho, a reduo da fora de trabalho qualificada, a reduo de salrios, a precarizao das condies de trabalho, a externalizao, o auto-servio, dentre outras. A implementao de uma ou outra medida, ou de um conjunto delas, depende de diversos fatores, especialmente da capacidade dos diversos grupos e classes sociais fazerem valer os seus interesses (Pires, 1998: 234). Quando essas medidas so insuficientes, no caso dos servios privados, os servios podem simplesmente fechar, como ocorre nas empresas capitalistas. J no caso dos servios pblicos, d-se a interferncia de um complexo de fatores macropolticos na escolha da estratgia de racionalizao a ser empregada em cada momento histrico. Alm disso, em situaes que envolvem altos custos, a deciso de fechar o servio torna-se mais difcil caso implique necessidades humanas bsicas. Segundo Soares (2000), o setor sade, no Brasil, em especial na dcada de 1990, tem sido afetado pelas aes governamentais decorrentes da poltica de Reforma do Estado,3 apontada como necessria para o processo de modernizao e insero do pas de forma competitiva no cenrio internacional. A proposta de reforma defendeu a substituio do modelo administrativo das instituies pblicas, localizando na questo gerencial o n crtico do problema das fragilidades dos servios pblicos de sade. E os problemas de fundo que geram a desigualdade no Brasil permanecem, dentre eles o padro de financiamento do Estado, sua incapacidade de produzir polticas de distribuio de renda e equalizao do acesso a servios pblicos essenciais.
Sobre reforma do Estado, ver Pereira e Linhares, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).
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O modelo assistencial, vigente nos servios de sade, guia-se pela tica hegemnica neoliberal, e, na prtica, essa viso acaba definindo a misso dos servios e as conformaes tecnolgicas, atendendo a interesses poderosos, considerados legtimos (Mehry, 1999). Nesse modelo, segundo Schraiber et al. (1999: 239), h a tendncia de se adotar polticas que passem tanto a desproteger o trabalho e o trabalhador quanto, no caso da sade, a regular diretamente o produtor direto dos cuidados, interferindo imediatamente em seus processos de trabalho. Cita-se, como exemplo, a instabilidade provocada pelas vrias modalidades de contrato e de remunerao existentes no PSF. Essa situao gera instabilidade e conflitos entre as equipes PSF e equipes regulares da unidade bsica de sade interferindo na qualidade do servio prestado, alm de dificultar os processos de integrao e construo de vnculos. Campos (1997) aponta para a fragmentao, a imobilidade, a desarticulao das linhas de interveno com os sistemas de informao e para a burocratizao, como problemas importantes no trabalho de sade pblica brasileiro. Para o autor, o trabalho das equipes sofre influncia da linha taylorista, traduzida pela acumulao de normas administrativas e padronizaes tcnicas, guiadas por crenas na possibilidade de controlar e regulamentar o conjunto do trabalho. Tambm ocorrem dificuldades entre a proposta de cuidado/assistncia generalista e a baseada na especializao. No primeiro caso, haveria o risco da transformao das profisses e dos especialistas em tcnicos polivalentes, com atribuies semelhantes, perdendo, na prtica, a especificidade. De outro lado, a especialidade encarregada de uma parte da interveno no poderia ser responsabilizada pelo resultado global do tratamento. Os resultados desse modelo, baseado na especialidade e na diminuio crescente da capacidade de cada profissional resolver problemas, tm sido tratamentos cada vez mais longos, envolvendo inmeros especialistas, com custos crescentes, com mais sofrimento e restries impostas aos clientes e uma perda da viso integral do sujeito que necessita de cuidados em sade. Os compromissos passaram a ser indiretos, com a sade em geral, com a populao, com o saber, com a coletividade, distanciando-se dos sujeitos/usurios clientes ou parcela real da populao (Campos, 1997). A indicao da retomada de generalistas e da constituio de equipes multiprofissionais tem sido recomendada, colocando-se sobre estas conforma103
es inmeras expectativas. Nas palavras de Campos, imagina-se que estas equipes milagrosamente compensariam a desresponsabilizao e a fragmentao que a especializao excessiva cria, autoriza e legitimiza (Campos, 1997: 247). O trabalho do agente comunitrio de sade (ACS) est envolvido no problema mencionado, uma vez que seu trabalho requer saberes e competncias generalistas, assentados em princpios de liderana, comunicao, articulao, insero, mobilizao, e tambm, saberes generalistas e especializados para desenvolver a educao em sade. Em funo de sua formao e capacitao, os ACSs correm o risco de produzirem contribuies pouco consistentes e que efetivamente no podem atender as demandas a que esto submetidos. Para Schraiber et al. (1999), a diviso do trabalho na rea da sade gerou a condio de complementaridade e interdependncia dos diversos trabalhos especializados. Quando a equipe multiprofissional e os componentes dessa equipe possuem autoridades desiguais, a tenso surge do embate entre a complementaridade e interdependncia e busca da ampliao da autonomia tcnica dos profissionais. Todavia, o requerido para a eficcia e eficincia dos servios seria a autonomia tcnica aliada articulao de aes. Mattos (1999) aponta, como um dos problemas do trabalho em sade, as dificuldades na passagem do poltico para o assistencial, que se expressam na identidade dos atores sociais e nos seus projetos. Para o autor, esses atores costumam identificar-se mais pelas suas inseres no processo de trabalho do que pelas suas inseres poltico-ideolgicas. Esta situao impe desafios para a gesto do trabalho cotidiano das equipes de trabalho como (re)criao de projetos coletivamente sustentados que necessitam estar associados (re)criao de novos sujeitos sociais defensores de certas crenas e valores. O Trabalho no Programa Sade da Famlia Questionamentos quanto a ser um programa ou estratgia compem uma das controvrsias envolvendo o PSF. Lanado como programa em 1994, foi catalogado como estratgia, buscando diferenciar-se dos programas tradicionais j produzidos pelo Ministrio da Sade. A segunda verso oficial do PSF, publicada em 1997, define-o efetivamente como estratgia de reorientao do
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modelo assistencial. Sua implantao segue abrigando tal dicotomia: de um lado, ratifica sua condio de programa que se apresenta com objetivos, metas e passos definidos, ou seja, com uma formulao e com modus operandi estabelecido/normatizado; de outro lado, reivindica a posio de estratgia por sinalizar um caminho possvel para se atingirem os objetivos do Sistema nico de Sade (SUS), reorientando o modelo assistencial a partir da ateno bsica, sendo, portanto, capaz de influenciar e produzir impactos no sistema como um todo. As equipes de sade da famlia, formadas basicamente pelo mdico generalista ou de famlia, odontlogo, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e ACS, tm como objetivos centrais a prestao de assistncia integral, contnua, com resolutividade e qualidade, em face das necessidades de sade da populao adscrita, destacando-se a perspectiva da famlia. Para atingir tais objetivos, so requeridos abordagem multidisciplinar, processos diagnsticos de realidade, planejamento das aes e organizao horizontal do trabalho, compartilhamento do processo decisrio, alm do estmulo ao exerccio do controle social (Brasil, 1997). Essa proposta constitui-se em um importante desafio, j que aposta em uma ruptura com o modelo assistencial atual e na construo de uma nova prtica, com uma nova dimenso tica. Ademais, esse desafio est em curso em um cenrio profundamente influenciado pelo modelo biomdico, seja na formao profissional, seja na prtica assistencial hegemnica. Alguns estudos realizados com base na realidade cotidiana das equipes do PSF mostram essa prtica como possuidora de um potencial positivo de mudana; outros, porm, mostram que existem grandes limitaes para que isto ocorra. Bertoncini (2000), por meio de pesquisa efetuada com profissionais das equipes de sade da famlia em Blumenau, Santa Catarina, identifica mudanas e possibilidades de ocorrer um diferencial entre as prticas anteriores e aquelas decorrentes da proposta do PSF, reforando o que outros autores apontam como potencial positivo do programa. Os profissionais referem, como mudanas em seu trabalho, a atuao de forma mais comprometida, baseada no vnculo e co-responsabilidade; contarem com maior adeso da populao; desenvolverem um trabalho diferenciado dos outros servios de sade pblica; produzirem ampliao das aes de promoo; terem a possibilidade de desen105
volver assistncia integral e contnua voltada para a populao/comunidade; reduzirem as internaes hospitalares; produzirem melhora do acesso da populao rede bsica de sade; efetuarem o diagnstico das doenas mais precocemente; introduzirem prticas assistenciais inovadoras; incrementarem a utilizao de prticas assistenciais de baixa aplicao no modelo anterior. Sousa (2001: 50) tambm faz meno aos inmeros impactos evidenciados em vrios municpios ao longo da implantao do PSF, tais como:
alto nvel de satisfao da populao com o atendimento das equipes; melhoria da vigilncia sade da populao; utilizao adequada dos servios de maior complexidade com reduo das internaes hospitalares desnecessrias; maior qualidade, cuidado com a ateno prestada; elevao da resolutividade das redes assistenciais bsicas (que passou a girar em torno de 90%).4
Destaque-se, porm, que uma srie de condies envolvendo o processo de trabalho das equipes do PSF dificultam, deterioram e tornam vulnervel tal processo. Soares (2000), analisando o Programa de Agentes Comunitrios de Sade (Pacs) e o PSF, chamados carros-chefes da mudana do modelo assistencial, mostra as dificuldades para que isso ocorra: 1) a imposio dos programas pelo Ministrio da Sade; 2) o fato de serem totalmente normatizados no nvel central; 3) o fato de serem financiados por incentivos financeiros internacionais; 4) a obrigatoriedade, na prtica, de sua adoo pelos municpios; 5) a desconsiderao da enorme heterogeneidade dos municpios, na oferta de servios de sade; 6) ausncias de redes regionalizadas e hierarquizadas para garantir o acesso universal a todos os nveis de ateno o que limita o atendimento dado por esta estratgia a uma simples porta de entrada sem sada; 7) a desconsiderao da complexidade do quadro epidemiolgico brasileiro; e, finalmente, 8) a substituio de profissionais qualificados da enfermagem por pessoas sem qualificao, com contratos precrios de trabalho, com srias limitaes na resoluo dos problemas de sade da populao. Com relao ao ACS, importante destacar a aprovao da lei 11.350, de 5 de outubro de 2006, que dispe, entre outras questes, sobre a regularizao do vnculo empregatcio, normatiza as suas atividades e estabelece os requisitos mnimos para o exerccio das mesmas, mas no estabelece os requisitos mnimos de qualificao.
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Esses impactos constituram fatores motivadores da disseminao do programa pelo pas.
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Mattos (1999), tambm referindo-se s questes anteriormente abordadas, entende que a descentralizao implementada no mbito do SUS gerou uma multiplicidade de sistemas municipais de sade, diferentes entre si, quanto participao do setor privado, na proviso de servios ao SUS, nas configuraes de rede adotada em cada sistema, o que influi enormemente nos modelos gerenciais e na sua diversidade. Fertomani (2003), estudando o trabalho de equipes do PSF de Maring, Paran, chegou concluso de que o modelo centrado no mdico e no atendimento curativo; que o trabalho dos profissionais envolvidos mantm as caractersticas de compartimentalizao, com execuo de tarefas prescritas, sem um planejamento coletivo aderente s necessidades da populao da sua rea de abrangncia; que as atividades desenvolvidas no domiclio no representam uma ruptura com o modelo biomdico. Pesquisas como as de Bertoncini (2000), Costa, Lima e Oliveira (2000), Costa et al. (2000) e Souza (2000) tm exposto as condies de trabalho em que as equipes esto imersas, destacando a disponibilidade de recursos humanos, as formas de contrato, a infra-estrutura material, a dinmica da assistncia e as condies sociopolticas para desenvolvimento do trabalho. Assim, os autores citados apontam para composio bsica insuficiente das equipes; insuficincia de profissionais com o perfil proposto pelo programa; vrias modalidades de contrato de trabalho; heterogeneidade na estrutura fsica das unidades de sade da famlia, estando algumas inadequadas e em situao precria; sobrecarga de atendimento, gerando dificuldades em efetuar o planejamento e discutir a dinmica do trabalho; comprometimento do fluxo e contrafluxo dos usurios e informaes entre os diferentes nveis do sistema; problemas de fidedignidade no preenchimento do Sistema de Informao de Ateno Bsica (Siab); diferentes estilos de gesto das equipes de sade da famlia, configurando relaes ora aproximativas, ora conflituosas; expectativas contraditrias e conflitos das equipes de sade da famlia com os poderes locais; conflitos na relao entre o PSF e a populao, quando as equipes no conseguem atender demanda. Franco e Merhy (2002) apontam problemas com o alto grau de normatividade na implementao do PSF. O formato das equipes, as funes de cada profissional, o cadastro das famlias, o levantamento dos problemas de sade existentes no territrio e os modos de fazer o programa so regulados
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pelo Ministrio da Sade. O carter prescritivo do PSF exacerbado. So definidos a priori os locais de assistncia e a lista de atividades a serem realizadas por equipe, confundindo-se o que so ferramentas de diagnstico e interveno com o que resultado em sade: (...) infere-se que seguindo a prescrio altamente detalhada obter-se- o resultado anunciado (p. 7). Estas condies esto particularmente exacerbadas no trabalho o ACS, responsvel por um rol significativo de atividades predefinidas e normatizadas, como a realizao de, no mnimo, oito visitas domiciliares dirias, preenchimento de fichas do Siab, controle vacinal, cadastramento, busca ativada de faltosos, dentre outras. Para Bertoncini (2000), as condies de trabalho apontadas produzem alienao, impotncia, estresse, conflitos, disputa por poder e sentimentos de medo, insegurana, baixa auto-estima, dificultando, desse modo, as iniciativas para mudar as condies vigentes e garantir a integralidade da assistncia. Consideraes sobre o Processo de Trabalho no PSF e Alternativas para a Modificao das Condies de Trabalho O trabalho no PSF pretende, segundo seus defensores, constituir-se em uma estratgia estruturante de um novo modelo assistencial em sade. No entanto, os estudos sobre a realidade atual, aps nove anos de implementao do PSF no Brasil, mostram que existem tanto pontos positivos na proposta, em direo ruptura com a lgica taylorista de organizao e gesto do trabalho, quanto problemas em relao a condies de trabalho. Alm disso, verifica-se a persistncia dessas caractersticas no trabalho em sade e, tambm, no trabalho desenvolvido no PSF. Uma das caractersticas do trabalho no setor de servios apontadas por Offe (1991) requerer uma forma mais flexvel de planejamento, em virtude da imprevisibilidade da demanda, do momento de consumo e do tipo de servio que ser necessrio. Essa caracterstica torna mais complexa a questo do financiamento em sade, porque, mesmo em condies ideais, de no-desperdcio e de alta competncia tcnico-gerencial, preciso considerar a necessidade de estar disponvel para, como para as situaes de emergncia ou para desenvolver aes de custo elevado. Essas situaes no podem ser submetidas, unicamente, a critrios econmicos. Outra alternativa para a racionalizao dos custos, apontada por Offe (1991), e que est presente no PSF, a precarizao do trabalho, como se pode
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verificar pela flexibilizao das formas de contratao das equipes e contratao de trabalhadores sem qualificao profissional para o exerccio de aes de sade, que o caso dos ACS. Campos (1997) aponta alguns eixos operativos teis para potencializar o trabalho em sade, tais como o jogo entre autonomia e responsabilidade, gesto participativa e mudana de aspectos da clnica e da sade pblica. A posio em favor de uma radical autonomia de profissionais e instituies defendida por vertentes da administrao de recursos humanos em sade, que tm no pagamento por produo o principal mecanismo regulador do trabalho. Segundo o mesmo autor, esse mecanismo pode aumentar a produtividade, mas no d conta de articular trabalho e compromissos slidos com a produo da sade. A capacidade de se definir e cobrar responsabilidades destes modelos de gesto portanto muito pequena (Campos, 1997: 231). Terceirizao do atendimento a clientes, compra de servios de cooperativas, pagamentos por produo ou lgicas baseadas na produtividade geram superproduo de atos desnecessrios, mas rentosos, em detrimento dos necessrios e pouco remunerados. Campos (1997) mostra ainda que podem ser tentados arranjos institucionais que atendam pelo menos a trs critrios, combinando autonomia e responsabilidade atribuda aos profissionais. Esses critrios s vezes so antagnicos entre si, mas se constituem em aspectos gerenciais importantes. O principal critrio para validar um arranjo institucional a capacidade de produzir sade do servio ou da equipe; um outro critrio seria a viabilidade tcnica, financeira e poltica dos projetos ou arranjos acordados (dinheiro, armao poltico-institucional, saberes e meios); o terceiro consideraria realizao profissional e financeira dos trabalhadores da sade. Do ponto de vista prtico, seria desejvel buscar sempre a mxima realizao possvel dos trs critrios. Para Campos, a recuperao da prtica clnica assentada no vnculo a maneira de combinar autonomia e responsabilidade profissional (Campos, 1997: 235). Para o autor, o conceito de vnculo se assenta em pelo menos dois eixos argumentativos: o primeiro trata da relao profissional/cliente, e o segundo se refere a uma dada responsabilizao profissional. Na relao profissional/clientes sempre ocorre a transferncia e contratransferncia, por envolver a subjetividade, o contato com as dimenses fsicas e emocionais do outro. O vnculo como uma ligao mais estvel e duradoura, recriada no cotidiano, permite que o paciente, como sujeito, exera melhor seus
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direitos de cidadania. Com relao ao segundo eixo argumentativo, Campos (1997) coloca que a responsabilizao do profissional por determinado nmero de casos implicaria o desencadear de mecanismos de cuidados necessrios; isto poderia tanto identificar sua obra como permitiria a avaliao de quem a produziu. Assim, organizar o atendimento clnico com base no vnculo permitiria que as instituies acompanhassem e identificassem os resultados do trabalho de cada profissional e ainda fomentaria o exerccio da cidadania pelo paciente. Ainda segundo Campos, necessrio reaproximar os trabalhadores do resultado de seu trabalho (Campos, 1997: 235). Isto pode ser favorecido pela utilizao de mecanismos que permitam o envolvimento/participao em novas formas de funcionamento institucional, na reinveno como possibilidade cotidiana, comprometendo trabalhadores com a misso e os projetos institucionais. Segundo S (1999), o cumprimento ou operacionalizao de princpios como universalidade e integralidade da assistncia, participao popular e profissional, qualidade tcnico-cientfica, depende grandemente da
possibilidade de abertura ou desencadeamento de processos sociais e intersubjetivos de criao/recriao constante de acordos, pactos, projetos coletivos, sempre conjunturais e transitrios, que representem a eterna busca do ideal (necessria vida, entendemos) mas sem cair na doena idealidade. (S, 1999: 256)
Tambm adquire centralidade o desenvolvimento de novos indicadores, avaliadores do desempenho como possibilidade de dimensionar a retribuio financeira dos trabalhadores de sade. Uma frmula com melhores resultados para alterar positivamente a subjetividade desses trabalhadores (diminuio de conflitos, aumento do envolvimento com o projeto de sade, sentimento de valorizao por sua contribuio) seria combinar salrios fixos com outras variveis de pagamento, como gratificao pelo alcance de metas (Campos 1997). Azevedo, Braga Neto e S (2002), nessa mesma linha de proposies, ao analisarem novos processos de gesto como os da qualidade total e o enfoque estratgico de planejamento, surgidos como respostas crise de governabilidade do sistema e das organizaes de sade , enfatizam que preciso ir adiante a fim de ultrapassar concepes tambm limitantes, presentes nestes enfoques. Devem-se superar concepes do indivduo como criatura meramente funcional, no considerado como sujeito poltico e como pessoa singular, provido de crenas, valores, desejos e emoes, no caso da gesto da qualidade total. No caso do enfoque estratgico, necessrio superar a nfase
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exacerbada na racionalidade poltico-estratgica, que ignora uma subjetividade mais ampla, restringindo-a subjetividade elaborada na conscincia (racional). Impe-se a necessidade da reviso da prpria concepo de organizao, como da noo de sujeito e da compreenso dos processos intersubjetivos em seu interior (Azevedo, Braga Neto & S, 2002: 240). A expresso multidimensional das necessidades de sade sejam elas individuais ou coletivas, o conhecimento sobre o complexo objeto e as intervenes nele processo sade-doena de indivduos e/ou grupos requerem mltiplos sujeitos para darem conta da totalidade das aes, demandando a recomposio dos trabalhos especializados, com vistas assistncia integral. A mera alocao de recursos humanos de diferentes reas no garante tal recomposio; aes isoladas, aes justapostas, sem articulao, no permitem o alcance da eficcia e eficincia dos servios na ateno sade (Schraiber et al., 1999). Trabalho em equipe de modo integrado significa conectar diferentes processos de trabalhos envolvidos, com base em um certo conhecimento acerca do trabalho do outro e valorizando a participao deste na produo de cuidados; construir consensos quanto aos objetivos e resultados a serem alcanados pelo conjunto dos profissionais, bem como quanto maneira mais adequada de atingi-los. Significa tambm utilizar-se da interao entre os atores envolvidos, com a busca do entendimento e do reconhecimento recproco de autoridades e saberes e da autonomia tcnica:
O trabalho em equipe o trabalho que se compartilha, negociando-se as distintas necessidades de decises tcnicas, uma vez que seus saberes operantes particulares levam a bases distintas de julgamentos e de tomada de decises quanto assistncia ou cuidados a se prestar. (Schraiber et al., 1999: 233)
Autonomia real remete iniciativa, criao e poder de deciso diante de uma situao imprevista, margem de independncia ao que foi prescrito, a integrar contribuies pessoais ao trabalho (Rosenfield, 2006). Embora todos os membros da equipe sade famlia vivenciem restries de autonomia, ao trabalho dos ACS adicionam-se dificuldades provenientes da insuficincia de uma qualificao que d conta de demandas relacionais com a comunidade, com seus pares e em relao aos saberes da biomedicina (Nunes et al., 2006). Nesta condio, o seu fazer bem, o ser efetivamente reconhecido no grupo e na comunidade condies para a existncia de uma base identitria, com possibilidade de um retorno
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sobre si mesmo e de construo de um sentido para o trabalho esto ameaados (Rosenfield, 2006). Cria-se, no entender de Nunes et al. (2006), a condio de o ACS funcionar ora como facilitador, ora como empecilho em sua posio de mediador entre comunidade e pessoal de sade. Pires (2000: 91) defende a posio de que
preciso pensar e propor formas de organizao do trabalho que tenham um impacto na qualidade da assistncia e, ao mesmo tempo, considerem a possibilidade da realizao de um trabalho interdisciplinar, criativo e integrador da riqueza da diversidade de formao dos profissionais da sade. Um trabalho que possibilite a satisfao pessoal e a integrao do potencial humano do trabalhador, com vistas a superar a realidade majoritria do lcus do trabalho com deformidade.
Concluses Procurou-se ressaltar as condies vigentes na implementao da atual proposta de trabalho no PSF, do governo brasileiro, conduzido em um contexto neoliberal e fortemente influenciado pelo modelo biomdico e pela lgica taylorista de diviso e organizao do trabalho. Os profissionais e as instituies necessitam ter clareza das condies vigentes, uma vez que as possibilidades de sucesso e fracasso no so exclusivas de seus desempenhos, mas tambm de caractersticas prprias dos servios de sade e das determinaes histrico-estruturais. Vimos que as condies de trabalho em sade se deterioram no Brasil, a partir do final da dcada de 1980, pela influncia da poltica neoliberal e em virtude do aumento das demandas em sade de uma grande parcela da populao empobrecida e desprotegida socialmente, ao mesmo tempo em que o setor de sade submetido rgida conteno de custos. A construo de um novo modelo assistencial em sade, no sentido dos valores propostos pelo SUS e que aparecem, em parte, no PSF, um desafio. essencial um modelo de organizao dos servios de sade alicerado em condies sociopolticas, materiais e humanas, que viabilizem um trabalho de qualidade para quem o exerce e para quem recebe a assistncia. A no-realizao de um trabalho focado nesses dois olhares, no PSF, corre o risco de fazer ruir a motivao e os crditos dados pelos profissionais da sade e pela sociedade referida proposta. fundamental que as contradies e dificuldades que
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permeiam a proposta no a levem a destruir-se, e sim a modificar-se no sentido de melhor qualificao. H concretizaes e sonhos de novas pautas de conduta, de revitalizao da prtica de sujeitos tica, poltica e socialmente diferenciados, de novas parcerias e de mudanas institucionais, perpassando o PSF. Em contrapartida e conforme Bertoncini (2000: 67), as equipes sade da famlia transitam num iderio permeado de contradies, espao de luta no qual os vrios projetos dos atores sociais em situao divergem e convergem. Nos diversos depoimentos das equipes de sade da famlia, evidenciam-se os conflitos decorrentes da posio dos atores e de servios na arena de construo de um novo modelo de produo da sade, em face da lgica e condies do processo de trabalho em que se inserem. A tarefa desafiadora, j que requer rompimentos, enfrentamentos, criao, opo, ao, nas dimenses, macro, intermediria e micro. Referncias ALMEIDA, M. C. P. & ROCHA, J. S. Y. O Saber na Enfermagem e sua Dimenso Prtica. So Paulo: Cortez, 1986. AZEVEDO, C. S.; BRAGA NETO, F. C. & S, M. C. Indivduos e a mudana nas organizaes de sade: contribuies da psicossociologia. Cadernos de Sade Pblica, 18: 235-247, 2002. BERTONCINI, J. H. Da Inteno ao Gesto: uma anlise da implantao do Programa de Sade da Famlia em Blumenau , 2000. Dissertao de Mestrado, Florianpolis: Departamento de Sade Pblica, Universidade Federal de Santa Catarina. BRASIL. Ministrio da Sade. Sade da Famlia: uma estratgia para a reorientao do modelo assistencial. Braslia: Coordenao de Sade da Comunidade, Secretaria de Assistncia Sade, Ministrio da Sade, 1997. BRASIL. Ministrio da Sade. Agentes Comunitrios de Sade, Equipes de Sade da Famlia e Equipes de Sade Bucal, em atuao competncia Dezembro/2005. Disponvel em: <www.Dtr2004.sade.gov.br>. Acesso em: 15 nov. 2006. BRASIL. Ministrio da Previdncia Social. Lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006. Disponvel em: <www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/2006/ 11350.htm>. Acesso em: 18 nov. 2006. BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital Monopolista: a degradao do trabalho no sculo XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
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Tecnologia: conceito e relaes com o trabalho em sade

Ana Lcia Abraho Introduo As pessoas, quando buscam os servios de sade, de maneira geral, o fazem na esperana de encontrar aes de acolhimento que tanto resultem na diminuio do seu estado de sofrimento quanto promovam um certo grau de autonomia que as torne capazes de lidar com seus problemas de sade (Merhy, 1994). No entanto, distintas so as representaes construdas pelos usurios a respeito do modo como se opera o processo de trabalho em sade e do que se espera e deseja conseguir com este processo. Algumas pessoas, a partir do seu problema de sade, elaboram mentalmente imagens do que seja um atendimento ideal e buscam, na relao com o profissional, estabelecer um certo vnculo. Outras, que no consideram relevante estabelecer com os profissionais relaes diferentes das relaes impessoais vigentes, buscam atendimento em diferentes servios para a soluo dos seus problemas de sade. Segundo Merhy (1994), em ambos os casos, temos situaes com as quais tanto as unidades de sade quanto os profissionais no esto preparados para lidar. Aqueles que buscam estabelecer um vnculo com os profissionais, em geral, no conseguem faz-lo, devido forma e ao modo de produzir sade centrado na lgica biolgica e compartimentalizada. J os que no procuram tal vnculo, indicam a necessidade de ateno mais elaborada, visando oferecer processos menos fracionados e mais integrais que impossibilitariam o entendimento sob outro aspecto diferente daqueles freqentemente ofertados pelos servios de sade. Os que buscam uma assistncia pontual e resolutiva necessitam de uma ateno integral e com menor teor de fragmentao. Isso nos faz pressupor que a abordagem para a soluo dos problemas de sade e, portanto, do trabalho em sade, apresenta diferentes trnsitos entre os saberes que cercam os processos neste setor. A dinamizao da relao entre conhecimento e a experincia mpar que ocorre no ato do processo de trabalho em sade que se d no cotidiano dos servios exige uma empreita117
da que se estabelece no espao microssocial e micropoltico. As aes produzidas no campo da sade so constitudas de diferentes processos que operam sobre os saberes especficos de cada profissional presente nesta arena. Estruturas como mquinas e equipamentos e elementos no-estruturados so introduzidos na assistncia como processos que possuem um nico e mesmo objetivo: a produo de atos que, consumidos pelos usurios ao mesmo tempo em que esto sendo produzidos, so capazes de responder aos problemas de sade. Como o caso de uma consulta, de uma sala de espera, entre outras aes produzidas neste campo. Caracterizamos esses processos como intercessores, pela dinmica que ocorre na relao entre profissional e usurio. So momentos de mediao entre os saberes operados durante a relao e produtores de aes de sade. Um olhar mais cauteloso sobre tal processo de trabalho nos indica a presena de elementos diferentes, materiais e no-materiais, empregados na elaborada teia do processo de trabalho em sade. Assim, o objetivo deste texto o de iniciar uma discusso, sem contudo pretender esgot-la, em torno do conceito de tecnologia empregado no campo do trabalho em sade, a partir das relaes que ocorrem durante a produo dos atos de sade. Nesta perspectiva, a capacidade de imprimir novos arranjos tecnolgicos e novos recursos produtivos na sade pode significar a reorganizao de uma prtica centrada no usurio e instituda no interior da equipe de sade, em que a articulao entre o ncleo de saber de cada profissional e o campo da sade passa a se movimentar e operar sobre o trabalho, que insistimos em lembrar tratar-se sobretudo, de trabalho vivo;1 ou seja, no cuidado, o trabalhador opera um ncleo tecnolgico no seu processo de trabalho, composto por trabalho morto (instrumental) e trabalho vivo em ato que se caracteriza por sua produo ocorrer durante o cuidado. Na sade, h a centralidade durante este processo, que se d com o emprego de trabalho vivo. Os dois (trabalho vivo e trabalho morto) formam uma certa razo entre si, que chamamos de Composio Tcnica do Trabalho (CTI); a CTI pode trazer a hegemonia do trabalho morto, quando o modelo assistencial se caracteriza como mdico-hegemnico, produtor de procedimentos, como pode levar mudana do modelo assistencial, quando a proposta impactar o ncleo do cuidado, compondo uma hegemonia do trabalho vivo sobre o trabalho morto.
1
Para discusso sobre trabalho vivo, ver tambm Merhy e Franco (2003).
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TECNOLOGIA
Os ingredientes que se pautam na defesa da vida individual e coletiva podem ter sua potncia identificada no emprego de tecnologias atravessadas pela dimenso micropoltica do cuidado em sade. Registramos que o cuidado em sade compreende a produo de atos de forma integralizada, operando por toda a extenso do processo de sade, centrado nas necessidades dos usurios. Em suma, preciso pensar o agir em sade no mbito dos processos que conjugam o trabalho em uma perspectiva micropoltica do cuidar em sade. Sobre o Processo de Trabalho em Sade e as Tecnologias A opo do capitalismo contemporneo pelo capital financeiro e voltil impe uma economia de mercado baseada na competitividade e na flexibilidade das empresas (Deluiz, 1994). Muda-se o mundo do trabalho: empregado e patro fazem suas prprias regras, diminuindo-se o espao para a efetivao de direitos trabalhistas. Estas mudanas vm marcando toda a sociedade com polticas liberais e propostas arrojadas de fundo mercadolgico em diferentes campos do conhecimento.2 No setor sade, a essas inovaes na conduo do capital somam-se determinadas caractersticas prprias deste segmento da sociedade. A sua expanso como bem social marcante no sculo XX, principalmente quando se definiram neste cenrio o capital e o Estado (Merhy, 1999). Processos administrativos de controle e restrio de gastos do Estado interagem com os propsitos reformistas, compondo estratgias centradas na retrao deste ente como provedor de bens sociais. Cabe economia a ideolgica operao de substituio do que seria um bem social pela tica do produto, sob o viis do mercado. Logo, as transformaes ocorridas no mundo do trabalho, relativas introduo de novos mecanismos no processo de produo e do trabalho na sociedade contempornea, apresentam certa proximidade com algumas das caractersticas presentes no trabalho em sade. Peduzzi (2002) destaca que tais semelhanas do-se pela atual tendncia maior intelectualizao do trabalho em geral, sobretudo pela incorporao da microeletrnica e da informtica.
Sobre a relao entre Estado e direitos, ver Reis, texto Cultura de direitos e Estado: os caminhos (in)certos da cidadania no Brasil, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo. (N. E.).
2
119
Segundo Peduzzi (2002: 81),

O saber operante, portanto, significa conhecer internamente como se realiza cada ao do trabalho e conhecer o projeto do conjunto de aes realizadas. Note-se que no trabalho h o concurso de diversos saberes, lembrando que os saberes so campos de inscrio de cincias e de outros conhecimentos.
Mendes-Gonalves (1994) tambm se reporta dimenso do saber presente no trabalho em sade como uma forma peculiar de se desenvolver que se d em vrias dimenses. O autor ressalta que o saber uma categoria operante no trabalho em sade, permitindo ao profissional do setor ser o mediador nas relaes presentes no cotidiano dos servios. Essas relaes so estabelecidas entre o saber cientfico e a questo tico-poltica durante a atividade de trabalho. Ressalta-se, portanto, a natureza peculiar do trabalho em sade, conferindo relevncia dimenso do saber como trabalho reflexivo presente no modo de operar as aes de sade. Nesta perspectiva, o trabalho em sade dotado de muitas incertezas relativas especificidade dos problemas que so operados neste campo, havendo descontinuidade durante o processo de trabalho. Estas descontinuidades so de diferentes ordens, desde quelas intrnsecas ao usurio at aquelas relativas aos saberes e mecanismos disponveis para o cuidado em sade, o que implica a impossibilidade de aplicao de normas que abarquem por completo o processo de trabalho. Logo, a construo de critrios rgidos calcados na produo e em fatores econmicos difcil de ser estabelecida. Contraditoriamente, a forma de gerenciar os servios de sade se pauta por estas normas e so freqentes os conflitos com os profissionais de sade, dado o modo autnomo como se constituiu grande parte das profisses do setor. O trabalho merece ser olhado tambm como fonte de prazer e no somente como modo de sobrevivncia ou atividade necessria para construir um produto a ser consumido. A ao que o ser humano desenvolve ao transformar algo atravs do trabalho, na maioria das vezes, a expresso de desejos individuais que se vo concretizar na realizao de uma ao concreta. Como uma obra, o trabalho conjuga o prazer do trabalhador sem deixar de dar resposta s demandas sociais. No caso do trabalho em sade, este tambm se d como obra. A motivao e o prprio desejo do trabalhador produzem novas situaes que podem modificar realidades pouco favorveis ao bem-estar do usurio.
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Contudo, nem sempre possvel estabelecer este estado de total harmonia entre a realizao do trabalho como obra e os interesses do usurio. Por vezes, so gerados profissionais completamente alheios ao processo e descontentes com trabalho e usurios insatisfeitos com o servio oferecido. Em um processo de trabalho que se relaciona diretamente com os indivduos, principalmente com suas fragilidades, como acontece no trabalho em sade, torna-se importante que a obra produzida pelo profissional dessa rea seja o reflexo da sua motivao e sensibilizao. No entanto, se este trabalhador no compreende o valor de suas aes no processo de sade e realiza suas funes de forma mecanizada, sua produo torna-se comprometida qualitativamente, no favorecendo a construo de um bom vnculo e um bom relacionamento, principalmente quando se trabalha em equipe. A grande questo : o trabalho como forma de sobrevivncia pode dar prazer ao profissional, permitindo-o alcanar suas realizaes como trabalhador, ao mesmo tempo em que satisfaa as necessidades dos usurios assistidos? De acordo com Campos (1998: 4), a soluo seria apostar na criao de espaos de trabalho que permitissem conciliar a sobrevivncia com a produo de obras, dois objetivos bsicos do trabalho. Trabalho centrado no prprio desejo misturado a trabalho alienado em funo de interesses alheios. Logo, um processo de trabalho que acolha espaos de criao, ao mesmo tempo em que no perca a centralidade no usurio, possibilita a construo de modos de lidar com as dificuldades que, transformadas em desafios, podem ser superadas de forma prazerosa. A aposta na mudana de prticas mecanizadas, sem criatividade e distantes de seu objetivo final. As prticas cotidianas devem ser orientadas a partir da lgica dos usurios, em que mltiplos tipos de trabalhadores, ou uma equipe, coordenam seus processos de trabalho, contribuindo para a integrao e a integralidade da assistncia. Na perspectiva apontada at agora, o trabalho em sade um processo em que a transformao est sempre presente, quer atravs das aes do agente profissional, quer seja atravs do usurio. Conjugam-se projetos e valores coletivos que permitem constituir estratgias de adeso ou de recusa das aes. Em contrapartida, a densidade onde se opera o trabalho em sade constitui um tecido complexo de muitas redes. Nessa malha, conjuga-se a prescri121
o de aes que revelam certo grau de autonomia centrada no ato de sua produo, com o objetivo de gerar uma forma mais equilibrada de estar na vida. Desse modo, a apreenso deste processo de trabalho de expresso complexa depende de uma srie de saberes que podemos, de forma geral, em um sentido mais amplo, denominar tecnologias. Com o avano de reas como a informtica, a eletrnica etc., acabamos por reconhecer e denominar tecnologia o que est contido nos equipamentos e aparelhos do mundo contemporneo. Quando ampliamos nosso entendimento sobre tecnologia, identificamos uma srie de ferramentas usadas na produo. So as tecnologias materiais e as no-materiais. Segundo Emerson Merhy (1997: 127),
tecnologia no confundida aqui exclusivamente com instrumento (equipamento) tecnolgico, e nem valorizada como algo necessariamente positivo, pois damos a este termo uma imagem dos saberes que permitem, em um processo de trabalho especfico, operar sobre recursos na realizao de finalidades perseguidas e postas para este processo produtivo.
De acordo com este autor, os processos de trabalho realizados no conjunto das aes desenvolvidas no setor sade utilizam uma gama de diferentes instrumentos. Por um lado, as mquinas, como tomgrafo, aparelho de Raio X e equipamentos semi-automticos para fazer exames de anlise laboratorial, e as ferramentas, como o sonar obsttrico, o eletrocardigrafo e o estetoscpio, estes ltimos com a finalidade de analisar o paciente, so as tecnologias duras. Por tecnologia dura entendemos aquela que est contida em um equipamento e utilizada na produo das aes de sade. Por outro lado, encontramos, pronturios e fichas usadas para registrar dados do usurio. Essas ferramentas mobilizam intensamente alguns conhecimentos sobre a forma de saberes profissionais bem estruturados, como a clnica do mdico, a clnica do odontlogo, o saber da enfermagem, do psiclogo, do trabalhador de nvel mdio, do assistente social, e assim por diante. nesse saber apreendido no cerne da constituio de uma determinada profisso, no ncleo de saberes que estruturam e diferenciam as profisses entre si, que podemos identificar uma segunda tecnologia presente nas aes de sade. uma tecnologia menos dura do que aquela presente nos aparelhos, mquinas e nas ferramentas de trabalho. Sempre presente nas atividades desenvolvidas no setor sade, esta tecnologia foi denominada leve-dura. Leve por
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conformar um saber que as pessoas, profissionais, adquiriram no decorrer da sua formao e que est inscrito e possvel ser identificado na forma de pensar os casos de sade e na maneira de organizar uma atuao sobre eles. O qualitativo dura lhe conferido na medida em que conforma um saber-fazer bem estruturado, bem organizado, bem protocolado, normalizvel e normatizado (Merhy, 1997). Por meio de um olhar mais criterioso e atento, podemos perceber que alm destas duas situaes tecnolgicas presentes nas aes de sade e no processo de trabalho em sade h uma terceira, que o autor (Merhy, 1997) denomina leve. Qualquer interveno ou abordagem assistencial de um trabalhador de sade junto a um usurio-paciente, ou mesmo em relao a um outro trabalhador de sade, produz um agir realizado atravs de um trabalho vivo em ato que se constitui por processos de relaes, isto , em encontros entre sujeitos individuais/coletivos que atuam um sobre o outro (Testa, 1997). Este conjunto de saberes construdo para a elaborao de produtos singulares e contribui tambm na organizao das aes humanas nos processos produtivos. Pela potncia de conjugar novos modos e prticas sobre o processo produtivo na sade, a ao do trabalho vivo se estabelece no encontro das mltiplas expectativas que esto em jogo. Podemos identific-la nos momentos de falas, escutas e interpretaes. nesse instante que ocorre a produo de um acolhimento ou no. Por muitas vezes, nestes momentos que se iniciam os processos de ausncia de assistncia. tambm o momento que pessoas colocam, neste encontro, expectativas da construo de uma possvel cumplicidade, em que pode haver a produo de uma responsabilizao em torno do problema que vai ser enfrentado, ou mesmo de momentos de confiabilidade e esperana, nos quais se produzem relaes de vnculo e aceitao. Assim:
Tecnologia leve - a relao intercessora do processo de trabalho em

sade em uma das suas dimenses com o usurio final. tecnologia que no normativa.
Tecnologia leve-dura - H normatizao centrada no modo de ateno

sade, havendo ainda cristalizao em estruturas mais consistentes.
Tecnologia dura - Utiliza equipamentos para a interveno assistencial.

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O uso das tecnologias no trabalho em sade se d de forma articulada; ou seja, durante o processo de trabalho, as diferentes tecnologias so empregadas. Por muitas vezes, elas so utilizadas em conjunto visando resoluo dos problemas apresentados. Assim, cada profissional guarda um conjunto tecnolgico e opera com ele de acordo com a necessidade do seu emprego no cuidado em sade. A compreenso da presena das tecnologias que operam durante o processo de trabalho em sade nos auxilia no sentido de identificar as possibilidades de provocar mudanas e avanos no fazer em sade. Contudo, entrar no terreno das tecnologias significa enfrentar os diferentes interesses que atravessam este campo, principalmente quando este campo centralmente operado pelas tecnologias leves. Esse tipo de tecnologia revela a enorme potncia para modificar processos e hbitos, pois toma por base a escuta, a conversa e a interao entre profissional e usurio. No caso de pessoas com hipertenso, por exemplo, estratgias como grupos educativos, sala de espera etc. compem o arsenal das tecnologias leves; ou, ainda, durante a visita domiciliar com Agente Comunitrio em Sade (ACS), momento de interao com a famlia e de identificao de riscos e agravos. neste modelo de micropoltica do encontro, onde operam jogos de expectativas e mtuas produes subjetivas e produes propriamente expressas nos atos de sade, que podemos ressignificar um hbito e produzir uma forma de estar na vida com mais equilbrio. Sobre a Micropoltica das Tecnologias Leves do Trabalho em Sade A micropoltica repousa sobre a formao do desejo no campo social e sobre o modo como se cruzam as diferenas sociais, entrelaando-se, portanto, com aquilo que convencionamos denominar macropoltica. Nas lutas que so travadas no tecido social, no h, a princpio, uma oposio entre o que se refere macropoltica ou micropoltica (Guattari & Rolnik, 1999). Ao fazermos parte da vida, ou seja, quando trabalhamos, estudamos ou exercemos qualquer atividade, estabelecemos contato com diferentes indivduos. No decorrer deste percurso, embora no percebamos, estas pequenas relaes, muitas vezes com pessoas que nem conhecemos profundamente, influenciam diretamente nos nossos atos posteriores. Na sade, ou mais precisamen124
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te durante o processo de trabalho em sade, essas relaes influenciam e so influenciadas pelo emprego das diferentes tecnologias. Vimos como as diferentes tecnologias (leve, leve-dura e dura) esto envolvidas no ato da assistncia. Acrescentar agora a discusso sobre a micropoltica do trabalho em sade de fundamental importncia, pois nos permite refletir como a relao dos profissionais entre si e destes com os usurios e com o meio atingem o processo de trabalho. A micropoltica exercitada na conformao do ato de produo da sade repercute na produo cotidiana de subjetividades presentes no processo de trabalho, ou seja, nos processos de subjetivao que se encontram em um mesmo plano: o das relaes e aes do cotidiano. Assim sendo, podemos dizer que a micropoltica situa-se em um contexto social.
A questo micropoltica ou seja, a questo de uma analtica das formaes do desejo no campo social diz respeito ao modo como se cruza o nvel das diferenas sociais mais amplas (que chamei de molar), com aquele que chamei de molecular. (Guattari, 1999: 127)
A micropoltica se situaria no cruzamento entre diferentes modos de apreenso de uma problemtica, no nosso caso, de um problema em sade. Destes cruzamentos, Guattari (1999) utiliza-se de dois cruzamentos principais presentes no plano de produo do contexto social: o molar e o molecular. No entanto, embora estes dois processos sejam os mais utilizados, isto no significa que no existam outros nveis de diferenas sociais. Muito pelo contrrio, h inmeros processos que se articulam na produo de subjetividades. Poderamos pensar o nvel molar na esfera do microssocial, como uma mistura de diversas aes intra-sujeito e intersujeito. Se pensarmos que o molar um processo de subjetivao que pode surgir em ns mesmos, a partir de nosso inconsciente, estamos diante de um mecanismo intrasujeito. J se levarmos em considerao todas as nossas vivncias e relaes com outros indivduos, assim como o estabelecimento de nossas relaes cotidianas, estaremos diante de situaes intersujeito. Ns, indivduos, estabelecemos nossas relaes e vamos mudando atravs delas, ou seja, movemos nossos processos de transformao sobre o terreno das relaes. Os pequenos acontecimentos e relacionamentos do dia-a-dia, no nvel molar, produzem processos de subjetivao, que so uma grande fora motora
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da micropoltica. Por isso, o nvel molar constitui-se no (...) nvel da poltica de constituio das grandes identidades (Guattari, 1999: 128). O nvel molecular, como processo, pode ser compreendido na esfera do macrossocial. O processo molecular diz respeito aos grandes sistemas econmicos, polticos, sociais, culturais. Como estamos inseridos nesses grandes sistemas, vivendo de acordo com as suas regras, eles influem diretamente no nosso modo de produzir processos de subjetivao geradores de subjetividade. Tomemos, como exemplo, o capitalismo, ou mais especificamente, o processo de produo capitalista. Este um meio de produo com o qual entramos em contato todos os dias o grande sistema que nos rege. Ele interfere diretamente sobre nossas aes, sobre o nosso comportamento. Temos necessidades e consumimos padres ditados pelo grande mercado; estimulados pelos principais canais de comunicao, pela mdia, compramos e adquirimos. Quem e em que lugar do mundo no conhece ou no possui uma cala jeans? A produo de subjetividades presente na malha capitalista possui a tendncia padronizao. Dentro de sistemas como estes, o risco de alienao grande: (...) d pra falar, sem dvida, de uma modelizao, ou de uma produo de subjetividade completamente alienada (Guattari, 1999: 129). Guattari advoga e aponta uma regra da micropoltica, uma espcie de parmetro para a anlise das formaes do inconsciente. Essa regra seria a seguinte: estar alerta para todos os fatores de culpabilizao; estar alerta para tudo o que bloqueia os processos de transformao no campo subjetivo (Guattari, 1999: 135). exatamente o bloqueio nestes processos de transformao no campo subjetivo que pode nos tornar alienados. Por isso, precisamos sempre refletir acerca destes processos, que se do em diferentes campos das nossas relaes sociais. No campo da sade, comum percebermos processos de trabalho completamente alienados, condutas que mobilizam muito pouco a produo e a transformao de subjetividades. Determinadas aes de sade tomam como padro as condutas normatizadas que nos convencem de sua eficincia. Seduzidos por sua racionalidade instrumental, ou aderimos e aplicamos esses modelos sem fazer nenhuma crtica sobre a realidade a nossa volta, ou so os prprios mecanismos de gesto que nos impelem a um trabalho mecnico. De uma forma ou de outra, os processos com capacidade de operar de forma mais eficaz sobre os problemas de sade so bloqueados.
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Assistimos loucura de penetrar na relao do sujeito com o trabalho e invadir o modo como se produz subjetividade a ponto de no haver nem mais sujeito, nem sua obra. Mantido como uma massa amorfa indiferenciada na fabricao maqunica do capital, o que deveria reafirmar-se como sujeito torna-se apenas a degenerao do sujeito subjugado pelo processo de explorao. A preservao da nossa autonomia a nica garantia de que no cairemos na alienao e de que nossos processos de singularizao no sero padronizados. (...) acredito que h um nvel nos grupos autnomos (nvel molar) em que eles so envolvidos por circunscries, entram em relaes de fora que lhes do uma figura de identidade (Guattari, 1999: 130). Aqui podemos relacionar a questo da autonomia e a sua importncia na tecnologia leve e conseqentemente na produo de atos de sade. O trabalhador de sade, dependendo da categoria profissional, possui diferentes graus de autonomia representativos do processo de trabalho. A autonomia do trabalho vivo dentro da sade bem ampla e seu exerccio um movimento que requer uma mtua constituio entre dois plos. Entretanto, comum haver falso entendimento sobre o conceito de autonomia, confundindo-o meramente com a vontade do profissional e relacionando-o prtica de aes de burla para atender a determinados acordos individuais. Vamos supor que um determinado trabalhador de sade, um ACS, por exemplo, no tenha autonomia suficiente para exercer sua profisso. Ele encarregado de realizar apenas uma determinada tarefa, como preenchimento das fichas de cadastro. Ser que este profissional investir em sua tarefa ou a exercer de forma mecnica, desconsiderando tanto a sua singularidade quanto a do usurio? Ao realizar atos de sade de forma mecanizada, sem levar em conta as peculiaridades do cuidado em sade, camos na armadilha da normatizao e somos facilmente enredados na malha fina dos processos com graus cada vez menores de autonomia. No caso dos trabalhadores de sade, de um modo geral, necessrio um tipo de gerncia que estimule a promoo de processos de trabalho centrados em tecnologias leves e que no faa o profissional se desinteressar pelo ato cuidador. Um profissional de sade que trabalhe de forma automtica tende a no se interessar pela promoo da sade, e o seu trabalho passa a ser exercido no mais em consonncia com a lgica do usurio. Como exemplo, um ACS que faa o preenchimento do cadastro das famlias de forma automtica, res127
tringindo as perguntas ao que est escrito na folha, desconsidera o rico universo que rodeia aquela famlia e acaba por limitar o diagnstico no s familiar, mas tambm da comunidade. Ao considerarmos a micropoltica no processo de trabalho, reafirmamos nossa condio de sujeito que trabalha e influenciado pelo seu trabalho. Nesta perspectiva do trabalho em sade, a autonomia como autenticidade dos processos promotores de aes micropolticas opera radicalmente sobre o trabalho vivo. Se lidar com a sade das pessoas lidar com algo inesperado, o trabalhador de sade necessita de criatividade e de um alto grau de autonomia para improvisar, ter iniciativa e poder exercer um trabalho eficaz dentro da sade. O processo de trabalho em sade opera sobre a centralidade do trabalho vivo. A tecnologia como conjunto de saberes que so construdos para a produo de produtos singulares serve para organizar as aes de sade e os processos produtivos neste campo. O Uso das Tecnologias e o Trabalho em Equipe O campo da sade, para alm de suas caractersticas estruturais e organizacionais, repleto de dobras e reentrncias, possibilitando inmeros agenciamentos produtores de atos diferenciados. A estas foras heterogneas se conjugam tecnologias com potncia para operar o trabalho, tecnologias que, sendo produzidas por diferentes categorias profissionais, conformam a equipe de sade. Profissionais com diversas formaes atuam no campo da sade, com o objetivo de identificar solues aos problemas que emergem neste campo. Entretanto, a compreenso do modo como traamos soluo aos problemas de sade a partir dos determinantes sociais do processo sade/doena, do modo de trabalho em sade e da ideologia dos profissionais que atuam nesta rea, oferece distintas solues s questes de sade apresentadas. Mario Testa (1992) nos lembra que a resoluo dos problemas em sade no deve ser pensada como algo descolado das questes de poder e da Histria. O autor trata de questes como a poltica e o poder de modo a conformar elementos de um processo nico no interior da sociedade, onde determinados grupos formulam propostas consoantes com os seus desejos e com o seu poder. Neste processo de discusso e acordos, a deciso torna-se uma ferramenta na transformao do objeto social. Portanto, a resoluo dos problemas
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em sade objeto social requer a conjugao de diferentes interesses. Ganhos e arranjos de ordem poltica e social mobilizam uma grande concentrao de poder neste setor em que decises sobre os caminhos e arranjos a serem seguidos so atribudas a determinados grupos, ou melhor, a um conjunto de profissionais que trabalham em instituies detentoras de certo grau de autoridade e reconhecimento da populao. No setor da sade, no diferentemente dos demais segmentos sociais, decises que possuem alto grau de influncia sobre a populao acabam por concentrar poder e por ditar polticas. O julgamento e a adoo das vias adotadas na conduo da sade pblica no interior da sociedade so de responsabilidade das organizaes de sade e dos profissionais que trabalham nestas instituies. O problema de sade como objeto social deve ser tratado em conformidade com suas especificidades, considerando as tenses entre os poderes e os poderosos presentes neste territrio e no descartando a influncia que a organizao da sociedade contempornea apresenta sobre o setor sade. De outra forma, os problemas que emergem no campo da sade precisam ser tratados como questes relativas vida em sociedade e, portanto, necessitam de interveno que no se restringe a nico setor social. Somado s questes anteriores, o setor, como sabido, opera na lgica de que todo o trabalhador da sade governa a construo do cuidado, desde o porteiro de uma unidade at os profissionais mais especializados e o dirigente mximo do servio. Alis, essa uma marca bem tpica da sade: a obteno da qualidade do seu produto, o cuidado em sade muito dependente do exerccio mais autnomo de seus trabalhadores. Sabemos que os problemas de sade se apresentam sob ngulos diferentes, com mltiplos enfoques, na sua grande maioria, semi-estruturados, abalando o modo de interveno vigente, ou pelo menos levantando questionamentos. Assim, o modo de trabalho em sade depende centralmente do modelo de ateno eleito. Porm, a construo do modelo assistencial continua sendo feita sobre alicerces biolgicos, fragmentados e mecanicistas.3 Isto tambm uma questo para a formao de trabalhadores, pois o que observamos que, salvo raras excees, nas escolas formadoras, o currculo de graduao tem um enfoque restrito ao biolgico.
Sobre modelos assistenciais em sade, ver Silva Jnior e Alves, texto Modelos assistenciais em sade: desafios e perspectivas, no livro Estratgias de Ateno Sade , nesta coleo. (N. E.).
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O desenvolvimento de um modelo de ateno fundamentado na lgica do usurio uma potencialidade a ser explorada. Outras dificuldades e contradies, no entanto, tambm merecem ser trabalhadas, principalmente ao lidarmos com a complexidade e a especificidade da micropoltica do trabalho em sade. Equipes e servios de sade seguem, entretanto, como somatrio dos mltiplos cuidados realizados, de forma dissociada, por diferentes servios e em diferentes momentos e circunstncias. Esta concepo resultado de um modo de organizar o cotidiano dos servios desarticulado e desconexo, incoerente com as propostas de desenvolvimento de um cuidado integral, integrado e unificado. A busca por uma abordagem integral do sujeito implicaria uma gesto da micropoltica do cotidiano das unidades assistenciais. Tal gesto, voltada para a articulao dos diversos profissionais, equipes e servios de sade, imprimiria uma centralidade aos saberes e prticas. A coordenao deve atentar para as interfaces entre as equipes/servios, estabelecendo fluxos e processos de trabalho voltados para uma abordagem holstica do sujeito e suas necessidades de sade (Merhy, 2002). Um exemplo seria uma gesto que optasse pela linha do cuidado que perpassa por toda a extenso dos servios de sade, a partir de um ponto, como por exemplo uma criana que procure o servio de sade devido a um quadro de diarria. A gesto estaria acompanhando todo o processo de cuidado deste usurio at o momento da alta, oferecendo o suporte necessrio e fazendo as articulaes necessrias para um bom atendimento. Ressalta-se, contudo, que a integralidade no se contm no espao do servio de sade, sendo tambm efetivada pelo sistema dentro de uma lgica de complexidade crescente, j que os recursos necessrios ao cuidado no estaro sempre disponveis e concentrados em uma mesma unidade de sade, implicando um extravasamento das aes necessrias ao cuidado. Dessa forma, a integralidade opera em rede, uma rede que comea a ser tecida a partir da relao entre usurio e profissional e com as equipes de sade, visando soluo dos problemas de sade. Um entendimento amplo sobre os problemas, comumente identificados como de sade, exigiria o uso de indicadores, tomados como instrumentos que possibilitam anlises mais refinadas da realidade e do processo de trabalho. Contudo, h um hiato nesta anlise que foge lente dos indicadores. So
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questes no bem definidas e que exigem outras estratgias tanto na sua identificao como na sua anlise. Um instrumento que potencializa a anlise desses problemas, por explorar o processo de trabalho em sade, a construo de um fluxograma, quando aplicado na lgica da ampliao das informaes das equipes sobre o trabalho. Se utilizar a informao no novidade para os profissionais de sade, podemos potencializar seu uso. Matus (1993), 4 evidencia que todos possuem um certo grau de governabilidade sobre determinado problema. A informao tambm opera sobre o trabalho vivo, ou seja, sobre as tecnologias leves, produtoras de interseo. Neste processo, assistimos a muitos e inmeros conflitos entre os membros da equipe de sade. A identidade dos profissionais envolvidos no trabalho e a hierarquia entre eles ficam menos perceptveis, principalmente quando se trata de processo de trabalho a partir dos quais se pretende romper, ou pelo menos colocar em discusso a linha hierrquica tradicional das profisses de sade, como o caso das equipes do Programa Sade da Famlia (PSF). Na equipe de Sade da Famlia, torna-se necessria a reorganizao da prtica clnica, exigindo-se, portanto, uma nova tica desfocada do hospitalocentrismo e da alta especializao que marcariam a conformao do sistema de sade e a formao dos profissionais. A reorganizao desta nova prtica marcada pela produo de vnculo, pela humanizao da gesto e da assistncia, pelo cuidado promotor de responsabilizao e pelo exerccio da cidadania. Seus alicerces esto fincados na compreenso de que as condies de vida definem o processo sade-doena das famlias que so assistidas pelas equipes. A despeito das iniciativas, como a supracitada, entre outras, o trabalho em sade, de um modo geral tem a tendncia a manter-se compartimentalizado, ou seja, fracionado em pequenos espaos produtores de cuidado especializado. No entanto, Pires (1996) ressalta que o trabalho cooperativo entre os profissionais tem muitas possibilidades e modos de acontecer, principalmente a partir do uso de equipamentos, tecnologias duras, que aumenta o rendimento das atividades permitindo a ampliao dos servios e a oferta de procedimentos menos invasivos, como o caso da endoscopia digestiva. O emprego de tecnologias duras no processo de trabalho pode gerar reduo no tempo da interveno ou exposio do usurio. Tal acontecimento
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Carlos Matus o autor do enfoque metodolgico sobre planejamento estratgico situacional.
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leva a uma ampliao do contato entre os profissionais de sade, pela diminuio do tempo para o cuidado, o que cria a possibilidade de discusso do plano teraputico e de aplicao de um trabalho articulado entre os diferentes saberes em prol do usurio, potencializando, desse modo, o trabalho em equipe. Alm desses benefcios, a incorporao de equipamentos no processo de trabalho em sade pode ser entendida como um movimento em que h disputas: procurar entender de modo articulado o lugar que o ncleo das tecnologias leves ocupam e seu modo de operar os processos produtivos, bem como os tipos de disputas que os modelos em competio impem neste territrio, e a composio das caixas de ferramentas utilizadas (Merhy, 2002: 65). Ao operar sobre o territrio das tecnologias leves e/ou leves-duras que compem o ato de cuidar, a dinmica da micropoltica engendra diferentes traados que podem ser capturados, ou podem desenhar rotas de fuga capazes de ressignificar o modo de cuidar em sade, construindo novos padres de subjetividade. Assim, diante desta complexa configurao tecnolgica do trabalho em sade, Merhy (1997) advoga a noo de que na conformao da relao entre os trs tipos de agir tecnolgico duro, leve-duro e leve que so produzidos os atos de sade. Assim, defende-se que os processos de produo do cuidado processos intercessores centralmente (Merhy, 1997) expem, a partir das vrias dimenses presentes na prtica em sade, um territrio com muitas tenses e naturezas distintas. Para Merhy (2002), os profissionais exercem o processo de trabalho em sade a partir do emprego das tecnologias, que so consideradas pelo autor como ferramentas tecnolgicas que fazem sentido e so utilizadas conforme os objetivos estabelecidos. Cada profissional possui a sua valise, ou caixa de ferramentas, para atuar sobre os problemas de sade. O uso da valise se d no ato da produo, no momento da atuao, permitindo ao profissional processar o recorte necessrio sua interveno. O trabalho em equipe consome nesta lgica distintas valises tecnolgicas . como a valise da assistente social, do mdico, do enfermeiro, do agente comunitrio de sade e assim por diante no ato da produo de um projeto teraputico, j que toma por base as diferentes ferramentas tecnolgicas dos profissionais de sade. O uso das valises adquire, no trabalho em equipe, o sentido social do agir sobre a integralidade da sade.
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O desafio , num primeiro momento, assegurar a produo de sade e, ao mesmo tempo em que se estimula a reflexo, ampliar a capacidade da equipe de sade na soluo dos problemas. Ampliar a capacidade de ao das equipes em busca de resposta aos problemas de sade remete discusso coletiva e conjugao dos saberes presentes no interior das equipes que sejam capazes de garantir o estabelecimento de vnculo entre profissional e usurio, base sobre a qual encontra-se o trabalho em sade. Um saber exercido pontualmente no campo das tecnologias leves. As tecnologias leves so menos cristalizadas na prtica liberal. Se, por um lado, existe o risco da potencializao do grupo levar cristalizao de posies, por outro, um processo analtico e contnuo, sem dvida, dificulta que tal fato acontea. A potencializao do grupo sujeito, por meio da informao e do entendimento do processo de trabalho, oferece a este grupo a possibilidade de lidar melhor com os problemas de sade e amplia a sua capacidade de atuao conjunta com as tecnologias. Segundo Campos (1997), a definio de campo e ncleo nos ajuda a entender essa aparente complicao. O campo compreende o saber bsico em sade que todo o profissional que atua na rea deve ter e se transforma em rede, onde so tecidos os saberes e conhecimentos de cada profisso, a partir das necessidades que a rea de sade requer. Podemos dizer que o campo do ACS seja a sade da famlia, lugar em todos os profissionais de sade transitam e adquirem um certo tipo de conhecimento. O ncleo a identidade profissional, o conhecimento relativo e especfico de cada profisso. A fragmentao do processo de trabalho em sade foi de tal monta que, at hoje, uma enormidade de especialistas se fecha em suas caixinhas de saber. No desconsideramos aqui a necessidade de um conhecimento mais aprofundado, mas necessrio e faz diferena no atendimento um conhecimento geral do que sade. A proposta de sade da famlia lana um desafio sobre este modo de produzir sade quando destaca a importncia de saberes integrais e articulados com a comunidade como forma de atender demanda da populao. O trabalho em equipe que utilize as noes de campo e ncleo deve considerar o vnculo durante o processo de trabalho, ou seja, a identificao de um profissional junto ao usurio. Neste caso, podemos citar o trabalho do ACS como uma atividade que trabalha como referncia para um conjunto de famlias. As famlias conhecem o profissional pelo nome e o procuram para sanar
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dvidas sobre seu estado de sade etc. E o profissional conhece e se responsabiliza por aquela dada famlia, em termos de viabilizar o atendimento das necessidades de sade demandada pelos integrantes da famlia. Ao pensar sobre a constituio da equipe de sade, alguns instrumentos dispositivos capazes de captar e facilitar o processo de trabalho integrado se fazem necessrios na construo dessa nova prtica. Vejamos alguns deles. 1. Pronturio Facilitador na transmisso de informaes sobre o paciente. E, portanto, de responsabilidade de toda a equipe de sade. Destaca-se que o pronturio do usurio, e no propriedade do profissional de sade. Dessa forma, o pronturio nico, j utilizado por parte de muitas equipes de sade, fonte de informao que circula de forma igual entre todos os membros da equipe de sade. 2. Projeto teraputico integrado Plano nico de elaborao assistencial. Esse momento em que cada profissional expe sua opinio sobre o caso, ou seja, empresta seu ncleo de conhecimento e prope condutas (Campos, 1997). O ser humano carregado de subjetividade dispe de determinada autonomia no emprego de seus desejos, seus projetos e suas aspiraes. Um certo grau de liberdade o acompanha na conquista de seus interesses. O indivduo/ sujeito expressa (com a linguagem) tanto a realidade interior como a exterior, fazendo parte, assim, do mundo dos significados. Segundo Chanlat (...) o universo organizacional um dos campos em que se pode observar ao mesmo tempo esta subjetividade em ao e esta atividade de reflexo que sustenta o mundo vivenciado da humanidade concreta (Chanlat, 1996: 27). Refletir sobre o trabalho em suas vrias dimenses funda caminhos na construo de sujeitos comprometidos com a promoo de responsabilidade no interior das equipes. Um espao na realidade das equipes que desvende e promova aes de sade voltadas ao estmulo da desalienao do profissional. Outro ponto relevante a formao do profissional de sade que, em rarssimos casos, contempla o trabalho em equipe. Logo, o modo de gerir proposto enfrenta problemas de diversas ordens, quase sempre no estruturados, isto quer dizer, questes cuja soluo no se apresenta em uma norma prevista, o que exige da gerncia muito dinamismo em suas anlises.
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O trabalho em equipe visa aumentar a abertura com o campo da sade, possibilitando o emprego de projetos teraputicos com potncia para enfrentar os problemas demandados. Contudo, a aposta feita sobre a capacidade de mobilizao dos profissionais, na forma de mudanas no processo de trabalho, e a partir de anlises que, com a utilizao de ferramentas (fluxograma, entre outras), ampliam o olhar sobre o modo de operar as aes. Superar o sentimento de impotncia diante das aes de sade produzidas hoje um grande desafio. Deve-se buscar olhar para essa relao sob um novo ngulo, ou seja, sob a tica da promoo de sujeitos coletivos, em que o envolvimento dos profissionais se d com o usurio e com a instituio, promovendo um duplo vnculo no qual a subjetividade retoma seu lugar. Concluso Ao olharmos o processo de trabalho em sade sob a tica das tecnologias presentes nesta produo, somos convidados a adentrar no campo dos microprocessos presentes nos atos em sade. No entanto, a compreenso das tecnologias na produo em sade no ambiciona dar conta do tenso campo em que repousa os processos de trabalho neste setor, pois a dimenso do cuidado atravessada por distintos modos de conduzir a ao em sade. O olhar sobre as tecnologias permite reconhecer que cada profissional possuidor de uma valise tecnolgica que opera sobre o trabalho vivo, e que esta pode ser uma entrada em potencial na construo e no estabelecimento de projetos teraputicos coletivos. Entender a dupla dimenso do uso das tecnologias, principalmente das tecnologias leves, compreender que a intercesso estabelecida entre profissional e usurio tece aes micropolticas capazes de produzirem aes acolhedoras e de vnculo elementos constitutivos do trabalho em sade que busca a soluo coletiva para os problemas de sade. Enfim, so muitos os olhares e interesses sobre o trabalho em sade, o que nos leva incessante busca no labirinto do trabalho por novas maneiras de interrogar o modo como so produzidos os atos em sade.
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TECNOLOGIA
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As Polticas de Gesto do Trabalho no Sistema nico de Sade e o Agente Comunitrio de Sade

Mnica Vieira
Introduo Neste texto, buscamos discorrer sobre as principais questes inseridas no campo da gesto do trabalho no Sistema nico de Sade (SUS) e mais especificamente acerca de uma dimenso da gesto do trabalho, relacionada aos seus aspectos macropolticos, ou seja, s problemticas relativas ao trabalho em sade e enfrentadas pelas distintas esferas de governo como parte da gesto do SUS. Nesse sentido, no nos dedicaremos ao que consideramos uma outra dimenso da gesto do trabalho, relacionada micropoltica 1 do trabalho em sade nos diferentes espaos onde este, cotidianamente, se realiza. Assim, o artigo foi construdo a partir do desenvolvimento de alguns tpicos que permitem, em um primeiro momento, compreender a conformao do campo de Recursos Humanos em Sade (RHS) para em seguida localizar a insero da temtica mais especfica da gesto do trabalho. Na ltima parte do texto, apontamos as principais preocupaes da agenda da rea no momento atual, considerando, especialmente, as repercusses relacionadas ao agente comunitrio de sade (ACS). O Processo de Conformao do Campo de Recursos Humanos em Sade necessrio localizar a temtica da gesto do trabalho no SUS como parte das preocupaes da questo de RHS, que envolve tudo que se refere aos trabalhadores da sade em sua relao com o processo histrico de consO termo segue a orientao dada por Merhy (2002), quando discute que o modo como se estruturam e gerenciam os processos de trabalho em sade seria o grande n crtico para as propostas de mudanas da direo efetiva do modelo tecno-assistencial e aponta que necessrio reinventar a lgica, a gesto, a organizao e a finalidade do mesmo. Esse autor, ao desenvolver a micropoltica do trabalho vivo em ato, busca subsidiar a compreenso do local de trabalho como espao de aprendizagem e transformao.
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truo do SUS (Mendes Gonalves, 1993), configurando, assim, um dos seus subsistemas. Nesse sentido, esse tanto um campo de estudo como de interveno. Essa rea abarca mltiplas dimenses: composio e distribuio da fora de trabalho, formao, qualificao profissional, mercado de trabalho, organizao do trabalho, regulao do exerccio profissional, relaes de trabalho, alm da tradicional administrao de pessoal. A noo de RHS pode ser associada dcada de 1950, com anlises sobre a formao mdica estimuladas pela Organizao Pan-Americana de Sade (Opas). Nos anos 60 iniciaram-se estudos para identificar a fora de trabalho no setor. Apenas na segunda metade da dcada de 1970 tem incio o progressivo processo de institucionalizao da rea (Paiva, 2004). No perodo anterior implantao do SUS, a rea de RHS teve pequena relevncia, aparecendo como questo de menor repercusso no sistema de sade nacional. Passa a adquirir maior nitidez com a VIII Conferncia Nacional de Sade (VIII CNS), desencadeada pela Reforma Sanitria brasileira. Podese, inclusive, dizer que a estruturao da rea de RHS seguiu as recomendaes da VIII CNS. Naquele momento, que marcou a reformulao das polticas de sade no pas, a complexidade da rea de RHS ganha visibilidade, desencadeando um processo de anlise de suas temticas prprias.2 No incio da Reforma Sanitria, as questes mais sistematizadas da rea de RHS privilegiavam temtica da formao de pessoal. As anlises acerca de outros aspectos que integram o campo como planejamento da fora de trabalho, mercado de trabalho e regulao do exerccio profissional, eram apenas pontuais. possvel observar, nos documentos e relatrios3 elaborados a partir da segunda metade da dcada de 1980, uma maior preocupao com as aes voltadas ao processo educativo dos trabalhadores do setor. Em 1986, foi organizada a I Conferncia Nacional de Recursos Humanos para a Sade, quando se define uma agenda especfica sobre o tema, a partir dos principais aspectos identificados na implantao do SUS. Entre essas questes receberam destaque a falta de incentivos para a qualificao profissional, a prpria viso burocrtica da rea de recursos humanos, a baixa remunerao dos trabalhadores e as desfavorveis condies de trabalho (Brasil, 1993).
Sobre o histrico das polticas de sade no Brasil, ver Baptista, texto Histria das polticas de sade no Brasil: a trajetria do direito sade, no livro Polticas de Sade e a Organizao e Operacionalizao do Sistema nico de Sade, nesta coleo (N. E.). 3 Para maiores informaes, ver Santos e Christfaro (1996) e Souza et al. (1991).
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AS POLTICAS DE GESTO DO TRABALHO
A II Conferncia Nacional de Recursos Humanos para a Sade, realizada em 1993, registrou a contradio/tenso que, desde ento, vem marcando a rea. Embora a questo dos RHS seja percebida como estratgica nos documentos da sade pblica, concretamente foi pouco valorizada, j que relacionada de forma superficial com os aspectos que, fundamentalmente, afetam as polticas pblicas de sade no pas.4 A principal questo da rea encontrava-se relacionada prpria ausncia de uma poltica de recursos humanos que contemplasse um plano de cargos, carreira e salrios (PCCS)5 no sentido de favorecer a implantao do SUS. Estado Brasileiro e Gesto do Trabalho De forma geral, as questes da gesto do trabalho devem ser consideradas no contexto das transformaes advindas da crise de acumulao e reproduo do capital que, nas duas ltimas dcadas, afetaram o Estado brasileiro.6 A temtica da gesto do trabalho no SUS comea a ganhar visibilidade na segunda metade da dcada de 1990, no contexto de flexibilizao das relaes de trabalho. O iderio neoliberal norteou a reforma do aparelho de Estado que redefiniu a relao entre o Estado, a sociedade e o mercado. Segundo o diagnstico do governo Fernando Henrique Cardoso, o Estado sofria uma crise fiscal, crise do modo de interveno e crise do modelo burocrtico de gesto pblica. Diante da crise gerencial, do dficit pblico e da necessidade do equilbrio fiscal, para captar emprstimos externos, os Estados perifricos trabalharam dentro da tica neoliberal, implementando todos os programas e reformas necessrias para se inserirem de forma subordinada na economia mundial globalizada.
Apenas mais recentemente pode-se perceber uma maior relevncia atribuda s questes de RHS, conforme abordado mais adiante. Essa transformao pode ser associada a projetos de qualificao de trabalhadores, reorientao do modelo assistencial e ainda reconfigurao da prpria rea no Ministrio da Sade. 5 Atualmente, o PCCS aparece como uma das questes prioritrias da Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade do Ministrio da Sade, conforme apresentado mais adiante. 6 Sobre a relao entre Estado e polticas pblicas, ver Linhares e Pereira, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade , nesta coleo (N. E.).
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O ajuste fiscal foi um dos principais mecanismos para implementar o redirecionamento do Estado no sentido de reduzir os recursos destinados para as reas sociais e priorizar os recursos destinados para o capital financeiro, para o pagamento de juros e amortizaes da dvida junto aos credores internacionais e se processou via reduo dos direitos sociais e trabalhistas, intensificao da explorao da fora de trabalho e reduo dos recursos para polticas sociais. A reforma do aparelho de Estado, a partir das propostas do ento Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado (Mare), teve como objetivos gerais delimitar o tamanho e redefinir o papel regulador do Estado, atravs de programas de privatizao e terceirizao; recuperar a governana, visando superao da crise fiscal e redefinir os setores de ao estatal. Assim, o Estado deveria ser mnimo na garantia dos direitos sociais dos trabalhadores e nos gastos pblicos sociais e mximo para garantir a liberalizao e desonerao do capital, aumentando a sua competitividade no mercado internacional, o que aprofundou a radicalizao da poltica de cortes nos gastos pblicos sociais em nossa sociedade (Boito, 1999). Nesse sentido, o Estado transferiu para o setor pblico no-estatal (terceiro setor) a responsabilidade de servios como educao, sade, cultura e pesquisa cientfica, abandonando o papel de executor e prestador direto desses servios, mas mantendo-se, no entanto, como regulador e promotor dos mesmos (Brasil, 1997). O debate da reforma do Estado formula para a agenda pblica questes que envolvem a construo de novos desenhos institucionais de polticas que previam profundas alteraes em termos de gesto do trabalho no setor pblico. No Plano diretor da reforma do aparelho de Estado (Brasil, 1995) so definidas duas diretrizes para atingir esta reforma: a reforma administrativa, cujo objetivo principal a definio de tetos precisos para a remunerao dos servidores ativos e inativos, a flexibilizao da estabilidade e a permisso de regimes jurdicos diferenciados, em busca de uma administrao gerencial;7 a reforma da previdncia, que indicava alteraes no sistema de aposentadorias para que estas passassem a ocorrer mais tarde e fossem proporcionais ao tempo de contribuio do servidor.
Fundamentada no princpio da descentralizao da deciso e de funes, em formas flexveis de gesto, horizontalizao de estruturas e incentivo criatividade.
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O governo federal questionava tambm a legislao trabalhista para o setor pblico entendendo-a como protecionista e impeditiva de uma gesto eficiente, ao permitir um uso indiscriminado da estabilidade dos servidores e estabelecer critrios rgidos de seleo e contratao de pessoal. A proposta de reforma administrativa apresentada pelo governo federal estava assentada na idia de que a superao das formas tradicionais de ao estatal implica descentralizao e redesenho de estruturas e principalmente no desenvolvimento de modelos gerenciais para o setor pblico, com foco em resultados (Brasil, 1995). Neste contexto poltico, de busca de novas estruturas, surge, no cenrio organizacional, a proliferao de desenhos alternativos gesto direta do Estado, com propostas de estmulo flexibilizao das relaes de trabalho, substituindo servidores pblicos por prestadores privados. A expanso da flexibilizao, embora apresentada como soluo para a gesto do trabalho, gera impactos negativos, como a proliferao de vnculos no estveis e as formas diferenciadas de remunerao (Pierantoni, 2000). Desenhase um cenrio paradoxal,8 onde nveis crescentes de flexibilizao das relaes de trabalho convivem com discursos sobre a emergncia de um trabalho revalorizado,9 ou seja, com maiores nveis de autonomia e participao. A flexibilizao, que surge como categoria-chave para compreenso acerca das atuais relaes de trabalho, tem sido utilizada sob diversos aspectos, tanto em distintas propostas de mudanas na rbita da gesto do trabalho como em vrios estudos que tratam do tema. A flexibilizao das relaes de trabalho um dos aspectos marcantes da dcada de 1990 que caracteriza parte do retrocesso no processo de construo de um projeto de proteo social para o Brasil.10 Geradora de novos problemas, esse
No que se refere ao SUS, esse cenrio coincidiu com a institucionalizao do sistema, o aprofundamento da descentralizao e a expanso das equipes de sade, especialmente aquelas voltadas para a ateno bsica. Esses aspectos acabaram por gerar enfrentamentos para a gesto municipal que ainda se defrontou com a homologao da Lei de Responsabilidade Fiscal, limitando os gastos com pessoal. 9 Cabe salientar a lacuna de estudos relacionados investigao dessas questes no setor sade. Termina-se muitas vezes considerando anlises realizadas em outros setores da economia para discorrer sobre possveis alteraes no setor de servios. Convm enfatizar a importncia de uma postura bastante cuidadosa acerca da generalizao dos estudos, considerando-se principalmente a natureza do trabalho em sade e a especificidade do trabalho no SUS, com seu processo de organizao bastante peculiar. 10 Sobre a conformao da seguridade social no Brasil, ver Monnerat e Senna, texto A seguridade social brasileira: dilemas e perspectivas, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).
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contexto, marcado pela precariedade do trabalho, configura um quadro de enorme perversidade e complexidade, acompanhado pelo incremento das desigualdades sociais e econmicas. O sucateamento da rede assistencial, a baixa remunerao dos profissionais de sade e a flexibilizao das relaes de trabalho so fatores decorrentes da insistncia dos definidores da poltica econmica que priorizam os compromissos com as finanas internacionais em detrimento das polticas sociais. Nesse sentido, cresce a ruptura com os preceitos constitucionais que estabelecem a sade como direito de todos e dever do Estado, baseados nos princpios da universalidade e igualdade (Noronha & Soares, 2001). Polticas de Gesto do Trabalho no SUS: definindo uma agenda de prioridades Complementando a idia de Noronha, Bahia (2006) afirma que o SUS preconizado pela Constituio de 1988 ainda est longe de ser exeqvel, devido distncia entre SUS real e SUS constitucional, cuja reflexo deve ser aprofundada. Entre os obstculos consecuo dos preceitos do SUS evidenciam-se problemas relacionados tanto com a economia quanto com os afeitos ao trabalho nos servios pblicos de sade. De acordo com a autora: o que se constata, embora se evite afirm-lo explicitamente, que a agenda universalizante proposta pelo SUS constitucional tem pouca chance de ser cumprida sob as condies polticas, econmicas e institucionais que prevalecem no pas (p. 161). Ainda que concordemos com a autora, especialmente no que se refere reproduo de desigualdades latentes nas relaes estabelecidas entre trabalhadores de sade e SUS,11 possvel verificar, nos ltimos anos, a constatao da complexidade e centralidade do campo da gesto do trabalho no SUS. Percebe-se, ainda, um esforo, por parte de importantes sujeitos polticos coletiDe acordo com Bahia (2006:167), a mirade de possibilidades de relaes entre o pblico e o privado na assistncia sade afeta e reproduzida pelas mltiplas formas de insero no trabalho dos profissionais de sade. Os duplos e triplos vnculos dos mdicos, as reivindicaes pela diminuio informal das jornadas de trabalho do pessoal de enfermagem, e at de servidores que desempenham funes administrativas, de 40 para 30 horas, e a contratao de pessoal terceirizado so reflexo e potencializam o empresariamento da sade. A precarizao dos vnculos, a informalidade das formas de recrutamento de pessoal, por vezes permeveis ao nepotismo, e as nomeaes polticas para os ocupantes de cargos tcnicos nas instituies pblicas tornam quase inexeqveis a dedicao e o compromisso dos servidores pblicos com a implementao de um SUS universal.
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vos da sade pblica (Conselho Nacional de Sade CNS; Conselho Nacional de Secretrios de Sade Estaduais e Municipais Conass; Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade Conasems; Associao Brasileira de Sade Coletiva Abrasco), em recolocar a importncia do trabalho, a necessidade de valorizao profissional e a regulao das relaes de trabalho no mbito do SUS. Essas questes acabam por receber destaque em documentos da rea, conforme expresso na Norma Operacional Bsica de Recursos Humanos do SUS12 (NOB/RH-SUS) e na conformao do tema Trabalho na Sade, como um dos 10 eixos temticos que subsidiaram as discusses da XII Conferncia Nacional de Sade, realizada em 2003. Este eixo envolveu as questes relacionadas aos recursos humanos em sade, tanto as relativas aos aspectos da gesto, como a precarizao das relaes de trabalho, quanto aos aspectos da educao dos trabalhadores do setor. De acordo com o CNS, as questes do trabalho retornam como compromisso central, remetendo a uma reflexo sobre que modelo de Estado deve orientar as relaes com a sociedade. Nesse sentido, a construo de um novo modelo de gesto do trabalho no SUS relaciona-se com a possibilidade de gerar maior satisfao com o trabalho, queda da rotatividade, aprofundamento da gesto na dimenso do micro processo de trabalho, educao permanente e o reconhecimento da necessidade do estabelecimento de espaos de negociao de conflitos nas relaes de trabalho (Brasil, 2002b). J segundo documento da Abrasco (2003), a desprecarizao dos vnculos torna-se uma necessidade para a prpria viabilidade do sistema, j que sua valorizao do trabalho constitui-se como princpio fundamental na construo da identidade do trabalhador. Prope-se uma poltica de gesto que oriente a construo de planos de carreira especficos, que tenham como eixo o incentivo ao desenvolvimento profissional. Nesse contexto em que as temticas da gesto do trabalho e da educao na sade ganham centralidade, criada13 a Secretaria da Gesto do TrabaA NOB/RH-SUS um instrumento que busca consolidar a gesto do trabalho no SUS. A ltima verso do documento, elaborada em 2002, define os princpios bsicos e as diretrizes que devem nortear a poltica de recursos humanos em sade. 13 Decreto n. 4.726, de 9 de junho de 2003 aprova a estrutura regimental e o quadro demonstrativo de cargos e funes do Ministrio da Sade e define as competncias dos rgos.
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lho e da Educao na Sade (SEGTES), no Ministrio da Sade, que define o papel do gestor federal quanto s polticas de formao, desenvolvimento, planejamento e gesto da fora de trabalho em sade no pas. A construo de uma agenda para a rea parte da identificao dos limites relacionados aos aspectos que circundam o tema. Entre essas limitaes pode-se destacar a prpria viso reducionista da gesto, a inadequada distribuio de trabalhadores, vnculos precrios, escassa informao sobre incentivos produtividade, processos de avaliao, baixos salrios e inadequadas condies de trabalho. Um dos dois departamentos que estruturam a SGTES denomina-se Departamento de Gesto e Regulao do Trabalho na Sade (Degerts), responsvel pelas polticas de gesto, planejamento e regulao do trabalho em sade, nacionalmente. Esse departamento elegeu duas questes prioritrias que afetam diretamente os ACS: uma refere-se discusso do Plano de cargos, carreiras e salrios, no sentido de buscar equacionar problemas relacionados fixao de profissionais, disparidades salariais, formas de acesso na carreira, desenvolvimento, avaliao, incentivos, progresso e ascenso. Em 2004, foi constituda a comisso especial para elaborao de diretrizes do plano14 no sentido de viabilizar o PCCS-SUS, tomando como referncia os Parmetros e Diretrizes da NOB-SUS 02/98, atendendo no s demandas dos trabalhadores como dos gestores. Buscou-se, dessa forma, orientar a reorganizao dos trabalhadores do SUS visando atender aos requisitos de valorizao do profissional, alocao do profissional conforme necessidades do sistema e atendimento a municpios e regies carentes. As principais questes discutidas envolvem as bases legais e administrativas da carreira, elementos de uma carreira nacional exclusiva para atender s necessidades dos municpios carentes, valorizao dos trabalhadores de sade do SUS, com desenvolvimento de mecanismos que promovam, nas trs esferas de governo, o fortalecimento da identidade desses trabalhadores. Outra prioridade o Programa Nacional de Desprecarizao do Trabalho no SUS, que parte da constatao de que cerca de 30% da fora de trabalho encontra-se inserida em modalidades de relaes precrias no setor pblico de sade. No caso dos trabalhadores vinculados estratgia Sade da Famlia, esse percentual ainda maior. O Comit Nacional Interinstitucional de
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Determinao da Portaria Ministerial 626 de 8 de abril de 2004.
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Desprecarizao do Trabalho no SUS15 foi criado com a inteno de discutir mecanismos de regularizao dos vnculos de trabalho de cerca de 600 mil trabalhadores (Brasil, 2004). 16 No caso do Ministrio da Sade, a precariedade do trabalho relacionase com alguma irregularidade no que diz respeito situao de desobedincia s normas vigentes do direito administrativo e do direito do trabalho. O trabalho precrio pode ser definido como uma situao de desproteo social, exercido sem os direitos inerentes ao tipo de contrato firmado. Entretanto, do ponto de vista da administrao pblica, proteo social no significa somente o pleno gozo dos direitos laborais. O fato de existir cobertura social legalmente exigida no suficiente para caracterizar o trabalho como regular. Assim, a contratao sem concurso pblico pode caracterizar um trabalho como precrio, pois o trabalhador absorvido de forma irregular, ou seja, seu vnculo com o Estado no tem base legal. A terceirizao pode ser ento associada precarizao, pois configura fraude lei, j que ofende o inciso II do artigo 37 da Constituio Federal, que determina a realizao de concurso pblico para provimento de cargo na administrao pblica. Os dados oficiais no retratam de forma rigorosa os tipos e o percentual de postos de trabalho precrios no SUS. No entanto, crescente o contingente de trabalhadores do setor pblico de sade que se encontra nessa situao, sob as mais diversas modalidades contratuais: cooperativas, bolsas de trabalho, contrato temporrio, prestao de servios por meio da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT).
Criado pela Portaria n. 2430/GM de 23 de dezembro de 2003 e composto por representantes do Ministrio da Sade, Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto, Ministrio do Trabalho e Emprego, Conass, Conasems e representantes das entidades patronais e sindicais. 16 Tambm do mbito deste departamento, a negociao do trabalho em sade junto aos segmentos do governo e dos trabalhadores no que se refere gesto e regulao do trabalho. Objetiva estruturar uma efetiva poltica de gesto do trabalho, nas esferas federal, estadual e municipal, envolvendo os setores pblico e privado que compem o sistema. Busca-se promover a construo coletiva envolvendo o poder pblico, sociedade civil e trabalhadores dos diversos segmentos da rea da sade, de um sistema de regulao profissional que se paute pela promoo e proteo da qualidade de sade, segundo parmetros ticos, e submeta o interesse particular ao interesse social. Para cumprir esse preceito constitucional, como uma primeira iniciativa, foi criada, em 2004, no mbito do Ministrio da Sade, a Cmara de Regulao do Trabalho em Sade (CRTS), espao temtico de discusso permanente entre as categorias profissionais, o governo representado pelos trs entes federados e a sociedade.
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O Caso do ACS: algumas repercusses no campo da gesto do trabalho no SUS O ACS, h mais de uma dcada, constitui um segmento efetivo da fora de trabalho em sade. De acordo com investigaes realizadas pela Estao Observatrio dos Tcnicos em Sade a partir da base de dados Estatstica Mdica da Sade: assistncia mdica sanitria (IBGE, 1999, 2002)17 percebeu-se o crescimento acelerado dos postos de trabalho ocupados por este trabalhador, entre 1999 e 2002, que passam de 67.503 para 142.696 (Vieira et al., 2003). Tal crescimento relaciona-se ao contexto de reorientao do modelo assistencial, fortemente direcionado pelas formulaes da poltica de sade da esfera federal, especialmente atravs de normas e regulaes 18 que visam priorizar o nvel de ateno bsica no sistema de sade. Em outra pesquisa, intitulada Anlise da poltica de educao permanente em sade, na qual objetivava-se analisar os projetos de educao permanente aprovados pelo Ministrio da Sade, foi possvel verificar que a maior parte dos projetos aprovados referem-se a propostas de cursos, em sua maioria na rea de ateno bsica, com nfase na Estratgia Sade da Famlia (ESF). O crescimento desse trabalhador no setor sade, bem como o incremento da ESF podem ser significativos de, pelo menos, duas lgicas polticas diferenciadas. De um lado, uma poltica que busca romper com o modelo hospitalocntrico, visando reconfigurar a forma de ateno sade no pas, como meio de avanar na concretizao do SUS; de outro lado, uma poltica de focalizao direcionada a grupos em estado de extrema pobreza, respondendo a maior inferncia das polticas neoliberais aprofundadas a partir da dcada de 1990.
A Pesquisa Assistncia Mdico-Sanitria (AMS) , desde 1975, uma base de dados de responsabilidade do IBGE, e atualmente possui o apoio do Ministrio da Sade. Seu principal propsito definir o perfil da capacidade instalada em sade, mediante o levantamento de dados cadastrais e gerais de estabelecimentos de sade no pas. A AMS se reporta, exclusivamente, ao ncleo de servios de sade, ou seja, os servios produzidos em estabelecimentos especificamente voltados para a manuteno e recuperao da sade. Possibilita, assim, acompanhar algumas das reconfiguraes mais expressivas do setor nos ltimos anos, valendo destacar: a municipalizao, o aumento da escolaridade dos postos de trabalho e a expanso da flexibilizao das relaes de trabalho. 18 Sobre concepes a cerca da ateno bsica, ver Matta e Fausto, texto Ateno primria sade: histrico e perspectivas, no livro Estratgia Sade da Famlia, e ainda Silva Jnior e Alves, texto Modelos assistenciais em sade: desafios e perspectivas, no livro Estratgias de Ateno Sade, ambos nesta coleo (N. E.).
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Nesse sentido, Mendes (1994) analisa que, embora, na Constituio, tenha havido uma ruptura com os mecanismos de proteo social ligados aos interesses corporativos, elementos estruturais e conjunturais acabaram por favorecer um moderno setor privado que amplia sua clientela, atravs de mecanismos de financiamento. Assim, destaca que acaba ocorrendo uma universalizao excludente caracterizada pela seletividade dos grupos atendidos. Fleury (2004) caminha na mesma direo, destacando a regresso das propostas universalistas, na rea da sade, na dcada de 1990, ressaltando o carter focalizado das aes para determinados grupos e territrios, operadas por organizaes da sociedade civil, sob alegao de que deste modo os recursos chegariam de maneira mais eficaz aos necessitados, no se extraviando para grupos corporativos mais poderosos. Nesse sentido, a incorporao dos ACS na ESF estaria relacionada com a racionalizao de custos a partir da insero de uma mo-de-obra barata, com fracos vnculos empregatcios e de baixa qualificao. Com efeito, o estudo Monitoramento da implementao e do funcionamento das equipes de sade da famlia, realizado entre 2001 e 2002 pelo Departamento de Ateno Bsica do Ministrio da Sade, identificou que 20-30% de todos os trabalhadores inseridos nessa estratgia apresentavam vnculos precrios de trabalho. Como mencionado, essa situao seguiu orientao da lgica predominante na dcada de 1990 que possibilitou que em 2002 o Ministrio da Sade admitisse a vinculao do ACS de forma indireta (Brasil, 2002c). A fragilidade das modalidades de contratao desses trabalhadores parece contribuir com a alta rotatividade e a insatisfao profissional, podendo comprometer o trabalho realizado na Sade da Famlia. No caso dos ACS, a situao apresenta-se ainda mais complexa. De acordo com os dados do departamento de Ateno Bsica do Ministrio da Sade, expressivo quantitativo dos mais de 217 mil trabalhadores em atividade no pas apresenta insero precria no sistema. So crescentes os processos judiciais que requerem os direitos trabalhistas desses profissionais, o que parece reforar a necessidade de se buscar, definitivamente, uma sada para esse quadro.
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Parte importante do documento de referncia da III Conferncia Nacional de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade19 dedicada s questes que envolvem os ACS. De forma sinttica, as propostas relativas gesto do trabalho sinalizam para a necessidade de responsabilizao do Ministrio da Sade em assumir o repasse de verbas e os direitos trabalhistas referentes ao trabalho dos ACS; estabelecer diretrizes orientadoras com critrios para elaborao de processo seletivo pblico de ACS, contemplando as normas do Programa Sade da Famlia (PSF), com garantia de direitos trabalhistas e exigncia de moradia na microrea; regularizar a condio trabalhista dos ACS com efetivao dos que j esto atuando e propor processo seletivo pblico para os novos agentes; abolir a terceirizao no SUS, considerando o tempo de servio dos ACS, para efeito previdencirio; incluir os ACS nos planos de carreira e assegurar maior reconhecimento do trabalho dos ACS, por meio de incentivo salarial. O debate acerca da melhor alternativa de insero dos ACS no SUS marca, reiteradamente, o cenrio nacional de gesto do sistema pblico de sade, e caracteriza a demanda por proteo social a esses trabalhadores.20 Tal demanda insere-se como pauta de discusso, em grande medida, pelo fato de a Ateno Bsica conformar-se como rea prioritria de concentrao de esforos, programas e incentivos financeiros e, ainda, por conta da maior organizao desses trabalhadores que, atravs da Confederao Nacional dos ACS, vem pressionando no sentido de ampliar sua qualificao.21
Denominada Trabalhadores da sade e a sade de todos: prticas de trabalho, gesto, formao e participao, realizada em maro de 2006, em Braslia, foi estruturada a partir de quatro eixos temticos: gesto democrtica e participativa no trabalho em sade: agenda estratgica e financiamento; gesto democrtica e participativa na educao em sade: agenda estratgica e financiamento; negociao na gesto do trabalho e da educao na sade: valorizao, humanizao e sade do trabalhador; e controle social na gesto do trabalho e da educao na sade. 20 Mais informaes sobre esse processo podem ser encontradas em recente documento elaborado pelo Comit Nacional Interinstitucional de Desprecarizao do Trabalho no SUS denominado Orientaes gerais para elaborao de editais processo seletivo pblico (Brasil, 2006). 21 Dessa forma, a qualificao pode ser compreendida como arena poltica na qual se disputam credenciais que conferem reconhecimento e asseguram o acesso a classificaes vigentes no mundo do trabalho. Pensada desse ponto de vista sociolgico, a qualificao do trabalho uma relao social complexa que varia, portanto, conforme a poca e no apenas em funo de aspectos tcnicos e de organizao do trabalho. Segundo Tartuce (2002), a questo da qualificao transforma-se, principalmente, em funo de fatores morais e polticos presentes no julgamento que a sociedade faz sobre os trabalhos necessrios sua reproduo.
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Atualmente, a Emenda Constitucional 51, de fevereiro de 2006, regulamentada pela lei 11.359, de outubro de 2006, expressa a mais recente conquista no que se refere ao ingresso desses trabalhadores no servio pblico, estabelecendo o processo seletivo pblico que busca resolver as irregularidades dos vnculos de trabalho dos ACS e agentes de endemias. Consideraes Finais A partir do exposto, podemos perceber que tanto a formao dos ACS como sua insero no SUS acontecem em um espao de luta, onde diversos sujeitos coletivos debatem projetos de sociedade que envolve tambm a opo por determinado modelo assistencial de sade. Entendemos que as demandas de formao tcnica so urgentes e legtimas no sentido de ampliar a qualificao do trabalho dos ACS. No entanto, quando se parte da compreenso do conceito de qualificao como um processo socialmente construdo, percebe-se que a anlise do processo de qualificao dos ACS deve relacionar, dialeticamente, as questes relativas formao profissional desse grupo com aquelas relativas gesto do trabalho. Nesse sentido, a compreenso do processo de qualificao dos ACS deve ser buscada na prpria trama das relaes polticas e tcnicas presentes na dinmica social. Referncias ABRASCO. Associao Brasileira de Sade Coletiva. Gesto do Trabalho: regulao x precarizao o fenmeno da terceirizao no setor pblico de sade. Braslia, 2003 (Mimeo.) BAHIA, L. Avanos e percalos do SUS: a regulao das relaes entre pblico e privado. In: EPSJV. (Org.) Trabalho, Educao e Sade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. BOITO, J. A. Poltica Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. So Paulo: Xam, 1999. BRASIL. Ministrio da Sade. Cadernos RH Sade. Coordenao Geral de Desenvolvimento de Recursos Humanos para o SUS (CGDRH/SUS). Braslia: Ministrio da Sade, 1993. (Relatrio Final da II Conferncia Nacional de Recursos Humanos para a Sade) BRASIL. Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado. Braslia: Presidncia da Repblica, Cmara de Reforma do Estado, Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, 1995.
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Histrico da Educao Profissional em Sade

Isabel Brasil Pereira Introduo Este estudo tem por finalidade refletir sobre momentos significativos da histria da Educao Profissional em Sade no Brasil. Para tanto, comecemos por explicitar concepes de mtodos e premissas adotadas na construo deste estudo, dentre elas: a de que a histria aqui tratada como continuidade e ruptura de idias e de projetos; a de sempre relacionar o particular aqui representado pela educao profissional em sade ao geral aqui traduzido na formao dos trabalhadores de diversas reas. Dito isto, fica faltando assinalar que, consoante ao mtodo dialtico, crucial lembrar que o profissional da sade se educa, educado, no conflito e na contradio. Ele herda uma tradio, no uma tbula rasa. Ele negar, aceitar e tentar superar os limites herdados. No partir do zero, nem chegar ao absoluto. Mais ainda, pode-se afirmar que a educao dos trabalhadores na sade composta por projetos contraditrios, interessados, conflitantes e em luta por uma viso de mundo. Uma boa anlise crtica, dentro e fora das instituies escolares, poder indicar os sentidos e os contextos desses projetos interessados que fazem a histria da educao profissional. O que se pode notar que apesar da herana de uma poltica de educao profissional hegemnica que tem como meta, pelo menos desde esta formao histrica chamada capitalismo, servir ao mercado, e de uma viso de educao que tenha como objetivo a adaptao dos trabalhadores a estas condies objetivas, percebe-se talvez no pela histria oficial, mas pela histria contada pelos seus autores, que existe um projeto contra-hegemnico de formao dos trabalhadores da sade que luta por uma educao que tenha como finalidade a transformao desta sociedade, sob a gide do capital, para outra mais humana e solidria onde a diviso social do trabalho possa ser superada. A evidncia da diviso social do trabalho mais conhecida no mbito da formao profissional em sade diz respeito histria da enfermagem. A hist155
ria da enfermagem mostra que as atividades desenvolvidas por estes trabalhadores careciam de conhecimento terico, sendo suas atividades puramente manuais. As instituies femininas e religiosas tiveram papel significativo nos cuidados aos doentes. A enfermagem apresentava-se como atividade prtica, onde a caridade era o atributo moral e religioso das aes desenvolvidas. Ainda sobre o passado, a qualificao para o desempenho das atividades de enfermagem no consistia em um ensino sistematizado de enfermagem, mas sim, em um treinamento de jovens que tinham optado por uma vida conventual, tornando-as eficientes nas artes da enfermagem, como nos relata Rezende (1989):
O treinamento era essencialmente prtico, desenvolvido atravs de atividades em orfanatos, nas residncias dos pacientes e nos hospitais existentes. Os superiores, j treinados, orientavam o aprendizado das novatas que desenvolviam comportamento copiativo, numa relao mestre-aprendiz... aprendiam algumas prelees sobre anatomia e patologia, no se preocupava com o nvel intelectual e em dar informaes tericas s aprendizes... (Rezende, 1989: 59)
A qualificao de trabalhadores para a prtica de enfermagem moderna, no sculo XIX, na Inglaterra, com a criao da primeira escola de enfermagem, chamada nightingaliana, por causa de Florence Nightingale, priorizava as qualidades morais das candidatas. Neste modelo de formao registrado na histria, a durao do curso era de um ano, e os mdicos eram responsveis por ministrar a parte prtica. A escola inglesa, inicialmente, recebeu alunas da alta classe burguesa, chamadas de ladies, que pagavam pelo ensino, e alunas da camada popular, chamadas de nurses, que tinham gratuidade no ensino e na moradia. Nascida na consolidao do capitalismo, a enfermagem moderna reconhece a utilidade social e insere no seu processo de trabalho a repartio de tarefas. Como demonstram as palavras de Rezende (1989): A enfermagem nasceu dividida em dois estratos sociais distintos. s ladies cabia o pensar, concretizado nos postos de comando... Para o trabalho manual ficaram as nurses. A dicotomia entre o trabalho manual e o intelectual pela classe social (p.63) . Neste exemplo, podemos perceber que a diviso social determinou a diviso tcnica. De modo que, embora recebessem o mesmo tipo de qualificao, s
ladies foram destinadas as funes de controle, superviso. Para as nurses, as funes submissas s ladies e, mais diretamente, ligadas ao trabalho manual. Na prtica da enfermagem, a diviso de tarefas, fragmentao do trabalho, ajudou a manter a diviso entre um trabalho que requer pouca qualificao
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HISTRICO DA EDUCAO PROFISSIONAL EM SADE
(representado pelo cuidado) exercido pelas auxiliares de enfermagem e um trabalho especializado, mais intelectualizado (de controle, de coordenao, de interlocuo com o mdico) exercido pela enfermeira. Refletir a histria da educao dos trabalhadores da sade, e aqui com o recorte na educao profissional dos trabalhadores de nvel mdio e fundamental da sade, maneira dialtica, e tendo como foco a histria recente destes trabalhadores na sociedade brasileira, refletir o mundo do trabalho, a sade e a educao, que foram se cruzando, de maneira difcil e contraditria. A comear pelo fato de se lutar contra a viso ideolgica da naturalizao do trabalho feito por estes profissionais (Santos & Christfaro,1996). Naturalizao essa que leva a realizaes de meros treinamentos para que esses trabalhadores desempenhem suas funes . A superao, ou ao menos a tentativa de fazer com que deixe de ser hegemnica a concepo calcada na naturalizao do trabalho desenvolvido por profissionais de nvel mdio e fundamental da sade pode ser evidenciada pela criao de escolas voltadas formao tcnica de trabalhadores da sade e tambm nas leis que regem a educao profissional. Ainda sobre a formao dos que trabalham em funes que exigem escolaridade de nvel mdio e fundamental observamos que:
em seu cotidiano, esse trabalhador sofre a influncia e a presso, percebida ou no, consciente ou no, elaborada ou apenas intuda, a depender do caso, de determinaes cruzadas e contraditrias. A comear pelo discurso de desvalorizao do projeto pblico e universal de sade, da tradio tambm pblica da medicina brasileira e da prpria viso de uma medicina preventiva, ao invs de apenas curativa e invasiva.
Continua sofrendo essa influncia porque recebe salrios baixos e trabalha em ambientes empobrecidos, onde muitas vezes faltam os equipamentos e medicamentos bsicos. Mais que isso, indiquemos a importncia da estrutura burocrtica dos servios pblicos de sade, muitas vezes fechada e hierrquica, pouco capaz de qualificar o conhecimento tcito que o trabalhador desenvolve em seu cotidiano. Portanto, pouco gil em dar respostas a crticas e demandas, muitas vezes justas e pertinentes. No vrtice, existe a presso para que esse mesmo trabalhador se adapte s novas tecnologias e s mudanas que esto ocorrendo no mundo do trabalho (Brasil, 2005: 2)
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Educao Profissional: concepes na relao trabalho, educao, sade As concepes de educao profissional de trabalhadores de nvel mdio e fundamental da sade so engendradas pelas concepes de sade, de sociedade e de sentidos e concepes sobre a relao entre educao e trabalho. Termos diversos, com sentidos em disputa, configuram o campo do que chamamos de educao profissional. Sem pretenso de esgotar a explicitao destes termos/conceitos/concepes, apresentamos alguns, mais recorrentes no campo da formao dos trabalhadores. Os termos formao profissional e qualificao profissional, atravs da literatura produzida, apresentam, cada um deles, um carter polissmico. No mbito da formao profissional esto inseridos sentidos e concepes diversas sobre a qualificao profissional. Para Catanni (1997), a formao profissional, na sua acepo mais abrangente:
Designa todos os processos educativos que permitam ao indivduo adquirir e desenvolver conhecimentos tericos, tcnicos e operacionais relacionados produo de bens e servios, quer esses processos sejam desenvolvidos nas escolas ou nas empresas (...) A Formao Profissional uma expresso recente, criada para designar processos histricos que digam respeito capacitao para e no trabalho, portanto relao permanente entre o trabalhador e o processo de trabalho (...) na tica dos trabalhadores, a Formao Profissional assume um carter associado s idias de autonomia e de auto-valorizao. Essa perspectiva contesta o sentido da educao ou da formao para o trabalho, bem como a poltica de integrao do trabalhador nos projetos empresariais. Ela abre, ao mesmo tempo, um leque mais amplo de discusso, compreendido em temas como: Trabalho como Princpio Educativo e Formao Politcnica. (Catanni, 1997: 94-95)
O conceito marxiano de qualificao, como ressalta Machado (1992), pode ser entendido como uma articulao entre as condies fsicas e mentais que compem a fora de trabalho utilizadas em atividades voltadas para valores de uso. Assim, a capacidade de trabalho condio fundamental da produo, portanto tem seu prprio valor de uso. Com o capitalismo, ela passa a ter um valor de uso crucial pois representa a possibilidade de criao de um valor adicional ao seu prprio valor , a mais-valia (p.9). Com o progresso do capitalismo (apropriando-se cada vez mais da cincia e da tecnologia), o conhecimento, que no pensamento marxiano era en158
tendido como valor de uso, passa cada vez mais a ser apreendido como valor de troca, ou seja, passa a constituir-se tambm como mercadoria. Podemos observar esse processo do conhecimento igualmente como valor de troca, ao analisarmos o emprego do conhecimento cientfico, cada vez voltado mais para o processo industrial, com carter de mercadoria e visando ao lucro. No caso da sade, os exemplos mais gritantes podem ser visualizados em determinados fins e prioridades da indstria de medicamentos e uso e no aperfeioamento das tecnologias voltados cada vez mais para a sade privada. A educao, tanto no seu sentido mais genrico de formao humana, quanto nas suas particularidades, como formao profissional, no fica imune s deformaes produzidas pelo capital. Sob a gide capitalista, o sentido hegemnico da aliana trabalho/qualificao profissional claro: na cidade hierrquica, cabe educao formar profissionais, disciplinados, dedicados ao trabalho e, portanto, produtivos para o capital. Porm, aproveitando os espaos gerados pelas contradies do sistema capitalista, a qualificao profissional pode e deve, pelo menos no que diz respeito a trabalhadores em instituies voltadas para as prticas sociais, tais como a educao e a sade, desenvolver concepes que tenham como objetivo instrumentalizar a classe trabalhadora no seu processo de trabalho e nas demais esferas da vida cotidiana, de modo a possibilitar (embora sem cair no idealismo) a no adequao ao existente. Trata-se portanto, de uma luta entre projetos, onde a moral lmpida: de um lado projetos que vislumbrem no adequar o trabalhador ao existente, de outro a constituio do trabalhador adestrado, obediente e disciplinado. A idia do trabalhador disciplinado, adestrado, ganhou com o taylorismo um aliado poderoso a tecnologia organizacional traduzida em fragmentao e parcelarizao de tarefas com ao mecanizada, acentuando a alienao e acarretando em vrias profisses a desqualificao dos trabalhadores. Com efeitos primeiro no mundo do trabalho, a racionalidade mecnica taylorista se difundiu para outras instituies sociais. No que tange relao conhecimento, capitalismo e qualificao/formao dos trabalhadores, coloca de maneira didtica Saviani:
Na sociedade capitalista a Cincia incorporada ao trabalho produtivo, convertendo-se em potncia material. O conhecimento se converte em fora produtiva e, portanto, em meio de produo. Mas , a contradio do capitalismo atravessa tambm a questo relativa ao conhecimento: se essa sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produ159
o, e se a Cincia, se o conhecimento um meio de produo, uma fora produtiva, ela deveria ser propriedade privada da classe dominante. No entanto, os trabalhadores no podem ser expropriados de forma absoluta dos conhecimentos, porque sem conhecimentos eles no podem tambm produzir, e, por consequncia, no acrescentam valor ao capital. Desse modo, a sociedade capitalista desenvolveu mecanismos atravs dos quais ela procura expropriar o conhecimento dos trabalhadores e sistematizar, elaborar esses conhecimentos, e os desenvolver na forma parcelada. O taylorismo a expresso mais tpica do que foi assinalado. (Saviani, 1997: 13)
Partindo de observaes relativas ao movimento e ao tempo que os trabalhadores desenvolviam durante o processo de trabalho, Taylor, como sabemos, era atento ao modo como os trabalhadores produziam e colocavam em prtica conhecimentos advindos das experincias rotineiras. O taylorismo apreendeu os movimentos e os conhecimentos que os trabalhadores desenvolviam na produo, e uma vez isso sistematizado, desenvolvido na forma parcelada, e o conhecimento relativo ao conjunto passa a ser propriedade privada dos meios de produo (Saviani, 2003) Com olhar histrico, percebemos que os estudos de George Friedmann e Pierre Naville colocaram a qualificao como eixo central da sociologia do trabalho. Nestes autores, reflexes sobre o processo de trabalho e a qualificao profissional se do no embate contra o taylorismo, a partir da idia de que a organizao tayloriana do trabalho propiciava ganhos de produtividade, atravs da intensificao da fragmentao e da padronizao do trabalho na produo. Refletindo sobre as qualificaes desenvolvidas para os trabalhadores de nvel fundamental e mdio da sade, observamos que h uma predominncia de que os mesmos sejam de curta durao, traduzidos em rpidos treinamentos, e conseqentemente reduzidos a uma qualificao mecnica. O que sustenta este pensamento, alm da j mencionada naturalizao do trabalho destes profissionais, o fato de que, quando inseridos nos servios de sade, as instituies tm dificuldade de liber-los para realizao de cursos mais longos. Tambm a respeito da contribuio da produo da sociologia do trabalho para refletirmos a formao dos trabalhadores da sade, notrio que no comeo da segunda metade do sculo XX, a relao qualificao/ processo de trabalho/automao presena significativa nas reflexes de George Friedmann e Pierre Naville. Como nos ajuda a entender Dadoy (1987: 6):
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Friedmann ressaltava que as contradies inerentes a e esse processo, ao ser desenvolvido em sistema capitalista, se traduziriam em novas tarefas que necessitariam de uma qualificao mais aprimorada, ao mesmo tempo em que acarretaria a desqualificao de outras. Podemos, portanto, perceber em Friedmann a origem de teses defendidas, posteriormente, por Freyssenet, conhecida como polarizaes das qualificaes.
No trabalho desenvolvido pela enfermagem, por exemplo, observamos uma polarizao das qualificaes. Essa polarizao aconteceu mediante a diviso social do trabalho e a hierarquizao obedecendo as clivagens capitalsticas de classe. Com reflexo na qualificao profissional, observamos no mundo da produo, em passado recente, o modelo fordista caracterizado pela produo em grandes sries de bens padronizados, condio necessria para a diminuio dos custos e aumento dos lucros. Para mediar os males econmicos provocados pela acumulao do capital, o tipo de regulao poltica Welfare State1 ou Estado de Bem-Estar Social atuava com a perspectiva de ampliar a insero social de grande parte da camada popular, provendo bens sociais, como educao, sade e seguridade social; e, atravs da regulao do mercado de trabalho emprego e salrio. O Estado de Bem-Estar Social contribua para a reproduo de capitais, financiando condies da produo de bens de consumo e servios. A leitura neoliberal sobre a crise do modelo fordista e keynesiano que ela decorrente, dentre outros pontos, das despesas sociais do Estado e do aumento excessivo de salrio, o que geraria presso inflacionria nos preos das mercadorias, aumentando, ao mesmo tempo, a dvida pblica e o dficit oramentrio, assim como o atraso tecnolgico. Como proposta a este modelo considerado problemtico, o neoliberalismo aponta para a necessidade de total liberalizao das foras de mercado. Leitura oposta assinala que a crise fase do movimento de acumulao capitalista e, mediante isso, a reestruturao ps-fordista se d, entre outros pontos: pelas tecnologias organizacional e de base fsica e pelos modos de regulao estatal.
Sobre o Welfare State, ver Pereira e Linhares, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo e Monnerat e Senna, texto A seguridade social brasileira: dilemas e desafios, ambos no livro Sociedade, Estado e Direto Sade, nesta coleo (N. E.).
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As transformaes de tecnologias de base fsica e organizacional sofridas a partir do final do sculo passado, num contexto, onde o neoliberalismo se apresenta como a nova ideologia do capital, configuram, como nos ajuda a entender Ramos (2001) o mundo produtivo com algumas caractersticas tendenciais: flexibilizao da produo e reestruturao das ocupaes ; integrao dos setores de produo; multifuncionalidade e polivalncia dos trabalhadores no ligados ao trabalho prescrito ou ao conhecimento formalizado (p. 51). Nesse cenrio, observamos que ganha destaque o questionamento so-
bre a adequao e a suficincia do conceito de qualificao como estruturante

das relaes de produo e dos cdigos de acesso e permanncia no mercado de trabalho (p. 51). Historicizando a relao processo de trabalho e qualificao do trabalhador, nos ajuda a entender Machado (1992: 15):
Num processo de trabalho rgido, ocorre intensa fragmentao e diviso do trabalho com acentuado controle da superviso (taylorismo e fordismo),com tarefas repetitivas, que significam uma real desqualificao (...) J o processo de trabalho flexvel traz a possibilidade de uma reduo dos nveis de fragmentao do trabalho, oportunizando a polivalncia do trabalhador. Esta flexibilizao funcional pode ser de dois tipos: agregao das funes, um nico homem controlando um conjunto articulado de mquinas; e a rotao por diferentes tarefas, como no trabalho por equipes(...). Com a flexibilizao funcional um novo perfil de qualificao da fora de trabalho parece emergir, sendo postas exigncias como: escolaridade bsica e capacidade de adaptao a novas situaes(...)
tambm significativa para melhor anlise dos processos de formao do trabalhador a afirmao de Freyssenet (1989) que a qualificao pressupe conhecimento, experincia, autoridade e condies materiais, de modo que o trabalhador desempenhe a tarefa, compreendendo de maneira abrangente os problemas a serem solucionados. De maneira mais didtica do que classificatria, Castro (1992), com base em Litter (1986), destaca trs concepes de qualificao: a qualificao com caractersticas objetivas das rotinas de trabalho... ela definida em termos do tempo de aprendizagem no trabalho ou do tipo de conhecimento que est na base de ocupao... ; outra concepo de qualificao se d (...) a partir da sua relao com a possibilidade de autonomia no trabalho. Ela depende das margens de controle exercido pelo trabalhador sobre o processo de transformao como um conjunto, no qual se inclui sua atividade especfica(...) ( p. 98) .
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Castro (1992) nos traz uma outra concepo, em que a qualificao entendida como uma construo social e, neste sentido,
depende de fatores(...) como o costume e a tradio socialmente construda(...) e nela jogam papel importante no apenas os aspectos tcnicos, mas os aspectos de personalidade e os atributos do trabalhador...amplamente variveis segundo o tipo e a situao do trabalho; so tambm diferencialmente valorizveis segundo o contexto societal, as condies conjunturais e a experincia histrica dos distintos grupos profissionais.... (Castro, 1992: 69)
Machado (1996) chama ateno para o fato de que a qualificao no esttica, processo de construo individual e coletivo, no qual os indivduos se qualificam ao longo das relaes sociais. Villavicencio (1992) ressalta que a qualificao para ser compreendida como relao social no pode ser tomada como construo terica acabada. Para o autor, esse entendimento requer como operador o conceito do trabalhador coletivo. Tambm de interesse para a nossa reflexo, observamos que o referido autor chama ateno para o fato de que espaos de qualificao diferentes no podem ser analisados da mesma forma. Isso nos leva a pensar criticamente a transposio de modelos de qualificao entre pases com culturas diversas e com economias diferenciadas, caracterizando campos de conflitos outros, e, portanto, indicando processos de construo de sociedade distintos. Mais ainda, alerta-nos para o fato de que os espaos de qualificao profissional em sade devem ser pensados tambm nas suas singularidades. Trata-se mais uma vez de perceber o particular e o universal do mundo do trabalho. Concepo presente na educao profissional em sade, a noo de politecnia, como traduz Saviani (1997, 2003), postula que o processo de trabalho desenvolva, em uma unidade indissolvel, os aspectos manuais e intelectuais, pois so caractersticas do trabalho humano. A separao dessas funes um produto histrico-social e no absoluta, mas relativa. Essas manifestaes se separam por um processo em que os elementos dominantemente manuais se sistematizam como tarefa de um determinado grupo social,. Podemos ainda afirmar que:
A idia de politecnia implica uma formao que, a partir do prprio trabalho social, desenvolva a compreenso das bases de organizao do trabalho de nossa sociedade(...) trata-se da possibilidade de formar profissionais em um processo onde se aprende praticando, mas, ao praticar, se 163
compreendem os princpios cientficos que esto direta e indiretamente na base desta forma de se organizar o trabalho na sociedade (EPSJV, 2005: 64)
Educao Profissional: instituies e legislao A formao dos trabalhadores ao longo de sua histria, da Colnia Repblica, marcada pelo modo de produo vigente e sua produo social . Como afirma Santos (2000),
O tratamento discriminatrio dado s diversas ocupaes manuais no Brasil-Colnia foi uma das razes, dentre outras, que levou aprendizagem das profisses, que naquele contexto era feita por meio das Corporaes de Ofcios... possuam normas de funcionamento que dificultavam, ou at impediam, o ingresso de escravos (p. 221). 2
No Imprio, inaugurado o primeiro Liceu de Artes e Ofcios, em 1858, que tinha como objetivo propagar e desenvolver para a classe trabalhadora a instruo artstica e tcnica dos ofcios industriais. A influncia de padres salesianos, j no incio da Repblica, dissemina ainda mais a ideologia do ensino profissional como contraponto ao pecado. Somase a isto a presso feita por grupos internos para reforar a produo industrial. Chama-se ateno para a criao, atravs do decreto 7.566 de 1909, das Escolas de Aprendizes e Artfices uma em cada capital de estado. O contexto poltico e econmico dos anos 30 do sculo XX promove inflexes na relao trabalho, educao e sade. Como exemplo de estruturas governamentais, temos a criao do Ministrio da Educao e da Sade, em 1930 e a instituio da Inspetoria do Ensino Profissional Tcnico. Significativo no pensamento educacional brasileiro da poca, o movimento chamado de Escola Nova vai evidenciar a educao profissional como ponto necessrio para as reformas educacionais. A Constituio de 1937, no que tange rea educacional, apresenta retrocessos em relao Constituio de 1934. Cite-se como exemplo marcante, a no fixao de um percentual mnimo de recursos que a Unio e os Estados devem destinar de forma exclusiva para a educao. Nas palavras de Paiva (1987), a educao, neste perodo, como instrumento de propagao da ideoloPara melhor explicitao da histria da educao profissional no Brasil, colnia e imprio, ver Santos (2000).
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gia do Estado populista (...)compunha o quadro estratgico governamental da soluo da questo social e do combate subverso ideolgica... (p. 132). Cabe notar, nesse passo da anlise, que se tratava de questo social como eufemismo para classes sociais em conflito numa sociedade capitalista pobre e atrasada, questo esta na maioria das vezes tratada como caso de polcia, para lembrar aqui Washington Lus. E, no conjunto das estratgias polticas que caracterizam o populismo, combate subverso ideolgica pela via direta da represso policial, mas tambm na forma de alianas, de concesses, de movimentos visando cooptar opositores mais brandos e flexveis. Observa-se que ainda na ditadura do Estado Novo que as Leis Orgnicas de Ensino comeam a ser decretadas. Mencionamos aqui a Lei Orgnica do Ensino Secundrio ou decreto-lei n. 4.244; o decreto-lei n. 4.073, que organizava o ensino industrial e, em dezembro de 1943, a Lei Orgnica do Ensino Comercial. Leis que passam a influir, a disciplinar e a definir pontos importantes no mundo do trabalho comercial e industrial, mostrando a clara inteno de ocupar espao poltico pela via pblica e burocrtica, diminuindo assim a influncia dos opositores organizados na vida civil da sociedade, no tutelados pelo Estado e no integrados a seu projeto de representao orgnica da sociedade.3 O ensino mdio secundrio e tcnico-profissionalizante vai apresentar caracterstica dual. O secundrio com formao humanstica e cientfica (clssico e cientfico), continuando a preparar para a universidade, e o ensino tcnico- profissionalizante preocupado com a formao para o trabalho. Definese, com isso, uma hierarquia do acesso s oportunidades e postos de mando na sociedade, com uma clivagem de classe que no escapa anlise crtica, tendo ao fundo uma bem ntida diviso entre trabalho intelectual e trabalho manual. Como ajuda a entender Romanelli (1989), a Reforma Capanema (leis orgnicas de ensino referentes ao ensino profissionalizante), no vislumbra poder atender, de imediato, s demandas e ao modelo de trabalhador para o processo de industrializao, sendo este um dos motivos da criao do Servio Nacional da Indstria (Senai), em 1942, e do Servio Nacional do Comrcio (Senac) em 1946, em convnio com a Confederao Nacional de Indstrias e
Sobre a relao sociedade civil e Estado, ver Pereira e Linhares, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo, e Braga, texto A sociedade civil e as polticas de sade no Brasil dos anos 80 primeira dcada do sculo XXI, ambos no livro Sociedade Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).
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Confederao Nacional do Comrcio, pondo em evidncia mudanas e permanncias da passagem da sociedade escravista para a republicana, da economia exportadora de matrias-primas para o processo de substituio de importaes, industrializando o pas e buscando criar um mercado interno brasileiro. Mas, para tanto, era necessria a formao profissional e educativa que a imensa maioria dos trabalhadores brasileiros no tinha. Ainda nos dias de hoje, guardadas as propores, no temos uma escolaridade compatvel com o salto tecnolgico que vivemos no capitalismo global e avanado neste incio do sculo XXI. Em relao ao trabalho na sade e seus desdobramentos na qualificao dos seus profissionais, merecem destaque a criao em 1942 do Servio Especial de Sade Pblica (Sesp) e a implantao dos programas de extenso de cobertura, como propostas que embasaram princpios da criao do Programa de Agentes Comunitrios de Sade (Pacs) e do Programa de Sade da Famlia (PSF) (Corbo & Morosini, 2004). Em 1946, aps a queda do Estado Novo, promulgada nova Constituio no pas. Em relao educao, a Constituio de 46 pode ser considerada mais progressista que a de 1937, pois recupera a obrigatoriedade da aplicao de um percentual mnimo de recurso por parte da Unio e dos Estados, e estabelece que a Unio deve legislar sobre as diretrizes e bases da educao nacional. Assim, foram criadas as leis do Ensino Primrio e o Ensino Normal. O ensino primrio apresentava duas modalidades: o fundamental, em quatro anos, e o supletivo, em dois. Pode-se dizer que a sociedade toda se beneficia, mesmo que dentro de certos limites, do clima de razovel democracia que o pas vive com o final da ditadura Vargas, a urbanizao e a tardia industrializao, os movimentos culturais, as formas organizadas de luta dos trabalhadores, dos estudantes e dos intelectuais, no campo e na cidade. Esses fatos marcam uma acumulao crtica, difcil e contraditria, que teria seu limite com o golpe militar de 1964. No entanto, como quase sempre acontece, o Brasil formal e burocrtico esbarra com o Brasil real, inseparvel da vida cotidiana dos excludos dos benefcios do progresso e da vida civilizada. E as necessrias reformas para a verdadeira superao do Brasil doente, de ps descalos, dos trabalhadores devorados pela malria, pela febre amarela, pelo impaludismo, pela tuberculose, pelos vermes, pela subnutrio, esbarram nos interesses restritos do patriciado brasileiro.
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Patriciado de formao rural, escravista, olhando o mundo pela tica da Casa Grande e que, no contexto poltico e econmico posterior Segunda Guerra Mundial, da Guerra Fria e de sua geopoltica, precisa adaptar-se s exigncias da modernizao capitalista, conservadora e tardia, que vai definindo os rumos do Brasil. nos limites postos por esse desenvolvimento dependente e tardio que sero debatidas e formuladas as polticas pblicas para a educao e a sade, no como formulaes monolticas e maniquestas, mas refletindo o maior ou menor potencial de acumulao crtica conseguido pelos grupos de influncia organizada na sociedade brasileira. Como comenta Nunes (1980), nesse sentido que se pode visualizar a poltica econmica liberal do governo Dutra (1946-1950), os entraves formulao de um capitalismo nacional do governo Vargas (1950-1954) e a expanso do capitalismo dependente no governo Kubitscheck (1955-1960). Recorrendo novamente memria da formao profissional de trabalhadores da sade de nvel fundamental e mdio, podemos citar a qualificao dos atendentes, no Rio de Janeiro. Dentre as instituies e cursos realizados, ressaltamos o Curso de Primeiros Socorros na Legio Brasileira de Assistncia (LBA), com durao de um ano seis meses de teoria e seis meses de prtica. Nesta instituio, as aulas tericas eram dadas por enfermeiras, os estgios eram realizados no Hospital Gaffre e Guinle, da Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio), sob superviso de enfermeira formada pela Escola de Enfermagem Ana Neri (UFRJ). Esta aprendizagem diz respeito s atividades desenvolvidas desde meados da dcada de 1940 do sculo passado pela LBA. Cursos com este teor eram tambm promovidos pelo Ministrio do Trabalho, preocupados com a a segurana e a sade do trabalhador no que tange a acidentes do trabalho. Outro curso citado era o treinamento em servio na Promatre, feito por freiras. No perodo de 1950 a 1975, o treinamento em servio na Santa Casa de Londrina outro curso referncia na formao de atendentes. Neste curso, foram ensinadas atividades como a preparao de bandejas de cirurgia, esterilizao de material, fazer eletrocardiograma, administrao de medicamentos e a admisso dos pacientes. Ressaltamos que, no campo da sade, ainda na dcada de 1950, a regulao do trabalho se dava, majoritariamente, atravs das instituies mdicas, havendo ainda uma demanda pblica por profissionais que desenvolvessem prticas sanitrias.
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S para lembrar, estavam colocados em cena, disputando a hegemonia, idias progressistas em busca de racionalizao do setor sade que passava pela qualificao dos trabalhadores, o que melhoraria a situao de reas mais empobrecidas da populao e as idias burocrticas, atreladas ordem dominante, tendo o planejamento como controle social. No perodo de 1948 a 1961 gestada a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, lei n. 4.024, promulgada em 13 de dezembro de 1961, marcada pela luta entre a defesa do ensino pblico e os defensores da escola privada. Na sade, significativa em relao necessidade de se pensar polticas de formao e de melhor distribuio para a fora de trabalho, a III Conferncia Nacional de Sade sinalizou, alm da falta e da m distribuio de trabalhadores que atuavam na rea de sade, a necessidade de construir programas de capacitao voltados para esses trabalhadores (Pereira, 2005). O Plano Nacional de Sade continha a busca de uma racionalidade no setor sade, apontando como imprescindvel uma poltica de recrutamento, seleo e preparo de tcnicos, vislumbrando um ensino descentralizado como o melhor caminho para a qualificao desses trabalhadores. Em 1960, o Sesp foi transformado em Fundao Servio Especial de Sade Pblica que segundo autores como Silva e Dalmaso (2002) funcionou como um laboratrio para o aperfeioamento dos princpios e normas que hoje fundamentam o Pacs e o PSF. J nesse modelo havia uma figura semelhante em alguns aspectos aos agentes comunitrios de sade (ACS) que era denominado visitador sanitrio. Este, alm de estar ao lado do servio de enfermagem nas unidades de sade, realizava atividades em visitas domiciliares e na comunidade. Ele assumia, contudo, o ponto de vista da instituio de sade, realizando aes e procedimentos relacionados prtica de enfermagem, tendo um perfil diferenciado dos atuais ACS. O golpe militar de 1964, consolidado em 1968, ressalta Romanelli (1989), apresenta dois momentos distintos. O primeiro momento corresponde implantao do regime, de sua poltica econmica dependente. quando se verifica um aumento na demanda educacional, que acaba virando pretexto para os acordos do Ministrio da Educao e a United States Agency for International Development, conhecidos como acordos (MEC/Usaid). O segundo comea com medidas de curto prazo para enfrentar a crise, mas que vai se desdobrar, entre
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outros motivos por influncia tcnica da Usaid, na necessidade, em definitivo, de adotar medidas que adaptem o sistema educacional brasileiro ao modelo de desenvolvimento econmico que aqui se intensificava . Trata-se, assim, de entender os acordos MEC/Usaid, o Plano Atcon, a Reforma Universitria e a Lei n. 5.692/71 como o cerne de uma poltica educacional que deixava claro que o modelo de formao do homem adotado era tcnico, neutro, pragmtico, voltado para o mercado, mero suporte para a modernizao do capitalismo. A IV Conferncia Nacional de Sade, realizada em 1967, tinha como meta a produo de uma poltica permanente de recursos humanos na sade. No que tange ao tema recursos humanos, a IV Conferncia se propunha a discutir o perfil do profissional demandado, assim como centrava fogo na necessidade de se tecerem estratgias de capacitao para os trabalhadores de nvel mdio e elementar da sade. Outro destaque foi a necessidade de formao profissional de nvel mdio e elementar, os auxiliares de nvel elementar devem ser preparados ao mnimo possvel, pelos prprios rgos interessados(...) e serem recrutados localmente... (Brasil, 1967: 1006). Desse modo, com a argumentao de estar atento diversidade das aes de sade exigida para estes trabalhadores, fortalecida a idia de qualificao profissional descentralizada e mais voltada para os problemas locais. Ressalta-se que a idia de formao profissional dos trabalhadores de nvel mdio e auxiliar explicitada, naquele momento, se fortalece dentro da estratgia de substituio do profissional de ensino superior, em regio onde faltam mdicos e trabalhadores de nvel superior (Brasil, 1967: 103). Preparar os trabalhadores de nvel mdio e elementar da sade para suprir a falta de profissionais de nvel superior, no nosso entendimento, um projeto que no contribui, efetivamente, para a melhoria nas condies de assistncia populao. diferente de um projeto que valorize e qualifique os trabalhadores de nvel mdio e elementar da sade para atuarem nas equipes de sade, mediante a premissa de que as tarefas, que por eles sero executadas, exigem um saber diferenciado do saber mdico, quer na preveno, quer na assistncia realizada pelos servios de sade. Cabe ressaltar, na dcada de 1970, a criao dos Programas de Extenso de Coberturas (Pecs). Segundo Corbo e Morosini, Os Pecs que tiveram
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maior expresso no pas foram o Programa de Preparao Estratgica Pessoal da Sade (Preps) e o Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento(Piass) (Corbo e Morosini, 2004:159). O primeiro, criado pelo Ministrio da Sade em colaborao com o Ministrio da Educao e Cultura e a Opas, tinha por objetivo preparar trabalhadores visando a um processo de extenso de cobertura adequado s diferentes necessidades de diversas regies e definindo um processo de qualificao de trabalhadores de nvel mdio e fundamental (Silva e Dalmaso, 2002). O segundo programa citado objetivava a utilizao de pessoal de nvel auxiliar, recrutados nas comunidades locais (Souza, 1980).4 Dentre as leis adotadas pelo regime militar, no que tange poltica educacional, destacam-se a lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968, que vai instituir a organizao e funcionamento do ensino superior; os decretos-lei n. 5.379 de 1967, referentes ao Mobral e legislao de financiamento do mesmo em 1970; e a lei n. 5.692/71 de Reforma de Ensino que fixa as Diretrizes e Bases do ensino de 1 e 2 graus. Com a Lei n. 5.692/71, o antigo primrio e o curso ginasial passaram a formar o 1 grau, visando atender crianas de 7 a 14 anos, e a obrigatoriedade escolar passa de 4 para 8 anos. O 1 e 2 grau passam a ter disciplinas de ncleo comum, obrigatrias, e uma parte diversificada, conforme necessidade da regio. O ncleo comum era fixado pelo Conselho Federal de Educao. A referida Lei vai instituir o ensino profissionalizante compulsrio no 2 grau, com base na chamada qualificao para o trabalho. Cerca de 130 habilitaes foram criadas para tcnicos e auxiliares com o parecer 45/72. Em 1974, o nmero de habilitaes do 2 grau j chegava a 158. As escolas normais foram desativadas, tendo o curso de formao de professores se transformado em mais uma das habilitaes oferecidas dentro da mencionada Lei (Cunha, 1985). Cada habilitao abarca um componente de educao geral e outro especfico da categoria. Consta da Lei n. 5.692/71 que, de acordo com a carga horria do currculo, as habilitaes de 2o grau podero formar tcnicos (habilitao plena) ou auxiliares (habilitao parcial) .
Sobre o histrico desses programas, ver Corbo, Morosini e Pontes, texto A sade da famlia: histria recente da reorganizao do modelo de ateno sade no Brasil, no livro Modelos de Ateno e a Sade da Famlia, nesta coleo (N. E.).
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Na sade, para a formao de tcnicos , nesse momento, exigido um mnimo de 2.200 horas, onde esto includas pelo menos 1.200 de contedo profissionalizante e para os auxiliares, 2.200 horas, ...com pelo menos 300 horas de contedo profissionalizante(...) (Nogueira & Santos, s.d.). Ainda sobre a lei n. 5.692/71, estavam desenhadas como opes para o ensino de 2o grau na sade: habilitaes plenas, habilitaes parciais e habilitaes bsicas.
a habilitao bsica, formulada pelo parecer 52/74, compreendida como o preparo propedutico numa rea especfica de atividade. Refere-se, portanto, a uma famlia de ocupaes e oferece um currculo dotado de conhecimentos tecnolgicos essenciais numa rea de atividade como sade humana, comrcio, administrao, mecnica, etc(...) o CFE adota uma classificao das habilitaes em grandes grupos(...) na rea da enfermagem, por exemplo, compem habilitaes afins, alm de tcnico: o auxiliar de enfermagem, secretria de unidade de internao, auxiliar de documentao mdica, visitadora sanitria e outras. (Nogueira & Santos, s.d.: 5).
A lei n. 5.692/71 garante que as habilitaes de 2o grau podem ser adquiridas atravs do exame de suplncia profissionalizante. Como nos ajudam a entender Nogueira e Santos (s.d),
o exame de suplncia profissionalizante confere diploma a quem tenha pelo menos dois anos de trabalho em instituies de sade, com a condio de ser satisfeita a exigncia de cumprimento de educao geral, por via regular ou supletiva(...) e, depende de autorizao e reconhecimento por parte do sistema educacional( p.6)
Alvo de crtica, por representar o pensamento de uma ditadura, a lei 5.692/71 tem hoje expressiva literatura, quer por sua caracterstica dual e classista, quer por traduzir uma crena infinita na tese desenvolvimentista da economia capitalista. Nos espaos gerados pelas contradies existentes numa sociedade capitalista, educadores, comprometidos com a profissionalizao dos trabalhadores da sade inseridos nos servios, vislumbraram brechas, na lei 5.692/71, atravs do ensino de suplncia, para que se viabilizasse uma qualificao profissional por meio de centros formadores as Escolas Tcnicas do Sistema de Sade o que daria a esta qualificao uma caracterstica de formao profissional. Foi sob a gide desta leitura a contrapelo da lei 5.692/71 que foi criado, na dcada de 1980, o projeto Formao em Larga Escala e, com isto, grande parte das hoje denominadas Escolas Tcnicas do SUS.
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Na VI Conferncia Nacional de Sade, realizada em 1977 (Brasil, 1977), transparecem, por um lado, o momento de reconstruo da sociedade e a organicidade dos movimentos sociais e, por outro, o agravamento do dficit previdencirio. A VI Conferncia passa histria como um retrocesso em relao s aes de sade. Ainda aqui, cabe ressaltar a maneira como as aes preventivas e educativas cedem espao s formas privatistas e curativas na rea da sade, organizando interesses privados poderosos, que culminaro, sobretudo ao longo de toda a dcada de 1990, num processo que visa ao desmonte do Estado, no que ele tem, ou j pode ter, de garantia de um mnimo de direitos e de bem-estar para a populao pobre. A LDB 9.394/96, promulgada em 20 de dezembro de 1996, no que tange organizao dos nveis e modalidades de ensino, assim delibera:
Art. 21. A educao escolar compe-se de: I - educao bsica, formada pela educao infantil, ensino fundamental e ensino mdio; II - educao superior. Prev a referida lei que o ensino mdio, assim que atendida a formao geral do educando, poder prepar-lo para o exerccio das profisses tcnicas.
Sob a gide da LDB 9.394/96, a educao profissional passa a ser regulamentada, a partir do decreto 2.208 de 17 de abril de 1997. A estrutura da educao profissional passa a ser estruturada nos nveis: bsico, que independe da escolaridade do trabalhador; tcnico para os que tenham concludo o ensino mdio (podendo cursar o ensino mdio concomitantemente ao tcnico, mas, o aluno s podendo receber o certificado de concluso da habilitao tcnica depois que tiver concludo toda a educao bsica); e tecnolgico correspondente ao ensino superior da rea tecnolgica. Alvo de debate e crtica, dentre elas a de que recompe a dualidade do ensino, o decreto n. 2.208/97 diz em seu artigo 1:
A educao profissional, prevista no art.39 da Lei 9394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional), observadas as diretrizes curriculares nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educao, ser desenvolvida por meio de cursos e programas de: Iformao inicial e continuada de trabalhadores; II- educao tcnica de nvel mdio; e III- educao profissional tecnolgica de graduao e de ps-graduao (Brasil, 1997)
O decreto n. 5.154/2004, que substituiu o decreto n. 2.208 aponta que cursos e programas de formao inicial e continuada de trabalhadores independente de escolaridade, podero ser ofertados segundo itinerrios formativos
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(Art.3). O itinerrio formativo entendido, no referido decreto como conjunto de etapas que compem a organizao da educao profissional em uma determinada rea, possibilitando o aproveitamento contnuo e articulado dos estudos (Art.3, pargrafo 1). A educao tcnica de nvel mdio, nos termos do decreto, ser desenvolvida de forma articulada com o ensino mdio, nas seguintes formas: I - Integrada, para quem j tenha concludo o ensino fundamental, com matrcula nica para cada aluno; II - Concomitante, para quem j tenha concludo o ensino fundamental ou esteja cursando o ensino mdio, na qual a complementariedade entre a educao profissional tcnica de nvel mdio e o ensino mdio pressupe a existncia de matrculas distintas para cada curso, podendo ocorrer: a) na mesma instituio de ensino; b) em instituies de ensino distintas; III - Subseqente, para quem j tenha concludo o ensino mdio (Decreto n. 5.154, de 23 de julho de 2004) Histria das Instituies: marcos significativos na educao profissional em sade Ainda que pesem as contribuies dadas pela Santa Casa de Misericrdia, a LBA e outras instituies formao de trabalhadores da sade, neste momento do texto vamos nos deter a uma histria recente engendrada pelas relaes sociais hegemnicas e contra-hegemnicas estabelecidas. Nesta histria, os atores principais so educadores da sade e suas lutas por projetos a favor de instituies chamadas a responder educao profissional de trabalhadores de nvel mdio e fundamental. Neste sentido, nos deteremos ao projeto de Formao em Larga Escala, aos Centros Formadores e Escolas Tcnicas do SUS e ao projeto poltico e pedaggico da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz. O Projeto de Formao em Larga Escala O projeto Larga Escala, criado na dcada de 1980, e j mencionado anteriormente como o que possibilitou a viabilizao de Escolas e Centros Formadores do SUS, possibilitou estratgias que conduziram viabilizao de escolas e
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centros formadores do Sistema nico de Sade (SUS). Surgiu devido necessidade de promoo e melhoria da formao profissional de trabalhadores de nvel mdio e fundamental da sade que era realizada, majoritariamente, pelas instituies de sade. Trata-se de um projeto de cooperao interinstitucional, oriundo do Acordo de Recursos Humano firmado entre o Ministrio da Sade, o MEC, o Ministrio da Previdncia e Assitncia Social e a Opas, que tem por objetivo a formao profissional dos trabalhadores de nvel mdio e fundamental inseridos nos servios de sade (Pereira & Ramos, 2006). O projeto Larga Escala entendido pelo Ministrio da Sade como proposta que alia pontos positivos da formao profissionalizante realizada tanto pelos servios de sade quanto pelas instituies educacionais.
Trata-se de combinar num nico mecanismo trs elementos essenciais: a) O ensino supletivo, que confere flexibilidade em termos de carga horria, tempo de formao, corpo docente etc, e est dirigida a indivduos (j admitidos, ou em processo de seleo), que realmente optaram pelo engajamento nesse setor de mercado de trabalho; b) O treinamento em servio que proporciona melhor ajustamento entre o tipo de qualificao e as necessidades operacionais das instituies de sade; c) O carter de habilitao oficialmente reconhecida pelo sistema educacional, o que enseja o estabelecimento de padres mnimos para o processo de capacitao, facilita a promoo profissional e o acesso a outros nveis de formao. (Brasil, 1982: 19)
A descrio da metodologia do projeto Larga Escala apresenta a experincia do ensino supletivo como instrumento que valida as diferentes etapas de uma educao continuada. A proposta do Larga Escala afirma que imprescindvel para a implementao do projeto a existncia de um centro formador, em cada estado, e que seja reconhecido pelo sistema de ensino. Estes centros de formao cumpririam duas funes: uma administrativa, fazendo registro de matrculas, emitindo certificados, dentre outras atividades que forneceriam as condies formais de validade; e outra pedaggica, preparando os supervisores instrutores da rede de servios; elaborando e fazendo a seleo de material educativo, acompanhando e avaliando o aluno e o processo como um todo. Esse centro formador atuaria de maneira descentralizada, ou seja, Uma escola aberta, que se estenderia ao local onde o aprendizado estivesse ocorrendo, extra-muros, para motivar o aluno, segui-lo e avali-lo ao longo de todo o processo dispensando, portanto, exames especficos de suplncia. (Brasil, 1982: 20). Esses centros formadores viriam a ser as Escolas Tcnicas do SUS.
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As Escolas Tcnicas/Centros Formadores do SUS At a dcada de 1980, as iniciativas em favor da profissionalizao do nvel mdio da sade eram pulverizadas e realizadas, com uma certa concepo de treinamento, configurando aes mecanicistas. Mesmo quando alguns desses treinamentos eram teis (pela necessidade e/ou mesmo pelo empenho dos trabalhadores envolvidos), ainda restava resolver a questo da certificao, necessria no mercado de trabalho e requerida pelos trabalhadores da rea. A questo da certificao se somava, portanto, necessidade de melhorar o processo ensino-aprendizagem sem perder de vista a necessidade de melhores condies de realizao das aes de sade. Essas circunstncias mencionadas levaram a enfermeira Izabel dos Santos (nome reconhecido na luta pela profissionalizao dos trabalhadores de nvel mdio e fundamental da sade) a estudar e investigar a legislao do ensino vigente na maior parte da dcada de 1970 e durante a dcada de 1980.
Eu comecei a me preocupar em analisar a legislao de ensino vigente. E a legislao era assim, toda estruturada para cursos formais regulares, e pelo menos, pelo jeito com que os gestores educacionais falavam, para que o pessoal do nvel mdio pudesse fazer curso, tinham que ser retirados durante um ano, ou ento ficar trabalhando noite, todas as noites durante um ano para poder fazer o curso. E a o nmero de trabalhadores que podia fazer isso era muito pequeno(...) eu precisava de um pacto que pegasse toda a fora de trabalho, e a comecei a estudar a legislao(...) e ficava aquele problema na minha cabea, a pergunta minha era essa: ser que existe uma forma de flexibilizar essa legislao para eles poderem fazer os cursos em servio? De aproveitar o prprio trabalho como uma forma de espao educacional? Essa era a pergunta que fazia e saa perguntando a todo mundo. (Santos apud Pereira, 2002: 130)
A professora Ena Galvo, uma das pessoas de referncia na luta pelas Escolas Tcnicas do SUS, narra e reafirma a busca por brechas na lei de ensino, que tornaram legalmente possvel a construo deste projeto de formao profissional.
Tinha-se a idia de uma Escola. Uma pessoa do MEC tinha ajudado a elaborar o regimento, mas a Escola Tcnica do Sistema de Sade era muito diferente daquelas respaldadas pelos Conselhos de Educao. Eu, vinda do MEC trabalhar na equipe com a Isabel dos Santos e outros profissionais, custei tambm a aprender o que a sade queria. No incio tudo o que a Isabel dos Santos falava eu dizia assim: No, a lei no permite. E ela me deu uma bronca e disse: Eu sei, sei ler a lei, eu no estou precisando que algum interprete a lei por mim, eu estou precisando de 175
algum que me ajude a operacionalizar essa lei. Eu falei: no. Voc est precisando de um especialista no em lei; voc est precisando de algum em casos omissos e dvidas suscitadas. Ela riu e disse: isso mesmo que eu estou querendo. (Galvo apud Pereira,2002,p.130-31 )
Os parmetros da Escola Tcnica pretendida eram outros, diferentes daqueles da escola regular. Aquele estudante-trabalhador era completamente diferente de um aluno de escola regular. A faixa etria variada, o nvel de escolaridade variado, geograficamente disperso dentro do servio, sem a menor possibilidade de pagar um curso em (proponho adendar a preposio) que eles pudessem estar se qualificando. Este projeto singular de escola, inicialmente era pouco compreendido pelos Conselhos Estaduais de Educao. Segundo a leitura da professora Ena Galvo, a dificuldade inicialmente colocada pelo MEC para compreender o projeto das Escolas Tcnicas do SUS se dava tambm em funo do fato que
O MEC no tinha o mundo do trabalho incorporado na sua prtica, faltava a experincia advinda do mundo do trabalho. Em tese o MEC tem a rede de escolas tcnicas e agrotcnicas, mas elas so autarquias, so autnomas e, na maioria das vezes, desenvolvem as suas frmulas, os seus currculos, suas metodologias. (Galvo apud Pereira, 2002: 131)
Fazer do Larga Escala uma poltica descentralizada atravs das Escolas Tcnicas do Sistema de Sade atuando nos servios de sade, no era um projeto de substituio ao ensino nas escolas tcnicas regulares. Nas palavras de Izabel dos Santos:
uma poltica para os trabalhadores empregados. Ns no somos concorrentes das escolas que esto ainda preparando para o mercado, pois entendamos que elas deviam continuar, porque timo que os trabalhadores venham bem formados. Essas escolas do SUS eram voltadas para dentro do SUS, para as pessoas que trabalham nos servios. (Santos, apud Pereira 2002: 131)
Para que fosse possvel a implantao do Projeto Larga Escala, a lei n. 5.692/71, no que diz respeito suplncia, foi ento trabalhada, de forma que viabilizasse possibilidades de certificao e funcionamento das Escolas Tcnicas do Sistema de Sade, garantindo a sua atuao em servios de sade:
Foi uma batalha feroz nos Conselhos Estaduais de Educao, batalhas de anos. amos l, discutamos, voltvamos(...) at que um dia perguntamos: por que no se coloca esse tipo de escola em carter experimental? A lei 5692/71 permitia, e eles no podiam dizer no, e assim essas escolas foram sendo criadas, mas em carter experimental. (Santos apud Pereira 2002: 132). 176
Esse processo de construo das escolas era muito controlado e exigia grande organizao. Os Conselhos Estaduais de Educao exigiam relatrios parciais para que as escolas, depois de certo tempo, fossem consideradas regulares. Os trabalhadores que executavam os projetos apresentavam algumas dificuldades como a de elaborar relatrios e mesmo de conciliar a produo dos relatrios com a grande quantidade de trabalho exigido.
Os relatrios tinham que ser muito bem cuidados, e a tinha Conselho Estadual de Educao que recusava o relatrio(...) o que criava um problema social, os alunos no podiam receber os diplomas(...) foi preciso muita loucura mesmo para eu ter insistido nisso. Mas fomos, fomos, e todo mundo foi ganhando confiana, experincia e a questo da descentralizao, a escola funo foi se desenvolvendo(...) Havia um preconceito muito grande no sistema educacional sobre o ensino supletivo. Quando eu conversava como uma pessoa da educao geral, ela dizia que era escola de segunda qualidade, um atraso, cursos desclassificados(...) O parecer 699, o valor dele, quem descobriu fomos ns. O pessoal da educao tinha o maior preconceito. Eles no usavam o parecer 699 na sua plenitude, eles s tinham experincia como o exame de suplncia, que era abominvel mesmo, antidemocrtico, e os educadores que tinham mais consistncia terica no queriam esse tipo de avaliao. (Santos apud Pereira 2002: 132).
Negando o exame de suplncia, presente na 5.692/71, o projeto educacional institudo atravs das Escolas Tcnicas do Sistema de Sade, como parte da luta travada pela formao profissional dos trabalhadores de nvel mdio inseridos nos servios de sade, utilizava aspectos da qualificao para o trabalho contidos na lei, recuperando possibilidade de qualificao e propondo a avaliao no processo.
E assim foi, ns fomos negociando, negociando, at que o povo da educao foi aceitando, at que a gente estruturou uma escola, ela passou a funcionar, ns a colocamos como modelo nacional, e fomos deslocando os processos para junto dos servios, junto do trabalho. Portanto, fomos considerando o espao da assistncia como um espao de ensino tambm. Foi mudando o conceito de escola, sala de aula, e o espao de prestao de cuidado, ressaltado tambm como um espao educacional.(Santos apud Pereira 2002: 132.)
Alm das dificuldades pela crtica feita por parte de profissionais da educao 5.692/71, havia entraves postos pela burocracia, assim como os preconceitos de profissionais de nvel superior da sade em relao aos trabalhadores de nvel mdio e fundamental inseridos nos servios de sade. Este ltimo aspecto reforado pela naturalizao das aes destes profissionais somada
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diviso social do trabalho, produzindo portanto preconceitos e outras formas de opresso e alienao
Algumas enfermeiras achavam que esses trabalhadores no tinham capacidade de aprender, que eles eram de uma natureza inferior, que no tinham capacidade de superar, enfim, pensamentos que s fazem acentuar a excluso. Eu tentava fazer com que elas (as enfermeiras) entendessem. Mas, isso no foi fcil. Talvez tenha sido mais difcil convencer as enfermeiras do que o dilogo com a educao. Era difcil faz-las acreditar que isso era uma questo de oportunidade, que os trabalhadores eram normais como outro aluno qualquer, que ele tinha sofrido um processo de excluso, e que ns no ramos assim porque ns no tnhamos sido excludos, ns tivemos chance de ir escola. Foi muita luta para convenc-las, uma das coisas mais difceis(...) e at hoje ainda , apesar de ter melhorado muito. (Santos apud Pereira 2002: 133.).
No incio, o projeto Larga Escala se voltou para o trabalho da enfermagem, que apresentava o maior nmero de trabalhadores pouco escolarizados, cuja condio gerava dificuldades e situaes graves de erro, como, por exemplo, quanto ao medicamento a ser ministrado. A enfermagem majoritria, mas outros setores da sade, como o de laboratrio (diagnsticos tcnicos errados e manipulao errada do material coletado), foram percebendo a importncia do trabalho do nvel mdio e fundamental e constatando a necessidade de promover a qualificao profissional dos trabalhadores envolvidos nas aes de sade. Ou seja, quem puxou esse processo da luta pela formao foi a enfermagem, mas tambm outros setores foram percebendo, tomando conscincia de que no podiam tratar aquele segmento como vinha sendo tratado
Como se os trabalhadores fossem descerebrados, que no tomavam deciso, era simplesmente aquela diviso rgida, diviso vertical tcnica do trabalho, o cara do nvel mdio no podia falar, no podia desobedecer, era um taylorismo rigorosamente institudo, com supervises perversas, autoritrias e ns fomos tambm discutindo com a superviso sobre o processo pedaggico, o momento pedaggico e no de punio, enfim a discusso foi atravessando todos os conceitos com os quais a sade vinha lidando com (Santos apud Pereira 2002: 134.)
medida em que foi avanando e ganhando materialidade, esse processo de formao dos trabalhadores da sade, foi-se colocando a necessidade de traar estratgias metodolgicas de ensino que ajudassem a transmisso do conhecimento, ao mesmo tempo aproveitando a experincia profissional cotidiana desses alunos-trabalhadores.
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A transmisso do conhecimento pura e simples no dava conta, pois esses trabalhadores apresentavam um dficit muito grande na educao geral, muitas vezes no entendiam o que se falava(...) Ento a gente tinha que fazer um tipo de ensino que possa se ajustar a caracterstica desse trabalhador, que era muito concreto (precisa cheirar, tocar, para melhor compreender) era preciso trazer para o concreto o conhecimento a ser transmitido, e a sim, a partir da ir teorizando com ele(...) Ajudar a fazer uma abordagem e ajudar para que eles (alunos-trabalhadores) entendam o que a gente diz. Ns temos que encontrar uma forma de alcan-los. Agora, reprovar em massa no adianta. Pode at ser que na Universidade isso seja muito bonito, determinados professores que reprovam em massa os alunos. Mas aqui, reprovar em massa, significa deixlos no trabalho produzindo prticas de risco para o usurio. (Santos apud Pereira 2002: 134 )
Paulatinamente, foram sendo colocadas em prtica tcnicas que facilitassem a compreenso do conhecimento que estava sendo transmitido. No mesmo passo, o processo ensino-aprendizagem sendo realizado no cotidiano dos servios se deparava com as deformaes no processo de trabalho em sade, oriundas das ms condies dos estabelecimentos de sade. Em relatos dos supervisores, encontra-se a preocupao com o ensino que se valia de simulaes, promovendo condies ideais de trabalho durante o processo ensinoaprendizagem que se distanciavam daquelas encontradas realmente no dia-adia do servio. Tratava-se ento de ensinar sem banalizar o conhecimento e promover a crtica ao improviso (como soluo permanente) que na maioria dos casos se traduz em risco para o paciente e para o trabalhador da sade. Na prtica do ensino a crtica simulao mencionada pode ser ilustrada por cenas como:
Quando estava ensinando, trazia uma bandeja artificial e ensinava tudo certinho, depois carregava a bandeja e o trabalhador ficava l pra prestar o cuidado, com o material que tinha(...) ento no deve-se fazer isso, e sim, usar o processo de formao como um processo de discusso de melhoria das condies dos servios prestados populao. Se o hospital no tinha o material, tinha que ter, pois o paciente estava l internado, ento tinha que trabalhar junto com o processo de formao, com todo mundo ali, a busca de equipamento, o processo tecnolgico. (Santos apud Pereira 2002: 135)
Formar profissionais de sade no significa, em nenhum nvel, a mera adaptao ao existente, com seus fetiches e formas de alienao. Ao invs da informao fragmentada e distorcida, dos fatos e dados parciais, postos fora de contexto, trata-se do trabalho paciente de criticar, mediar, construir uma per179
cepo crtica do profissional de nvel mdio que trabalha nos servios de sade. O que implica conhecimentos tericos e prticos, culturais e tcnicos, qualificando o trabalho e o cidado, no contexto do respeito, da remunerao justa, da participao ativa no cotidiano dos servios de sade, na viso crtica qualificada em relao ao pas e suas contradies. As Escolas Tcnicas trabalham com um mnimo de quadro fixo (profissionais da sade atuando como docentes) e com ampla maioria de profissionais contratados, o que constitui, no nosso entendimento, um problema, pois se torna difcil, dessa forma, comprometer os docentes com um projeto pedaggico. Esse fato traduz mais uma negociao para tornar as Escolas Tcnicas do SUS viveis. Ou seja, essa condio dada pelas circunstncias econmicas e polticas, para baratear o custo das escolas. Nesta negociao, o vnculo precrio dos profissionais que atuam na docncia no o melhor para o processo ensino-aprendizagem, pois o quadro fixo de professores possibilitaria uma melhor qualificao desses docentes. Como nos alerta Santos:
As Escolas Tcnicas funcionando com um quadro fixo mnimo foi uma estratgia que eu adotei diante da adversidade dos gestores. Quando os gestores ainda no estavam motivados para as escolas, o que eu fiz? Se eu fosse colocar uma escola completa, eles iam dizer que era cara, a eu falava assim: voc coloca um ncleo mnimo, um coordenador, e os docentes voc paga os do servio. Era tambm uma forma dos docentes ganharem mais dinheiro e voc no tinha aquela estrutura pesada oramentria, onde eles podiam me derrubar, derrubar o projeto, era mais uma estratgia conjuntural, pois eu sei que quando a gente tem um quadro de docentes mais fixo, voc pode melhorar a qualidade deles. Ou seja, isso por um lado vantagem, mas por outro(...) (Santos apud Pereira 2002: 136)
Em relao aos gestores, percebemos que a viabilizao e o maior ou menor grau de sucesso das Escolas Tcnicas do SUS, a maioria estaduais, dependero da concepo e compromisso poltico em relao sade, seja em relao assistncia de qualidade para a populao, seja em relao formao e direitos dos trabalhadores de nvel mdio e fundamental, demonstrados pelas gestes. Como processo poltico que , a luta pelas Escolas Tcnicas do SUS ganhou fora quanto maior foi o compromisso do gestor com a sade pblica, e o entendimento de que uma assistncia de qualidade passa necessariamente por uma melhor formao dos trabalhadores que ali atuam. Com o mesmo
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sentido, a luta pela profissionalizao dos trabalhadores da sade tambm luta por um projeto poltico da sociedade. Nas palavras de Izabel dos Santos:
Na medida em que os partidos de esquerda foram ganhando prefeituras, eles foram colocando na sua pauta de governo os processos de profissionalizao do pessoal de nvel mdio, isso ajudou muito ao projeto Larga Escala e portanto a instituio das Escolas Tcnicas do SUS. Com as secretarias de esquerda, como a de So Paulo, com o PT, por exemplo, ns tivemos um ganho muito grande, que foi para a complementaridade da educao geral, como a Educao Fundamental era a nvel municipal, voc pegava uma Prefeitura do PT e as portas se abriam, tanto que na escola municipal de l ela tinha um componente enorme de educao geral, para todos os trabalhadores independente da formao profissional, podia ser servente, tcnico, vigia, eles deram muita fora nisso, tambm em outros lugares fizeram isso. (Santos apud Pereira 2002: 136)
Em relao organizao dos Centros Formadores/Escolas Tcnicas de Sade do SUS, podemos observar que estes apresentam variaes, embora, todos os centros de formao possuam: direo, secretaria escolar, departamento administrativo e financeiro e uma coordenao pedaggica. Tm como finalidade e misso institucional promover a profissionalizao dos trabalhadores inseridos nos servios de sade que no possuem qualificao profissional para exercer aes na rea, procurando form-los de acordo com os novos modelos assistenciais. As Escolas Tcnicas do SUS/Centros de Formao so credenciadas pelos Conselhos/Secretarias Estaduais de Educao, como j mencionamos, para certificar os alunos-trabalhadores que freqentam os cursos por elas promovidos. Algumas escolas formam tambm profissionais que ainda no estejam empregados no setor sade. A maioria das Escolas Tcnicas do SUS est lotada nas Secretarias Estaduais de Sade. Os docentes dos cursos ministrados pelas escolas so do quadro fixo de funcionrios (mnimo) e convidados/cedidos, que recebem complementao salarial aqum do desejado. O corpo docente formado por profissionais da sade, sendo a maior parte enfermeiros, e os demais psiclogos, nutricionistas, assistentes sociais, com escolaridade at a graduao, existindo tambm minoritariamente profissionais com ps-graduao. O contingente de trabalhadores que passou pelo processo de profissionalizao significativo.
Nos ltimos oito anos, passaram pelo processo de profissionalizao aproximadamente 23 mil trabalhadores. Em 1997, esse processo contou 181
com a adeso de 2.077 profissionais de servios de sade que, aps passarem por capacitaes tcnicas e pedaggicas, assumem temporariamente a funo docente, tornando-se facilitadores do processo ensinoaprendizagem, participando da qualificao de trabalhadores de sade como instrutores e supervisores das atividades terico-prticas. (Srio & Lamarca, 1998: 151)
Entendemos que um dos grandes ganhos promovidos pelas Escolas Tcnicas do SUS o fortalecimento da qualidade pedaggica e a preocupao com a certificao dos trabalhadores j inseridos na rea da sade, rompendo, portanto, com a idia de que os servios por si s, atravs da passagem de experincia entre os trabalhadores, ou atravs de meros treinamentos, bastariam. As Escolas Tcnicas do SUS e o Profae Parte da histria recente das ETSUS, e ainda em vigncia, temos o Projeto de Profissionalizao dos Trabalhadores da rea de Enfermagem (Profae). No objetivo deste estudo fazer anlise e avaliao do referido Profae, visto que trata-se de projeto ainda existente. Porm no poderamos deixar ressaltlo como um projeto significativo na histria recente das ETSUS. O PROFAE Projeto de Profissionalizao dos Trabalhadores da rea de Enfermagem - produto do Ministrio da Sade, atravs das Secretarias de Polticas de Sade e de Gesto de Investimento em Sade, com apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Ministrio do Trabalho, atravs do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) (Brasil, 2000: 3).O referido projeto foi, inicialmente, organizado em dois componentes: Qualificao profissional e escolarizao de trabalhadores da enfermagem e Fortalecimento institucional das instncias formadoras e reguladoras de recursos humanos do SUS. O guia geral do Profae destaca os objetivos de cada componente:
O objetivo do Componente I melhorar a qualidade da ateno ambulatorial e hospitalar promovendo a complementao do ensino fundamental e da qualificao profissional dos trabalhadores empregados nos estabelecimentos de sade (pblicos, privados e filantrpicos). O Componente II destina-se a financiar atividades que objetivam viabilizar as aes previstas no Componente I e garantir a sustentabilidade de seus resultados, a longo prazo, mediante o desenvolvimento de atividades de fortalecimento institucional e desenvolvimento de expertises que possibilitem a instituio de processos permanentes de formao e regulao de recursos humanos de nvel mdio que atendam ao setor sade. ( Brasil, 2000: 3) 182
Desenvolvido em nvel nacional, de forma descentralizada, a Qualificao profissional e escolarizao de trabalhadores da enfermagem ficam a cargo de escolas autorizadas pelos Sistemas Estaduais de Educao. Em relao ao componente II do Profae, voltado para o fortalecimento institucional de instncias formadoras e reguladoras de trabalhadores do SUS, observamos que no seu projeto original, ele se organiza em quatro subcomponentes, a saber:
Curso de Especializao para a capacitao de docentes da educao

profissional de nvel mdio da rea da sade;
Desenvolvimento e implantao de sistema de informao sobre a formao de auxiliar de enfermagem; desenvolvimento e implantao de sistema de competncia do auxiliar de enfermagem;
Modernizao administrativa e capacitao tcnico-gerencial das Escolas Tcnicas de Sade do SUS; O Curso de Especializao para a capacitao de docentes da educao profissional de nvel mdio da rea da sade est sendo realizado com a metodologia da Educao a Distncia, sendo realizado em nvel nacional e executado por instituies de mbito estadual ou regional que trabalhem com ensino em sade. Atendendo exigncias do Ministrio da Educao, desenvolvia atividades tericas e prticas, abarcando estgio supervisionado, a ser feito com prtica pedaggica realizada nos prprios cursos profissionalizantes. A Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio Criada na dcada de 1980, mais precisamente em 1985, a Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio, uma das unidades tcnico-cientfica da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), certamente, outro marco, em nvel institucional voltado educao profissional tcnica de nvel mdio na rea da sade.5 Assim como as ETSUS, a EPSJV nega, na sua trajetria, a naturalizao das aes desenvolvidas pelos trabalhadores de nvel mdio e fundamental da sade.
5
A respeito da histria da criao da EPSJV, ver EPSJV (2006).
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Afinada com o pensamento crtico e progressista das reas da sade, da educao, e do trabalho, a EPSJV pode ser considerada como instituio que luta a favor da formao dos trabalhadores, utilizando os espaos gerados pelas contradies em um sistema capitalista. De inspirao predominantemente baseada em autores como Marx, Gramsci e de educadores atuais como Gaudncio Frigotto, a EPSJV tambm exemplo de tomar a histria a contrapelo. Trazendo para o cenrio atual onde se engendra a relao trabalho, educao e sade, a EPSJV busca incessantemente construir sua poltica e prtica pedaggica baseada na concepo de politecnia. Nesta busca incessante, ressaltamos como eixo central o trabalho como princpio educativo, articulado com a pesquisa como princpio educativo, e a elegia da arte e do pensamento filosfico como inerentes integrao dos conhecimentos cientficos, e destes com a vida cotidiana.
Temos como compromisso maior a educao profissional em Sade, em nvel tcnico e de formao inicial e continuada, voltada para uma formao tica, poltica e tcnica. Com essa finalidade, so realizados cursos e pesquisas, e traadas cooperaes tcnicas em nveis nacional e internacional(...) A proposta de uma formao politcnica em sade, qualificada e crtica, construda em dois eixos principais: a formao de jovens e maduros trabalhadores do SUS e da C&T e a formao docente para a rea de Educao Profissional... A EPSJV concebe a educao como um projeto de sociedade... defensora de uma concepo politcnica que dialoga com as circunstncias societrias atuais. (EPSJV, 2005: 7).
A EPSJV, conforme consta em documentos por ela produzidos, entende:

A educao profissional como parte significativa de um projeto nacional baseado em um conceito democrtico de nao e de formao dos trabalhadores da sade pautada pelas relaes sociais(...) O que significa discutir e refletir formas de profissionalizao em dimenses de legalizao e valorizao das profisses. Trata-se ainda da defesa de que para todo trabalhador deve ser garantida a Educao Bsica. Este projeto nacional deve contemplar a defesa da Escola Pblica. (EPSJV, 2005: 63)
A qualificao de um projeto nacional a favor da educao profissional em sade preocupao constante de educadores que fazem essa histria. Nas palavras de Andr Malho, atual diretor da Escola:6
As declaraes de Andr Malho foram coletadas em entrevista concedida autora, realizada em maro de 2007.
6
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preciso aumentar o foco e a clareza de projetos como a assessoria e a consultoria s demais escolas tcnicas, o fomento pesquisa, e outros projetos que esto em curso, como a Biblioteca Virtual de Sade, a Secretaria Tcnica da Rede de Escolas Tcnicas do Sistema nico de Sade, a Cooperao Internacional nesta rea, e em especial o mestrado de Educao Profissional em Sade. (Malho, 2007)
Professor desde os primeiros anos da EPSJV, Malho, quando inquerido sobre o Politcnico de 2005, frente aquele implantado na dcada de 1980, afirma que:
A principal diferena reside no fato de que, hoje, o trabalho da EPSJV de apoio e consolidao da Educao Profissional deve ser compreendido nacionalmente e no apenas pela formao de tcnicos de sade em nvel local. Enquanto em 1985 a inteno era fortalecer projetos que surgiam devido transio para reabertura poltica, no momento atual, o Politcnico almeja expandir seu espao. No entanto, acredito que o objetivo da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio continua sendo o mesmo de vinte anos atrs: a consolidao e fortalecimento de uma educao profissional em sade politcnica, pblica e estratgica. (Malho, 2007).
Ainda sob a gide da lei 5.692/71, a EPSJV conseguiu evitar o aprofundamento da fragmentao dos conhecimentos que a referida lei induzia, no abrindo mo de ter no seu currculo contedos e prticas que articulassem a formao geral aos conhecimentos especficos. Em histria recente, a escola se deparou com o iderio das competncias, que se fosse implementado na perspectiva do mundo da produo capitalista e de abordagem condutivista, traria um retrocesso ao projeto voltado emancipao. Mais uma vez, a escola no compromete o seu projeto e consegue atravs de deslocamento de sentido, atravs das brechas, manter e avanar no seu projeto de educao politcnica traduzido para os dias atuais. Protagonistas na defesa da escola pblica voltada formao de trabalhadores de nvel mdio e fundamental da sade, as escolas tcnicas e os centros formadores do SUS, junto com a Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio tm construdo caminhos significativos na histria da formao dos trabalhadores da sade nas ltimas dcadas. Referncias BRASIL. Ministrio da Sade. Anais da 4 a Conferncia Nacional de Sade. Braslia,1967.
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BRASIL. Ministrio da Sade. VI Conferncia Nacional de Sade: Relatrio Final. Braslia,1977. BRASIL. Ministrio da Sade. Secretaria de RH. Recursos Humanos para Servios Bsicos de Sade. Braslia, 1982. BRASIL. Decreto 2.208, de 17 de abril de 1997. Braslia, 1997. BRASIL. Decreto 5.154, de 23 de julho de 2004. Braslia, 2004. BRASIL. Ministrio da Sade. Guia Geral do Profae. Secretaria de Gesto e Investimento em Sade. Projeto de Profissionalizao dos Trabalhadores da rea de Enfermagem. Braslia, 2000. BRASIL. Ministrio da Sade. Programa de incentivo pesquisa nas Escolas Tcnicas em Sade no mbito do projeto Profae. Braslia: 2005 CASTRO, N. A. Organizao do trabalho, qualificao e controle na indstria moderna. In: Coletnea CBE Trabalho e Educao. Campinas: Papirus, 1992. RAMOS, M.N. A Pedagogia das Competncias: autonomia ou adaptao? So Paulo: Cortez, 2001. CATANNI, A. Trabalho e Tecnologia. Dicionrio Crtico. Petrpolis: Vozes, 1997. CORBO, A. & MOROSINI, M. V. G. C. Sade na Famlia: histria recente da organizao da ateno sade. In: Textos de Apoio em Polticas de Sade. Srie Trabalho e Formao em Sade. RJ: Editora Fiocruz, 2005. CUNHA, L. A. Roda-Viva. In: O Golpe da na Educao . Rio de Janeiro: Zahar, 1985. DADOY,M . La Notion de Qualificacion chez George Friedmam. Sociologie du Travail, 1987. EPSJV. Politcnico da Sade: uma conquista da democracia. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz, 2006. EPSJV. Projeto Poltico Pedaggico. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz, 2005. FREYSSENET, M . Paradigmas Tecnolgicos e Polticas de Gesto. In: Anais do Seminrio Internacional Padres Tecnolgicos e Polticas de Gesto. So Paulo: USP, 1989. LITTLER, C. R. The Development of the Labour Process in Capitalist Societies, London: Heinemann,1986. MACHADO , L.R.S. Qualificao do trabalho e relaes sociais. In: FIDALGO, F. (Org.). Gesto do Trabalho e formao do Trabalhador. Belo Horizonte: Movimento da Cultura Marxista, 1996. NOGUEIRA, R. & SANTOS, I. Formao de Pessoal de Nvel Mdio. Braslia, s.d. PAIVA, V. Educao Popular e Educao de Adultos. So Paulo: Loyola, 1987. PEREIRA, I.B. Educao, Trabalho e Sade: a formao dos profissionais de nvel mdio da sade. 1996. Relatrio de pesquisa. Escola politcnica de sade Joaquim Venncio, Fiocruz, convnio Fiocruz/Faperj.
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O Agente Comunitrio de Sade no mbito das Polticas voltadas para a Ateno Bsica: concepes do trabalho e da formao profissional1
Mrcia Valria G. C. Morosini Anamaria DAndrea Corbo Ctia Guimares Introduo Este captulo procura resgatar e analisar as propostas de formao profissional dos agentes comunitrios de sade, bem como os projetos de regulamentao da prtica profissional e da vinculao institucional desses trabalhadores. Apresentamos e analisamos as principais questes das propostas em tela, relacionando-as, buscando demonstrar que os embates relativos natureza do trabalho, formao requerida para o exerccio profissional e vinculao institucional desses trabalhadores esto presentes no cenrio executivo e legislativo brasileiro desde a institucionalizao do ento Programa Nacional de Agentes Comunitrios de Sade (Pnacs), pelo Ministrio da Sade, em 1991. Vale ressaltar que, ao longo desse tempo, os agentes comunitrios de sade (ACS) se transformaram em uma fora de trabalho numerosa e essencial no contexto da realizao da principal estratgia de ampliao de cobertura e reformulao da ateno sade no Brasil, atualmente, a Sade da Famlia. Esse cenrio se configura como um campo de disputa de diferentes projetos relativos s concepes de trabalho, educao e sade. Esses embates se traduzem principalmente pela tentativa dos diversos sujeitos envolvidos trabalhadores, gestores do SUS, centros formadores, representantes dos poderes legislativo e judicirio de inflexionar as polticas relativas gesto do trabalho e da educao dos ACS, conforme os interesses que representam. Da correlao de foras entre esses sujeitos polticos, resultar a conformao da
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Este artigo foi publicado no peridico Trabalho, Educao e Sade, v. 5, n. 2, p. 261-280, julho de 2007
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situao desse trabalhador, que se encontra hoje em pleno processo instituinte. A principal arena dessa disputa poltica tem sido o Legislativo, uma vez que as deliberaes a respeito tm sido construdas em forma de lei. Auxiliados por Silva e Dalmaso2 (2002: 15), teceremos um breve histrico que percorre a compreenso do ACS como um elemento nuclear da realizao de determinadas polticas de sade, em especial de programas que expressam modelos3 para reorientao da assistncia sade no pas.. Essa reorientao da assistncia visa, principalmente, ao deslocamento da ateno sade que se resume assistncia mdico-curativa de ao individual para a ateno integrada sade que compreende a preveno, a promoo e a assistncia como atos contnuos de interveno sobre a sade e passa, necessariamente, pelo entendimento da sade como um processo social resultante das condies de vida da populao.4 Esses programas partilham a experincia de instituir um trabalhador com a incumbncia principal de constituir-se no elemento de ligao entre os servios de sade e a comunidade. Como poderemos observar, essa misso, hoje to fortemente associada ao ACS, esteve presente em programas anteriores, de ampliao de cobertura para populaes especficas. Restringimo-nos apenas s propostas oficiais governamentais , uma vez que compem polticas pblicas e expressam a participao do Estado tanto na construo da realidade sanitria brasileira quanto na instituio de uma realidade de trabalho e formao que, ao longo de dcadas, contribui para que se culmine na complexidade em que se realiza a profisso de ACS no presente. Embora o mapeamento relativo participao de diversas instituies aliadas aos movimentos populares na formao de trabalhadores com atuao na rea da sade no seja o objeto de nosso estudo, identificamos que foi notvel tambm a atuao das instituies religiosas, sobretudo na relao com trabalhaNo texto de Corbo, Morosini e Pontes Sade da Famlia: construo de uma estratgia de ateno sade do livro Modelos de Ateno e a Sade da Famlia, nesta coleo, fizemos uma reviso semelhante na obra de Silva, porm, visando a antecedentes da Estratgia Sade da Famlia. 3 Sobre modelos assistenciais, ver Silva Jnior e Alves, texto Modelos Assistenciais em Sade: desafios e perspectivas, no livro Modelos de Ateno e a Sade da Famlia , nesta coleo. (N. E.). 4 Sobre a construo do conceito de sade, ver Batistella, texto Sade, doena e cuidado: complexidade terica e necessidade histrica, no livro O Territrio e o Processo SadeDoena, nesta coleo. (N. E.).
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O AGENTE COMUNITRIO DE SADE
dores comunitrios. David (2001) e Ramos (2007) destacam o papel das instituies catlicas que, para David, atuaram numa perspectiva transformadora das relaes entre profissionais e classes populares (David, 2001: 62). Ramos (2007), atualmente presidente da Confederao Nacional de Agentes Comunitrios de Sade e tambm ACS em Recife, relembra que, em 1980
as pessoas da comunidade e um grupo tcnico com destaque para padres, freiras, mdicos, enfermeiras criou o Mops (Movimento Popular em Sade), j como desdobramento de diversos trabalhos desenvolvidos nos anos 70. Na minha comunidade, tinha o Projeto Diocesano, sob a liderana de Dom Helder, que foi fundamental para a realizao do I Encontro Nacional de Experincias em Sade Comunitria em Lins em 1978 os grupos diocesanos contavam com 700 pessoas. (Ramos, 2007, Aula inaugural).
Retomando a perspectiva das intervenes de carter pblico-estatal, comecemos pelo Servio Especial de Sade Pblica (Sesp), desenvolvido entre 1942 e 1960, e pela Fundao Servio Especial de Sade Pblica (FSESP).5 O primeiro foi criado em meio Segunda Guerra Mundial, por meio de contrato de cooperao que envolveu o Ministrio de Estado de Negcios Exteriores do Brasil e representante dos interesses dos Estados Unidos, visando a preservar o aporte de matria-prima ao grupo de pases aliados em guerra fato que explica a sua focalizao na regio de extrao de borracha e minrio de ferro. As atividades inicialmente centravam-se no saneamento e no combate s endemias locais que acometiam a populao assistida, entre elas a malria. As atividades do Sesp ampliaram-se ao ponto de, em 1960, no mbito do Ministrio da Sade, ser criada a FSESP, que, durante 30 anos, desenvolveu uma srie de experincias de ampliao de cobertura, incluindo a assistncia mdica no campo da sade pblica. Em relao a esses programas, destaca-se o trabalho de auxiliares conhecidas como visitadoras sanitrias, que atuavam, tanto na unidade de sade quanto na comunidade, realizando visitas domiciliares, atividades de promoo da sade, preveno de doenas, monitoramento e acompanhamento de grupos de risco e vigilncia sanitria, com superviso e orientao do enfermeiro. O Piass Nordeste, como ficou conhecida a fase inicial do programa (19761979), recrutou, nas prprias comunidades a serem beneficiadas, pessoal de
Sobre a histria das polticas de sade no Brasil, ver Baptista, texto Histria das polticas de sade no Brasil: a trajetria do direito sade, no livro Polticas de Sade: a organizao e a operacionalizao do Sistema nico de Sade , nesta coleo (N. E.).
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nvel auxiliar, que era tambm responsvel pela mobilizao comunitria em torno das metas do programa: implantao de sistemas simplificados de abastecimento de gua, de destino de dejetos, e do lixo; hortas, pomares, criao de animais etc. Os auxiliares eram treinados nos prprios servios de sade para as atividades de mobilizao social. Na dcada de 1980, o Piass atingiu a sua maior expanso, que correspondeu sua etapa nacional, na qual se destacou o projeto Devale Projeto de Expanso de Servios Bsicos de Sade e Saneamento em rea Rural, Vale do Ribeira , um brao do Piass nacional em So Paulo, especificamente para regies de Sorocaba e Vale do Ribeira. No projeto Devale, encontramos agentes de sade recrutados na prpria comunidade, operando postos de sade rurais e na periferia de centros urbanos, responsveis por um conjunto de atividades comunitrias e de ateno individual. Nessa poca, j se encontravam, entre outros, os seguintes critrios de seleo: saber ler e escrever, ser maior de idade, ter boa vontade, ter tempo. Podemos encontrar, no projeto Devale, a descrio de preocupaes quanto ao treinamento dos agentes de sade, entre elas, a necessidade de os instrutores respeitarem as caractersticas de cada regio, o desejo de que o processo de capacitao dos agentes no os afastasse de seu grupo social de origem e a indicao de que o treinamento inicial de somente dois meses deveria ter etapas posteriores garantidas, ao longo da prtica nas comunidades. Notamos que todas as experincias relatadas at aqui so referidas na obra de Silva e Dalmaso (2002), com termos tradicionalmente associados a processos formativos aligeirados que, em geral, objetivam a instrumentalizao para a prtica, como o caso de treinamento, capacitao e instrutores. digna de nota tambm a afirmao, quanto ao projeto Devale, de que este propunha um modelo de treinamento que visava principalmente a fortalecer o compromisso e a solidariedade do agente de sade com a comunidade e prover condies para que ele/ela dispusesse do instrumental adequado e necessrio para lidar com os problemas de sade do grupo (Silva e Dalmaso, 2002: 38). Em 1987, teve incio o Programa de Agentes de Sade do Cear, experincia indita em dois aspectos: por ter sido a primeira vez que se trabalhou em ampla escala com os ACS e por ter transformado um plano emergencial para a seca, em que se empregavam temporariamente pessoas das regies
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atingidas, em um programa de promoo da sade, utilizando os mesmos recursos de fundos emergenciais do governo federal. Foram contratados 6.113 trabalhadores, preferencialmente os mais pobres, dos quais a grande maioria era de mulheres, oriundos de 118 municpios diferentes do serto do Cear. O treinamento realizou-se durante duas semanas como preparao para um trabalho que durou, inicialmente, entre seis e doze meses. Nesse segundo momento do Programa de Agentes de Sade do Cear, mantm-se a inteno de empregar mulheres nas regies mais pobres do estado, buscando melhorar a condio social desse grupo. Os agentes eram eleitos pela comunidade, alegando-se a exigncia de que eles residissem na comunidade assistida e de que houvesse participao popular. O treinamento oferecido configurava-se em uma capacitao inicial com durao de dois meses, a cargo da superviso municipal, enfocando aes de educao e de promoo da participao comunitria. Em 1991, o Ministrio da Sade criou o Programa Nacional de Agentes Comunitrios de Sade (Pnacs), institucionalizando uma srie de experincias prticas em sade que se desenvolviam em diversas regies do pas, porm de forma isolada e focal, atendendo populaes em situao de maior risco sade. Mais tarde, em 1992, o Pnacs foi transformado em Programa de Agentes Comunitrios de Sade (Pacs), nomenclatura que permaneceu at o presente e se difundiu nacionalmente. Inicialmente, o Pacs focalizou a questo da assistncia ao grupo maternoinfantil, expandindo posteriormente sua abrangncia para o apoio organizao da ateno bsica em sade nos municpios. Assim, naquele momento, o elenco de aes bsicas de sade propostas para o ACS estava mais fortemente vinculado melhoria da sade das gestantes e crianas do que ateno s necessidades de sade da populao como um todo. Da mesma forma, tais atividades tinham prioridade de execuo em relao quelas relacionadas coleta e alimentao de dados primrios de sade que poderiam contribuir para a identificao das causas e determinantes das condies de sade da populao adscrita. Posteriormente, com a entrada da clera no pas, o programa passou a dar mais nfase aos procedimentos relacionados ao controle e preveno desta doena. O sucesso alcanado pelos municpios que adotaram o Pacs criou condies de possibilidade para a formulao do Programa Sade da Famlia (PSF),
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cujas primeiras equipes comearam a ser formadas em janeiro de 1994, incorporando e ampliando a atuao dos ACS. O sucesso do Pacs foi expresso na alterao de indicadores clssicos da situao de sade da populao, 6 principalmente a mortalidade infantil. Seus efeitos fizeram-se sentir tambm no aumento da cobertura vacinal e da prtica do aleitamento materno exclusivo at os quatro meses de idade. Mais tarde, o Pacs incorporou-se ao PSF e sua expanso passou a estar vinculada a este segundo programa que, por prever uma equipe constituda, no mnimo, por mdico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e ACS, considerado um projeto mais adequado para atender s necessidades de sade da populao. Assim, no se organiza implantao isolada do Pacs, a no ser quando for necessria uma estratgia transitria que crie condies para a implantao futura do PSF. Juntos, Pacs e PSF compreendem a Estratgia Sade da Famlia, um conjunto de diretrizes, instrumentos e esforos articulados para viabilizar a reformulao da ateno sade a partir da ateno bsica no marco do Sistema nico de Sade (SUS).7 Em 1997, com a publicao da portaria n. 1.886, que aprova as normas e diretrizes do Pacs e PSF, foram definidas as atribuies dos ACS de modo que sua atuao estivesse centrada na promoo e preveno de doenas, de acordo com as prioridades estabelecidas em funo das necessidades de sade identificadas no territrio ao qual o ACS estava vinculado (Brasil, 1997c) 8. A portaria vedava ao ACS o desenvolvimento de atividades tpicas do servio interno das unidades bsicas de sade de sua referncia, no intuito de fortalecer a sua insero nas aes educativas executadas fora da unidade ambulatorial, bem como a sua participao nas atividades comunitrias.9
Sobre indicadores de sade, ver Monken e Barcellos, texto Instrumentos para o diagnstico scio-sanitrio no Programa de Sade da Famlia, no livro O territrio e o processo sadedoena, nesta coleo. (N. E.). 7 Sobre a reorganizao da ateno bsica e o detalhamento da Estratgia Sade da Famlia, ver Corbo, Morosini e Pontes, texto Sade da famlia: construo de uma estratgia de ateno sade, no livro Modelos de Ateno e a Sade da Famlia, nesta coleo (N. E.). 8 Sobre promoo, preveno e vigilncia sade e a noo de territrio, ver Monken e Barcellos, texto Territrio na promoo e vigilncia sade, no livro O Territrio e o Processo Sade- Doena, nesta coleo. (N. E.). 9 Sobre educao popular em sade e mobilizao social, ver Stotz, David e Bornstein, texto Educao popular em sade, no livro Educao e Sade, nesta coleo. (N. E.).
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Essas diretrizes foram atualizadas na portaria n. 648, de 2006, que preservou a centralidade das atividades de preveno e promoo da sade na concepo do trabalho do ACS, permitindo ao agente o desenvolvimento de aes de sade nas unidades bsicas desde que vinculadas s atribuies definidas na referida portaria. Em ambos os programas, o ACS o trabalhador sobre o qual recaem funes estratgicas para a viabilizao das metas da ateno preconizada: ser a ponte entre o servio e a comunidade, estabelecendo aproximaes e desenvolvendo vnculos com a populao das comunidades atendidas. Tal perspectiva do trabalho do ACS foi reiterada em nossas pesquisas que tematizaram a compreenso de diversos atores sociais (ACS, gestores, docentes da formao) sobre a funo do ACS e sua relao com a equipe de sade (Morosini, 2001; Morosini et al., 2005). Anlises sobre o trabalho do ACS como as de David (2001) e Bornstein (2007) fortalecem a necessidade de se compreender a ambigidade que perpassa o trabalho do ACS que, por sua vivncia singular de membro de comunidade, v seus conhecimentos de carter popular postos em dilogo ou mesmo em contraposio com o conhecimento cientfico fruto das experincias de formao/profissionalizao. Rumo Formao Profissional Apesar de o ACS desenvolver um trabalho complexo, caracterizado principalmente pela dimenso educativa, em geral, a sua formao profissional temse caracterizado pela precariedade e diversidade, uma vez que, para essa funo, desde o Pacs, o Ministrio da Sade estabelecia como critrio de escolaridade as habilidades de ler e escrever. A formao profissional restringia-se em geral capacitao em servio, realizada pelo enfermeiro-supervisor, no caso do Pacs, ou pela equipe do PSF, operando-se de forma distinta nos diversos municpios que adotaram a Estratgia Sade da Famlia. A mesma portaria que estabeleceu as atribuies dos ACS a j referida portaria n. 1.886 estabeleceu tambm as condies para a formao desses trabalhadores, preconizada como uma capacitao em servio, realizada de forma continuada, gradual e permanente sob a responsabilidade do enfermeiro, com a participao dos demais membros da equipe.
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Segundo Schwartz (1995), a qualificao profissional apresenta trs dimenses: a conceitual, relacionada formao e certificao profissional; a experimental, relacionada ao contedo real da formao, incluindo os saberes tcitos; e a social, que insere a qualificao no mbito das relaes sociais. Por essa perspectiva, se analisarmos as caractersticas da qualificao predominante dos ACS at o momento anterior proposio da formao tcnica, temos uma qualificao classificada, ento, como de nvel bsico da educao profissional, portanto, no regulamentada, sem pr-requisitos e que no confere habilitao. Realizada em forma de capacitao em servio, essa qualificao tem contedos que variam em funo dos problemas locais, em que a avaliao pauta-se nas atividades realizadas no servio e o material educativo estrutura-se em torno das atividades a serem realizadas. A (no) escolarizao do ACS, justificada pela necessidade de esse trabalhador ser representativo da comunidade em que atua, denota a desvalorizao da dimenso conceitual de sua qualificao, o que fortalece a desvalorizao social desse trabalhador, sustenta a sua baixa remunerao e se contrape pauta poltica por uma melhor qualificao dos trabalhadores da sade, de uma maneira geral. Outra perspectiva sobre a produo de mecanismos de desvalorizao do trabalho do ACS trazida por Bornstein (2007), que, em seu estudo sobre o processo de trabalho do ACS, identifica prticas de desvio de funo deste trabalhador, sobretudo no sentido de responsabiliz-lo pela execuo de tarefas burocrticas. Para a autora, a recorrncia deste fenmeno deve nos fazer refletir sobre a desvalorizao do trabalho do ACS como mediador no trabalho educativo. Acrescentamos tambm que o desvio de funo denota a compreenso do trabalho do ACS como inespecfico e de baixa complexidade, podendo ser redirecionado, segundo as necessidades dos servios, para atividades que supostamente exigem pouca capacitao. A capacitao em servio, muitas vezes tambm usada como estratgia para a baixa escolarizao desses trabalhadores, sugere a valorizao da dimenso experimental dessa qualificao, justificada na necessidade de se aproximar a escola do servio. Porm, quando reduzida a essa dimenso, e sem a mediao das instituies cuja misso principal o ensino, esse tipo de capacitao pode implicar a reduo do conhecimento realizao de atividades e extinguir o espao da escola em favor do servio.
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Na gesto de Jos Serra no Ministrio da Sade (1998-2002), ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, foi elaborada uma primeira proposta de formao profissional para os ACS que visava prover parmetros nacionais para a sua profissionalizao, em ateno lei n. 10.507, de julho de 2002 (Brasil, 2002). Podemos dizer que a lei 10.507, que criou a profisso do ACS, o resultado de vrios debates sobre a vinculao e a natureza do trabalho do agente, que culminou com uma srie de aes legislativas sobre o tema. At a publicao do decreto n. 3.184, de 4 de outubro de 1999, que fixou as diretrizes para o exerccio da atividade do ACS, nove projetos de lei (PL) tramitaram no Congresso Nacional com o objetivo de regulamentar a prtica profissional dos ACS (Corbo, Pereira e Porto, 1999).10 A histria recente dos ACS no Brasil um exemplo claro da necessidade de articulao estreita entre as polticas de formao e de gesto do trabalho. Ao mesmo tempo, ilustra, de forma mpar, as contradies e embates inerentes a essa relao. Em Busca do Reconhecimento Profissional e da Regularizao dos Vnculos De forma breve, apresentaremos algumas das indicaes constantes nos projetos de regulamentao da prtica dos ACS, com o intuito de demonstrar que os embates relativos natureza do trabalho, formao requerida para o exerccio profissional e vinculao institucional desses trabalhadores esto presentes no cenrio executivo e legislativo brasileiro desde a institucionalizao do Pacs, pelo Ministrio da Sade, em 1991. A primeira iniciativa que tramitou no Congresso Nacional com a preocupao de regulamentar o exerccio dos agentes foi o PL n. 5.287, de 1990, de autoria de Percival Muniz (Brasil, 1990). O PL argumentava que o agente de sade pblica era um profissional que, por exercer aes educativas na comunidade, desenvolvendo atividades bsicas de sade no domiclio, possua uma diferenciao em relao aos demais profissionais do setor. A profisso era de
Sobre a relao legislativo-executivo, ver Baptista e Machado, texto O legislativo e a sade no Brasil, no livro Polticas de Sade: a organizao e a operacionalizao do Sistema nico de Sade, nesta coleo (N. E.).
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exclusividade daqueles que tivessem concludo o curso especializado, de seis meses de durao, com currculo definido pelo Conselho Federal de Educao. O agente deveria residir na comunidade em que fosse trabalhar, sendo por ela escolhido. O vnculo empregatcio se daria em acordo com as normas constantes da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT). Esse PL foi arquivado em 1991. Em 1993, foi apresentado o PL n. 3.994, de autoria de Paulo Portugal (Brasil, 1993). Nesse projeto, eram especificadas algumas das atividades do agente de sade comunitria, a saber: ministrar conhecimentos sobre a preveno de doenas, prestar atendimentos em primeiros socorros, em imunizao, em cuidados primrios e em vigilncia epidemiolgica. Era exigido o ensino fundamental completo para o exerccio profissional. Com uma forte preocupao com os direitos trabalhistas desse profissional, o projeto previa o pagamento de hora extra diurna e noturna e fixava a jornada de trabalho em seis horas dirias. Foi arquivado em 1995, sem ter sido votado. Em 1995, o texto final do PL n. 332, de 1995, que continha parecer da Comisso de Seguridade Social e Famlia (CSSF) do Congresso Nacional,11 representou significativo avano em relao aos projetos anteriores, provavelmente pelo fato de a CSSF ter consultado, para a elaborao do substitutivo, diversas instncias afins ao tema, como rgos internacionais, setores do Ministrio da Sade e entidades da rea de enfermagem e dos ACS (Brasil, 1995b). Ao retomar o PL de Paulo Portugal, mantiveram-se as atividades definidas naquele, estabelecendo-se, entretanto, que o Ministrio da Sade, aps consulta ao Ministrio do Trabalho, regulamentaria as aes de responsabilidade do agente. Seguindo a orientao dos prprios agentes, sugeriu-se a modificao da denominao da categoria de agente de sade comunitria para agente comunitrio de sade, por representar melhor a atuao desses trabalhadores. A escolaridade exigida foi reduzida 4 srie do ensino fundamental, em contraposio a alguns projetos anteriores que fixavam a escolaridade no ensino fundamental completo. A argumentao utilizada era de que a maior parte dos agentes oriunda dos estratos mais pobres da populao, onde, pelas razes conhecidas, se tem menor possibilidade de concluir o ensino fundamental. Em contrapartida, estabelecia que o empregador deveria, em perodo a ser determinado, prover a complementao dessa escolaridade.
O parecer da CSSF foi assinado pelo ento deputado Sergio Arouca, sendo elaborado por ele o prprio substitutivo ao PL original.
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No projeto foi fixada ainda a jornada de trabalho para oito horas dirias, com o intuito de no criar excees em relao aos demais profissionais de sade. Entretanto, ao observar-se a especificidade de trabalho dessa categoria, sugeriu-se organizao dos trabalhadores para a implementao de contrato coletivo de trabalho,12 com vistas melhor discusso e definio da carga horria de trabalho, bem como definio dos procedimentos relacionados ao pagamento de horas extra. De forma pioneira, esse projeto restringiu a atuao dos agentes exclusivamente a ambiente externo, sendo vedada atuao nos servios laboratoriais, ambulatoriais ou hospitalares, ou como integrante de quadro de pessoal ou de equipe multidisciplinar destes setores (PL 3994). No relatrio da CSSF , no foi dada nenhuma justificativa para esse veto. O projeto foi arquivado sem ter ido a plenrio para votao. Em 1997, novo PL de n. 3.604, de 1997, foi apresentado Cmara dos Deputados. Nesse projeto tambm foram exigidos o ensino fundamental completo e a concluso de curso especfico; foram ainda relacionadas algumas das atribuies do ACS (Brasil, 1997a). Todas as aes propostas fazem parte do elenco j definido pelo Ministrio da Sade no documento Programa de agentes comunitrios de sade, publicado em 1994. O projeto definiu, pela primeira vez, a competncia dos conselhos federal e regionais de enfermagem de fiscalizar a atuao profissional dos ACS. Nos projetos anteriores, a fiscalizao desse profissional era de responsabilidade das prefeituras municipais atravs de seus rgos de sade. O projeto foi arquivado em fevereiro de 1999. Nos anos de 1998 e 1999 ainda foram apresentados mais trs PLs (PL no 4.868, de 1998, n. 86, de 1999, e n. 357, de 1999), que reproduziam algumas das questes contidas nos outros PLs anteriores. No dia 4 de outubro de 1999, pelo decreto n. 3.189, o presidente da Repblica fixou as diretrizes para o exerccio da atividade de ACS. Nesse decreto, de forma bastante ampla, definiu-se que o ACS deveria desenvolver atividades de preveno de doenas e promoo de sade por meio de aes individuais e coletivas, nos domiclios e na comunidade. Porm, diferente dos projetos de lei anteriores ao decreto, definiu que a superviso do agente seria
Na ausncia do contrato coletivo, o PL definia um acrscimo percentual no salrio sobre o valor da hora adicional trabalhada, e outro para os casos de trabalho noturno.
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realizada por profissional competente, retirando a exclusividade da superviso do campo da enfermagem. Atrelava tambm a exigncia de escolaridade aos requisitos mnimos estabelecidos pelo Ministrio da Sade (Brasil, 1999c). Finalmente, em 10 de julho de 2002, como j indicamos anteriormente, a lei 10.507 instituiu a profisso de ACS. Sobre essa lei, necessrio destacar que, alm de reiterar que os agentes deveriam morar na comunidade em que atuam, como j preconizava o PSF, ela determinou que esses trabalhadores deveriam ter o ensino fundamental completo excetuando-se os que j exerciam essa ocupao antes daquela data e deveriam tambm concluir um curso de qualificao bsica. Alm disso, delegou ao Ministrio da Sade a responsabilidade pela definio do contedo programtico desse curso. Onde a Formao e a Profissionalizao se Cruzam A lei n. 10.507 teve o papel de reconhecer os ACS como uma categoria profissional e de incentivar o processo de formao desses trabalhadores. Tanto que, no ano seguinte, atendendo a essa determinao legal, na gesto de Humberto Costa no Ministrio da Sade, ainda no primeiro governo Lula, a Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade (SGTES) iniciou um processo amplo de discusso de um projeto de qualificao para os ACS. O primeiro projeto em pauta foi uma proposta de qualificao profissional de nvel bsico que no constitua um itinerrio formativo e apresentava uma carga horria de apenas 80 horas, restringindo-se, portanto, s exigncias da nova lei. A continuidade dessa discusso no mbito do Ministrio da Sade ampliou-se com a participao de diversos atores, inclusive representantes das Escolas Tcnicas do SUS, que passaram a discutir um perfil de competncias que definisse o trabalho e a formao dos ACS. Resultou desse debate a convico de que um curso de formao inicial, mais rpido, no daria conta da complexidade do trabalho desses profissionais. Foi construdo, ento, um
Referencial Curricular para Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade, publicado em 2004 pelo Ministrio da Sade e pelo Ministrio da Educao. Explicando a iniciativa de ir alm da qualificao bsica que recomendava a lei n. 10.507, diz a apresentao do documento, assinada pelos ministros da Sade e da Educao:
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A relevncia deste trabalhador no contexto de mudanas das prticas de sade e o papel social do Agente Comunitrio de Sade junto populao constituem a necessidade de sua formao, feita em nvel tcnico e reafirma a inteno governamental de associar educao profissional elevao de escolaridade. (Brasil, 2004b: 6).
A proposta de formao tcnica dos ACS foi organizada a partir do perfil de competncias que, por sua vez, foi pactuado com base em consulta pblica organizada pela equipe tcnica da Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade do Ministrio da Sade, no final de 2003. Nesse perfil, as competncias atribudas aos ACS agrupam-se em trs conjuntos de habilidades, com a seguinte formulao: 1) desenvolver aes de integrao entre as equipes de sade e as populaes adscritas s unidades de sade; 2) participar das atividades de planejamento e avaliao das aes desenvolvidas pelas equipes de sade; 3) desenvolver aes de promoo da sade; desenvolver aes de preveno e monitoramento dirigidas s situaes de risco sanitrio para a populao e desenvolver aes de preveno e monitoramento dirigidas a grupos especficos e a doenas prevalentes (Brasil, 2004b). O referencial curricular para a formao tcnica dos ACS baseou-se nessas competncias para definir os trs mbitos de atuao desse trabalhador, a partir dos quais foram construdos tambm trs mdulos. O eixo integrador entre os mdulos a promoo da sade e a preveno de agravos que tm funo de estruturar e integrar o processo formativo (Brasil, 2004b). Em 8 de julho de 2004, a proposta de habilitao tcnica para a profisso de ACS foi aprovada em parecer do Conselho Nacional de Educao (CNE/CEB 19/2004, Brasil, 2004a), homologado em novembro do mesmo ano. Nesse parecer, nota-se a preocupao de que se estabelea uma proposta formativa comprometida com a elevao concomitante da escolaridade dos ACS. Alm disso, digno de nota o reconhecimento da especificidade dessa formao que, ao mesmo tempo, valoriza o servio como espao formativo e constri um itinerrio formativo visando profissionalizao tcnica. De acordo com esse parecer, o Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade foi construdo em itinerrios formativos, definidos como percursos formativos organizados de forma interdependente e que possibilitem uma progresso concomitante escolarizao do trabalhador (Brasil, 2004a).
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A execuo dos cursos de formao tcnica dos ACS fica a cargo principalmente das Escolas Tcnicas do SUS (Etsus) e dos Centros Formadores de Recursos Humanos em Sade (Cefor) que compem a Rede de Escolas Tcnicas do Sistema nico de Sade (Retsus). Ao todo, so 36 instituies distribudas pelos estados brasileiros. Trata-se de escolas pblicas, especificamente voltadas para a rea da sade, ligadas, em sua maioria, s secretarias de sade dos estados e municpios, cuja principal atribuio ordenar, orientar e participar da qualificao profissional em sade, buscando suprir a necessidade de trabalhadores qualificados para o SUS e colaborar na consolidao das polticas pblicas de sade (Reis et al., 2004). Atualmente, mais de 200 mil ACS esto em formao em sala de aula ou em vias de comear o curso pelas Escolas Tcnicas do SUS de todo o pas, em um processo induzido financeiramente pelo Ministrio da Sade. A educao profissional de nvel tcnico, ao ser proposta para os ACS, incide, como j vimos, sobre um contexto de formao aligeirada e abreviada, realizada geralmente em servio, sem requisitos prvios de escolaridade ou de carga horria. Essa nova proposta nos sinaliza com um cenrio futuro mais positivo para a qualificao profissional desses trabalhadores. Ainda em 2004, a Presidncia da Repblica emitiu o decreto no 5.154, que revogou o 2.208/97 e, dentre outras coisas, instituiu a formao por itinerrios. Essa nova legislao expressa, de certa forma, um novo modo de compreender a educao profissional, que deixa de priorizar os cursos rpidos e isolados do processo formativo (Brasil, 2004c). O incentivo formao por itinerrios significa, nesse contexto, que os cursos de formao inicial e continuada, mesmo aqueles com pouca carga horria, no devem ser desenvolvidos de forma totalmente independente, como um fim em si mesmo, mas, ao contrrio, devem ser pensados como etapas de um caminho de formao mais ampla que o aluno poder seguir. Significa, em ltima instncia, que as instituies de ensino devem ter um compromisso com a continuidade da formao do aluno, reconhecida como um direito. Nesse sentido, a publicao do decreto n. 5.154/ 2003, pouco tempo depois do lanamento dos Referenciais Curriculares do ACS, mostrou que a sade estava em sintonia com um novo projeto de educao profissional para o pas. Compreendemos que a formao tcnica dos ACS por si s no garantia de que no se incorra em uma formao instrumentalizadora, agora, com o
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status tecnificado. Para evitar isso, necessrio que essa formao tcnica parta do entendimento da educao como um conjunto de prticas sociais que se articulam, baseadas nas cincias, constituindo uma formao que, alm de tcnica, precisa ser tica e poltica no sentido de se aproximar da formao humana. Como nos ensina Marx (1978), formao humana entendida como a expresso social do processo de conhecimento e de realizao individual que transcende o nvel da ao movida pelas necessidades de subsistncia. Tratase, portanto, de compreender a formao humana como expresso de um desenvolvimento individual, mas tambm coletivo, ou seja, uma particularizao de uma forma social de existncia.
Desprecarizao dos Vnculos: um processo inconcluso Se a legislao educacional contribuiu para a efetivao da proposta de formao tcnica dos ACS, na rea da sade houve muitas reaes negativas, vindas, principalmente, dos gestores municipais. Questionavase a validade de investir na formao tcnica de profissionais que, por terem vnculos precrios, no tinham garantias de permanncia no SUS. Construdo como reao proposta de formao tcnica, esse argumento acabou tambm, de forma indireta, ajudando a fomentar o debate sobre a desprecarizao dos vnculos desses profissionais. Entretanto, necessrio registrar que, em nota tcnica, intitulada Con-
sideraes sobre a formao tcnica do agente comunitrio de sade, o Conselho Nacional de Secretrios de Sade Conass (Brasil, 2006c) chama ateno para a necessidade de se estabelecer uma formao desses trabalhadores compatvel com a complexidade dos problemas de sade da populao. Com esse argumento, o Conass converge para o apoio formao tcnica dos ACS criticando, inclusive, as consideraes sobre a relao entre formao tcnica e insero no trabalho, que associa essa formao presso por maiores salrios. O documento destaca que tal relao pode ser considerada para qualquer funo da sade e, se levada adiante, poderia ser um argumento contra o processo de formao tcnica de outras categorias como, por exemplo, o tcnico de enfermagem, o que, do nosso ponto de vista, um contrasenso diante da luta histrica por uma crescente qualificao profissional dos trabalhadores do SUS.
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A batalha poltica e jurdica comeou, de fato, em 2003, quando o Ministrio Pblico do Trabalho (MPT) instaurou o procedimento investigatrio n. 160/ 2003 (Brasil, 2005), que visava apurar a forma de contratao dos ACS pelos municpios e estados no Cear, os ACS so vinculados ao governo estadual. O entendimento do MPT era de que, como trabalhadores finalsticos e essenciais para o funcionamento do SUS, os ACS deveriam ser servidores pblicos. Para isso, defendia a realizao de concurso pblico, reconhecido pelo inciso II do artigo 37 da Constituio Federal como a nica forma de ingresso em cargo ou emprego pblico no Brasil, excetuando-se as nomeaes por meio de gratificao. Com isso, o MPT queria, alm de regularizar o vnculo, dar clareza e carter pblico ao processo de seleo desses trabalhadores. Sem capacidade de atuao nos municpios, a estratgia que o MPT encontrou para pressionar os gestores a buscarem uma soluo para a situao considerada como de ilegalidade foi ameaar impedir o repasse de recursos que o Fundo Nacional de Sade (FNS) fazia mensalmente para os municpios pagarem os salrios dos ACS. A ltima formalizao dessa ameaa aconteceu em dezembro de 2005, por meio de uma notificao recomendatria enviada pelo MPT ao FNS. A exigncia de realizao de concurso pblico, feita pelo MPT, no entanto, foi recebida de forma reticente por diversos setores e instituies da sade. O impacto que isso significaria na folha de pagamento das prefeituras, dificultando o respeito Lei de Responsabilidade Fiscal,13 foi o argumento utilizado pelo Conasems, representando os interesses dos gestores.14 Mas o principal problema apontado por diferentes atores era o fato de, em funo de seu carter universal, dado pela Constituio, o concurso pblico no poder exigir que o candidato tenha residncia prvia em determinada regio nem que ele continue morando naquele local aps a contratao. A interpretao mais recorrente era que contratar os ACS por concurso pblico significaria ter de abrir mo da exigncia de que eles morassem na comunidade em que atuam, caracterstica
Ficou conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal a Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000. Dentre outras coisas, determina que a despesa total com pessoal no poder ser maior do que 50% da receita corrente lquida da Unio e 60% dos estados e municpios, a cada ano. 14 Sobre instncias de deliberao e pactuao dos gestores no SUS, ver Machado, Lima e Baptista, texto Configurao institucional e o papel dos gestores no Sistema nico de Sade no livro Polticas de Sade: a organizao e operacionalizao do SUS, nesta coleo (N. E.).
13
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at ento considerada fundamental para o sucesso do PSF por facilitar o vnculo desses trabalhadores com a comunidade. Esse problema pautou as discusses em torno da regularizao dos vnculos dos ACS por muito tempo, mobilizando, inclusive, a Confederao Nacional dos Agentes Comunitrios de Sade (Conacs), na busca de uma soluo alternativa. Procurando garantir a legalidade na seleo e contratao dos ACS e, ao mesmo tempo, no prejudicar o funcionamento do PSF, foi construda a proposta de emenda constitucional n. 7/03 votada na Cmara dos Deputados e no Senado Federal e promulgada em fevereiro de 2006 que deu origem emenda constitucional n. 51/06. A emenda acrescenta trs pargrafos ao artigo 198 da Constituio Federal (Brasil, 2006c). A principal mudana contida na emenda a criao do processo seletivo pblico, como alternativa ao concurso pblico, especificamente para o caso dos ACS e dos agentes de combate s endemias, categoria que conseguiu se fazer representar na PEC nos seus momentos finais de tramitao.
4 Os gestores locais do sistema nico de sade podero admitir agentes comunitrios de sade e agentes de combate s endemias por meio de processo seletivo pblico, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuies e requisitos especficos para sua atuao (Brasil, 2006c).
Como se trata de uma modalidade jurdica completamente nova, ainda no existe uma definio precisa de processo seletivo pblico. O texto da lei n. 11.350/2006 estabelece, para o processo seletivo, os mesmos princpios que o artigo 37 da Constituio Federal elenca para o concurso pblico.
Art. 9o A contratao de Agentes Comunitrios de Sade e de Agentes de Combate s Endemias dever ser precedida de processo seletivo pblico de provas ou de provas e ttulos, de acordo com a natureza e a complexidade de suas atribuies e requisitos especficos para o exerccio das atividades, que atenda aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia (Brasil, 2006b).
Vale ressaltar um deslocamento ocorrido durante todo esse perodo transcorrido at a aprovao da emenda constitucional n. 51/06. A primeira proposta de emenda constitucional, elaborada pelo deputado Maurcio Hands, previa exatamente as mesmas mudanas, mas modificando o artigo 37 da Constituio Federal, que apresenta os princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia como norteadores da administrao pblica. poca, foi aprovada na Comisso de Constituio e Justia da Cmara
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dos Deputados um substitutivo dessa PEC que trocou a proposio para o artigo 198, localizado na Seo II (da Sade) da Constituio. Fazemos esse destaque porque entendemos que essa mudana representa uma preocupao de no fazer do caso especfico dos ACS um precedente para a flexibilizao do concurso pblico como forma de contratao de servidores pblicos. Da, parece-nos, que o texto tenha sido modificado no trecho da Constituio que se refere sade, evidenciando a especificidade e exclusividade dos trabalhadores a que ele se refere. Criando o processo seletivo pblico, a emenda constitucional n. 51/06 garantiu que se pudesse exigir que os ACS que se candidatassem seleo morassem na comunidade em que trabalhariam. Mas deixou em aberto a deciso sobre uma outra discusso, que acontecia paralelamente, sobre que tipo de vnculo esses profissionais teriam com os municpios. O texto da emenda, no entanto, indicava que uma lei federal deveria dispor sobre o regime jurdico e a regulamentao das atividades desses trabalhadores. Vrios projetos de lei chegaram a ser escritos, mas prevaleceu a proposta do Poder Executivo, tornada pblica por meio da medida provisria n. 297, emitida em junho de 2006, que, dentre outras decises, revogou a lei n. 10.507, que criou a profisso do ACS. Aprovada na ntegra na Cmara e no Senado, a medida provisria no 297 se tornou a lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006, que regulamenta a emenda constitucional n. 51/06. O artigo 8 da lei n. 11.350 estabelece que os ACS e agentes de endemias devero ser contratados por vnculo CLT, exceto nos casos em que alguma lei local determinar outro regime jurdico. Trata-se de vnculo direto com os municpios sem intermediao de organizaes sociais, como vinha acontecendo em muitas regies mas sem direito estabilidade e outros benefcios garantidos pelo regime estatutrio. O mesmo argumento utilizado anteriormente, contra a realizao de concurso pblico, de que era preciso garantir modos de exigir que os ACS morassem nas comunidades em que atuam, prevaleceu na definio do vnculo CLT. O pargrafo nico do artigo 10 da lei determina que um ACS poder ser demitido caso no cumpra o requisito de residir na rea da comunidade em que atuar, desde a data da publicao do edital do processo seletivo pblico ou apresentar declarao falsa de residncia. Essa exigncia no vlida para os agentes de combate s endemias. Outros casos em que o contrato pode ser rescindido unilateralmente pela administrao pblica so:
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I - prtica de falta grave, dentre as enumeradas no art. 482 da Consolidao das Leis do Trabalho; II - acumulao ilegal de cargos, empregos ou funes pblicas; III - necessidade de reduo de quadro de pessoal, por excesso de despesa, nos termos da lei n. 9.801, de 14 de junho de 1999; ou IV - insuficincia de desempenho, apurada em procedimento no qual se assegurem pelo menos um recurso hierrquico dotado de efeito suspensivo, que ser apreciado em trinta dias, e o prvio conhecimento dos padres mnimos exigidos para a continuidade da relao de emprego, obrigatoriamente estabelecidos de acordo com as peculiaridades das atividades exercidas (Brasil, 2006b).
H interpretaes de que a determinao de vnculo CLT estabelecida pela lei n. 11.350 tem, na prtica, apenas a funo indutora, porque, desde a aprovao da emenda constitucional n. 19, de junho de 1998, o pargrafo 3 do artigo 39 da Constituio Federal permite que, por meio de lei local, sejam estabelecidos requisitos diferenciados de admisso quando a natureza do cargo o exigir, o que significa que municpios, estados e Unio podem ter trabalhadores ligados administrao pblica com os dois tipos diferentes de vnculo, CLT ou estatutrio. Mas um dos maiores problemas da lei n. 11.350 certamente diz respeito ao mbito da formao. Ela reproduz exatamente os mesmos requisitos que a lei n. 10.507 elencava para o exerccio da funo de ACS. E dois desses requisitos so a concluso do ensino fundamental e de um curso introdutrio de formao inicial e continuada neste ltimo, apenas a nomenclatura foi modificada porque, aps o decreto n. 5.154/05, deixou de existir qualificao bsica, como j assinalamos. A diferena que, em 2002, ainda no existia o curso tcnico, tal como proposto pelo Ministrio da Sade e aprovado pelo CNE, ambos em 2004. Uma das conseqncias possveis dessa desatualizao da lei a prevalncia de uma cultura de gesto que, justificada pelos baixos recursos disponveis para as polticas sociais, como o caso da sade, invista apenas o mnimo necessrio para evitar a ilegalidade. Nesse caso, alguns municpios poderiam optar apenas pela formao inicial dos seus agentes, o que significaria um retrocesso em relao ao debate pblico e coletivo que identificou a necessidade de um curso tcnico.
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Consideraes Finais A despeito da legislao, preciso considerar dois fatores fundamentais. O primeiro que, aprovado pelo CNE, o curso tcnico de ACS uma realidade irreversvel. Portanto, qualquer discusso que ainda se apresente poder, no mximo, dizer respeito ao financiamento dessa formao. E aqui entramos no segundo aspecto a ser levado em conta: com mais de 170 mil ACS15 em sala de aula cursando o primeiro mdulo do itinerrio tcnico (formao inicial) nas Escolas Tcnicas do SUS do Brasil, tm-se tornado cada vez mais evidente as transformaes que a educao capaz de fazer no processo de trabalho desses profissionais. Isso tem mobilizado os ACS de todo o pas e feito com que a Conacs lute cada vez mais pelo direito desses trabalhadores de se tornarem tcnicos. Os resultados da formao e a presso dos ACS organizados tm sensibilizado tambm os gestores, levando, inclusive, alguns estados e municpios a financiarem, com recursos prprios, a continuao do itinerrio formativo rumo habilitao tcnica. A expectativa , ento, de que, ao contrrio da hiptese desenhada anteriormente, a lei n. 11.350 seja lembrada apenas como aquela que garantiu aos ACS o direito desprecarizao dos vnculos e, conseqentemente, maior dignidade no trabalho, e no como aquela que ajudou a cercear o direito desses mesmos trabalhadores a uma formao mais plena, consistente e condizente com as necessidades do SUS. Referncias BORNSTEIN, V. J. O Agente comunitrio de sade na mediao de saberes. 2007. Tese de Doutorado - Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca (Ensp) Fiocruz, Rio de Janeiro. BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia: Senado Federal, 5 dez. 1988. BRASIL. Projeto de lei n. 5.287, 21 jun. 1990. Regulamenta o exerccio da profisso de agente de sade pblica e d outras providncias. Dirio do Congresso Nacional, Braslia, 21 jun. 1990. BRASIL. Projeto de lei n. 3.994, 14 ago. 1993. Dispe sobre o exerccio da profisso de agente de sade comunitria. Dirio do Congresso Nacional, Braslia, 14 ago. 1993.
15
Dados de agosto de 2006 (Brasil, 2006a).
208
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Esta publicao contou com o apoio do PDTSP/Fiocruz

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Anamaria DAndrea Corbo

Denise Elvira Pires

Edilza Maria Ribeiro

Isabel Brasil Pereira

Jlio Csar Frana Lima

Mrcia Valria G. C. Morosini

Marise Nogueira Ramos

Vera Lcia Guimares Blank

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Equipe de pesquisa: Integrantes da equipe no mbito da EPSJV/Fiocruz:

Integrante do projeto em outra instituio:

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