Cláudio Sudario Lopes Filho
Cláudio Sudario Lopes Filho
Cláudio Sudario Lopes Filho
Orientador
Prof. Dr. Marcelino Rodrigues da Silva
Três Corações
2006
2
VICE-REITOR
Prof. Dr. Luiz Edmundo Baldim
FICHA CATALOGRÁFICA
3
AGRADECIMENTOS
Ao Pai Supremo, ao Cristo Jesus, aos Arashas Sagrados, aos Srs. E..., a todos do Astral
Superior pela misericordiosa assistência.
Aos meus pais e familiares consangüíneos e não consangüíneos pela confiança.
Ao orientador, Dr. Marcelino Rodrigues da Silva, pelos ensinamentos transmitidos, pela
amizade, compreensão, paciência e orientação.
A todos os professores pelos conhecimentos transmitidos.
Às professoras Drª Aparecida Maria Nunes e Drª Maria Luíza Cunha Lima pelo apoio e
incentivo no projeto que culminou nesta dissertação.
À professora Drª Geysa, aos professores Dr. Luiz Fernando e Dr. Luciano pelo incentivo e
pelos ensinamentos.
A todos os amigos de classe pelo apoio, pela compreensão, paciência, colaboração.
Aos amigos pelas horas e mais horas de viagem.
À Adriana, à Karla, ao Carlos, à Ivonilde, à Daniela pela convivência, amizade e pela relação
de família que conseguimos estabelecer.
À Srª Marieta, à Srª Marielza, ao Sr. Jairo e ao Sr. Walter pelo importante papel neste
empreendimento.
Aos colegas, alunos, ex-alunos e a todos que direta ou indiretamente contribuíram para esta
realização.
6
SUMÁRIO
Página
RESUMO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
ABSTRACT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
3 O OLHAR MEMORIALÍSTICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
3.1 Histórias, lendas e causos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
3.2 Subjetividade e contradição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3.3 Ficção, humor e o choque da modernização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
CONSIDERAÇÕES FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
ANEXOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
8
LISTA DE FIGURAS
Página
FIGURA 1 Globo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
FIGURA 2 Brasão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
FIGURA 3 Bengalão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
9
RESUMO
LOPES FILHO, Cláudio Sudário. História e Memória: dois olhares sobre o passado de
Ouro Branco. 2006. 60 p. (Dissertação – Mestrado em Letras). Universidade Vale do Rio
Verde – UNINCOR – Três Corações-MG *
____________________________
* Orientador: Dr. Marcelino Rodrigues da Silva – UNINCOR.
10
ABSTRACT
LOPES FILHO, Cláudio Sudário. History and Memory: two looks about Ouro Branco
past. 2006. 60 p. (Dissertation / Master Degree in Arts). Universidade Vale do Rio Verde –
UNINCOR – Três Corações-MG *
This dissertation is a comparative study of different textual and discursive kinds, used
to recuperate, represent and reflect about the past, particulary the kinds known as “History”
and “Memory”. To guide this discussion, it was made an analysis of two books that tells the
past of Ouro Branco city. The first was part of the history kind, collective authorship, named
Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco (2004) and the second,
about the kind memory, is the book Ouro Branco – histórias, lendas e causos (1998),
Germano de Moraes’s authorship. Using these two books to exemplify the textual and
discursive kind in focus, we could also reflect about the way the past of this community is
being rebuilt and showed to its own members.
___________________________
*Guidance: Dr. Marcelino Rodrigues da Silva – UNINCOR.
11
INTRODUÇÃO
Como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-
14
Para Bakhtin, o texto pode ser constituído por vários gêneros – construções híbridas –
quando temos um “enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais,
pertence a um único falante, mas onde, na realidade estão confundidos dois enunciados, dois
modos de falar, dois estilos, duas linguagens” (apud ROJO, 2004, p. 05).
Ainda observando os conceitos de Bakhtin (2000, p.316), verificamos que os
enunciados estão em permanente diálogo. Tidos como peças importantes no processo de
comunicação verbal, os enunciados refletem-se uns nos outros, estabelecendo relações
dialógicas entre o eu e o outro.
Nessa interação verbal, percebemos que de certo modo o locutor é um respondente, já
que não é o primeiro locutor. Dessa forma, ele admite não só a existência do sistema da língua
que utiliza como também a existência de enunciados anteriores (sejam dele ou de outros). Na
realidade, todo enunciado sempre responde, de uma forma ou de outra, a enunciados
anteriores (BAKHTIN, 2000, p.319). Devido a essa alternância dos sujeitos falantes -
alternância esta que compõe o contexto de um enunciado – percebemos que todo enunciado
comporta um começo e fim absolutos, mas faz parte de um diálogo permanente. Antes de seu
início, há os enunciados dos outros; depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros
(BAKHTIN, 2000, p.294).
Possuímos um vasto repertório de gêneros discursivos. Apreendemos esses gêneros
através de enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal
viva. Numa determinada situação de comunicação, sabemos qual gênero está sendo usado
pelo(s) outro(s) e qual gênero empregar em dada situação. Quanto à escolha de determinado
gênero, Bronckart (1999) afirma que ela deverá considerar os objetivos que o locutor pretende
alcançar e o contexto em que será utilizado.
Quanto à significação, para observá-la de forma completa não se deve analisar os
enunciados isoladamente; precisa-se do contexto, porque não lidamos com a palavra isolada.
Assim sendo:
Confirmando essa relação entre texto e discurso, Bronckart diz que texto é “produto da
atividade humana”. Ele está ligado “às necessidades, aos interesses e às condições de
funcionamento das formações sociais no seio das quais é produzido” (BRONCKART, 1999,
p. 72).
É necessário, portanto, observar que aqueles que adotam a teoria dos gêneros textuais
tendem a focalizar os aspectos estruturais e formais do texto. Já aqueles que adotam a teoria
dos gêneros discursivos tendem a recorrer a autores e conceitos variados de base enunciativa,
ressaltando, além das marcas lingüísticas, aspectos ideológicos e sociais do texto.
Sabemos que as diversas atividades humanas estão sempre relacionadas com a
utilização da língua. Quanto a isso, Bakhtin argumenta que “a língua penetra na vida através
dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a
vida penetra na língua” (BAKHTIN, 2000, p.282).
Destarte, percebemos que, dada a situação, as palavras vão se agrupando. E, de acordo
com o que se pretende, vão formando os textos e estes se enquadrando nos gêneros (sejam
primários ou secundários). Gêneros estes que, segundo Bakhtin, estão sujeitos a mudanças
decorrentes das transformações sociais, de novos procedimentos de organização e acabamento
da arquitetura verbal e também de modificações do papel a ser desempenhado pelo ouvinte.
Assim sendo, compreendemos a dialogia presente na comunicação verbal.
16
Podemos dizer que história e memória são gêneros discursivos e textuais dedicados à
reconstrução e à conservação de informações e interpretações sobre o passado. Apesar dessa e
de outras semelhanças, no entanto, são dois gêneros textuais e discursivos diferentes, com
suas próprias esferas de circulação social e estruturas formais e composicionais típicas. Por
isso, é relevante aqui caracterizá-los e diferenciá-los, bem como compreender suas
semelhanças e proximidades.
Comecemos pelo gênero discursivo e textual história. Sabemos que, dependendo do
contexto, podemos perceber uma duplicidade de sentidos para a palavra história. Conforme
Luís Alberto Brandão Santos (2000, p.45), este vocábulo pode ser utilizado para mostrar, em
sua dimensão temporal, a experiência humana no seu processo de constante metamorfose, e
pode também indicar não a experiência humana em si, mas o seu relato. Nesse caso, o
vocábulo história é sinônimo de historiografia, forma de registro da realidade, ou seja, um
gênero textual ou discursivo.
Além disso, a palavra história também é utilizada para designar qualquer narração de
acontecimentos, sejam eles verdadeiros ou inventados, reais ou ficcionais. Nesta dissertação,
no entanto, não é esta a acepção considerada, estando fora de nosso escopo os textos e
discursos de caráter ficcional, tais como os textos literários.
Como é sabido, a história é geralmente uma narração. Também não é novidade que na
narração encontramos o acontecimento a ser narrado, os personagens envolvidos nesse
acontecimento, a maneira como ele se desenrolou, o tempo da ação e o local em que ela se
deu. Eventualmente, a história pode também contemplar a razão do fato narrado, bem como
seus resultados e/ou conseqüências, utilizando-se geralmente para isso da argumentação.
Quanto ao tempo, podemos dizer ser ele a localização cronológica do acontecimento.
É comum a ação se desenvolver em diferentes momentos: passado distante, passado próximo
e presente. O tempo presente normalmente acontece, como afirmam Savioli & Fiorin (1996,
p. 230), quando o narrador quer criar uma situação “em que haja concomitância entre o tempo
da narração e o dos acontecimentos narrados, para simular que eles estão acontecendo no
mesmo momento em que estão sendo narrados”. Quanto ao momento passado, os autores
afirmam que o uso do pretérito é valioso na narração, pois:
O ato de narrar ocorre, por definição, no presente, dado que o presente indica uma
concomitância em relação ao momento da fala (no caso, fala do narrador), ele é
17
posterior à história contada, que, por conseguinte, é anterior a ele; por isso o
subsistema do pretérito (SAVIOLI & FIORIN, 1996, p.230).
explicação” fez “da história um gênero literário, uma arte ao mesmo tempo que uma ciência”
(LE GOFF, 1996, p.12).
A História, como disciplina científica, teve o seu apogeu no século XIX, que foi
considerado “o século da história” (LE GOFF, 1996, p.18). Dentre os vários acontecimentos
no referido século, observa-se, no quadro econômico, a expansão da Revolução Industrial. No
sentido social, Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, no Manifesto Comunista, analisam o
problema da diferença e luta de classes numa perspectiva histórica, chegando, assim, às bases
do socialismo científico. No campo científico, dentre as inúmeras descobertas, está a teoria
evolucionista de Charles Darwin, a partir da publicação de A origem das espécies (1859). Na
filosofia, destaca-se o positivismo de Augusto Comte, que propunha a análise e o
conhecimento do mundo com base nos fatos e na experiência concreta.
Três palavras importantes para a história do século XIX: positivismo, evolucionismo e
socialismo. Moldado nesse contexto ideológico, o gênero discursivo história, tal como o
conhecemos hoje, é parte de uma ciência, pretende ser factual. Com a sua pretensão de
verdade, a história busca a objetividade, querendo excluir de seu trabalho as interferências do
ponto de vista do historiador. Por isso, os textos históricos geralmente fazem menor uso de
elementos poéticos, como as figuras de linguagem, e almejam à eliminação completa dos
elementos ficcionais. Para confirmar sua suposta veracidade, esses textos freqüentemente
procuram se basear em documentos e indícios materiais.
Muitas vezes, a história parece confusa, misturada e incompleta. Então, encontramos
sentido e concordamos com Ricoeur quando ele diz que “a história quer ser objetiva e não
pode sê-lo”, “quer fazer reviver e só pode reconstruir”, “quer tornar as coisas
contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstruir a distância e a profundidade”
(RICOEUR apud LE GOFF, 1996, p.21).
Essa idéia de Ricoeur nos remete a mais um conceito para a palavra história, proposto
por Marc Bloch. Para este autor, “história é a ciência dos homens no tempo” (MARC BLOCH
apud LE GOFF, 1996, p.23). Com esse conceito, percebemos a contemporaneidade da
história. Apesar de os fatos terem acontecido há tempos, tenta-se, no presente, reconstruí-los.
O papel tradicional do historiador, por meio das novas leituras do pretérito, é
estabelecer e deixar clara e patente a verdade, ou o que ele julga ser a verdade, pois nessas
novas leituras podem acontecer perdas, mortes e (re) nascimentos. Constatamos que há a
relatividade da verdade. Como diz Génicot (apud LE GOFF, 1996, p.29), é impossível ao
historiador ser objetivo, afastar-se das suas idéias (do seu ponto de vista), quando se trata de
avaliar o mérito dos acontecimentos e as suas relações causais.
19
Gordon Leff, “a própria história é um processo empírico, delineado pelo historiador” (apud
LE GOFF, 1996, p.47).
Buscando encontrar o sentido e os nexos causais dos acontecimentos, através da
argumentação, a história parte de uma situação ímpar e tenta atingir o geral. No dizer de Paul
Veyne, “a história interessa-se por acontecimentos individualizados dos quais nenhum é a
inútil repetição do outro (...): ela procura compreendê-los, isto é, reencontrar neles uma
espécie de generalidade” (apud LE GOFF, 1996, p.39). Assim, mais uma vez inferimos que,
mesmo com sua pretensão de objetividade, a história é sempre interpretativa: remete a fatos
concretos e também a fatos abstratos, construídos pelo historiador.
Chegamos, nesta caminhada, a mais um conceito para história, apresentado por Le
Goff. Ele nos diz que a história é móvel; “a história não é a pura mudança, mas sim o estudo
das mudanças significativas” (LE GOFF, 1996, p.47). Destarte, por essa capital tarefa do
historiador, percebemos ser ele “um intérprete do passado”. Já temos observado várias vezes
as complexas relações entre presente e passado no discurso historiográfico. Quanto a isso, Le
Goff (1996, p.51) nos diz que há uma relação de dependência: mesmo que seja de forma
parcial, o pretérito depende do presente.
Le Goff (1996, p.13) nos diz que “o tempo da história encontra o velho tempo da
memória”, cuja multiplicidade lhe oferece os elementos. Com isso, ele parece sugerir que a
memória é mais diversa e plural do que a história e que esta faz daquela uma de suas fontes de
pesquisa. Mais à frente, na mesma obra, o autor diz que “a memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (LE
GOFF, 1996, 477). Essas observações podem, então, nos servir como ponto de partida para
contrapor, ao gênero discursivo e textual história, o conceito de memória e o texto
memorialístico.
Como sabemos, memória é arquivo vivo, é lembrar-se de algo, de alguém. Esse
lembrar-se, do latim memorare - que significa trazer à memória, recordar -, faz-nos pensar na
memória pelo menos sob dois aspectos. Primeiro, como atividade biológica e psíquica que
permite reter e recuperar as experiências anteriormente vividas. Segundo, como uma narração
do passado a partir daquela atividade psíquica, ou seja, como um gênero textual ou discursivo.
Para Bosi, a memória, como atividade psíquica:
21
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que nos tragam seus
testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas
memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a
lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstituída sobre uma base comum
(HALBWACHS apud POLLAK, 1989, p. 01,02).
Se lembramos é porque os outros e a situação presente nos fazem recordar (BOSI, 1979,
p.17). Essa lembrança não é a mesma nos diferentes momentos da vida das pessoas envolvidas na
situação recordada. Isso porque, como os tempos mudam, nossa percepção também muda, alteram-
se nossas idéias, nossos valores: uns podem se perder, outros podem ser suplantados por novos
22
valores e idéias etc. Bosi (1979) nos diz que nossa visão do passado está sempre se transformando.
Temos dificuldade de reviver o passado da forma que realmente aconteceu, pois “o conjunto de
nossas idéias atuais, principalmente sobre a sociedade, nos impediria de recuperar exatamente as
impressões e os sentimentos experimentados a primeira vez” (BOSI, 1979, p. 21). Ou como afirma
Halbwachs:
exemplares. E, como reza a fábula, se não estão ainda mortos, é porque vivem ainda
hoje (BOSI, 1979, p. 47).
Ainda por sua proximidade com a oralidade, as memórias são mais “populares”, mais
acessíveis a diferentes tipos de público, ao passo que a história é geralmente considerada uma
parte da cultura erudita. Como são gêneros textuais e discursivos com empregabilidade,
circulação, produção e às vezes recursos de linguagem diferentes, é bom, como o próprio Le
Goff nos adverte, “não opor uma história oral (...) a uma história escrita” (LE GOFF, 1996, p.
53), ou seja, é necessário reconhecer suas especificidades.
Cabe aqui ressaltar o que não é novidade: que o historiador precisa ter um espírito
reflexivo, pois podemos encontrar história em tudo: símbolos, gestos, registros escritos,
registros orais – e isso também pode acontecer na produção das memórias.
Independente de serem ficção ou realidade, fica patente que as lembranças podem
modificar a imagem do passado. Também é importante salientar que “tal como o passado não
é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e
simultaneamente um nível elementar de elaboração histórica” (LE GOFF, 1996, p.49).
Se memória é, então, um dos objetos da história, podemos inferir que tanto memória
quanto história são articuladas “através de um saber adquirido” – profissionalmente, no caso
da história (LE GOFF, 1996, p.49-50), ou não. Assim, são as condições da enunciação, bem
como as formas textuais que se cristalizam socialmente a partir delas, que farão a
diferenciação entre os textos memorialísticos e históricos. Percebe-se, então, que os dois
gêneros discursivos e textuais – história e memória - são diferentes, têm características
próprias, porque têm esferas de produção e circulação diferentes. Apesar disso, possuem
semelhanças, por serem ambos formas de interpretação do passado.
Assim, tanto nos relatos memorialísticos quanto nos relatos históricos, constitui-se um
saber que é relativo, um saber ler que está condicionado à perspectiva de quem narra, pois
para saber ler é “preciso saber associar” (PIGLIA apud SANTOS, 2000, p. 52). É necessário
excluir dos relatos os fatos irrelevantes àquele propósito narrativo e, através das inferências,
dar sentido para as informações.
25
A primeira bandeira que chegou à região era paulista, comandada por Miguel
Garcia de Almeida Cunha, no ano de 1694(...). Em 16 de fevereiro de 1724 o
povoado, através de alvará régio, passou a denominar-se Santo Antônio de Ouro
Branco. O arraial ficava no trajeto da Estrada Real e viu de perto o desenrolar de
importantes acontecimentos históricos de Minas (p. 28-9).
Os fatos relatados nessa narração não são, evidentemente, todos os que aconteceram
na cidade ao longo do tempo em foco. Foi feita uma seleção, a partir da qual alguns
acontecimentos e personagens, considerados mais importantes, foram escolhidos. Como
exemplos podemos citar: as bandeiras paulistas e portuguesas, a descoberta de ouro na região,
o casarão antigo conhecido como “Casa de Tiradentes”, a sede da Companhia de Vinhos
Nacionais. Este, entre outros motivos, faz-nos pensar em quais foram os critérios que
orientaram essa seleção.
1
É importante ressaltar que estamos falando, aqui, do texto histórico típico da historiografia tradicional. Nos dias
de hoje, porém, os estudiosos da Teoria da História e os adeptos das novas correntes historiográficas vêm
discutindo a validade e a pertinência desse gênero e a questão da narrativa histórica como interpretação. Como
resultado dessas discussões, o próprio texto histórico vem se transformando e adquirindo, eventualmente,
características que não se enquadram no modelo apresentado acima. Nos livros didáticos, no entanto, o modelo
tradicional ainda é predominantemente utilizado.
29
Como foi visto no primeiro capítulo deste trabalho, a narração não é a única forma
textual utilizada no gênero história. Com a finalidade de querer a verdade e ser a verdade,
querer mostrar e provar que o fato aconteceu em algum momento, há também a presença da
argumentação e da descrição. Essas formas textuais, no entanto, estão apenas discretamente
presentes nas partes históricas do Atlas. Nos trechos abaixo, por exemplo, encontram-se
alguns fragmentos de argumentação e descrição. No primeiro, a argumentação está presente
na apresentação de uma causa para um fato histórico. No segundo, faz-se a descrição de um
momento histórico da cidade:
Surgiu o “ciclo do ouro”, sendo deste período a Igreja de Santo Antônio, com seus
altares esplendentes, em estilo barroco, construída no período de 1717 a 1779,
consagrando-se como uma das igrejas mais antigas de Minas Gerais. Grande
patrimônio histórico e religioso, a igreja passou por reformas introduzidas por
Aleijadinho. Também recebeu o talento retratado nas pinturas do mestre Manoel da
Costa Ataíde (p.29).
A narração também é visível nos demais tópicos em que o tempo está envolvido. O
tópico “Aspectos político-administrativos” inicia-se com um pequeno texto narrativo que
conta a história político-administrativa da cidade. É interessante observar que esse diminuto
texto é encerrado da seguinte forma:
Hoje Ouro Branco é um município progressista, orgulhoso de seus filhos, por ser
um povo ordeiro e trabalhador. Vamos agora conhecer as pessoas que, desde a
emancipação até os dias atuais, trabalharam e trabalham para a grandeza de Ouro
Branco (p. 30).
Cornucópias cheias de ouro – são dois vasos compridos, de boca para baixo, em
forma de chifre, um à direita, outro à esquerda. Simbolizam a riqueza do subsolo,
cujo metal deu origem ao nome do município.
Ouro Branco passou por vários ciclos que marcaram época na sua economia, que se
iniciou com o Ciclo do Ouro.
Quando foi construída a Igreja de Santo Antônio, surgiu o arraial de maior
potencial aurífero da região, coroado pela beleza barroca de sua igreja. Diminuindo
a mineração do ouro, veio outro acontecimento econômico, porém na agricultura
permanente, com o surgimento do Ciclo da Uva, produzindo vinho da melhor
qualidade para o consumo interno e também sendo exportado para a Europa, e
sediando a Companhia de Vinhos Nacionais (ATLAS, p. 41).
31
Como convém ao texto histórico, os fatos narrados e explicados no texto não são fatos
quaisquer, mas sim fatos supostamente verídicos da história do município de Ouro Branco,
selecionados com base em sua hipotética importância. De modo geral, o texto não contém as
fontes das informações que menciona, mas na Ficha Técnica e nas Referências Bibliográficas
as fontes documentais e pessoais são listadas. Apesar de isso ser feito de forma superficial,
tenta-se desse modo dar credibilidade e confiabilidade ao relato. Pelo exposto, percebemos
que se encontra no Atlas a tradicional prática do discurso histórico: buscar comprovação
documental para suas informações e análises. Além disso, o texto é ilustrado por fotografias
de vestígios históricos, que também têm a evidente finalidade de conferir credibilidade à
narrativa. Na página 28 há uma foto de um Moinho do século XVIII, no povoado de Itatiaia e
uma foto da Fazenda Carreiras, “A Casa Velha de Tiradentes”, aparece na página 53.
Finalmente, é necessário comentar o modo como esses textos realizam o preceito da
objetividade, tão importante para a caracterização do gênero história. Como mostrou Barthes
(1988), a objetividade é na verdade um artifício geralmente utilizado em textos de caráter
científico, por meio do qual se procura dar ao leitor a impressão de que os fatos estão
presentes de forma perfeitamente fiel à realidade. Para isso, são utilizados recursos formais
como verbos na terceira pessoa, emprego do pretérito, ausência de signos que remetam à
enunciação ou ao enunciante e de explicações sobre como as informações foram obtidas:
32
Essa bandeira constituiu o ponto de partida para a descoberta do ouro nas gerais,
trazendo como conseqüência o povoamento da região (p. 28).
No início do século XX, um novo acontecimento surgia com toda pujança. Ouro
Branco, com seu solo fértil, não parava. Desta vez foi a cultura temporária que nos
presenteou com o Ciclo da Batata (p. 41).
Em alguns raros momentos, o texto do Atlas faz rápidas menções à enunciação, que
servem tanto para colocar em dúvida a veracidade de algumas poucas afirmações quanto para
reafirmar a verdade das demais. É o que se vê nos trechos abaixo:
Acredita-se que, entre as muitas viagens para a difusão dos ideais de liberdade da
Inconfidência Mineira, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, esteve
por várias vezes hospedado na casa, surgindo daí a referência a seu nome (p. 54).
Como nos diz Génicot (apud LE GOFF, 1996, p.29), é impossível ao historiador ser
objetivo, afastar-se de suas idéias (do seu ponto de vista) quando se trata de avaliar o mérito
dos acontecimentos e as suas relações causais.
Percebe-se, pelo que já vimos, que apesar dessa suposta veracidade, o texto contido no
Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco é também uma
33
interpretação dos fatos do pretérito. Para mostrar sua suposta objetividade e afirmar que o que
ele está relatando realmente aconteceu, o texto recorre a elementos, dentre outros, como fatos
históricos, fotos, nomes, datas. Dessa maneira, tenta-se mostrar ao leitor que o texto não
assume aspecto subjetivo. Acontece, assim, o que Barthes (1988, p.156) chama de “o efeito
do real”. O fato de o texto utilizar esses artifícios já nos mostra que uma nova leitura do
passado está sendo feita.
Como é uma interpretação, uma forma de reconstruir o passado, essa leitura é feita a
partir de uma perspectiva subjetiva e contemporânea. Nesse sentido, dependendo das
intenções do sujeito da enunciação, certas informações podem ser utilizadas em detrimento de
outras e algumas podem se perder – o que significa que o texto adquire um viés interpretativo.
A interpretação, portanto, já está acontecendo quando os fatos a serem relatados são
selecionados. No Atlas isso é perceptível, pois são considerados os aspectos geográficos,
históricos, político-administrativos, econômicos, institucionais (saúde, ação social, educação,
turísticos e culturais) e excluída do relato a história social da comunidade. É o sujeito da
enunciação se mostrando presente por meio da seleção e da ordenação dos fatos, mesmo nos
momentos puramente narrativos e históricos.
Cabe-nos, então, transpor para o papel a indagação que, ao observarmos o trabalho até
o momento, se formou em nossa mente: quem são os sujeitos da enunciação do texto do Atlas
Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco? Também é interessante saber
quais são os motivos e interesses que os levam a esconder certos fatos e a se esconder atrás
dessa (suposta) objetividade.
Como dissemos anteriormente, o Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município
de Ouro Branco foi produzido pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de Ouro
Branco – uma publicação do governo do município em co-edição com a editora Didata. Essa é
uma edição especial comemorativa dos 50 anos de emancipação política da cidade. Os
exemplares foram distribuídos como material didático nas escolas municipais para todos os
alunos da segunda série do ensino fundamental em 2004. É interessante registrar que em 2004
houve eleição para o governo municipal e em 08 de dezembro de 2003 é que a cidade
completou meio século de emancipação política.
Pelo exposto acima, podemos perceber que a versão interpretativa do passado
apresentada no Atlas é construída tendo como base essa perspectiva enunciativa. Numa leitura
do Atlas em que estejamos atentos a essas questões enunciativas, perceberemos que sua
interpretação do passado é completamente moldada por essa perspectiva. Embora as marcas
desses sujeitos não estejam evidentes no texto, é esse o ponto de vista que orienta a seleção, a
34
ordenação, a avaliação e as relações causais entre os fatos narrados. Prova isso, também, o
fato de encontrarmos os elementos da narrativa histórica funcionando como uma espécie de
enquadramento para uma descrição atual da cidade. Os textos históricos do Atlas, presentes
em tópicos como “Aspectos Históricos” e “Civismo”, preparam essa descrição atual da
cidade, feita em tópicos como “Educação”, “Ação Social” e “Saúde no Município”. E a
ilustração abaixo, inserida no tópico “O que é o Atlas?” é outro exemplo desse
enquadramento.
FIGURA 1 Globo –
Fonte: Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco, p. 04.
Mais uma prova da presença desse viés interpretativo aparece quando, no tópico
“Civismo”, por meio dos versos do hino, mostra-se o desejo de representar orgulhosa e
ufanisticamente a história da cidade de Ouro Branco. Claramente, também, é deixada à mostra
a tentativa de estabelecer relações entre a história da cidade e a história da Inconfidência
Mineira. Num estilo grandíloquo, o poeta enaltece o município e seu passado inconfidente:
Ainda no tópico “Civismo”, vemos esse tom ufanista quando é mostrado o Brasão. Os
detalhes contidos nesse ícone nos remetem à história da cidade: o Cadinho e a Roda Dentada
simbolizam a cidade a partir de 18/02/1976, com a implantação da Açominas. Como
representação orgulhosa da riqueza do subsolo, vemos as Cornucópias cheias de ouro – uma
menção ao período do Ciclo do Ouro que, aliado aos ideais dos inconfidentes, resultaria, para
a região, na construção da siderúrgica.
FIGURA 2 Brasão
Fonte: Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco, p.32.
FIGURA 3 Bengalão
Fonte: Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco, p. 03.
Refletindo sobre esses símbolos (brasão, hino e “Bengalão”), percebemos uma visão
ufanista do passado da cidade: um relato mítico e não um relato histórico. Parafraseando
Hobsbawn (1984, p. 19), nesses ícones é demonstrada e revelada a cultura da comunidade
ourobranquense, o seu passado e seu pensamento.
Também nas partes propriamente históricas do Atlas, encontramos presentes trechos
que mostram a relação de orgulho da cidade com a Inconfidência Mineira. É o que se vê, por
exemplo, no trecho abaixo:
Ainda com relação à seleção dos acontecimentos apresentados nas partes históricas do
Atlas, é interessante notar que os fatos da história econômica e política são privilegiados. É
como se toda a história da cidade convergisse em direção ao seu momento atual, produzindo
um “município progressista, orgulhoso de seus filhos” e “um povo ordeiro e trabalhador”,
pois, como diz o hino da cidade:
2
O Barão Wilhelm Ludwuig von Eschwege, Intendente Geral das Minas, foi o primeiro a produzir ferro
industrialmente no Brasil. Isso aconteceu na Fábrica Patriótica, município de Congonhas, em 12 de dezembro de
1812.
39
3 O OLHAR MEMORIALÍSTICO
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, o gênero discursivo e textual história
não é a única forma de narrar e reconstruir o passado de uma comunidade: uma nação, um
estado, uma cidade, um vilarejo etc. O texto memorialístico, por exemplo, também se dedica
a essa tarefa, embora possua esferas de circulação, estruturas formais e composicionais
diferentes das do gênero história. Um texto que exemplifica essa forma de tratamento do
passado, com relação à cidade de Ouro Branco, é o livro Ouro Branco – histórias, lendas e
causos, de autoria de Germano de Moraes – livro este que será objeto de análise neste capítulo
da dissertação.
O livro Ouro Branco – histórias, lendas e causos foi publicado em 1998 e reúne uma
série de pequenos textos em que são retratados lugares, personagens e acontecimentos do
pretérito da cidade de Ouro Branco. O exemplar em questão mede 21 cm x 15 cm e contém 90
páginas numeradas, com fotos nas cores preta e branca. Na capa, abaixo do título, há um
mapa do estado de Minas Gerais, preenchido com fotos que lembram a vida social, histórica e
econômica da cidade. Embora não tenha o atrativo das outras cores, é uma obra de fácil e
agradável manuseio. Na página que segue a capa, destaca-se a epígrafe de autoria de Carlos
Drummond de Andrade, com os seguintes dizeres: “Minas não é palavra montanhosa, é
palavra abissal. Minas é dentro e fundo”.
No sumário do livro, os textos estão divididos em três grupos. O primeiro, que não
recebe nenhum nome, reúne textos que retratam alguns fatos importantes do passado de Ouro
Branco e lugares que, de uma forma ou de outra, estão ligados a esse pretérito. Como se pode
perceber nesses textos, os fatos da história de Ouro Branco recebem um tratamento lírico, em
que a narrativa é entremeada por elementos poéticos como metáforas, ritmo, rimas e alusões.
Por meio desses recursos, o autor mostra a interpretação que ele faz do passado da cidade.
O segundo grupo de textos recebe o nome de “Causos”. Este reúne textos com
histórias pitorescas e personagens curiosas do passado de Ouro Branco. Seja para não ofender,
não suscetibilizar ou para não ser acusado de apropriação indébita, o autor tomou o cuidado
de modificar os nomes dessas pessoas. Nos textos dessa parte do livro não são retratados fatos
relevantes da grande história do município, os fatos mais importantes de seu passado. Em
“Causos” são expostas pequenas histórias que pouca importância têm para a reconstituição, no
40
protótipo tradicional, da história de Ouro Branco. Essas historietas são contadas de modo
predominantemente humorístico, embora, às vezes, um tom dramático esteja também
presente.
No final do livro há um texto isolado, que no sumário está sob o subtítulo de “Conto”.
Nesse único texto, o elemento ficcional se encontra explicitamente presente. Intitulado “Só o
Amor é capaz”, esse texto conta a história imaginária de um casal que, estando no centro do
Rio de Janeiro, resolve procurar uma agência de turismo querendo viajar para Minas Gerais.
O autor faz com que o casal chegue a visitar a cidade de Ouro Branco e, por meio dessa visita,
é mostrada uma série de elementos da história da cidade.
Por ser explicitamente ficcional, não trataremos mais pormenorizadamente este último
texto. Nosso foco de atenção, daqui para frente, se voltará apenas para os textos dos dois
primeiros grupos, que podem ser considerados textos memorialísticos.
Vejamos, então, alguns exemplos dos textos pertencentes ao primeiro grupo em que o
autor fala de fatos e lugares importantes da história de Ouro Branco, em tom lírico e com farto
uso de elementos poéticos. Nos textos intitulados "A Chegada, as Impressões” e “Açominas, o
pensamento que se arrastou pela história”, percebemos que são contados momentos marcantes
da história da siderúrgica: neste, a localização e a implantação da usina, que teria se originado
de um sonho dos inconfidentes; naquele, a chegada das pessoas para a construção da
siderúrgica, em 1979. Os textos “Siderúrgica supera a primeira crise”, “O Medo da
Privatização” e “A Miragem” também relatam fatos referentes à empresa. No primeiro, é
relatada a crise do começo da década de 80, mas superada em 1986, quando a Açominas
entrou em sua operação integrada: “Veio até o supremo chefe da nação, paraninfar aquela
grandiosa inauguração” (MORAES, 1998, p. 27). No segundo texto, a angústia e a frustração
das pessoas são evidentes, pois uma:
Numa grande transação a imensa usina era então leiloada. Ocasião temida por
muitos e por alguns ansiosamente desejada. Considerável fatia das ações aos
próprios empregados foi destinada. Coisa inédita, pelos concorrentes até admirada.
(MORAES, 1998, p. 45).
41
Soube que dois nomes detinham destas bandas o comando. Um era Sálvio e o outro
um tal Herdinando. Num rodízio vitalício, o município eles vinham profetizando,
em Ouro Branco historicamente se exclusivando. Muitos feitos seus nomes
marmorizando (...). Na mesa Municipal somente eles se vice-versando. Se não fosse
Sálvio, era com certeza Herdinando (MORAES, 1998, p.33).
um recurso na Câmara e resolver isso, uai!” (MORAES, 1998, p. 21). Outra situação curiosa
acontecera naquele mesmo ano, pois Roberta Miranda iria à Festa da Batata, em Ouro Branco.
Chegado o dia, o ilustre vereador foi o cicerone. Pediu ao sobrinho para não deixar de
fotografar nenhum momento. Ao lado da cantora, Zezé fez poses e mais poses. No término,
pediu ao sobrinho o filme e descobriu que não havia nenhum na câmera.
No texto “Vamo pegá esse baixinho...”, o autor narra que, por volta de 1982, o engenheiro
Rabelo, responsável por uma dentre as várias empreiteiras que executavam as obras de montagem
da Açominas, demitiu um rapaz que era bem relacionado. A notícia se espalhou e, ao fim do dia,
todos os seus colegas diziam algo que fariam com o dito engenheiro. Até de safado Rabelo foi
chamado. De repente, por trás do caminhão, aparece Rabelo dizendo estar à disposição e
perguntando pelos voluntários. O engenheiro sabia caratê e jiu-jitsu e possuía uma semi-
automática 7.65 mm. O autor finaliza o causo registrando que “aquela reunião na carroceria ficou
reduzida a um silêncio de sepulcro” (MORAES, 1998, p. 19).
É relevante salientar que os textos dos dois grupos encontram-se intercalados na
estrutura do livro. É como se, com as historietas do segundo grupo, o autor quisesse quebrar o
ritmo da leitura e amenizar o impacto provocado pela seriedade dos textos do primeiro. Aos
fatos históricos, contados em tom lírico nos textos que compõem o primeiro grupo, segue-se,
geralmente, um texto do segundo, com uma narrativa leve, de caráter humorístico.
Finalmente, é necessário registrar que o livro Ouro Branco – histórias, lendas e
causos foi construído a partir de uma pesquisa realizada pelo autor em arquivos sobre a
história da cidade e em diálogos com pessoas que guardam a história oral e a memória social
da comunidade ourobranquense. Na lista de agradecimentos, inserida nas páginas iniciais do
livro, estão identificadas as fontes dessa pesquisa e a informação de que a edição só foi
possível graças a uma iniciativa da Associação Amigos da Cultura de Ouro Branco. Também
há registros de que as ilustrações são de Elmo Alves e a composição de Germano de Moraes.
maior para este ou aquele assunto. Fica evidente que há a presença da subjetividade e, por
conseguinte, maior liberdade de expressão.
É por isso que em uma narrativa memorialística encontramos, muitas vezes, uma
linguagem mais poética e com mais espaço para elementos ficcionais. Por meio dessa
narrativa claramente interpretativa, acontece a reconstrução do passado moldada a partir do
presente. Há casos em que essa narração é feita com tanta vivacidade que o ficcional se
agrega ao real e deixa o leitor/ouvinte em dúvida sobre os limites entre realidade e ficção. Isso
acontece porque “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou
a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”
(BENJAMIN, 1994, p.201). Assim, narração e experiência se confundem em um único
objeto.
No livro Ouro Branco – histórias, lendas e causos encontramos com facilidade essas
características. Já no primeiro texto do livro “A Chegada, as Impressões...”, o sujeito da
enunciação se coloca dentro do texto e deixa visível a forma como ele se relaciona com o assunto
que será narrado. Ele registra que, “buscando trabalho, por estas plagas fui descobrir-me um dia.
Ouro Branco eu ainda não conhecia. Confesso que nem de sua existência eu sabia. Nos mapas que
vasculhei, se bem os consultei, este lugar sequer havia” (MORAES, 1998, p. 09).
Nesses textos de caráter memorialístico, acontece algo diferente do que aconteceria em
um texto histórico ou em um texto estritamente literário: o sujeito da enunciação se mostra e
há a pressuposição de que ele não é ficcional, de que ele corresponde a uma pessoa real que
narra um passado realmente vivido. Trata-se aqui, portanto, da própria pessoa do autor:
Germano de Moraes, um indivíduo vindo de outra região atrás de trabalho e que viveu em
Ouro Branco, trabalhando na siderúrgica Açominas até se aposentar. Esse fato é narrado pelo
autor, quando ele nos conta que:
Para que o leitor se lembre de que há um sujeito presente, o autor utiliza em diversos
momentos a primeira pessoa do singular. O primeiro período dos textos “A Serra” e “Estrada
Real” exemplificam essa questão quando o autor utiliza, respectivamente, as formas verbais
“pasmei” (p. 14) e “conheci” (p.29). No tocante à religiosidade, no penúltimo parágrafo do
texto intitulado “Igreja Matriz”, também acontece o emprego da primeira pessoa do singular:
44
Ouço os sinos solitários despertando do Arraial, com seus ecos refletindo da serra
na imensidão, convidando o povoado à vespertina meditação. Vejo garimpeiros em
absorta genuflexão, pedindo ajuda para do grande tesouro a fácil localização. E o
escravo fugitivo suplicando pela divina proteção...(MORAES, 1998, p. 60).
Em Ouro Branco eu chegava recém me achando, sem nada conhecer e das coisas só
me inteirando, seus casos devagar me empolgando e os panoramas o coração
entesourando. Soube que dois nomes detinham destas bandas o comando
(MORAES, 1998, p. 33).
Muitas das histórias contadas pelo autor não são, no entanto, histórias que ele
vivenciou, mas sim histórias recolhidas nas pesquisas e entrevistas com os guardiões da
memória da cidade de Ouro Branco. Percebe-se que o autor dá à obra o caráter
eminentemente coletivo do discurso memorialístico. Para tal, ele busca pontos referenciais
como monumentos, datas e personagens históricas que articulam as memórias individuais
com a memória coletiva.
Para exemplificar essa relação, podemos retomar o texto “A Chegada, as
Impressões...”, no trecho em que se conta que “era 1979, auge de um período vertiginoso de
mutação (...). Novos bairros com rapidez na cidade floresciam” (MORAES, 1998, p. 09).
Também o trecho abaixo, retirado do texto “Siderúrgica supera a primeira crise”, exemplifica
essa característica:
Neste lugar a produção de batatas, é como mina vegetal rendosa e farta, de ótima
qualidade e na fonte bem barata. Roças e mais roças surgiram onde antes eram
brejos e matas.(...) Na legendária Venda de Seu Diogo Mendes dos Reis a idéia em
seus primórdios floresceu. Ali se reunia da elite ao mais humilde plebeu.(...) Se na
usina o assunto é sofisticação e tecnologia de ponta, na cidade velha é o batatismo
poetizado quem na lembrança remonta. Em homenagem a esse alimento abençoado,
45
o Baile da Batata, muito antes da Açominas era pelo José Silas Coelho criado
(MOARES, 1998, p. 40-2).
Podemos perceber também que nesses textos do primeiro grupo, em que a narrativa
dos fatos é entremeada por comentários e digressões de caráter poético, o autor/narrador deixa
registrados, de forma evidente, diferentes pontos de vista e sentimentos em relação aos fatos.
Isso pode ser verificado no texto “Açominas, o pensamento que se arrastou pela história”, que
se inicia da seguinte maneira:
Com uma construção claramente lírica, incluindo o uso abundante de rimas e ritmo, o
texto se aproxima de um poema em prosa, fazendo um elogio ao projeto da siderúrgica. É
visível, nesse elogio, um caráter ufanista: cria-se uma via de comunicação entre a história dos
inconfidentes e o projeto de modernização representado pela usina.
Ainda no mesmo texto, também construído de forma rimada, encontramos o
comentário. Sua utilização permite ao autor mostrar as contradições e as diferentes
perspectivas envolvidas no processo de implantação da indústria. Permite, também, mostrar
como esse processo é visto por ele mesmo e pela comunidade. Essa visão, tendo como base o
elogio, é assim apresentada pelo autor:
A localização da usina e seus privilégios foi com peso pelos doutores considerada.
(...) Aureliano Chaves tornou no Estado a idéia formalizada. O gênio técnico e
diplomático de José Bernardino dos Reis deixou a escolha selada. Raimundo
Campos assessorou nos bastidores com as coordenadas. Demais pretendências
ficaram vencidas e caladas. A questão ficou definitiva e sob qualquer aspecto
incontestada. (...) Em fevereiro de 1976 houve da estaca inaugural a solene
cravação. Primeiro passo de uma extraordinária realização, por que não dizer
revolução? Presidente, governador, autoridades locais e da região. Cobertura da
imprensa com sensacional divulgação. Seria um ato de brasileira repercussão.(...)
Ali a Açominas nascia como quem nasce do nada (MORAES, 1998, p. 17-8).
Mais à frente, apresentando uma crítica a esse processo, o autor nos diz que, após a
solene celebração:
texto, vai descobrindo uma história que até o momento fora deixada de lado ou escondida.
Podemos, então, dizer que esses textos são crônicas memorialísticas.
É importante ressaltar que os acontecimentos registrados pelo autor estão ligados de
alguma forma ao pretérito da cidade, seja no que se refere às pessoas “da terra” ou às que
passaram por essa plaga. Para exemplificar a questão, podemos observar o texto “Zé Leocádio
na capital”. Neste “causo”, o autor nos conta que a personagem foi a Belo Horizonte para
comprar suprimentos agrícolas e aproveitou para visitar o amigo deputado. Leocádio, na
presença do deputado, perguntou como o amigo estava passando. O deputado disse estar
exausto por ter chegado de Brasília. Zé Leocádio interrompeu, eufórico, dizendo que fazia
idéia, pois ele tinha ido de Opala e também estava numa canseira (MORAES, 1998, p. 28).
Embora a história tenha se passado em Belo Horizonte, ela aconteceu com um personagem
ourobranquense.
Tendo como foco, agora, o elemento ficcional presente nos “Causos”, podemos
retomar o texto “Vamo pegá esse baixinho...”, que narra a história do engenheiro Rabelo. Nas
linhas que antecedem a finalização do texto, o autor nos conta que ele, após ouvir a conversa
dos empregados que o criticavam, apareceu rapidamente na frente deles:
O susto deixou congelado até o gasômetro da usina, que era o cenário de fundo
deste acontecimento, principalmente porque Rabelo possuía alta graduação em
Caratê e Jiu-Jitsu, tinha medalhas de atletismo e uma pistola semi-automática
7.65mm não saía de sua bolsa tiracolo, sempre com um outro pente carregado na
reserva (MORAES, 1998, p.19).
Na entrevista a nós concedida pelo autor, este confirmou haver exagero na produção
dessa história. E, de qualquer modo, a própria reconstituição da cena, com menções aos
diálogos e às reações das personagens, já pressupõe um tratamento ficcional do episódio.
A presença do elemento ficcional aparece nitidamente em outros “Causos” constantes
no livro Ouro Branco - histórias, lendas e causos. No momento, não podemos deixar de
registrar a advertência que se encontra logo nas primeiras páginas do livro: o fato de que “Os
‘Causos’, conforme sugere a expressão, são despidos de quaisquer intenções envolvendo
conceitos ou referências pessoais”; acrescida da informação de que “todos os nomes são
fictícios” (MORAES, 1998, p. 03).
Deve-se destacar que, nessa parte do livro, o narrador geralmente não participa da
história. Porém, no texto “Um tal Benedito Conceição”, ele se mostra como um personagem e
volta a empregar a primeira pessoa do singular. No “Causo”, ele se torna amigo de Benedito
Conceição – pessoa aparentando menos de 30 anos de idade quando o narrador o conheceu,
48
em 1984. Ditinho, alcunha dada a Benedito, é descrito como excelente em sua função de
encarregado de solda, amigo de todos e por todos conhecido, pelo fato de ter trabalhado em
“inúmeras obras de montagem mecânica pelo Brasil à fora” (MORAES, 1998, p. 70). No
decorrer da história, o narrador-personagem diz ser muito observador e não falhar nessa
questão. Para ele, Ditinho era expansivo, amigo de todos, humano, cooperador, enfim, de boa
índole. Em determinada ocasião, Ditinho sumiu durante quatro dias, após ficar sabendo que
tinha chegado a Ouro Branco um tal de Chicão, vindo de Valadares. Chicão queria matar
Ditinho. No quinto dia, Ditinho apareceu e o amigo (o narrador-personagem) disse que não
via nenhuma relação entre o aparecimento de Chicão e o sumiço de Benedito. A narrativa
segue com elogios para Benedito. Em um trecho, o autor mostra sua percepção da presença do
elemento ficcional, afirmando que “peão de trecho é especialista em cultivar lendas”
(MORAES, 1998, p. 72).
Um pouco mais à frente no texto, seria o final de semana prolongado; todos da obra
viajariam para suas terras, inclusive Benedito, que era de Valadares. Na segunda-feira, na
hora da sesta, como de costume, alguns colegas jogavam baralho com Ditinho em uma sala e,
na outra, os demais conversavam. O assunto era referente a menores desamparados, conforme
publicado no jornal aberto sobre a mesa. O amigo de Benedito viu na página ao lado a notícia
que ainda não havia chamado a atenção de ninguém. Era a notícia de que:
livros, verificamos que uma diferença importante entre os dois gêneros está no fato de que,
por ser a memória sempre marcada pelo coletivo, ela tende a fazer com que apareçam pontos
de vista diferentes e contraditórios.
51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
memória coletiva, uma vez que é através do discurso e da interação verbal que ela se constitui
e adquire força social:
falam dessa pequena história da cidade, é possível identificar a presença de diferentes pontos
de vista sobre a matéria narrada. Por ter sido feito a partir das lembranças da comunidade, o
livro de alguma forma carrega a multiplicidade de perspectivas pelas quais esses
acontecimentos são vistos pelas pessoas que os vivenciaram. Desse modo, o livro acaba
trazendo para dentro de si algo que, no relato histórico, foi excluído por não interessar aos
sujeitos que o produziram. Especialmente nos textos cronísticos e humorísticos que falam de
pequenos acontecimentos e personagens curiosos da cidade, o que se evidencia é a história de
uma comunidade que, de muitas formas diferentes, sofreu com o processo de modernização
desencadeado pela chegada de uma grande indústria.
Destarte, podemos concluir esta dissertação afirmando que é necessário ler
criticamente os textos históricos, pois as informações que ele apresenta como se fossem
inquestionáveis e livres de interpretação são sempre uma visão parcial do passado. Isso é
feito, nesses textos, por meio da utilização de um conjunto de mecanismos textuais a que se
dá o nome de objetividade. Assim, outros gêneros discursivos e textuais, e mesmo os textos
estritamente literários, podem nos ensinar algo sobre o passado, como o faz a memória. Por
suas características textuais e enunciativas, o relato memorialístico pode dizer coisas sobre o
passado que tendem a não aparecer no texto histórico tradicional. Pois o texto memorialístico
é altamente polifônico, abertamente subjetivo e construído a partir de rememorações
individuais ou coletivas, dando portanto mais espaço para as contradições. Desse modo, os
textos memorialísticos nos ajudam a olhar criticamente a história. Mas, como essas produções
também são versões interpretativas do passado, com seus interesses e pontos de vista (mais ou
menos explícitos), elas também precisam ser lidas criticamente.
Por se tratar de um tema instigante, sabemos que ele não se esgota aqui. O assunto
pode e deve suscitar novas reflexões, uma vez que a cada momento novos gêneros e novos
suportes surgem, assim como o passado é recriado e reinterpretado em novas produções
textuais e discursivas.
54
BIBLIOGRAFIA
Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco. Belo Horizonte: Didata,
2004.
ARRIGUCI, David. Móbile da Memória. In: __________. Enigma e comentário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
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Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 1994.
ANEXOS
Fonte: (Capa) Atlas Escolar Histórico e Geográfico do Município de Ouro Branco, 2004.
58
Fotografia de André
Luis Figueiredo de
Souza “uma entrada
aberta aos inconfidentes,
ao aço, ao progresso”.
59
Fonte: Açominas, o pensamento que se arrastou pela história. In: Ouro Branco – histórias, lendas
e causos, 1998, p. 17.
Fonte: Dois Prefeitos, Um Mito. In: Ouro Branco – histórias, lendas e causos, 1998, p. 33.
Fonte: Ouro Branco – a descoberta. In: Ouro Branco – histórias, lendas e causos, 1998, p. 49.