Armando Cosani - O Voo Da Serpente Emplumada - Livro 1
Armando Cosani - O Voo Da Serpente Emplumada - Livro 1
Armando Cosani - O Voo Da Serpente Emplumada - Livro 1
EPÍLOGO
Soou a palavra de Deus, ali de onde não havia céu nem terra. E
se desprendeu de sua Pedra e caiu ao segundo tempo e declarou sua
divindade. E estremeceu toda a imensidão do eterno. E sua palavra
foi uma medida de graça, um desaguar de graça e quebrou e honrou as
encostas das montanhas. Quem nasceu quando baixou? Grande Pai, Tu o
sabes. Nasceu seu primeiro Princípio, e revestiu as encostas das
montanhas. Quem nasceram ali? Quem? Pai, tu o sabes. Nasceu o que é
eterno no Céu. (livro dos Espíritos, Código de Chilam Balam de
Chuyamel)
PRIMEIRO LIVRO
por haver empenhado minha palavra, senão porque vejo em tudo isto
algo que porventura tem um valor que eu não compreendo. Mas é
possível que algum dos leitores saiba do que se trata e possa
explicar a este homem.
Também é necessário que eu faça uma confissão: não sei como ele
se chama, jamais me deu seu verdadeiro nome, e salvo uma vez, a mim
jamais me ocorreu fazer-lhe essas perguntas de rigor que exigem nome
e apelido, idade, nacionalidade, profissão, etc.
Quiçá algum de vocês o conheça ou tenha notícias dele. Digo
isto porque naquela oportunidade na qual quis abordar este aspecto
de seu ser, deixei que vislumbrasse meu interesse por sua origem e
demais coisas que ele nunca explicava espontaneamente como o faz
todo o homem a fim de inspirar confiança aos demais. Meu amigo era
muito diferente de todas as pessoas que conheci em minha vida, e
parecia não lhe importar a impressão que causava. De modo que quando
surgiu a questão de interesse em sua identidade, disse estas
enigmáticas palavras:
- Quem verdadeiramente quiser pode conhecer-me. Só falta o
querer para começar. Estou em todas as partes e em
nenhuma. A quem me chama, vou. Mas isto é só uma maneira
de dizê-lo, porque na realidade é outra. Poucos sabem me
chamar: e quando acudo a estes, se espantam, perdem a
cabeça e começam a molestar-me com muitas perguntas: Quem
és? Qual o teu nome? Do que vives? Em que trabalhas? E
assim por diante. Nunca respondo a estas impertinências
porque se o homem não sabe o que quer, é melhor que não
saiba nada sobre mim. Ocorre também que aqueles que me
buscam sem dar-se conta, decidem não me prestar nenhuma
atenção, ou a atribuem toda a eles mesmos. Há também
aqueles que me consideram “mau”. Mas é natural que isto
ocorra nesta época de franca degeneração da inteligência
humana. Dissipo o sonho dos homens e não lhes deixo uma
só ilusão de pé. Poucos sãos são os que se decidem a
manter contato comigo, mas estes poucos são os
verdadeiramente afortunados, pois tem a possibilidade de
conhecer o valor real da vida. Claro está que este
conhecimento tem suas responsabilidades; mas te
inteirarás disso a seu devido tempo.
Recordo que nesta oportunidade lhe disse:
- Então me alegro muito de não te haver importunado. Rogo-
te que desculpes minha curiosidade. Não quero perder o
contato contigo por nada deste mundo.
Ante estas palavras, ele sorriu e acrescentou:
- Há um meio simples de manter contato comigo: recordando.
A recordação é o contato com a memória. Na memória está o
conhecimento sobre o que é a verdade. Unir-se de coração
a verdade é o transcendental. Desfruta de minha amizade
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
Espero não lhe ofender com o que vou dizer, mas a verdade é
que vou para a igreja fazer minhas orações para ver se obtenho mais
entendimento para me desempenhar melhor em meu emprego. Espero com
isso ganhar um aumento em meu salário. Eu necessito disto e faço
horas extras para poder custear a operação de minha perna e ficar
são. Mas não pense você que eu espero que aconteça um milagre; peço
também outras coisas que são muito mesquinhas.
- Compreendo, me disse.
- Espero poder juntar a soma necessária dentro de pouco
tempo. Quando eu possa caminhar corretamente poderei
trabalhar melhor e fazer uma carreira e um nome.
- Pelo visto você tem um propósito bastante preciso.
- Bem; sim um propósito preciso é o pouco que posso fazer,
lhe disse.
- É uma grande coisa ter um propósito preciso, saber o que
se quer. É muito mais importante do que as pessoas
imaginam. São poucos os homens que realmente sabem o que
querem na vida; alguns crêem sabe-lo, mas se equivocam.
Confundem os fins com os meios que usam, e as vezes
sucede que os meios são sua verdadeira finalidade. Mas
como os vêem como meios, porque não podem ver mais nem
melhor, utilizam grandes e sublimes meios para fins
bastante mesquinhos. Assim é como se prostitui o
conhecimento.
Este comentário me produziu um mal estar interior e contestei:
- Você se refere a meu caso, o fato de que não vou a igreja
com fins espirituais?
- Não - ele me disse -. Falo em termos gerais. Não creio
que você tenha me autorizado a tratar diretamente de suas
coisas intimas. Além do que, quando quero dizer alguma
coisa a digo diretamente e sem rodeios.
- Porventura lhe chame a atenção minha atitude na igreja. É
que não sei rezar, tão pouco sei adorar. Só sei pedir, e
peço a minha maneira. A religião deixou de interessar-me
por muitas razões.
- Mas pelo visto você não perdeu a fé e isso é a única
coisa que verdadeiramente importa. Ainda mais em seu
caso. Há muito que se dizer sobre a fé. É algo que deve
crescer no homem. E quanto a rezar, é mais simples do que
você supõe. Em nossos tempos se tem complicado muito o
sentido da oração. Eu sou da opinião que quando se sabe o
que se quer e se luta por alcança-lo, mesmo que não o
formule em palavras, se está em permanente oração. Uma
vez li em alguma parte que todo o querer profundo é uma
oração e que jamais fica sem resposta; o homem sempre
recebe aquilo que pede. Mas como geralmente o homem não
sabe o que seu coração realmente quer, tão pouco sabe
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
Os ajudantes de Deus.
- Aos poucos me falas sobre o alimento da alma. A que te
referes?
- A um alimento tão real como o que o corpo necessita. Isto
encontramos nas palavras de Jesus: “Nem só de pão vive o
homem, senão de toda a palavra de Deus.” O alimento
físico contém energias que nutrem a alma. É necessário
para o crescimento. E quando falo de crescimento me
refiro ao crescimento interior. Quando o homem come, bebe
e respira com o propósito de alimentar sua alma, extrai
dos alimentos, do ar, das bebidas, certas substancias
especialmente nutritivas. Mas há um alimento superior a
este e é o que nos impressiona intimamente. Todos sabemos
que os desgostos entorpecem a digestão e um desgosto é
uma impressão. Os transtornos hepáticos produzem um
caráter azedo. De modo que alimentando-se adequadamente
de impressões, sejam estas internas ou externas, podemos
nos nutrir melhor ou pior. Mas isto requer estudos e
esforços. Por exemplo, há quem reza antes de alimentar-
se, invocam a benção do Altíssimo, mas enquanto comem,
parolam, discutem ou se alteram. Durante o processo
digestivo, tem aqueles que lançam maldiçoes. Ou seja, não
tem uma continuidade em seus propósitos. Mediante a
continuidade de propósitos se forma no homem um órgão
novo. Mas é preciso que este órgão exista potencialmente
e seja capaz de crescer.
- Que órgão é esse?
- Agora não o entenderias porque estás convencido de que já
o possui. Todo mundo está convencido do mesmo, como estão
convencidos da continuidade de seus propósitos. Te direi
unicamente que se forma de uma maneira e não de duas:
sofrendo deliberadamente e esforçando-se por seguir a voz
da consciência.
- Mas todo mundo sofre.
- Não. Os sofrimentos lhes chegam com lhes chegam os
prazeres. Sofrer deliberadamente pressupõe certo grau de
vontade. De vontade própria. Todos sabemos que o ódio é
mal e que o amor é bom. Sabemos que devemos amar a nossos
inimigos. Sabemos estas coisas de memória, mas não
podemos aplica-las porque não temos o grau de vontade
suficiente para leva-lo a pratica, de modo que a
sociedade em que vivemos negocia com o que chama de
debilidade humana e esquece o principio. Para poder
sofrer deliberadamente é necessário ter a força de
sobrepor-se ao sofrimento acidental. E isto não significa
fugir dos prazeres, porque quem sofre acidentalmente
também goza acidentalmente. É preciso sobrepor-se ao
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
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Passou muito tempo antes de que voltássemos a tratar destes
assuntos. Durante este tempo, quis compreender suas palavras e
revisei atenciosamente minhas anotações. Porém, não entendi grande
coisa. Das poucas vezes que voltamos ao tema, ele evitou tratar-lo
e, por minha parte, deixei de fazer as anotações de modo que agora
seria impossível reconstruir as frases soltas e as explicações que
ele me deu sobre muitos pontos.
Me interessava especialmente sobre o alimento da alma; porém ele
insistia em que era preciso, primeiro, despertar.
- Que me queres dizer com isso de despertar? - , lhe perguntei um
dia.
- Todavia não te das conta?
- O despertar ou a vigília de que falo é difícil, porém não
impossível. É um contínuo esforço, um permanente andar a cegas
durante muito tempo, até que logramos compreender nossas
falácias. Porém chega o grande momento de quem mantém vivo o
esforço. Então se advém as possibilidades latentes do homem. É
algo que um sabe por si mesmo, não necessita que o digam ou
interpretem nada. Se descobrem no corpo distintas classes de
vida, distintos níveis. Então um já não anda as cegas sabe
aonde vai e sabe porque faz tudo enquanto faz. Os Evangelhos se
convertem em um guia mui valioso. Agora o vês, nem tu nem eu
podemos dizer que somos discípulos de um ser tão glorioso como
Jesus Cristo e cremos estar despertos. No horto de Gethesemani
os apóstolos, os discípulos caíram dormidos...
Meu amigo disse estas últimas palavras com um tom tão reverente que
me impressionou; seus olhos começaram a encherem-se de lágrimas e
ele as deixou correr por suas bochechas sem se envergonhar por isto.
O que segue o disse com voz entrecortada por uma emoção tão
poderosa que por instantes, me sacudiu a mim também. Eu fiquei
perplexo. Ele seguiu dizendo:
- Um apóstolo é por si um homem superior e Jesus foi uma
inteligência como mui contatas vezes tem sido visto na Terra.
Não obstante há quem pensa que se rodeou de bobalhões e
ignorantes. Os apóstolos tinham uma vontade a prova de muitas
coisas; de outro modo não poderiam ter vivido acercados de
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
no amor humano.
E para que no prazer de amar encontre a alma, a senda do
retorno de onde sempre estiveste, de onde não hás de vir.
Porque assim como a vida vai a morte por amor, assim o
amor ressurge da morte de onde há um coração desperto que saiba
conter-lo em seu amar e em seu morrer.
Com cada beijo morre um pouco a alma ao esquecer que és
vida em amor.
E pelo mesmo, com cada beijo podes reviver a alma de
quem saibas morrer.
Oh! Paradoxo da Criação!
Em cada alento de amor, há um suspiro que é eternidade.
Em cada carícia também arde o fogo da morte e da
ressurreição.
Elevado o amor simples e sensível às nuvens mais altas!
E que amar e beijar sejam uma oração de vida ao mais
íntimo Ser que é a verdade e é Deus.
Porque não sois vós os que amais, senão o amor do Pai
que se agita em vós.
Vossa será sua mais poderosa benção se em cada beijo que
dais e recebeis, santificardes seu nome, guardando sua presença em
vossos mais íntimos anelos.
E em vosso amor, buscai primeiro o reino de Deus e sua
Justiça, que tudo o demais, ainda a felicidade de ser, vos será
dado por acréscimo.
E não temais amar; antes temais a quem possa converter
vosso amor em prejuízo ou maldade.
Fazei de vossa união um caminho sereno até os céus.
Contanto que leveis sua presença em vossos corações,
estareis em verdade amando a Deus por sobre todas as coisas ao
mesmo tempo que amais uns aos outros.
E no instante de vossa suprema felicidade, sereis um com
Ele e com sua Criação.”
Não voltei a vê-lo durante algum tempo, pois deveu fazer uma
viajem prolongada. Trocamos algumas cartas. Lembro que em uma
delas eu o perguntei como alguém poderia fazer para alcançar
semelhante entendimento da vida e do amor. Sua resposta chegou na
forma desta paradoxal poesia:
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Voltamos a nos reunir no começo do outono seguinte. Notei certas
mudanças nele, mas não poderia explicá-las. Evitou os temas em torno
dos Evangelhos. Unicamente uma vez, quando lhe disse que não podia
compreender o fato de que ele pudesse ser tão devoto de Jesus Cristo
e ao mesmo tempo tão dado a leitura das obras Mayas, Íncas,
Guaranis, Hindus e Chinesas, me fez esta observação:
• Cada povo, cada raça, cada nação, cada época tem tido
mensageiros que tem dado testemunho da mesma e única verdade
ainda quando tem empregado palavras diferentes, símbolos
diferentes e diferentes alegorias. Palavras, símbolos e
alegorias não tem um valor permanente em si mesmas; são
unicamente meios que há que ir descartando pouco a pouco a
medida que cresce o entendimento e a vivência da realidade.
Porém durante muito tempo em nossas vidas não podemos senão ver
palavras nas palavras e símbolos nos símbolos. Quando
compreendemos que dois símbolos não são iguais, pouco nos
preocupamos em averiguar se estamos ou não certos; cremos
durante muito tempo que as diferenças externas tem a mesma
diferença interior. Porém cada símbolo é uma palavra e cada
palavra é um símbolo. Quantos sabem verdadeiramente o que estão
dizendo quando dizem “eu”?
A esta explicação seguiu algo sobre as dimensões do tempo e as
dimensões do espaço. Como havia dito, eu anotava a maioria das
coisas que ele dizia. Porém nesta oportunidade não o fiz e vagamente
recordo algo assim como que o espaço e o tempo, que há três
dimensões de espaço e três dimensões do tempo, que o símbolo hebreu
da estrela de seis pontas era um indicativo de que espaço e tempo
eram uma só coisa, o Ser. Se mal não recordo, em certa oportunidade
também disse que as palavras de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade
e a Vida”, podiam tomar-se em física como as três dimensões do tempo
ademais de constituir um processo de ordem cósmico que junto com
outros cinco processos baseados na trindade constituíam todos os
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
intenção.
- Ainda dormes. Se compreendesses que o homem não pode ter uma
continuidade em seus propósitos, de pronto compreenderias que a
intenção não basta. Se o homem pudesse manter uma continuidade
em seu pensamento, sentimento e ação, suas boas intenções
dariam frutos generosos. Assim como o indivíduo tem muito boas
intenções um dia, e no seguinte qualquer coisa o desvia delas,
assim ocorre também na política. A idéia democrática é mais
velha que andar a pé, porém é uma coisa impossível, pois requer
uma discriminação que poucos tem.
Entre minhas anotações desta época encontro uma página de uma carta
que ele me escreveu a respeito da política internacional do momento,
durante uma de suas viagens.
“... O senhor Roosevelt é, sem dúvida, um homem muito bem
intencionado, porém ocorre que o único bom vizinho que tem é seu
cigarro, assim como o único verdadeiro aliado do senhor Churchill é
seu cigarro puro e o único camarada do senhor Stalin é seu cachimbo.
Observe que nem Hitler nem Mussolini fumam. São demasiado virtuosos
e como todo fanático da virtude, só vêem a palha no olho alheio.
Quando terminar esta guerra, é provável que haja outra e com ela de
repente a ciência tenha tanto progresso que lhe dê gosto e desfrute
da glória de haver destruído sua civilização. Nada é mais fácil que
profetizar uma guerra. Porém a guerra também inclui um desatino na
vida dos povos e do indivíduo mesmo. Se este desatino interior o
utilizasse o indivíduo para seu desenvolvimento e se sequer tratasse
de averiguar de onde vem e porque ocorre, creio que se daria um
passo em direção a paz. Porém não é coisa fácil de conseguir que o
homem compreenda que frente a um fenômeno celeste existe menos que
um átomo. A paz é uma conquista individual; jamais há sido obra das
massas. E muito menos obra dos exércitos. O homem ainda não aprendeu
a aproveitar o que ensina a história, o que indica a experiência. A
Liga das Nações foi durante muitos anos uma ilusão de paz; a verdade
é que foi um foco de intrigas. Mussolini a destruiu com uma plumada.
Atrás desta guerra, possivelmente surja algo parecido, porém com
algum outro nome. O homem goza pondo e trocando nomes nas coisas
mais antigas da história. A Liga das Nações nasceu morta. Já havia
morrido na Grécia fazem mais de dois mil anos, com a Anfictionia.
Não se trata de organizações; não há que trocar de nome, senão que
há que modificar o homem. Não me peças que leve a boa vizinhança a
sério porque tudo não soma senão um montão de mentiras. O trágico é
que ninguém mente intencionalmente; ninguém se dá conta da Grande
Mentira. Observa-o em ti mesmo, observa como já tens começado a
acreditar em quanta mentira estás escrevendo.”
De tudo isto, o que me interessou foi a idéia de que um bom vizinho
pode ser só quem pague o contato. Decidi utilizar a idéia para um
artigo e quando publiquei minha vida sofreu uma nova transformação,
conectada em certo modo a este singular amigo.
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
Passou o tempo.
De imediato, a máquina na qual eu estava envolvido começou a
funcionar de outra maneira, mais intensamente. Nos acercávamos ao
final da guerra. Tudo era mais desesperado. Troquei de cidade, me
fui a outro país, e aí deveria continuar o que havia começado e do
que não poderia me evadir. Recordava ao meu amigo só de tarde em
tarde.
Cada dia me causava mais assombro a facilidade com que mentia e
enganava, e a facilidade com que todos pareciam crer em minhas
mentiras e em meus enganos.
Uma noite em que havia bebido mais do que o necessário para esquecer
meu emporcamento, encontrei meu amigo.
Me olhou em silêncio e sem dar-me tempo para expressar minha
alegria, me disse:
- Reflexiona um pouco. Não busques sofrimentos que não
necessites.
Sabia que a ele não poderia mentir-lhe. Lhe pedi que não me deixasse
e ele me anunciou que iria permanecer um tempo nessa cidade e que
provavelmente nos veríamos em seguida.
Foi muito pouco o que conversamos essa noite. Não deixou de
intrigar-me aquilo de que eu estava buscando sofrimento que não
necessitava. Porém, como de costume, pensei que seria uma nova
extravagância de sua parte. Em troca, me houvesse gostado muito lhe
haver demonstrado uma maior hospitalidade e em geral corresponder a
sua devoção de amigo de uma maneira mais tangível. Quando lhe
ofereci alojamento em minha casa recusou cortesmente informando-me
que em sua viajem havia sido convidado por outros amigos com quem se
havia comprometido a se alojar, porém nos veríamos em seguida.
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
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A lembrança daqueles dias tão remotos em minha memória, ao vê-los
surgir ante mim nesta situação, nestas condições, me sacudiu. Sem
poder evitar comecei a chorar como uma criança. Nesse momento me dei
conta de quanto amava meu amigo, de quando ele representava para
mim. Se afastou à outra habitação enquanto eu deixava correr meu
pranto em um rincão. Quando me recompus fui busca-lo e o encontrei
de joelhos e com os braços em cruz e olhando para o firmamento
através da janela aberta.
Sem mostrar o menos apuro se pôs de pé e olhando-me, me disse:
- O pranto é um bom purgante; purifica o sangue.
Se dirigiu ao quarto de banho e o vi lavar o rosto com água fria.
Ele também havia chorado.
Durante esse inverno a situação do país se encrespou sobremaneira.
Estava muito estreitamente ligada a guerra. Porém foi na primavera
quando os acontecimentos assumiram proporções sangrentas e ocorreram
umas séries de coisas que determinaram que eu finalmente fosse
detido pela polícia e levado ao cárcere.
Conveniente seria, registrar algumas observações feitas por meu
amigo e que tem relação com os fatos desses, apesar de que afirmava
que nenhuma destas coisas que ocorriam eram novas.
Eu me havia dado conta claramente da crescente força que ia ganhando
o pressuposto ditador deste país; estava fazendo uma comédia para
explorar os sentimentos das massas que lhe seguiam cegamente em
virtude de uns quantos benefícios circunstanciais que haviam
recebido. Minhas crônicas destacavam este fato, porém meus chefes
protestavam e me acusavam de ser partidário do homem. Houve
violências. Queriam uma oposição mais ativa em meus escritos e não
pareciam capazes de compreender a necessidade de dizer a verdade e
encarar a realidade obvia que estávamos presenciando. Quando
comentei estes fatos com meu amigo, me disse:
- O único que realmente tem importância em todo este enredo é que
a Serpente Emplumada já quer voar, porém tem as patas atreladas
à terra.
- Por favor, não me contestes com enigmas.
- Não há enigma algum nisto. Se em vez de perderes teu tempo em
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
máquina.
Meu assombro foi grande quando me dei conta que seu governo havia
aceitado seu informe e estava atuando em base a ele. Não pude nunca
me explicar como os homens que parecem ser hábeis nos assuntos de
estado podem ter as guardas tão abertas como qualquer ingênuo.
Este enviado confidencial, antes de regressar a sua pátria, me
obsequiou uma carteira finíssima cheia de tíquetes e quando quis,
debilmente, recusa-la, me disse:
- De nenhum modo, querido amigo. Me tem ajudado você em um
magnífico negócio.
Mais tarde soube que o negócio era um forte contrabando de matérias
primas mui escassas para a industria devido a guerra.
Relatei todos esses fatos a meu amigo.
- Essa é a maracutaia mais antiga do mundo. – disse . Eles não
tem culpa. São irresponsáveis. Porém tu preocupa-te em não
seguir prejudicando a Serpente Emplumada. Recorda que não podes
servir a dois senhores.
Novamente, voltei a ignorar seu prudente conselho. Os acontecimentos
tomavam velocidade. A polícia me vigiava cada vez mais estreitamente
e com esperança de salvar-me de alguma forma, comecei a participar
de muitas conspirações contra o ditador.
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anotado. Porém não tinha meu livreto a mão. Comecei a ver a vida e
as coisas humanas de um modo mui curioso, como se estivesse esilado
delas. Isso se deveu a que em um momento recordei algo que Ele me
havia dito acerca da chave de O Sermão da Montanha, de uma chave que
estava oculta nas primeiras frases: "E vendo as pessoas, subiu ao
Monte".
Minhas desilusões e tudo o que havia contribuído com isto, seria
isto o "ver as pessoas" de que falou meu amigo? E o que seria "subir
ao Monte"? Pensei que o monte seria algo como a tranqüilidade
interior que me invadia ao recordar meu amigo, uma tranqüilidade
como se soubesse que Ele me daria todas as respostas a todas as
perguntas que começava a me formular. Por certo que neste esilamento
pude ver a revolução, minha carreira, meus anos de juventude de um
modo bem diferente. Dei-me conta de quão ignorante, quão inútil
havia sido minha agitada existência e que uma vida assim não poderia
conduzir a parte alguma, que não tinha sentido.
Não me pude explicar o que havia ocorrido com os sentimentos
daqueles estudantes, amedrontados ante ao perigo policial, que
haviam concorrido a minha casa em busca de ajuda. Não poderia
explicar-me como era possível que agora e voluntariamente,
estivessem declarando em mim contra o sumário.
Eventualmente fui enviado a um cárcere e fiquei em paz.
A primeira visita do meu amigo ocorreu na presença do comissário
interrogador. Perguntei-lhe pelos amigos, e sua resposta foi típica:
- Aqui estou, me dice.
- Não estou me referindo a ti, senão a fulano, beltrano, siclano,
etc.
Olhou-me compasivamente e com um tom fictício contestou:
- Esses? Esses são homens livres. Estam desfrutando de uma formosa
sesta.
- Imagino que estão indo bem.
- O único que está indo verdadeiramente bem é você. Porém não o
entendes todavia.
E dirigindo-se ao policial interrogador, dice:
- Este homem necessita descanso. Sobre tudo, necessita refletir.
Poderia você ajuda-lo? Já que você estudou filosofia quisera
algumas palavras suas lhe sirvam de algo.
Ignoro que conversas prévias havia tido meu amigo com este policial.
O caso é que pareciam ser amigos de confiança. O policial, aclarando
a garganta e em tom de conferencista que vai elucidar o mistério da
vida, começou a falar tal cúmulo de vaidades que tive que disfarçar
meu riso acendendo um cigarro. Não me atrevi a olhar meu amigo nos
olhos. O discurso terminou mais ou menos da seguinte maneira:
- Nós prestamos um serviço ao Estado para o bem da comunidade. A
pátria está acima de tudo. Porém, também somos humanos. Você
confessou. Nos tem agregado trabalho e dinheiro. Até que as
autoridades deliberem sobre seu caso, eu me encarregarei para
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
Sua hipocrisia era repugnante.Eu havia visto alguns dos rostos dos
estudantes que haviam acudido em demande de auxílio a minha casa. E
me dei conta de que meu amigo, de algum modo, havia influído sobre
este homem para que se convencesse de suas próprias palavras.
O Polícia sacou um jogo de xadrez. Pediu café para todos e começou a
partida. Durou várias horas e pude dar-me conta de que meu amigo
fazia um jogo de comédia; simulava esforçar-se para ganhar, porém
perdeu deliberadamente. Ao final, o policial disse:
- É preciso que joguemos outra vez. Quanto me há custado vencer-
te!
Passaram os meses.
Quantas partidas de xadrez deve ter jogado meu amigo com este homem?
Porém, já chegaremos ao final desta história.
Uma tarde, meu amigo chegou ao cárcere e me dice:
- Fulano (o da "psique subjetiva") me dice que te deportarão dentro
de duas semanas, ou quizas antes. Te tratará bem até então. Eu devo
marchar-me, porém nos veremos ainda.
Não pude ocultar minhas lágrimas. Óbvio era que ele também o sentia,
porém estava tão protegido por seu sorriso e serenidade que não
revelou seu carinho e boa vontade. Foi então que me falou acerca
daquelas qualidades indicativas da "promessa de um despertar".
Fiquei só e amargurado.
Ao passo de dez dias fui notificado de minha expulsão.Também me
informei que minha filiação havia sido enviada a todas as polícias
de todos os governos do continente e que vários deles, cada um de
sua maneira, haviam agregado ou suprimido algo obtido de “fontes
reservadas e confidenciais”. Bem sabia eu quem constituía estas
fontes e os motivos de sua contribuição ao meu dossiê, porém isso já
não tinha importância.
Toda esta época a vejo agora, tão remota que me consta recordar
alguns incidentes. A futilidade de alguns homens é uma coisa tão
patética em certos casos que talvés a isso se refira meu amigo,
quando fala dos homens de barro no escrito que vai em continuação a
este.
Porém ainda falta a última cena ao seu lado e o que ela determinou.
Numa manhã de maio, parti num trem internacional com destino a um
O VÔO DA SERPENTE EMPLUMADA
Era óbvio que lhe havia entregado uma parte dos fundos que eu havia
deixado à futuros espiãos desprovidos de uma “psique subjetiva”. O
agente saio radiante, e com a maior das considerações, tomou minha
maleta e me disse:
- Quando quiser, senhor.
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Senti que me afogava. Não podia fugir ainda que quisesse. A polícia
me vigiava. Tomei uma transvia e parti para fora da cidade. Pela
atitude das pessoas, por sua maneira de falar e por muitas
indicações que um observador experiente facilmente aprende a levar
em conta, adverti que qualquer um que iniciasse um movimento contra
o presidente atual poderia triunfar. As pessoas também queriam
desfrutar da liberdade de trocar de amos. Depois, novamente queriam
depor a quem elas mesmas tivessem levado ao poder.
Os anos de mentiras somadas a mais mentiras haviam terminado por me
fazer sentir desprezo não só por mim mesmo, senão a todo o gênero
humano. Sem embargo, algo modificava-se em meu interior e notei que
meu desprezo não era tão cáustico nem tão poderoso. Era algo assim
como resignação ao ver as pessoas. Repeti a mim mesmo "E vendo as
pessoas"; ponderei sobre isso, porém meus pensamentos voaram a meu
amigo e esqueci isso.
De pronto me assaltou o desejo veemente de rezar.
Achei uma capela cheia de indígenas. Os observei e senti carinho por
eles. Me acerquei em um canto e comecei a conversar como antes, com
um Cristo Crucificado. Relatei-lhe em detalhes tudo o que me ocorria
e terminei dizendo assim:
- A julgar pelos fatos, parece que utilizei muito mal a inteligência
que me destes. Porque não me das uma nova oportunidade? Se te é
possível, dai-me outra classe de inteligência, uma que não só me
permita sair deste enredo, senão também que me permita viver em paz
com meu amigo.
Elevei os olhos ao rosto de Cristo.
Não sei se seria a imaginação atiçada pelo desejo, porém creio que o
vi sorrir.
Quando voltei para a cidade, já de noite, me refugiei na habitação
do hotel.
Sobre o velador encontrei uma mensagem de um ex-diplomata cujo quem
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