Cuidado Usuarios Drogas

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Org.

Loiva Maria De Boni Santos

Organizadora: Loiva Maria De Boni Santos

Outras Palavras
sobre o Cuidado de Pessoas que usam Drogas
1 Edio

Porto Alegre Ideograf 2010

Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul


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Organizao: Loiva Maria De Boni Santos Colaborao: Deise Cardoso Nunes Reviso: Enelise Arnold Diagramao: Tavane Reichert Machado Imagem capa: Conselho Regional de Psicologia

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Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas / org. por Loiva Maria De Boni Santos. Porto Alegre: Ideograf / Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010. 192 p. ; 14 x 21 cm. Inclui bibliografia e notas. 1. Uso de drogas tratamentos. 2. Polticas pblicas de sade drogas. 3. Sade mental - drogas. I. Santos, Loiva Maria De Boni, org. CDU ... 613.83:614:616-08 613.86

Catalogao na fonte: Paula Pgas de Lima CRB 10/1229

Agradecimentos
com alegria que apresentamos este livro, que materializa o nal de um ciclo de discusses e trabalho, rduo e doce, implicando muitas pessoas neste processo, mudanas de ideias, dvidas e certezas. ... outras palavras... diferentes olhares sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. O que ca disto so: as intensas produes originadas nos encontros que puderam reverberar em outros espaos e pensamentos; as parcerias estabelecidas com pessoas sensacionais que encontramos neste caminho; os afetos trocados na certeza de que para trabalhar neste campo isto fundamental. Algumas pessoas admiraram este movimento, outras criticaram... agradecemos a todas, pois foi sinal de que conseguimos desacomodar! o m de um ciclo, mas um ciclo s se fecha para poder dar lugar a outros, com outras roupagens, outras ideias, outros atores, outras palavras... Agradecemos aos participantes dos encontros, pelas contribuies essenciais e pela sede de falar sobre o assunto, compartilhando suas angstias. Aos colegas da gesto Plural Psi e aos funcionrios do CRP por nos acompanharem nesta viagem. Aos participantes da Comisso de Polticas Pblicas por incitar esta discusso e pelo acmulo de conhecimento e inseres no campo das polticas.
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Aos autores desta publicao, que alm de participarem ativamente dos seminrios, aceitaram o desao desta escrita. E aos que foram convidados a escrever, mas que por diferentes razes no puderam faz-lo. Ao Grupo de Trabalho, composto por diversos atores, colegas e parceiros que foram incansveis na organizao dos seminrios, oferecendo a estes encontros a cara de cada regio com suas especicidades e necessidades. Sem eles, certamente no teramos conseguido! Aos que estiveram presentes de forma to especial... Lembramos aqui: Glacir Freitas, Guilene Salerno, Denis Petuco, Ftima Fischer, Cristiane Pegoraro, Carlinhos Guarnieri, Rose Mayer, Rafael Gil, Ruth DAmorin, Thaiane Vinad, Dulce Bedin, Fernanda Penkala, Camila Noguez, Eva Oliveira, Raquel Frosi, Henrique Zili, Sandra Leon, Domiciano Siqueira, Mrcia Colombo, Ricardo Charo... e tantos outros que zeram esta jornada possvel. E nalmente queles que no seu cotidiano constroem outras formas de cuidado a pessoas que usam drogas, demonstrando que possvel agregar outras palavras s prticas... Muito obrigada! Deise Nunes, Loiva Santos e Paula Gntzel

Sumrio
Prefcio: Pensar diferentemente o tema das drogas e o campo da sade mental Eduardo Passos ...outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas... 07

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Deise Cardoso Nunes, Loiva Maria De Boni Santos, Maria de Ftima Bueno Fischer, Paula Gntzel

Os jovens usurios de crack e a rede de cuidados: problematizaes a partir de uma experincia


Douglas C. Oliveira, Mariana Hollweg Dias

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Abrindo as cortinas em busca de outras palavras: drogas e arte em cena

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Carolina Santos da Silva, Leda Rbia Corbulim Maurina

Pra no dizer que no falei de drogas O cuidado de pessoas que usam drogas e a luta antimanicomial
Dnis Roberto da Silva Petuco Domiciano Siqueira

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Construindo a descriminalizao...

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A rede de assistncia aos usurios de lcool e outras drogas em busca da integralidade A contribuio do centro de referncia em reduo de danos: nossas palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas
Rose Teresinha da Rocha Mayer Srgio Guimar Pezzi

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Evaldo Melo de Oliveira, Nade Teodsio Valois Santos

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Autonomia e medidas socioeducativas Singular e Plural: experincia em educao de jovens em situao de rua e drogadio

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Guilene Salerno, Maria Lucia de Andrade Reis

Semiramis Maria Amorim Vedovatto Guilherme Corra

Contrapondo o discurso miditico sobre drogas - Nem to feios, nem to sujos, nem to malvados: pessoas de bem tambm usam drogas!

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Drogas para alm do bem e do mal Reduo de Danos: campo de possibilidades para prticas no proibicionistas em sade
Flvia Costa da Silva

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Manifesto Outras Palavras


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Prefcio

Pensar diferentemente o tema das drogas e o campo da sade mental


Eduardo Passos 1 (Universidade Federal Fluminense) muito importante poder tratar o tema das drogas no contemporneo com outras palavras, reformulando nossos antigos problemas e enfrentando nossos medos ainda atuais. Como pensar diferentemente o tema das drogas? Sim, porque h uma maneira tradicional de tratar esse tema marcado por preconceitos e valores muito arraigados. Tal como um pintor que nunca est diante de uma tela em branco, mas que deve inicialmente eliminar da tela os clichs, temos que realizar uma faxina cognitiva a m de garantirmos uma aproximao nova ao problema da droga (Benevides & Passos, 2010, p. 61). Esto reunidos neste livro doze textos que nos do pistas para uma poltica cognitiva afeita s novas apostas no campo das polticas de ateno integral aos usurios de lcool e drogas.
1 Graduado em Psicologia e doutor em Psicologia pela UFRJ. Foi consultor do Ministrio da Sade para a implantao da Poltica Nacional de Humanizao do SUS (2003-2008) por sua atuao na rea das Polticas Pblicas. Realizou consultoria junto ao International Center for AIDS Care and Treatment Program do Mailman School of Public Health da Universidade de Columbia (EUA) (2008-2009). professor associado do departamento de Psicologia da UFF/RJ.

Em 2008, no RS, foi disparado um processo de retomada crtica do tema das drogas, reunindo trabalhadores ligados Comisso de Polticas Pblicas do CRP-RS e militantes que fazem de seu engajamento na luta pela reforma psiquitrica uma maneira de defesa dos princpios democrticos do SUS no campo da sade mental. Foram se constituindo interfaces entre o iderio militante em sade mental e as lutas pela descriminalizao do uso de drogas; entre a contracorrente s prticas de judicializao do uso de drogas e a armao do tema das drogas como um problema de sade coletiva; entre a recusa de uma poltica antidroga e a defesa dos direitos de usurios de drogas. Estas interfaces delinearam um domnio de reexo terica e de ao propositiva no campo da poltica de sade mental para sujeitos que fazem uso abusivo de lcool e outras drogas. Neste domnio, um modo de fazer ganha relevncia, indicando-nos um caminho, apresentando uma alternativa metodolgica s prticas de cuidado e ressignicando o problema da droga no contemporneo. Este modo de fazer o da reduo de danos (RD). A RD entra no campo da sade, nos anos 80, como modo de fazer em sintonia com as prticas da reforma sanitria e psiquitrica brasileiras. J h um percurso da RD que podemos traar chegando a nossos dias e partindo das experimentaes iniciais que tiveram na cidade de Santos/SP (no perodo de 1989 a 1994) as condies propcias para a sua realizao. Em 2003, o Ministrio da Sade (MS) props uma Poltica de Ateno Integral de lcool e Outras Drogas (BRASIL, 2003), armando uma nova inexo no modo como o tema das drogas era abordado agora no interior do campo da sade pblica. A prpria designao da poltica de 2003 indicava a deciso de tratar o problema comprometendo-se com a ateno integral e com a amplitude das drogas no contemporneo, escapando da oposio entre lcito e ilcito, permitido e proibido (Passos & Souza, 2009). Armava-se, assim, a inseparabilidade entre preveno, promoo, tratamento e reabilitao nas prticas de sade com
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usurios de lcool e outras drogas, ampliando-se o sentido do cuidado de maneira a incluir: a) o protagonismo dos diferentes sujeitos implicados nas prticas de sade (usurios e trabalhadores de sade); b) o direito dos usurios (usurios dos servios de sade e usurios de drogas); c) a fora dos coletivos (as associaes, os movimentos sociais, os grupos); d) as inovaes tecnolgicas, sobretudo no que se referem s tecnologias relacionais fortalecedoras dos vnculos entre os sujeitos e do acolhimento nas prticas de cuidado. Tal sentido ampliado do cuidado foi na direo do que, nesta mesma poca, foi formulado como a Poltica Nacional de Humanizao do SUS (PNH/SE/MS) com a sua aposta na indissociabilidade entre clnica e poltica, entre ateno e gesto das prticas de cuidado, entre produo de sade e produo de subjetividade (Brasil, 2004; Barros & Passos, 2005a; 2005b). Que sujeitos esto implicados no SUS que d certo? Que sujeitos podem ser protagonistas na experimentao de um modo de fazer que seja resolutivo frente ao enorme desao posto pelo problema das drogas no contemporneo? Novos atores so, ento, chamados cena para assumirem tais desaos, ao mesmo tempo em que so deslocados do lugar socialmente determinado pelo estigma e pelo preconceito. Os usurios de drogas dentre outros coletivos at ento identicados como grupos de risco (homossexuais, prossionais do sexo, transexuais etc.) so, ento, convocados tanto a discutirem os danos produzidos pelo uso abusivo de substncias psicoativas quanto a ajudarem na produo de modos de intervir no campo da sade pblica. O redutor de dano aparece como um agente comunitrio habilitado a negociar no territrio, contando com a experincia com a droga, apoiado nela e no contra ela, em uma prtica de sade encarnada. H perigos relativos ao uso abusivo de droga que preciso tratar sem a mediao dos valores e crenas formados distncia da experincia efetiva com a droga. preciso se aproximar desta experincia no para julg-la como lcita ou ilcita, para reprimi9

la ou perdo-la, mas para cuidar dela quando houver demanda de tratamento. O paradigma , portanto, este: fale com ela . No campo da sade mental, j percorremos um longo caminho de reforma das prticas de tratamento da loucura. Neste campo, sujeitos que sofrem do uso abusivo de drogas ainda so, com frequncia, submetidos a prticas manicomiais, sendo que os servios que se responsabilizam por estes cuidados so, muitas vezes, privados, do terceiro setor e/ou religiosos. Para enfrentar a tarefa de construo de uma poltica por dentro do SUS para o problema das drogas, foi criado, em 2003, um grupo de trabalho no MS de composio multissetorial a Portaria GM 457 do MS, de 16 de abril de 2003, instituiu o Grupo de lcool e Outras Drogas (GAOD), composto por representao do Gabinete da Secretaria Executiva, Coordenao Nacional DST/AIDs, ANVISA, Secretaria de Ateno Sade com as seguintes reas: Sade Mental, Sade do Adolescente e do Jovem, Preveno da Violncia e Causas Externas, Sade do Trabalhador e Ateno Bsica. No documento produzido pelo GAOD, armava-se a aposta na abordagem ao problema do uso abusivo de lcool e outras drogas a partir da RD, entendida como mtodo clnicopoltico e paradigma para a poltica de sade pblica. esta natureza metodolgica da RD que a sintoniza com o movimento da reforma psiquitrica (RP) no Brasil. Esta sintonia designa uma atitude tanto da RD quanto da RP de lanar-se em um movimento clnico-poltico. E por que esse destaque da interface clnico-poltica? No s porque, ao estarmos falando de RP e da RD, estamos tratando de movimentos de evidentes implicaes polticas como aquelas das mudanas legislativas da lei Paulo Delgado, das intervenes realizadas em antigos asilos psiquitricos ou da Poltica de Ateno Integral de lcool e outras Drogas. preciso destacar esta interface clnico-poltica, sobretudo, porque, em nossas prticas cotidianas, encontramo-nos sempre s voltas com a loucura ou com o uso de drogas que devem ser
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entendidos no s como possvel demanda de tratamento, mas tambm como um modo de existir a que deve corresponder um modo de experimentar e construir a realidade que precisamos reconhecer em sua legitimidade e direitos. No campo das nossas prticas prossionais em sade mental, estamos engajamos com modos de criao de si e de criao do mundo que no podem se realizar sem o risco constante da experincia de crise no s crise dessas subjetividades atormentadas pelo sofrimento psquico, mas tambm crise de nossos valores; crise da forma como a cidade se organiza considerando a natural excluso dos estranhos e diferentes; crise das instituies, em especial as instituies da droga e da loucura elas mesmas. Consequentemente, denir a clnica em sua relao com os processos de produo de subjetividade do louco ou do usurio abusivo de droga implica, necessariamente, que nos arrisquemos numa experincia, a um s tempo, de crtica e de anlise, uma experincia crtico-clnica das formas institudas, o que nos compromete politicamente. A RD traou, portanto, um percurso clnico-poltico (Passos, 2004; Passos & Benevides 2001; 2004) por meio do qual ultrapassou o contexto local, em Santos, e ganhou projeo no cenrio nacional. A Comisso de Polticas Pblicas do CRP-RS em parceria com o Frum Gacho de Sade Mental (FGSM) e a Associao Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA) reuniu-se para aprofundar as discusses em relao temtica das drogas, preparando, ento, o Seminrio: ... outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas que reuniu 160 pessoas em Porto Alegre em novembro de 2008. No projeto dos Seminrios Regionais e Seminrio Estadual/ RS Outras palavras... diferentes olhares sobre o cuidado com pessoas que usam drogas (2009), lemos a sntese do encontro de 2008: 1. a fragilidade ou a inexistncia de servios de atendimento baseados no respeito subjetividade e aos Direitos Humanos do usurio um dos fatores que tem levado a sociedade
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a retroceder, legitimando o descumprimento da Lei da Reforma Psiquitrica e defendendo a criao de hospitais psiquitricos como a nica forma de enfrentar o problema. E esse tem sido um dos motivos de ataque Reforma Psiquitrica; 2. historicamente, as prticas de cuidado em sade, dirigida a esta populao, oscilaram entre os cuidados de carter religioso ou de modelos medicocentrados, no garantindo efetividade e resolutividade no cuidado dessas pessoas, reforando o modelo excludente e segregador to combatido pela Luta Antimanicomial; 3. o direito sade universal, e a noo de sade como direito aponta a importncia de considerar a singularidade do sujeito, e a partir da estabelecer um vnculo pautado no respeito, na humanizao do tratamento e na incluso social, no cuidado e na defesa da vida, na autonomia e no protagonismo; 4. a Reduo de Danos aparece como um caminho, em que o mtodo utilizado para o tratamento baseado no aumento do grau de liberdade e de co-responsabilidade, possibilitando o protagonismo dos usurios e familiares e transformando vidas; 5. qualquer tentativa de reduzir ou evitar o uso abusivo e/ou dependncia de drogas deve levar em conta as prticas de vida diria do ser humano, aumentando os fatores de proteo e reduzindo os fatores de risco ao consumo de drogas, tendo em vista que a promoo de sade se d na busca constante de mais qualidade de vida para as pessoas; 6. sabido que no interior de dispositivos antimanicomiais como nos CAPS, CAPS-i e CAPS-ad persistem prticas distantes de noes de promoo de sade e cidadania, e que os cuidados com os usurios de substncias psicoativas, s vezes, tornam-se parciais, esvaziados de sentido para as pessoas e minimamente resolutivos, quando no excludentes, devido falta de informao e manejo, e, ainda, pelo preconceito impregnado por uma cultura disciplinadora e segregadora; 7. urge a construo e disseminao de novas tecnologias de cuidado, inspiradas em uma outra gramtica, na qual pala12

vras como vnculo e afeto substituem ecincia e eccia. Um jeito de fazer sade no qual falamos de cuidado e de ateno sem cobrar abstinncia de ningum. Onde acolhimento substitui a noo de conteno e a continncia substitui a noo de controle. Uma nova postura na construo de um novo fazer que tem como princpio o compromisso tico em defesa da vida, colocando todos da REDE na condio de responsveis pelo acolhimento e cuidado. As sete proposies-sntese do trabalho coletivo de 2008 nos indicam a amplitude do desao a ser enfrentado para a construo de uma poltica pblica de sade para sujeitos que fazem uso abusivo de drogas. Tal desao repete esta inexo que tem sido a nossa desde os anos 80 quando consolidamos a aposta nas prticas de democratizao no campo da sade.

Referncias bibliogrcas
BARROS, R. B.& PASSOS, E (2005a). A humanizao como dimenso pblica das polticas de sade. Cincia & Sade Coletiva, v.10, p.561 - 571 BARROS, R. B. & PASSOS, E. (2005b) Humanizao na sade: um novo modismo? Interface. Comunicao, Sade e Educao. , v.9, p.389 - 394. BENEVIDES, R & PASSOS, E (2010) Anal, possvel uma outra poltica de drogas para o Brasil?. Em Elizabeth Lima, Joo leite Ferreira Neto e Luis Eduardo Aragon (org) Subjetividade Contempornea: desaos tericos e metodolgicos. Curitiba: CRV, pp 61-70. BRASIL, Ministrio da Sade (2003). A poltica do Ministrio da Sade para Ateno Integral a Usurios de lcool e Ouras Drogas. Braslia. BRASIL, Ministrio da Sade (2004). Poltica Nacional de Humanizao. Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Ministrio da Sade, Braslia, DF PASSOS, E (2004) Clnica e subjetividade: descobrindo o sujeito no enfrentamento com a violncia e o uso de drogas In: Adolescncia e contemporaneidade ed. Porto Alegre : Conselho de Psicologia do Rio Grande do Sul CRP-07, p. 37-53. 13

PASSOS, E. & BARROS, R. B. (2004) Clnica, poltica e modulaes do capitalismo. Lugar Comum (UFRJ). , p.159 - 171, 2004. PASSOS, E. & BARROS, R. B. (2001) Clnica e biopoltica na experincia do contemporneo. Psicologia Clnica, v.13, p.89 - 99. PASSOS, E & SOUZA, T P (2009) Reduo de danos no Brasil: aspectos histricos e polticos. Em Silvia Tedesco e Maria Lvia Nascimento (org) tica e Subjetividade: novos impasses no contemporneo. Porto Alegre: Sulina, pp. 96-110.

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...outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas...


O sistema atropela; D tombo, pisa na goela; Cala nossa fala, Mas sua prepotncia No sufoca a conscincia, A nsia que nos abala, E se busca outra linguagem: Cada slaba, atitude, FAZER, verbo que no ilude E d concretude mensagem, E esta, ningum derruba, No importa quem caia ou suba Ningum mata a coragem. Poesia: Outras Palavras de Carlinhos Guarnieri

Deise Cardoso Nunes 1 Loiva Maria De Boni Santos 2 Maria de Ftima Bueno Fischer 3 Paula Gntzel 4
1 Conselheira da Plenria do CRPRS, gesto 2007 2010, Residncia Multiprossional em Sade Mental Coletiva, pelo Ministrio da Sade Brasil e Universitat Rovira i Virgili Espanha, trabalhadora do CAPSad da Regio Glria, Cruzeiro e Cristal de Porto Alegre. 2 Conselheira da Plenria do CRPRS, gesto 2007 2010, Mestranda em Psicologia Social pelo PPG de Psicologia Social da UFRGS, Especialista em Psicologia Social Comunitria, Docente da FSG Faculdade da Serra Gacha, coordenadora da ps em Sade Mental Coletiva da mesma instituio, Apoiadora da Humanizao do SUS, Assessora e Consultora em Sade Mental e lcool e Drogas e Supervisora Clnico Institucional do MS; 3 Conselheira da Plenria do CRPRS, gesto 2007 2010, Mestre em Educao pela FACED / UFRGS, docente da UNISINOS, psicloga no residencial Teraputico Morada Viamo, SES/RS e Supervisora Clinico Institucional MS 4 Conselheira da Plenria do CRPRS, gesto 2007 2010, Residncia Multiprossional em Sade da Famlia, pela Escola de Sade Pblica.

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Historicamente o tratamento de pessoas que usam drogas esteve pautado na lgica da criminalizao, da infrao, permeada pela cultura judaico crist que associa o prazer ao pecado e as intervenes sempre foram medico centrada tendo o isolamento e a segregao, por meio da internao como nica possibilidade de interveno. Todas estas lgicas partem da premissa da abstinncia. Problematizar a questo a partir dos sujeitos (sejam trabalhadores, usurios, sociedade) e suas relaes com uso de drogas na contemporaneidade parte de uma leitura que considera os contextos scio cultural, historicamente construdo. Este pode ser um caminho para a mudana de paradigma e a garantia de uma poltica pblica para a rea que possa inventar novas formas de cuidados com as pessoas que usam drogas. Este foi o propsito deste movimento institunte que marcou a Gesto Plural Psi que esteve a frente do CRP de 2007 a 2010. sobre esta trajetria que pretendemos nos debruar nestas pginas marcando outra forma de pensar as drogas na contemporaneidade, e a partir de outro olhar produzir outras palavras, outras possibilidades de existncia. sabido que o consumo abusivo de substncias psicoativas pode trazer relevantes danos sociais e sade, porm, em se tratando do consumo de substncias psicoativas preciso atentar para as mltiplas formas de uso de diferentes substncias e que nem todas as pessoas que usam drogas tm problemas com seu uso, pois existem diferentes nveis de consumo que podem ou no caracterizar uso problemtico. O que temos assistido a sociedade do espetculo na medida em que a mdia associa o uso de substncia psicoativa situaes de violncia de toda a ordem. Esta lgica exclui e segrega cada vez mais a pessoa que usa drogas, tornando-se tambm um empecilho quelas que necessitam de cuidado, perpetuando a no garantia dos direitos fundamentais. Segundo relatrio da OMS (2004, pg.33) o dano sociedade no causado apenas por indivduos dependentes de substncias. Danos importantes tambm provm de indivduos no dependentes, resultantes da intoxicao aguda e de doses excessivas, bem como da forma de administrao...
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Os discursos demonizantes sobre o uso de drogas circulando por diferentes espaos, sem considerar dados estatsticos ou pesquisas cientcas produzidas sobre o tema, rearmam a psiquiatrizao e judicializao da loucura, agora focada na questo da droga, mais especicamente no crack, causando na populao medo e terror e produzindo uma idia distorcida dos efeitos das substncias ilcitas em detrimento das drogas lcitas. Essas idias tm colocado todas as pessoas que usam drogas ilcitas num lugar marginal, como bode expiatrio dos problemas sociais, desconsiderando quaisquer outros aspectos da contemporaneidade relacionados ao tema, inclusive que entende-se por drogas os produtos qumicos de origem natural ou sintetizada em laboratrios, que produzem efeitos sentidos como prazerosos e atuam no sistema nervoso central (CONTE, 2003, pg.22). Isto signica dizer que em se tratando de drogas nos referimos s ilcitas (Crack, cocana, cstase, maconha) bem como as lcitas (bebidas e medicamentos). O uso de substncias psicoativas sempre esteve presente na histria da humanidade de diferentes formas e em diferentes contextos culturais, e com diferentes funes, geralmente ligadas ao desejo do homem em buscar maneiras de alterar o estado de conscincia e na nsia de tentar dominar a mortalidade, explorar as emoes, melhorar o estado de esprito, intensicar os sentidos ou promover a interao em seu meio social, muitas vezes num desejo de consertar a realidade. Seria uma hipocrisia falar e acreditar numa sociedade sem drogas. Segundo Silveira (2008, pg07), a necessidade de transcender a experincia imediata parece inerente ao ser, assim como a curiosidade humana que levou ao conhecimento e ao desenvolvimento do homem, da cultura e dos meios de sobrevivncia. Desde a antiguidade o vinho, considerado substncia divina utilizado em rituais e cerimnias religiosas; os incas consideravam a folha da coca um rico presente acima do ouro e da prata , e os Citas (Europa Oriental), inebriavam-se com os vapores da maconha colocada em cima de pedras quentes na entrada de suas tendas.
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J na Modernidade o pio e a morna tiveram ampla utilizao na guerra civil americana; o lcool passou a ser utilizado pelos patres para contentar empregados e aumentar a produtividade e a cocana e herona eram anunciados em jornais, caracterizando o Glamour relacionado loucura das substncias psicoativas e a maconha e o LSD passam a ser cultuadas na dcada de 60 nos movimentos de contracultura. Ainda na dcada de 70, por conta da guerra do Vietn, a herona ganhou impulso no mercado negro das drogas. Juntamente com o pio vindo do Tringulo Dourado (Camboja, Laos e Tailndia) passou a dividir a predileo da gerao hippie. Relata-nos Carneiro (Revista Dilogos do Conselho Federal de Psicologia, 2009), que foi a cana-de-acar, planta do Extremo-Oriente que se origina a produo das [...] duas drogas mais emblemticas da era do mercado mundial o acar e a aguardente que passam a expandir o comrcio exterior e a estimular as fbricas e as grandes plantaes. A relao que o homem estabelece na ps-modernidade com a droga passa a ser permeada pelos padres de consumo decorrentes do advento do capitalismo, que impe ao homem contemporneo uma cultura de consumo desenfreado e inconsequente como possibilidade de existncia. Numa sociedade que tem como base o capital, onde as relaes se mercantilizam, e tudo gira em torno do consumo, o imediatismo e individualismo so produtora dos modos de subjetivao. Os sujeitos so atravessados por uma cultura miditica que homogeneza e controla em nome da liberdade, numa tendncia totalitria associando o produto (entre eles a droga) a um iderio de felicidade e realizao. O avano tecnolgico coloca o mundo em nossas mos, em questes de segundos num acionar de teclas ou num click do mouse estamos do outro lado do Atlntico, a realidade virtual produz a iluso de que tudo possvel nos levando ao imediatismo. Segundo Silveira (2008) a sociedade contempornea no tolera a frustrao, sendo a busca do prazer imediato, caracterizada pelo consumismo que no permite espao para a falta. So esses
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fatores que contribuem para o aumento do consumo de drogas produzindo as compulses, i.e, padres de comportamentos repetitivos que provocam alteraes siolgicas propiciando sensaes fsicas prazerosas. Eles tornam-se meios de anestesiar os conitos. Portanto, falar sobre drogas antes de tudo, problematizar as contradies da contemporaneidade, trazidas por Bauman sobre as transformaes ocorridas na sociedade com o advento do capitalismo e seu fortalecimento a partir da dcada de 80 e as rpidas mudanas tecnolgicas que incidem sobre as relaes e os modos como as subjetividades esto sendo produzidos no tecido social, entrelaados pela poltica, pelo poder, educao, economia e afetos. Por outro lado as desigualdades sociais produzidas por uma sociedade que tem como centro um projeto econmico neoliberal traz como consequncias o fortalecimento do crime organizado e o mercado paralelo que acaba servindo como possibilidade de gerao de renda para jovens em situao de vulnerabilidade, que buscam no mercado da droga possibilidades de renda pela necessidade de ajudar suas famlias, delineando caminhos de sofrimento. Assim, fazer enfrentamento questo das relaes que a sociedade tem com as drogas, hoje exige uma abordagem interinstitucional, e intersetorial que problematize e enfrente a questo do trco, do cuidado e da promoo da vida. So aes complexas, essencialmente polticas, que transborda para novos cuidados e aes pela qualidade e direito vida. Lembra-nos... Mead, apud: Carneiro, 2002: a virtude quando se tem a dor seguida do prazer; o vcio quando se tem o prazer seguido da dor. Ao tratarmos do tema das drogas faz-se necessrio considerar os mltiplos fatores que levam ao uso, bem como as diferentes formas de uso, nveis de consumo, suas causas e consequncias que podero ser danosos ou no, bem como o contexto scio, histrico, cultural e econmico presentes no entorno do fenmeno. Portanto a ideia de acabar com as drogas no mundo uma falcia descabida diante dos desaos que encontramos pela frente para a construo de uma poltica de lcool e drogas que seja efetiva na re19

soluo dos problemas advindos deste contexto. (PERDUCA in: ACSELRAD, 2005 refere que apesar das diferenas de culturas, tradies legais, formaes tnicas ou religiosas, a proibio tem sido sempre considerada o nico caminho correto para cuidar do assunto.) O relatrio da Comisso Latino Americana sobre Drogas e Democracia aponta que as polticas proibicionistas baseadas na represso ao trco, e a criminalizao do consumo, no produziram os resultados esperados, nos colocando muito distantes do objetivo proclamado de erradicao das drogas. Persistem prticas sociais inscritas na ordem do discurso por meio de dispositivos disciplinadores de diferentes campos, e que insistem em criminalizar as drogas ilcitas em detrimento das drogas legais . Foucault e Gofmann nos mostram em suas obras como as instituies disciplinares ou instituies totais como dispositivos (hospcios, as cadeias, os conventos e as escolas) tiveram na modernidade a funo de produzir corpos dceis e pragmticos, incidindo sobre subjetividades de fcil adestramento. Podemos a partir dos referidos tericos problematizar: que outros dispositivos a sociedade contempornea tem utilizado na tentativa de controle dos corpos? Entre esses dispositivos encontraremos as drogas lcitas medicamentos utilizados pra neutralizar os corpos de suas rebeldias . Cabe lembrar que CARNEIRO (2002) em seu artigo intitulado A Fabricao do Vcio relata que ao longo do sculo XIX, estudos mdicos sobre os efeitos das drogas, foram acompanhados do isolamento qumico de drogas puras como a morna, codena, atropina, cafena, herona e mescalina, permitindo preciso a dosicao, que facilitou a atividade experimental controlada. Este perodo foi caracterizado pela interveno do Estado sobre a disciplinarizao dos corpos e a medicalizao das populaes, com objetivos de eugenia social e racial numa lgica de prolaxia moral, na tentativa de evitar a deteriorao racial supostamente causada pelos degenerados hereditrios, entre os quais se incluam os viciados e bbados. Impunha-se o controle epidemiolgico para um comportamento socialmente infeccioso como o alcoolismo.
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Segundo o Ministrio da Sade (2003), as prticas de cuidado em sade dirigidas a esta populao, historicamente oscilaram entre os cuidados de carter religioso ou de cunho psiquitrico, com orientao para a abstinncia. Os tratamentos baseados no controle, disciplinamento e encarceramento mostram que apenas 30% da clientela se beneciam. Registros de experincias mostram que os tratamentos compulsrios tm levado a recorrentes reincidncias, tornando a interveno inecaz e aumentando os danos sociais e a sade do indivduo, reforando comportamentos de violncia intrafamiliar, afastando o usurio do servio e aumentando o nus ao estado devido ao elevado nmero de internaes compulsrias, sem resolutividade. O caminho aponta para a tessitura de uma rede de cuidados orientada pelo princpio da responsabilidade compartilhada, adotando como estratgia a cooperao mtua e a articulao de esforos entre governo, iniciativa privada, terceiro setor e cidados, no sentido de ampliar a conscincia para a importncia da intersetorialidade e descentralizao das aes sobre drogas no pas. (Brasil, 2008). A Comisso Latino Americana sobre Drogas e Democracia aponta que romper o tabu, reconhecer os fracassos das polticas vigentes e suas consequncias, uma precondio para a discusso de um novo paradigma de polticas mais seguras, ecientes e humanas. Segundo eles:
imperativo examinar criticamente as decincias da estratgia proibicionista seguida pelos Estados Unidos e as vantagens e os limites da estratgia de reduo de danos seguida pela Unio Europia, bem como a pouca prioridade dada ao problema das drogas, por alguns pases, tanto industrializados como em desenvolvimento. (DROGAS E DEMOCRACIA: rumo a uma mudana de paradigma , pg.09)

Diante de tudo isso, torna-se invivel pensar um mundo sem drogas, preciso aceitar a necessidade de conviver com as drogas da melhor maneira possvel, ao invs de preconizar utpicas polticas de tolerncia zero ou de sua erradicao deni21

tiva. Porm h evidncias de que possvel o uso de substncias psicoativas que considerem a tolerncia e a temperana. Para isso faz-se necessrio abandonar posicionamentos apriorsticos e condenatrios, mostrando uma real familiaridade com valores e prticas que priorizem os direitos humanos e a defesa da vida, numa interveno clnica aliada sade coletiva. Lembrando a etimologia da palavra clnica que vem do grego kliniks = o debruar-se sobre o leito do paciente, acolhendo-o em sua dor, e o clinamen = como a possibilidade de produo de um desvio na existncia do outro a partir da criao transformadora que pode brotar da continncia com a dor do outro. O respeito pelos usurios e por sua cultura e pelas suas escolhas tem se mostrado fundamental conquista da ateno e conana dos usurios, criando vnculos que produzem o encontro e a possibilidade de novas existncias. Urge colocar em debate a construo e disseminao de novas tecnologias de cuidado, inspiradas em outra gramtica, na qual palavras como vnculo e afeto substituem ecincia e eccia. Um jeito de fazer sade no qual falamos de cuidado e de ateno sem cobrar abstinncia de ningum. Onde acolhimento substitui a noo de controle. Uma nova postura na construo de um novo fazer que tem como princpio o compromisso tico em defesa da vida, colocando a todos da REDE na condio de responsveis pelo acolhimento e cuidado. Pautado nessas reexes originou-se o movimento denominado outras palavras... sobre o cuidado de pessoas que usam drogas . Processo que emergiu da inquietao de trabalhadores vinculados Comisso de Polticas Pblicas do CRPRS e militantes da Luta Antimanicomial e da Sade Coletiva, que em seus cotidianos viam-se atravessados pelas questes relativas ao cuidado de pessoas que usam lcool e outras drogas, se deparando muitas vezes com uma rede de cuidados desarticulada, inecaz e carente de dispositivos de ateno. Os questionamentos sobre as desarticulaes entre as estratgias de reduo de danos e as polticas de sade mental permeiam as discusses, considerando que, apesar da poltica nes22

sa rea ter como premissa a Reforma Psiquitrica e a humanizao do cuidado, no interior de dispositivos antimanicomiais como nos CAPS, CAPSi e CAPSad persistem prticas distantes da promoo de sade e cidadania tornando o cuidado com estes usurios complicado, quando no, excludente, devido ao preconceito impregnado por uma cultura disciplinante e segregadora. A inexistncia de servios de atendimento baseados no respeito subjetividade e aos Direitos Humanos do usurio, um dos fatores que tem levado a sociedade a retroceder, legitimando o descumprimento da Lei da Reforma Psiquitrica e defendendo a criao de hospitais psiquitricos como a nica forma de enfrentar o problema. A questo da to falada epidemia do crack , bem como espaos de tratamento para usurios de drogas tem sido um dos atuais motivos de ataque ao movimento da Luta Antimanicomial. Outras palavras... diferentes olhares tornou-se no Rio Grande do Sul um movimento instituinte de um processo que apontou para um projeto tico, esttico e poltico, pois procurou em sua fora despertar para o cuidado, de forma a criar outras palavras e diferentes olhares que incidissem sobre a realidade, transformando-a. Esse movimento contra-hegemnico que ora experienciamos, quer potencializar o proposto por Garcia (2007, pg101) a oferta de cuidados fundamentada nos dispositivos extra-hospitalares, utilizando-se dos conceitos de territrio, de rede e a lgica ampliada da reduo de danos. Ao nal do ano de 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul CRPRS aps vrios encontros para debater o assunto realizou o primeiro seminrio intitulado ...outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas . A realizao do seminrio foi produto de um trabalho coletivo que contou com muitas mos, muitas mentes e muitos coraes que deram afeto ao projeto proposto. O evento, que se realizou em 21 de novembro de 2008 no auditrio do Batalho da Brigada Militar de Porto Alegre, contou com a participao de quase duzentas pessoas, entre elas: trabalhadores de diferentes campos de atuao e usurios de diversos servios. Apesar de toda a preocupao dos soldados responsveis pelo local que se mostravam preocupados porque
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o local estava cando cheio de maconheiros , mas ao nal tudo correu dentro dos conformes e no tivemos nenhum problema com a polcia . Parece at contraditrio tudo isso, mas naquele momento foi o nico local que encontramos para a realizao do evento e tinham pessoas na la de espera, aguardando, caso algum desistisse para poder participar, o que demonstrava a urgncia de se criar espaos para falar sobre a temtica. O evento tinha como tema central discutir a interface entre esses dois movimentos que segundo SOUZA (2007) incide sobre uma clnica que poltica, so eles: o Movimento da Luta Antimanicomial e o Movimento da Reduo de Danos. As rodas de conversa produziram falas que posteriormente foram divididas e organizadas em categorias, entre elas: 1) Novas Tecnologias de cuidado pressupondo Outras palavras; 2) Cuidados com a Criana e o Adolescente; 3) Olhares.... ainda palavras ...., novas palavras na produo de uma Poltica Pblica; 4) Construo de uma Poltica Pblica e Formao Prossional.(Cuidado com o cuidador), e 5) Recursos e articulao da Rede de Cuidados numa perspectiva de compartilhamento de responsabilidades. Era muito material e tudo o que havamos experienciado durante este seminrio nos impulsionava a dar continuidade no aprofundamento do debate. Foi ento que o Grupo que pertencia at ento Comisso de Polticas Pblicas props a interiorizao do debate, atravs da realizao de encontros em diferentes regies do estado, tendo como proposta aprofundamento do debate e rodas de conversa que teriam como temas centrais as categorias geradas no I Seminrio. Apesar da Gripe A (H1N1) que assolava o estado e que acabou por atrasar o processo, nada nos impediu de realizar o proposto e em meados de setembro iniciamos os Seminrios Regionais, que aconteceram em: Pelotas, Passo Fundo, Santa Maria, Iju, Lageado, Igrejinha, Caxias do Sul, culminando com o Seminrio Estadual em Porto Alegre no nal de novembro de 2009. Todos esses encontros envolveram a participao de muitos atores, colocando a todos como protagonistas nesse processo de ruptura com o paradigma tradicional moralista para produzir passagem
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s novas palavras, novas vozes que pedem liberdade e se fazem autonomia, produzindo sujeitos. Trata-se de um verdadeiro exerccio poltico que produz saberes e fazeres no mais calcados na ignorncia dos valores morais, mas advindo daquilo que nos afeta, aumentando ou diminuindo nossa potncia de ao, sustentados na tica da existncia e, como tais geradoras de vida. (ANDRADE & LAVRADOR, 2007,pg.116, in: Rosa & outros orgs). Ao nal do II Seminrio os participantes produziram um Manifesto (em anexo neste livro) que posteriormente foi amplamente divulgado pelo CRPRS expressando que outros caminhos so possveis no cuidado de pessoas que usam drogas. Em maio de 2009 o CRPRS levou como pauta para a Assemblia das Polticas Administrativas e Financeiras do Sistema Conselhos APAF a proposta de discusso desta temtica, na interface com a Luta Antimanicomial. Foi ento institudo o Grupo de Trabalho: Cuidado das pessoas que fazem uso de lcool e outras drogas em interface com a luta antimanicomial, do qual o CRPRS teve participao. A Plenria da APAF de dezembro de 2009 aprovou o seu Documento Base5 com propostas de aes que devem contribuir para a reexo da temtica e a construo de uma Poltica pblica na rea. Alm disso, vale lembrar que a partir dessas discusses o CRPRS passou a ser chamado em vrios espaos para falar sobre o tema e na maioria dos lugares onde estvamos a nossa voz passou a ser a de um outro discurso que contrapunha o discurso posto e reforado pela mdia local com a Campanha Crack Nem Pensar . Passamos a ser os atores que insistiam em dizer que preciso no somente pensar, mas falar sobre o crack e tambm sobre as outras drogas e seu contexto, no reduzindo o discurso a lgica manicomial que segrega e exclui historicamente. Conviver numa sociedade com drogas implica em aes concretas, ticopolticas facilitadoras de processos instituntes contribuindo assim com aqueles que se deparam nos seus cotidianos direta ou indiretamente com a questo da cultura e a relao que a sociedade estabelece com as drogas.
5 Documento Base produzido pelo GT Nacional: Cuidado das pessoas que usam drogas em interface com a luta antimanicomial, disponvel no site: www.pol.org.br

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Referncias
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Os jovens usurios de crack e a rede de cuidados: problematizaes a partir de uma experincia


Douglas C. Oliveira 1 Mariana Hollweg Dias 2 Neste trabalho, buscaremos, partindo de nossas experincias como trabalhadores da rede de sade mental de Santa Maria/RS que atuam no cuidado de crianas, adolescentes e jovens adultos, problematizar o surgimento da gura do jovem usurio de crack bem como a direo do tratamento nesses casos. Para tanto, contextualizaremos historicamente o campo da sade mental e do uso de drogas em nossa sociedade at chegarmos singularidade do dia-a-dia em nossos servios, destacando a experincia do CAPS i.
1 Psiclogo da Equipe de Implantao do segundo Centro de Ateno Psicossocial aos Usurios de lcool e Drogas de Santa Maria/RS. Especialista em Humanizao da Ateno e Gesto do SUS (ESP-RS/UFRGS). Mestre em Educao (UFSM). 2 Psicloga do Centro de Ateno Psicossocial Infncia e Adolescncia de Santa Maria/RS. Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

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1 - Poltica sobre drogas e reforma psiquitrica: tensionamentos e desaos cotidianos


A partir das primeiras dcadas do sculo XX, com a expanso da poltica proibicionista norte-americana pelo mundo, as pessoas que usam as drogas tornadas ilcitas passaram a ser vistas e faladas de uma forma delimitada pelos saberes mdicopsiquitricos e jurdico-polciais, como doentes ou criminosos. Operando sob o aval da pretensa neutralidade cientca, mas constitudo a partir dos mais variados interesses econmicos, morais, polticos e religiosos; a apropriao do campo de uso das drogas por estes sistemas restringiu as possibilidades de insero do tema em outros campos, e determinou a forma como o assunto deveria ser abordado. Assim, considerando a funo desempenhada pelos saberes mdicos-psiquitricos na constituio da gura do usurio de droga como doente que, historicamente, tem cabido s Polticas de Sade Mental brasileiras a proposio de prticas junto a essa populao. Para isso, atravs de seus operadores convocada a atuar no sentido de adequar as pessoas norma denida pelas regulamentaes do pas, atuando como parte fundamental de uma maquinaria onde o proibicionismo funciona como uma estratgia biopoltica3. (OLIVEIRA, 2009). Em relao s pessoas tomadas como objetos da Psiquiatria, dentre estas as pessoas que usam lcool e outras drogas, um novo paradigma foi proposto pelo Movimento da Psiquiatria Democrtica Italiana, o qual, dentre outras reformas ocor3 Utilizamos o conceito de biopoltica criado por Michel Foucault para apresentar suas problematizaes acerca de uma nova tecnologia de poder que se desenvolve a partir da segunda metade do sculo XVIII. Essa tecnologia tem como objeto no o corpo-indivduo, mas o corpo-populao, que passa a ser alvo de controles que so feitos a partir de mecanismos reguladores que se instauram e se mantm com a noo de norma instaurada com o desenvolvimento da Medicina. As regulamentaes proibicionistas tm a funo de assegurar a norma de uma sociedade sem o uso de drogas e aos prossionais de sade tem sido inerente uma atuao para ajustar os anormais, ou seja, fazer com que as pessoas no usem as drogas tornadas ilcitas.

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ridas no campo da Sade Mental em diferentes pases aps a 2 Guerra Mundial, cou conhecido como desinstitucionalizao. (AMARANTE, 1995). Tal Reforma evidenciou a necessidade de desconstruo das verdades legitimadas pelos saberes hegemnicos em relao ao tema, que passa pela problematizao dos diversos dispositivos existentes na sociedade, dentre eles os locais considerados para tratamento, que tem como nalidade curar, mas que sustentam relaes que reproduzem violncia, segregao e estigma ligado s populaes que atendem. nessa proposta que se baseia a Reforma Psiquitrica Brasileira, que teve incio como movimento social no nal da dcada de 70 e incio dos anos 80 e foi legitimada pelo texto legal no ano de 2001, atravs da Lei n 10216. No cuidado s pessoas que usam drogas, a desinstitucionalizao encontra nas prticas advindas da preveno ao vrus HIV, denominadas Reduo de Danos, um modelo de ateno embasado em uma forma de considerar o sujeito para alm dos problemas decorrentes do uso de drogas.
As experincias acumuladas pelas prticas de RD indicavam um mtodo de interveno que, alm de estar em consonncia com a diretriz da desinstitucionalizao, permitia uma nova concepo de cuidado em sade para usurio de drogas: um mtodo territorial, substitutivo ao manicmio e prpria lgica da abstinncia. (SOUZA, 2007, p. 53)

Assim, coerente com a proposta de Reforma em Sade Mental Brasileira, as contribuies advindas das prticas de Reduo de Danos foram incorporadas Poltica de Sade do pas, sendo um dos referenciais tericos polticos da Poltica do Ministrio da Sade para ateno as pessoas que usam lcool e outras drogas. (BRASIL, 2003). A grande contribuio da RD apontada por Conte (2004) seria justamente o questionamento de consensos preestabelecidos em relao droga e ao usurio, reconhecendo diferentes relaes de uso.
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Quanto reduo de danos entre prossionais de sade, tenta marcar uma diferena com a posio mdica, acompanhando os toxicmanos, menos pelo ideal de sade e mais por aquilo que vivel para o paciente. Propem-se esquemas de proteo, sem necessariamente exigir abstinncia, a no ser que o uso intenso apresente situaes de risco de vida. (p. 30).

Assumir a Reduo de Danos como marco terico da Poltica de Sade Mental, articulado com outras duas noes deste campo, a clnica ampliada4 e a produo de redes5 (BRASIL, 2003) tem implicaes diretas nos servios de sade j que prope uma lgica de cuidado distinta do discurso mdico-psiquitrico hegemnico que coloca a abstinncia das drogas como finalidade do tratamento. Objetivos que entram em contradio com a legislao brasileira sobre drogas, lei 11343/06, que mantm e intensifica o processo a construo de estigmas e da violao dos direitos humanos em relao aos envolvidos na produo, comrcio e consumo das drogas tornadas ilcitas (KARAM, 2009), e que desconsidera o uso de drogas como inerente cultura e ao carter iatrognico da guerra s drogas. A partir da lei 10216/01 e com a posterior publicao da portaria GM 336/02, cou estabelecido que os Centros de Ateno Psicossocial seriam os servios estratgicos para a organizao da rede de cuidados s pessoas com sofrimento mental grave e problemas decorrentes do uso de lcool e de outras

4 Noo de clnica que resgata o conceito em seus dois sentidos: no sentido de inclinarse (kliniks), acolhendo o paciente e sua histria, e o de produzir um desvio (clinamem) para produzir outra histria, outra possibilidade de existncia. (BENEVIDES, 2001 apud, BRASIL, 2003, p.10). 5 a rede de prossionais, de familiares, de organizaes governamentais e no-governamentais em interao constante, cada um com seu ncleo especco de ao, mas apoiandose mutuamente, alimentando-se enquanto rede que cria acessos variados, acolhe, encaminha, previne, trata, reconstri existncias, cria efetivas alternativas de combate ao que, no uso das drogas, destri a vida. (BRASIL, 2003, p. 12).

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drogas. Em relao s ltimas, quando existentes no municpio, cabe aos CAPS ad II e CAPS i viabilizar a organizao da rede a essa populao, inclusive no campo da infncia, conforme foi reforado na VIII Reunio Ordinria do Frum de Sade Mental Infanto-Juvenil. (BRASIL, 2009). Sendo assim, aos CAPS cabe o desao de inveno de prticas cujos objetivos no se reduzam a buscar um ideal em que haveria uma suposta cura/reabilitao representada pela abstinncia s drogas.

2 - O jovem usurio de crack


A disseminao do uso de crack entre a populao jovem surge de um desequilbrio no diagrama de foras proibicionistas, efeito da poltica sobre drogas em relao cocana que ocasionou a criao do crack como seu derivado com maior potencial de comercializao entre as pessoas que anteriormente no tinham acesso cocana. (DOMANICO, 2006; ESCOHOTADO, 1997). Se, at ento, os usurios de drogas pouco demandavam dos servios de sade, com o crack, o Estado, em seu brao teraputico, passa a ser acionado com intensidade por dois motivos: pelo fato de os usurios da droga procurar, espontaneamente, os servios de sade pelas consequncias do uso; e pelo fato de suas famlias tambm buscarem atendimento devido s situaes incmodas ocasionadas pelos usurios. (OLIVEIRA, 2009). A construo de uma forma especca de ver e falar acerca desses jovens, denominada jovem usurio de crack, se d a partir das prticas de diferentes prossionais, da justia, da educao e da sade, quando agem tomando o crack como mal em si, considerando o jovem como delinquente-doente e colocando como tratamento ideal a internao-isolamento, entendida como internao fechada, desconsiderando todos os aspectos extrafarmacolgicos envolvidos no uso, que inclui questes socioculturais, polticas e econmicas. Essa noo
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atua como forma de mobilizar o Estado a intensicar a guerra s drogas, contra a venda do crack, mas, principalmente, com a misso de livrar as pessoas que as usam, suas famlias e a populao em geral de seus efeitos nocivos. Para isso, sua emergncia aciona prioritariamente os saberes mdico-psiquitricos, cujas instituies que os pem em prtica mostram fragilidades frente aos efeitos da droga e sua rpida disseminao entre os jovens do municpio. (OLIVEIRA, 2009, p. 141).

Atualmente, evidente que h um aumento nos problemas de sade de uma determinada parcela da populao jovem decorrente do uso de crack, e que h uma noo constituda acerca desses jovens que produz e refora determinadas verdades sobre eles em detrimentos de outras. Partimos das situaes vivenciadas no CAPS i a partir de 2008, num momento em que buscava se reorganizar para atender essa demanda, para problematizaremos a noo de jovem usurio de crack, especificamente no que se refere ao cuidado a ser oferecido pelo Servio.

3 Um CAPS i em movimento
At o meio de 2008, o CAPS i de Santa Maria, assim como muitos outros no pas, mantinha o posicionamento de no atender casos de crianas e adolescentes usurios de drogas. Os pouqussimos casos que chegavam at o servio eram encaminhados para o CAPS ad, que acolhia jovens acima de 16 anos. Acontece que comeou a surgir demanda de tratamento devido ao uso de drogas, em especial crack, para adolescentes abaixo dessa idade e tambm para crianas, o que desestabilizou toda a rede de ateno. Uma questo inicial que se produziu foi: quem responsvel pelo atendimento desses casos? No CAPS i, tudo parecia sob controle enquanto chegava um caso com essa
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problemtica a cada duas semanas. Contudo, no momento em que a demanda comeou a aumentar vertiginosamente, a equipe precisou rever sua posio. Na equipe, preponderava um grande receio em atender as crianas e os adolescentes com essa nova demanda de cuidado. Havia a ideia da necessidade de uma hiper especializao no assunto uso de drogas , ou no daramos conta de conduzir esses tratamentos. Pairava um receio quanto a atender em um mesmo espao crianas e adolescentes com transtornos graves do desenvolvimento junto a crianas e adolescentes usurios de drogas. Aps algumas discusses, apenas um tero dos trabalhadores assumiu essa demanda como genuna do servio. Diante dessa situao, emerge uma segunda questo que tem implicao direta no cuidado oferecido: que tratamento possvel em um servio cuja maioria da equipe apresenta resistncia em atuar em seu cuidado?

4 O que dizem os jovens?


De l para, c fomos experimentando e inventando diferentes prticas para compor o plano teraputico institucional dos jovens usurios de drogas: atendimentos individuais, grupo teraputico e grupo de arteterapia especco para usurios de drogas, grupos e ocinas com os demais pacientes do CAPS i, grupo de familiares e reunies intersetoriais. A seguir, apresentaremos algumas situaes ocorridas especicamente no grupo teraputico, que indicam problematizaes trazidas pelos prprios jovens acerca dos diferentes atravessamentos existentes em sua relao com a droga. O grupo tem como objetivo ser um espao de escuta para adolescentes entre 13 e 18 anos que esto ou estiveram numa relao de dependncia com as drogas. A grande maioria dos participantes j fez uso de crack e muitos chegam ao tratamento por via judicial em funo de um histrico de infraes lei. um lugar para produo de novos sentidos, de circulao de ideias e de reexo acerca de suas vidas.
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A escuta oferecida e a escuta esperada


Contando sobre os desejos que tem na vida, A6 diz que gostaria de ter uma moto. B diz que moto para morrer, ento conta sobre seu irmo que se coloca em situaes de risco com sua moto. Comea uma discusso entre os participantes: a servio de que est a moto? A interveno de outro participante do grupo, faz B lembrar de um outro irmo, a quem muito admira, e que usa o veculo de forma consciente. Apesar dos jovens estarem falando de um assunto referente s suas vidas, sobre as relaes possveis com um objeto, que tanto podem ser produtivas quanto nocivas, dependendo da forma de uso, T estranha a maneira como o grupo conduzido, fazendo a seguinte questo: por que os escutamos e fazemos perguntas a respeito do que contam e no dizemos logo que drogas fazem mal e que deveriam parar de usar? Sua ideia de tratamento est ligada a uma postura repressiva em que nossa funo seria de ensin-los sobre os malef cios das drogas e como no us-las. Conte (2004) aponta que essa postura esperada por T comum na forma de abordagem dos prossionais em relao aos usurios de drogas.
Do sujeito toxicmano muito se fala, mas pouco se escuta. (...) No h muita disponibilidade para ouvir sobre suas histrias, pois os toxicmanos esto investidos de um imaginrio que remete suas prticas ao gozo, irresponsabilidade, delinqncia e afronta aos hbitos e costumes. O sofrimento e o mal-estar que vivem, muitas vezes, cam invisveis. (p.24).

Na abordagem esperada pelo jovem e realizada por muitos prossionais, a droga colocada no lugar de culpada e torna6 Identicaremos os participantes do grupo por letras maisculas.

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se o centro do tratamento, cando o sujeito como mero coadjuvante da relao estabelecida com ela. Esse no seria o caminho tomado por este grupo no CAPS i. Nele, buscvamos escutar o sujeito que sofre e que se subjetiva atravessado pelos valores da sociedade na qual est inserido Receita para qu? Ao longo do tempo, o grupo foi criando como que uma receita a ser dada queles que estavam saindo da internao hospitalar para desintoxicao e comeando a frequentar o CAPS i: tomar a medicao, vir ao servio, no manter os mesmos vnculos de amizade e no ter dinheiro na mo. Apesar de construrem um ideal de como deveriam seguir o tratamento aps a internao, traziam tambm um saber sobre os limites de qualquer receita pronta acerca de como lidar com os problemas em relao ao uso de crack. Em um dos encontros, nalizam o conselho com a seguinte colocao: se conselho fosse bom.... A situao trazida pelos jovens aponta para a necessidade de que seu acompanhamento no tenha como foco a abstinncia ao crack. Segundo eles mesmos, no h uma receita para isso e o deixar de usar ou no a droga depender de aspectos singulares da vida de cada um. Mas se o grupo no exige a abstinncia para que continuem em tratamento, o que cabe, ento, ao prossional enquanto objetivo de trabalho? Rompendo com a lgica delegada aos prossionais de sade, de adequar pessoa a norma, quando a noo de clnica resgatada na PMSAD considerada, percebemos que h um objetivo bem claro l explicitado: acolher a histria do individuo e produzir desvios nessa histria. (BRASIL, 2003). Segundo Lancetti (2007), a lgica da Reduo de Danos potencializa essa produo de desvio e produz uma ampliao da vida, sem condicionar isso abstinncia das drogas, que poder ocorrer ou no a critrio do desejo de cada um.

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Uso de drogas e ato infracional


Muitas vezes, a Casa de Sade7 e o Case8 esto no mesmo patamar no discurso desses jovens. Mas se para se prender9 que seja na Casa de Sade, pois de l o cara sai mais gordo. H muitas ordens judiciais para tratamento chegando diariamente ao CAPS i, como uma das medidas protetivas preconizadas pela ECA, o tratamento compulsrio. Em geral, necessrio que o jovem infrinja a lei para, ento, ter direito a esse tipo de tratamento. Assim, perguntamo-nos: todos os adolescentes que cometeram algum ato infracional o zeram em funo do uso de drogas? Se este for o caso, para todos indispensvel o tratamento fechado? Qual o alcance possvel de um tratamento compulsrio quando se vai ao CAPS i para a juza aliviar a pena, como comum ouvirmos dos jovens? Ribeiro (2004) atenta a recorrncia da associao direta entre crime e drogas no imaginrio das instituies que atendem adolescentes.
Bem, que um adolescente tenha cometido um crime e depois saibamos que ele fez ou faz uso de drogas no seria o problema, se a droga no fosse tomada como causa unvoca e inequvoca da transgresso. Mas o raciocnio avana: se o adolescente que cometeu crime estava sob efeito de droga, logo, todo adolescente envolvido com droga corre o risco de cometer crime. Ento, resultado da equao: a droga a culpada, quando no a autora. (p. 133).

O lugar marginal que ocupam na sociedade bem como sua relao com as instncias de justia ocupam boa parte das
7 Hospital Geral do Municpio. nico lugar em nossa cidade que dispe de leitos para desintoxicao de adolescentes usurios de drogas, mas somente por via judicial. A maioria dos adolescentes ao chegarem ao CAPS i j passou por l. 8 Centro de Atendimento Scio-Educativo. 9 Na gria usada, soa intrigante o lugar ativo do sujeito, ele que se prende. Ser por que faz para ser pego?

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falas. Quando perguntados sobre por que necessrio termos o documento de identidade respondem: Para mostrar para os porco quando do um atraque!10. T traz a sua noo de justia: se no punem a polcia por ter batido nele ou por ser corrupta, por que puniriam a sua me por no participar do tratamento? A despeito das crticas, muitas falam do desejo de, no futuro, serem militares ou policiais. Quanto aos atos de violncia, algumas vezes, dizem que no somos capazes de entender o que a lei da rua: a vida no vale nada, morreu, morreu.

A famlia e seus paradoxos


O tempo longe de casa, durante a internao, paradoxalmente, aproxima-os dos familiares. No quererem mais fazer a famlia sofrer. Reclamam de que dif cil reconquistar a conana deles que cam sempre no p. Por outro lado, falam do quanto no esto preparados para sarem sozinhos e que se a me no deixasse sair, fumaria menos. A fala bastante da me tanto no sentido de que a magoa como no sentido de que ela faz tudo por ele, nunca o deixando agir por si mesmo. L relata o quanto a me no espera nada de bom dele e coloca o amor no correspondido por parte dos pais como um dos motivos que o levaram s drogas. T fala que faltou lao na sua educao. a primeira tunda que levei foi do BOE. Uma constante: pai usurio de droga, pai alcoolista, pai preso ou, de alguma forma, em conito com a lei, pai que abondonou, pai que bateu, pai que convidou a usar a droga, pai desconhecido.

O crack o mal?
O uso de determinada droga, seja antes de precisarem de ajuda ou durante o tratamento, muito seguidamente est relacionada a uma situao de frustrao, por mnima que seja. Cer6 Identicaremos os participantes do grupo por letras maisculas.

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to dia, J disse que andou fazendo besteira. Contou que usou somente maconha e diz ter feito por ter cado brabo com seu pai por estar sempre no seu p, desconado de que usou. B diz que tem vontade de usar quando se sente ansioso e brabo. Ento, a questo colocada ao grupo foi: Como lidar com as adversidades? Que outras alternativas h alm da droga? Silncio. No tem outra maneira, concluem. Em um outro momento, T diz que experimentou maconha depois de uma briga com a me. Perguntamos o que mais poderia ter feito aps tal briga. P sugeriu que brigasse na rua para se aliviar. T falou que teria sido melhor beber. Apontamos para a semelhana entre fumar, beber ou brigar: no se pensa sobre, age-se. H sugere, ento, uma sada pela palavra: poderia ter conversado com um parente. Concluram que pensar mais dif cil. Alis, seguidamente em relao ao uso referem que, na hora, o cara no pensa duas vezes, e depois se arrepende. O fato de ser dif cil se manter afastado das drogas quando se tem dinheiro na mo outra questo sempre presente. difcil pensar em outros prazeres. B chega um dia muito feliz contando que com os cinco pila que tinha no dia anterior, ao invs de comprar uma pedra, fez negrinho . Para T essa no assim uma questo to dif cil: por que vocs no gastam o dinheiro na zona? Se o lugar de doente-criminoso frequente em suas falas, construes de outras formas de ser visto e falado tambm podem emergir no grupo. Falam muito da imagem que passam citam adjetivos como marginal, drogado, maconheiro e do que gostariam de passar estudante, humilde, trabalhador. Tambm sobre essa forma de ver o preconceito ligado a suas condies sociais, diz L porque moram em vila, j acham que o cara e marginal, e o cara acaba virando . P faz questo de dizer: l no meu trabalho novo, as pessoas no me conheciam antes referindo-se ao tempo em que usava drogas e me acham um cara bem legal. B diz ter retomado a amizade com uma turma que no usa droga e tem muito medo de perder a conana deles caso saibam de sua situao.
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O grupo como territrio


O grupo se agita e se desorganiza quando algum est numa posio mais fragilizada, principalmente se quando este algum exercer um papel de liderana. Todos falam ao mesmo tempo, difcil escutar a dor do outro. Em alguns momentos, o grupo ajuda a colocar para cima, diz que tem sada, se solidariza. A chega muito mal, h quatro dias na rua fumando crack direto, vai ao CAPS i pedir ajuda. Ao mesmo tempo em que se identicam, pois alguma vez j tinham se sentido assim, assustam-se e falam da ssura que ainda sentem. Em alguns momentos, o grupo assume perante seus membros uma postura rgida. Criticam A severamente por estar usando pitico11 e achar que isso reduzir os danos. Sugerem que ele venha mais vezes ao CAPS i e pressionam-no para fazer carteira de identidade para poder pegar o seu remdio. B fala em trazer um amigo que no est conseguindo sair dessa sozinho para o tratamento. T nos conta que pediu para a juza encaminhar um colega seu para o CAPS i. H trouxe o amigo que nunca usou drogas que para ele ver que parada essa e nunca entrar. Diz que ele no entrou nessa de droga porque j tinha cabea feita, a me dele t sempre em cima. Chegam ao CAPS i muito antes do horrio. Vem ao CAPS i em momentos dif ceis. A pede ajuda: Como vou voltar para casa sem o dinheiro do tracante? Empenhei a bike do amigo Muitas vezes, o foco das conversas somente a experincia com a droga. Em outros, possvel trocar uma ideia sobre as minas, sobre os panos e os pisantes12, falar com nostalgia da infncia e das diculdades da adolescncia. Certa vez, apontamos para o grupo que podiam falar de outras coisas alm da droga, ento, alguns sugeriram que nunca mais falssemos sobre ela. Depois de discutir sobre o assunto, chegaram concluso de que faz parte falar em algum momento. W fala
11 Mistura de maconha com crack. 12 Na gria, roupas e tnis

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da importncia de poder ter desabafado sobre a ratiada referindo-se recada naquele dia. A maioria dos adolescentes que chega para tratamento j fazia uso abusivo de drogas h mais tempo, quase todos j estavam fora da escola, em conito com a lei e tinham uma histria de pobres vnculos afetivos, para quase todos, a despeito da singularidade das experincias, o lugar social era o da excluso. E, com tudo isso, espantosamente, o crack, como a ponta do iceberg, tem sido apontado socialmente como a causa de todos esses males.

5 Consideraes Finais
Uma das recomendaes advindas da ltima reunio ordinria do Frum Nacional de Sade Mental Infanto-Juvenil vai ao encontro do que trazemos para discusso aqui: ...cautela quanto ao sentimento de pnico relacionado ao consumo de drogas.... (BRASIL, 2009, p. 3). Nesse sentido, apostamos na potncia das intervenes que, ao mesmo tempo, produzam cuidados e tragam visibilidade para outras demandas dessa populao em relao sociedade. Hoje entendo que, como coordenador da rede de sade mental infanto-juvenil, todo o problema de sofrimento psquico grave nessa populao do territrio diz respeito ao CAPS i. No entanto, as intervenes precisam ser pensadas intersetorialmente, tomando a questo como uma demanda de cuidado ampliado que seja coerente com os direcionamentos da Reforma Psiquitrica Brasileira, ou no avanaremos. A Poltica de Sade Mental do SUS aponta justamente para a importncia da construo de redes e de aes territoriais visando extino de prticas tradicionais e excludentes que se pautam basicamente pela represso e pela internao fechada como nica via possvel de tratamento, com todas as consequncias nefastas ao sujeito advindas da.

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Abrindo as cortinas em busca de outras palavras: drogas e arte em cena


Carolina Santos da Silva1 Leda Rbia Corbulim Maurina2
Teatro Mgico. Entrada s para os raros... s para os loucos (Hermann Hesse, escritor alemo)

Narrador: As dramaturgas ou autoras deste texto so personagens do teatro da vida, so amigas que se conheceram durante a especializao em Intervenes Psicossociais, Carolina Santos da Silva, Terapeuta Ocupacional, especialista em Intervenes Psicossociais/UPF, especialista em Humanizao da Ateno e Gesto do SUS/UFRGS, e mestranda do programa de ps-graduao em Epidemiologia: Gesto de Tecnologias na linha de pesquisa Ateno Primria Sade / UFRGS, funcionria pblica municipal de Passo Fundo, lotada na Secretaria Municipal de Sade; e Leda Rbia Corbulim Maurina, Psicloga clnica, professora da Escola de Psicologia da IMED-Passo Fundo nas disciplinas de Psicologia Social Comunitria, Psicodrama e Uso Abusivo de Substncias e coordenadora de um grupo de
1 e-mail: [email protected] 2 e-mail: [email protected] , blog: http://psiledarubia.blogspot.com

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Extenso chamado Cenrios da sade mental: drogas e arte sob novos olhares; Mestre em Educao/UPF e tambm especialista em Intervenes Psicossociais/UPF. Pensaram em estruturar o presente artigo de forma que ele fosse um convite a imaginao do leitor, como se este estivesse assistindo a uma pea de teatro sobre a temtica e por isso o texto est dividido em sete cenas: na cena 1, so apresentados os sujeitos e mtodos, nas cenas 2 a 6, a anlise e discusso das informaes e, na cena 7, as consideraes nais.

CENA 1 - A proposta
Loiva: Iremos produzir um livro a partir dos encontros Outras Palavras Diferentes Olhares no Cuidado de Pessoas que Usam Drogas, pensei que vocs poderiam escrever sobre drogas e arte. Carol: timo! Arte um tema amplo, mas pode ser um potente instrumento teraputico no cuidado de pessoas que fazem uso abusivo de drogas. Leda, como podemos delimitar nosso foco para escrita? Leda: Penso que poderamos trabalhar s com teatro e utilizarmos a produo dos acadmicos apresentada no encontro estadual Outras Palavras..., no qual eles adaptaram a obra O Pequeno Prncipe, apresentando cada planeta como uma droga diferente. Podemos entrevist-los questionando como eles percebem que a arte, em especial o teatro, pode contribuir em intervenes de preveno e tratamento drogadio, que acha? Carol: Em quantos eles so? Poderamos entrevistar usurios dos servios do CAPSad tambm... Se bem que se considerarmos que todos ns somos usurios de drogas, mesmo que alguns s de lcitas, tanto os alunos que responderem quanto ns como autoras, tambm temos essa experincia para contribuir na discusso. Nossa! Como incomum nos colocarmos como
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usurios de drogas, nos deixarmos ser afetados e nos permitirmos abrir as portas da nossa percepo, como diz Huxley3. Leda: So trinta estudantes do stimo semestre da Psicologia, eles zeram a disciplina Uso Abusivo de Substncias semestre passado e esto fazendo Psicodrama agora. Todos j utilizaram teatro para representar diversas temticas relacionadas ao uso de drogas e praticamente metade deles esteve envolvida com a apresentao no Outras Palavras. Carol: Combinado! A partir destas entrevistas semiestruturadas4, poderemos trabalhar com anlise de contedo5 e est pronto o espetculo do nosso artigo sobre teatro.

CENA 2 - Anando o Compasso


Leda: Aqui esto as respostas e alguns materiais que pesquisei. Carol: Eu levantei vrios materiais tambm. Vamos logo apreciar as respostas, estou curiosa. Leda: Ficaram interessantes, at z um acordo com eles e adaptei o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que iria manter a identidade destes psiclogos em formao, anal, eles tambm so protagonistas neste artigo e espero que, futuramen3 HUXLEY, A As Portas da Percepo. Rio de Janeiro, Globo, 1984. 4 Segundo Boni e Quaresma (2005) para realizao das entrevistas, o pesquisador deve seguir um conjunto de questes denidas previamente, fazendo o contexto se assemelhar ao de uma conversa informal. Essas questes combinam perguntas fechadas e abertas, em que os sujeitos podem discorrer espontaneamente sobre o tema proposto. As entrevistas semiestruturadas so muito utilizadas quando se pretende delimitar o volume das informaes, pois permitem um maior direcionamento temtica a m de que os objetivos da pesquisa sejam alcanados (BONI, QUARESMA, 2005). 5 Para a realizao do trabalho de anlise e interpretao, utilizaram-se os passos que Bardin (1977) usa no trabalho de anlise de contedo. Visando a tornar o material coletado inteligvel, as falas emergentes das entrevistas foram agrupadas em categorias (MOROZ, 2002; DESLANDES, 1994). Franco (2005) indica dois caminhos para a elaborao das categorias: 1) categorias criadas a priori, preordenadas em funo da busca de respostas especcas do investigador, e 2) categorias no denidas a priori, as quais emergem do discurso dos sujeitos aps vrias leituras do material de anlise e da teoria. A partir de todo esse processo, a anlise de contedo das informaes obtidas na presente pesquisa deu-se a partir quatro categorias construdas a posteriori, a partir do agrupamento das questes feitas aos sujeitos.

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te, na construo de intervenes que possam utilizar a arte e o teatro na preveno e tratamento ao uso abusivo de drogas. Carol: Ao ampliar o leque de recursos teraputicos, necessrio discutir, durante a formao, este elo entre a Terapia Ocupacional e a Psicologia, pois tem estreita importncia na formao dos prossionais. Liberman, em seu livro escrito em 2002, traz a experincia das disciplinas vivenciais, no s os estgios prticos, mas as experimentaes entre os pares durante a graduao prorporciona uma capacidade reexiva que fortalece a praxis e quem ganha o nosso cliente/paciente. Tenho vrios materiais sobre ocinas teraputicas e, agora, podemos organizar conforme as situaes citadas pelos alunos forem tomando corpo na nossa obra. Leda: Material especco sobre teatro e drogas tenho dois excelentes textos de um colega de ABRAPSO6, Alusio Ferreira de Lima fez a dissertao de mestrado dele sobre isso e publicou um artigo tambm. Carol: Fechado! Temos muito trabalho, vamos fazer a leitura das entrevistas? E anar este compasso!

CENA 3 - Convite a Viagem


Llian: Atravs do teatro possvel expressar sentimentos e emoes profundas e ainda assim preservar o indivduo, pois ele no se sente to exposto. S a arte torna possvel o mundo da imaginao e dos nossos pensamentos mais loucos (...) pode tornar o impossvel possvel e o improvvel provvel, porque, atravs dela, podemos descrever o mundo da maneira que imaginamos ou queremos. Carol: Ficou bem abrangente essa resposta, podemos usla como uma epgrafe? As demais categorizamos, ok? Leda: Sim. Fiquei imaginando como batizaramos nossas categorias e pensei que se nossos protagonistas nos convi6 Associao Brasileira de Psicologia Social. 46

daram a viajar com o Pequeno Prncipe, conhecendo cada planeta/droga, por que no viajarmos em planetas/categorias? Temos trs planetas/categorias a visitar: Planeta teraputica, Planeta ExpressiVIDAde e Planeta Possibilidades. Em cada planeta/categoria, ouviremos alguns cicerones falando sobre o uso do teatro na preveno e tratamento da drogadio. Prontos para partir? Vamos l!

CENA 4 - Planeta Teraputica


Leda: O primeiro planeta a ser desbravado o Planeta Teraputica, nele, encontram-se informaes referentes a questes prossionais, aderncia ao tratamento, e complexidade do fenmeno drogas. Cntia: A arte, o teatro, seria um diferencial de trabalho que atrairia mais (...) menores danos por ser mais dinmico. Carline: Penso que o teatro auxiliaria no comprometimento dos usurios numa prtica que permite expor suas angstias e/ou extravas-las. Priscila: O teatro, a arte, explora uma forma de expresso diferenciada da psique, saindo dos padres convencionais da Psicologia que tradicionalmente utilizam a linguagem verbal. Schaiane: O teatro auxilia na formao de prossionais que sero exveis, perseverantes e, acima de tudo criativos, (...) possibilita que possam pisar em campos diferentes de formas diferentes. Carol: Essas falas me remetem a pensar o quanto, no campo da sade, encontramos vrias peculiaridades e recursos na ateno e no cuidado de pessoas e importante destacar a constante presso ao no poder errar por estar lidando com o ser humano, em que ns, prossionais da sade, acabamos sendo cuidadores sob constante tenso, e o nosso objeto de trabalho so as pessoas, muitas vezes, atingidas na sua integridade f sica, psquica e social. E a arte como recurso teraputico surge para dar vaso ao que no dito, ao no dito. No caso de pessoas que
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usam drogas, os recursos da arte como expresso podem facilitar nossa interlocuo e possibilitar o extravasamento de um processo teraputico, que, por vezes, torna-se a nica forma de acender a comunicao, como nos trazem os autores do artigo A atividade artstica como recurso teraputico em sade mental, Bezerra e Oliveira (2002). Leda: E, falando em comunicao, o Planeta ExpressiVIDAde o prximo que visitaremos, nele, encontraremos as temticas: identidade, autoestima e, claro, comunicao.

CENA 5 - Planeta ExpressiVIDAde


Lilian: Atravs do teatro e da msica, com suas letras que so explcitas ou metaforicamente revelam a realidade omissa, (...) outros recursos como pintura tambm. Gabriele: O teatro uma excelente forma de interveno por mobilizar o ser humano em diversos sentidos, permitindo se expressar de maneira livre e criativa. Alm de ser um meio de expresso, ele tambm permite ao sujeito conhecer mais sobre seu prprio eu e reetir sobre suas problemticas e seu contexto no mundo. Cristofer: A arte um canal facilitador para se acessar as emoes humanas, (...) a expresso artstica nas suas mais variadas conguraes possibilitar ao sujeito canalizar suas energias, antes voltadas ao uso de drogas, para outros ns. Rafaela C.: A arte poderia ser usada em sua totalidade como forma de catarse, pois uma forma de expressar emoes usando como artif cios a fala, a empatia com as personagens interpretadas, uma forma de avaliao diferente das situaes. Desir: Fazendo com que o foco do problema seja direcionado para algo que trabalhe a expresso e melhore estado de humor e a autoestima do paciente. Schaiane: O teatro, ao estimular a interpretao de vrios papis, pode permitir ao adolescente experimentar-se com vrias identidades e reetir sobre elas, o que acrescentaria muito
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na constituio da identidade do adolescente (...) proporciona que o sujeito usurio possa se ver e ver a realidade de formas diferentes e, assim, com tanta criatividade e espontaneidade, estimular e vivenciar uma sensibilidade. Carol: Fiquei pensando nessas respostas e relacionei com o texto do Alusio quando alerta para o reconhecimento ou reduo dos indivduos que utilizam substncias psicoativas a uma nica personagem: o dependente de drogas. O autor refora a possibilidade de ressignicar, atravs dos demais papis deste indivduo, que pai/lho/trabalhador. Leda: Ressignicar, buscar explorar outros papis, como j dizia Moreno7, pai do Psicodrama, na proposta das Teorias da Ao e dos Papis, que embasam as tcnicas psicodramticas. Vislumbrar a possibilidade de outros tipos de relao, de consumo, aliviar as tenses e o protagonismo dos sujeitos a partir do exerccio de diferentes papis so alguns elementos que encontraremos no ltimo planeta a ser visitado. Vem a o Planeta Possibilidades.

CENA 6 - Planeta Possibilidades


Cntia: Programas elaborados pelos prprios sujeitos em suas comunidades e que os trazem para trabalhar juntos um novo pensamento preventivo/redutor de danos. Rafaela Lago: Faz com que paciente que ocupado e encontre na arte uma nova maneira de viver e sua insero na sociedade ser mais fcil. Juliana: Mostra alternativas que podem solucionar os problemas a m de que a pessoa no use a droga como vlvula de escape. Marines: Acredito que todas as formas artsticas so meios de potencializar os indivduos. Alm disso, o indivduo
7 Citado por Fonseca (1980) e Gonalves (1988). 49

poderia transferir seus sentimentos para as artes ao invs de direcion-los para as drogas. Gilvania: A arte uma fonte de elementos que contribuem no local onde ela se instala. Atravs dela, o indivduo pode se tornar mais conhecedor de si mesmo. Ela gera espontaneidade, criatividade e sentimentos que geram novas situaes na vida dos indivduos. Carol: Ao ouvir as fala dos alunos, convoco-me a pensar na ao teraputica da arte! Esta ao teraputica da arte pode imprimir, na sade do sujeito, os aspectos prticos, concretos, simblicos, relacionais e materiais, de forma a produzir movimentos capazes de oferecer suporte, proteo e resoluo de problemas, buscando xito na qualidade de vida, bem como maior grau de autonomia e sua participao social. Trazem-nos esta capacidade alicerada pela experincia vivenciada por eles seja na pea teatral do Pequeno Principe seja na obra de nossas vidas8.

CENA 7 - ltimo Ato


Carol: Pensando nessa nossa viagem aos planetas Teraputica, ExpressiVIDAde e Possibilidades, retomo a citao inicial do Hesse Teatro Mgico. Entrada s para os raros...s para os loucos que pode nos lembrar o quo incomum ainda pensar o teatro como ao teraputica e a necessidade de metamorfose nos cursos de formao e nos servios para disponibilizar e popularizar essa proposta convocando o protagonismo de outros atores da vida cotidiana. Leda: Sim, inicialmente, os prossionais precisam se permitir assumir outros papis, e, por isso, no poderia deixar de citar nossos protagonistas/cicerones: Adriana Santana, Andrielle Bittencourt, ngela de Souza, Brbara de Oliveira, Carline Bueno, Chaiane Simor, Cintia Quisini, Cludia Pires, Cristofer
8 (BEZERRA e OLIVEIRA 2002). 50

da Costa, Desire Pedroso, lvis Mognon, Fernanda Ghedini, Fernanda Teixeira, Gabriele Silva, Gilvana Cassassolo, Glen da Silva, Isis Pottker, Josiane Razera, Juliana Cnsul, Leila Borsatto, Llian henkes, Lisiane Borges, Manuela Haas, Mariana Machado, Marines Bicca, Natalia Zancan, Pmela Coser, Paulo Cesar Braga, Priscila Corazza, Rafaela Cecconelo, Rafaela Lago, Roberta Rosa, Rodrigo Simes, Schaiane Ribeiro9, Thalita Molardi, Vanessa Vieira, Vernica Grolli e Vivian Bageston. Estes foram os raros, como nos diz Hesse, participantes dessa viagem que, a partir do teatro, buscam diferentes formas de entendimento, preveno e tratamento do uso abusivo de drogas. Narrador: As cortinas se fecham por hoje, enquanto as autoras/dramaturgas voltam ao teatro da vida pensando em suas intervenes para que essas possam auxiliar na produo de outras palavras... diferentes olhares no cuidado com pessoas que usam drogas.

Referncias Bibliogrcas
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9 Alm de acadmica da Escola de Psicologia, como os demais protagonistas/cicerones, atriz e diretora da pea apresentada no Seminrio Estadual Outras Palavras j citado anteriormente. 51

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Pra no dizer que no falei de drogas


O cuidado de pessoas que usam drogas e a luta antimanicomial
Dnis Roberto da Silva Petuco1 Em 1990, Austragsilo Carrano lanava Canto dos malditos , depoimento sobre os horrores do cotidiano manicomial, com a potncia caracterstica dos textos escritos na primeira pessoa. J ali, a lembrana de que no foram apenas os loucos a sofrerem morticaes por detrs dos muros dos hospcios; nas casas verdes (pblicas ou privadas) espalhadas pelo Brasil afora, sempre houve (houve?) lugar garantido para as pessoas que usam lcool e outras drogas. Mas no do livro de Carrano que eu gostaria de falar, e sim de outro lanado em 1993. Em Ala fechada , Caho Lopes descreve sua passagem por uma clnica especializada no tratamento de pessoas que usam drogas, em Porto Alegre. A histria, ocorrida em 1992, quando o autor tinha 28 anos, rendeu no apenas o livro, mas uma srie de reportagens para a televiso, algumas das quais podem ser encontradas ainda hoje no YouTube (basta que se escreva o nome do autor). Mas no chegou a virar lme como

1 Mestrando do PPG em Educao da UFPB; graduado em Cincias Sociais pela UFRGS; redutor de danos no CAPSad Primavera (Cabedelo, PB) e CAPSad Jovem Cidado (Joo Pessoa, PB); consultor sobre Reduo de Danos para a Secretaria de Sade do Governo do Estado de Pernambuco.

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o livro de Carrano, cuja verso cinematogrca foi idealizada por Ktia Lund, com o nome de Bixo de Sete Cabeas . Em Ala fechada , o pesadelo manicomial descrito a partir das especicidades das pessoas que usam drogas. Maus tratos, tortura, crcere privado, uso indiscriminado de frmacos. Qualquer tipo de questionamento com respeito ao modelo de recuperao era identicado como sintoma , como manipulao . Remdios eram utilizados como forma de castigo, e no como parte um processo teraputico. Do lado de fora, os familiares eram induzidos a pensar que estavam fazendo o melhor pelo seu lho. Logo nas primeiras pginas, vemos o dono da clnica explicar ao pai de Klaus (personagem de Caho), que o tratamento dura, em mdia, dois anos, sem visitas. *** Em 1989, eu passei por este mesmo lugar batizado no livro com o nome de Jirinovski , ainda que no relato de Caho ele no se situe no mesmo endereo do lugar em que fui internado; que, pouco tempo depois de eu ter passado por l (trs anos antes da passagem de Caho), ocorreu um motim que resultou na interdio do prdio. No livro, a Jirinovski ca em um bairro chamado Campo Novo , numa chcara localizada em mdia uns trinta e cinco minutos de Petrpolis (LOPES, 1997, p. 31); j eu, quei em uma casa situada num bairro prximo ao Centro de Porto Alegre, a no mais de 15 minutos de Petrpolis, se muito2. No livro de Caho, o referido motim emerge em meio s reminiscncias matutinas do personagem que encarna o dono da clnica. Lembra do dia em que recebeu um telefonema de um dos seguranas informando que os internos tinham sequestrado uma estagiria e mantinham-se isolados no andar de cima. Ao chegar, o Dr. Edgar3 percebe que os rebeldes entraram em contato com a imprensa. De uma das janelas do prdio, voltada para a calada, em frente s cmaras de
2 Caho opta por no revelar o nome ou quaisquer outras informaes que possam contribuir para a identicao de internos ou mesmo dos responsveis pela clnica. Ciente dos problemas vividos por Carrano, que foi processado pelos proprietrios dos estabelecimentos pelos quais passou, eu opto por manter o mesmo silncio. 3 Personagem do dono da clnica no livro de Caho Lopes.

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televiso, um interno chamado Afonso mantm um caco de vidro encostado no pescoo da estagiria. O que segue, o livro descreve assim:
Afonso denunciou, perante toda a mdia e cambada de curiosos ali presentes, os abusos e maus tratos a que eram submetidos. Contou praticamente tudo: pacientes encarcerados por dois, trs, at mesmo quatro anos sem sequer se comunicar com a famlia; das peridicas revistas, feitas at nos orifcios anais, em que procuravam possveis armas fabricadas pelos pacientes; abusos sexuais por parte de seguranas e chefes de planto, o escrnio dos psiquiatras para com eles; enm, tudo o que a clnica sempre manteve entre suas paredes. (LOPES, 1997, p. 33)

Em 1986, realizvamos a 8 Conferncia Nacional de Sade; em 1988, o Congresso Nacional promulgava a Constituio Cidad; em 1989, tnhamos a interveno na Casa de Sade Anchieta e a criao do primeiro Programa de Reduo de Danos (PRD) do Brasil, em Santos; eram aprovadas, em 1990, as leis 8080 e 8142, instituindo o Sistema nico de Sade (SUS) e regulamentando o controle da sociedade sobre as aes do Estado no mbito da sade, via conselhos de sade. Minha passagem pela Jirinovski, como dito anteriormente, deu-se em 1989. Procurei informaes sobre o motim, mas tudo o que consegui foi uma vaga lembrana da parte de algumas pessoas com que falei, alm do relato inscrito em Ala Fechada . Cheguei a escrever para Caho perguntando a data em que ocorreu a rebelio, mas ele tambm no soube precisar se foi no m dos anos 80, ou nos primeiros anos da dcada de 90. Como estive l em 89, imagino que deve ter sido no incio dos anos 90. Temos ento: a realizao da 8 Conferncia Nacional de Sade, em 1986; a Constituio Cidad, em 1988; a coragem santista, em 1989, no mesmo momento em que ocorre minha passagem de apenas uma madrugada e uma manh na Jirinovski; o motim ocorrido em algum ano entre 1990 e 1992; a internao de Caho em 1992. Foi apenas uma madrugada em uma manh. Em um e-mail, Caho me felicita por sado de l rapidamente, pois ele teve de se virar com os traumas decorrentes de sua internao por muito tempo. De
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fato, tive muita sorte; meu pai estava em uma viagem pelo Rio Grande do Norte, e tomou o primeiro vo para Porto Alegre. De alguma maneira, ele sabia o que ocorria l dentro, e me tirou de l assim que chegou, levando-me a outra clnica. Esta sorte me permite testemunhar algumas coisas vividas naquela manh, sem ter de me ver com o sofrimento decorrente de uma longa internao naquele pedao de inferno, como aconteceu com Caho. Ele prprio, um sobrevivente. Havia tomado um ch alucingeno na noite anterior. Fui acordado por dois homens, num quarto com cinco camas alm da minha, e levado para uma espcie de reunio sobre drogas; logo depois, fui retirado dali e levado presena de um homem que identiquei como mdico, a quem insisti que havia consumido apenas lcool. Lembro de tudo isto, mas o mais interessante que tenho estas memrias, como tambm tenho a lembrana de que aqueles momentos eram vividos de modo muito peculiar: ser acordado por dois estranhos em um quarto coletivo, levado a uma reunio sobre drogas e, depois, a um mdico, nada disto era percebido como algo estranho. Eu entendia que aquilo no era minha casa, que as pessoas falavam sobre drogas, e que era com um mdico que eu conversava, mas nada daquilo me soava estranho, como se o sentido das coisas estivesse descolado da sua compreenso. Eu compreendia, mas no sentia... At o momento em que o mdico me pergunta se eu sabia que lugar aquele, minha resposta foi inslita: Claro! Estou num curso de computao . No lembro a expresso no rosto de meu interlocutor, tampouco o seu afeto. Mas lembro da frase: No, isto no um curso de computao . estranho, mas no momento em que ouvi esta frase, eu entendi tudo o que estava acontecendo. Lembro de ter dito algo como: Caralho! Eu estou numa clnica!. Depois disto, eu j estou no salo em que quei grande parte do curto tempo em que estive l. Havia a televiso, dentro de uma caixa de ferro gradeada (era a primeira vez que via uma estrutura como aquela). Esta televiso cava no alto, a tela voltada para alguns sofs velhos e esfarrapados (lembro nitidamente que a ideia de sentar-me ali despertou nojo). direita desta sala de
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TV, havia uma porta que levava at uma ou duas salas para atividades em grupo; esquerda, havia mesas e bancos. Em frente a estas mesas, havia um pequeno armrio com uns poucos livros. No encontrei nada de interessante, mas acabei pegando algo mesmo assim. Talvez, devido aos efeitos ainda resistentes do ch, eu no conseguia xar o olhar na escrita, e as letras escapavam o tempo todo. Resignado, soltei o livro e peguei um jornalzinho feito com folhas de papel ofcio xerocadas, no estilo fanzine. Tratavase de um jornal produzido pelos internos, provavelmente em uma das ocinas que ocorriam ali, organizadas pelos estagirios. No me lembro de quase nada do que havia ali, a no ser uma nica pgina em que uma espcie de charge ironizava um dos aspectos do peculiar projeto teraputico daquele buraco: o uso indiscriminado de medicamentos. A charge em questo falava algo sobre Neozine na veia! , com letras garrafais, em tom ameaador. Lembro que eu jamais tinha ouvido a palavra Neozine (nome comercial da levomepromazina), mas o formato das letras, a sonoridade daquela palavra no deixou dvidas, e captei na hora o recado contido naquele desenho: seria melhor cooperar, ou as coisas poderiam car ainda piores. Busco, at hoje um exemplar daquele jornal, como um colecionador procura de uma pea rara. Lembro Deleuze e Guattari, em seu livro sobre Kafka, no qual somos brindados com a noo de literatura menor , compreendida no como a produo literria [...] de uma lngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma lngua maior (DELEUZE & GUATTARI, 1977, p. 25). Para Deleuze & Guattari, Kafka representa este paradigma: um judeu-tcheco vivendo sob ocupao nazista, que se utiliza do idioma alemo para dizer coisas que seriam impensveis de se escrever e ler naquele momento, naquela lngua. Da mesma maneira, os autores desconhecidos daquele fanzine operavam uma escrita absolutamente incrvel para aquele lugar, para aquele contexto. Escritos que, para usar as palavras de Deleuze & Guattari (1977, p. 28-29), soam como os de [...] um co que faz seu buraco, um rato que faz sua toca , na busca do [...] seu prprio terceiro mundo, seu prprio deserto .
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Ao lado deste espao em que estava este armrio de livros, havia uma abertura para uma rea exposta ao sol. Nas minhas memrias, era um espao muito pequeno, ao ponto de eu desconar de minhas recordaes. No seria nenhuma surpresa que estas recordaes tenham mesmo alguns elementos que pudessem se distinguir do espao como era em sua realidade objetiva (anal, foram apenas uma madrugada e uma manh). Mas, por outro lado, no tenho nenhum interesse em expor minhas memrias ao crivo de verdades objetivamente vericveis. No disto que se trata este texto. No o tamanho deste espao para banho de sol que vai determinar se esta era ou no uma experincia manicomial. Portanto, no importa se estou certo quando lembro que aquela rea tinha algo como sete metros de largura por cinco de profundidade, ou se o espao era maior que isto; mais importante saber que havia muros com cercas de dez metros de altura em todos os quatro lados, e, principalmente, que havia uma grade no lugar do teto. Penso que estas grades no teto so uma novidade. Nas conversas que tenho com amigos militantes da Luta Antimanicomial, ainda no encontrei relatos de outros locais em que se tenha encontrado grades no teto. J ouvi relatos muito piores do que este, sem dvida, mas o detalhe das grades no teto parece uma macabra especicidade da Jirinovski. Tecnologias do horror... Neste espao para tomar sol , tive minha primeira conversa com um dos internos. Mais do que lembrar, eu sinto: ele era apenas um pouco mais velho que eu. Talvez 25 anos em comparao aos meus 18. Conversamos rapidamente, e eu re-sinto o clima de medo, expresso nas frases curtas, quase sussurradas, olhos na porta enquanto conversvamos. Contei-lhe o que tinha me ocorrido: o ch, a doideira, eu acordando j na clnica. Falei que precisava conversar novamente com o mdico, para desdizer a histria do vinho, e contar a verdade: era usurio eventual de maconha, e, na noite anterior, havia usado ch pela primeira vez. Obviamente eu no era um dependente de drogas, e isto precisava ser dito ao mdico. Meu novo amigo disse que os contatos com o mdico eram muito raros, e que eu teria de esperar bastante tempo por esta oportunidade. Argumentei que,
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quando meus pais viessem, eu lhes explicaria tudo o que estava acontecendo, e ele me disse que j estava ali h mais de seis meses, sem que seus pais jamais viessem visit-lo. Alis, havia ali diversas pessoas que estavam sem contato externo havia mais de um ano. Talvez eu tenha me assustado. No lembro. Imagino que eu deva ter cado com muito medo. Estava preso em uma clnica para dependentes, mas eu no me sentia como algum que tivesse problemas relacionados ao uso de drogas. Gostava de fumar maconha de vez em quando, e bebia eventualmente. Nada mais srio do que tantos outros amigos, que tocavam suas vidas, mal ou bem. No entendia que eu precisasse car trancado em um lugar para pensar sobre os malefcios do uso de drogas, mas agora eu estava ali, e uma pessoa acabara de me dizer que tinha chegado havia mais de seis meses, e que estava sem nenhum contato com seus familiares desde ento. Por tudo isto, imagino que tenha sentido medo, mas no recordo se tive tempo, pois, logo em seguida, j ramos todos chamados para o almoo. No lembro como foi almoo. No recordo se a comida era boa ou ruim, tampouco seu aspecto. Lembro de mesas brancas, limpas, e que sentvamos em bancos compridos, lado a lado. No podamos falar durante o almoo. Todos comiam em silncio, e o clima (ao menos para mim) era pesado. Ao nal do almoo, uma surpresa: organiza-se um bingo, que sorteia dois chocolates entre os internos (algo entre vinte e trinta pessoas). Enchi a primeira cartela e levei meu chocolate. Feliz, abri e ofereci para um rapaz que estava sentado ao meu lado. Vi uma expresso de terror em seu rosto: seus olhos oscilavam do chocolate para os estagirios, enquanto dizia apavorado: No, no pode! No pode! . Seu corpo recuava, como se o chocolate pudesse dar-lhe um choque. Era como se desejasse deixar muito claro que ele no tinha nada a ver com aquilo, e que o ato transgressor era de minha exclusiva responsabilidade. Entendi que oferecer chocolates e outras coisas era uma prtica proibida, ainda que no tenha entendido naquele momento e at hoje as razes para tal proibio. Olhei tambm para os estagirios, preparado para explicar que eu acabara de
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chegar, e que tudo no passava de um engano, mas no foi preciso: ou os estagirios entenderam, ou no viram o ocorrido. Proibir a solidariedade, a comunicao e as trocas. Pode existir uma funo teraputica nisto? Para responder a esta pergunta, seria antes necessrio problematizar o prprio sentido de teraputico . Qualquer prtica produzida com o objetivo de diminuir sofrimento e de corrigir aspectos que produzem sofrimento pode ser chamada de teraputica. Assim, se julgamos que um dos problemas das pessoas que usam drogas a diculdade em lidar com regras e limites, isto poderia ser considerado como teraputico? Creio que sim, a depender de nossos posicionamentos acerca do papel de um lugar destinado a cuidar de pessoas que usam drogas. A questo : que mundos ns criamos com prticas que investem na proibio da solidariedade, da comunicao e das trocas? Que subjetividades ns criamos quando impedimos duas pessoas em tratamento de dividirem um chocolate? Mesmo em meio a um espao coletivo, juntamente com outras vinte ou trinta pessoas, h um ntido investimento na individualidade, em detrimento da solidariedade. Penso que, para alm da dimenso teraputica envolvida na proibio de dividir um chocolate, h uma dimenso intrinsecamente pedaggica. Que contedos ensino quando coloco limites nas possibilidades de solidariedade entre os internos? Paulo Freire (2008 [1970], p. 161) explica: Conceitos como os de unio, de organizao, de luta, so timbrados, sem demora, como perigosos. E realmente o so, mas, para os opressores . Um dispositivo de controle? O acontecimento do motim mostraria, algum tempo depois, que as preocupaes eram pertinentes. Anal de contas, manter um grupo de pessoas connadas contra a vontade e sob ameaa de controle medicamentoso em caso de rebeldia realmente algo muito perigoso. Prticas teraputicas e pedaggicas produzindo efeitos. Na conferncia mundial de ONGs que se dedicam ao tema das drogas, em Vienna, 2008, houve um momento em que se discutia a necessidade de eccia cienticamente comprovada de todas as prticas de cuidado dirigidas a pessoas que usam drogas. Graciela Touz, militante
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argentina ligada a ONG Intercambios, pediu a palavra para lembrar que qualquer pesquisa conseguiria comprovar que acorrentar pessoas seria uma forma ecaz de mant-las longe das drogas. A comprovao de eccia por si s, portanto, no seria o bastante para garantir que esta ou aquela prtica de cuidado so adequadas. Os resultados devem ser medidos no apenas pelos ganhos imediatos, mas tambm por questes como felicidade e autonomia . O objetivo central deve mesmo ser o de afastar as pessoas das drogas a qualquer preo? Depois do almoo, fui chamado a uma sala em que uma estagiria coordenava uma atividade recreativa, ou algo do gnero. Estava tranando os coloridos em uma base de madeira e pregos, quando a estagiria veio conversar comigo. De alguma maneira, acabei falando que tocava violo (no recordo se havia um instrumento visvel na sala, talvez tenha sido isto), e ela pediu que eu tocasse. Tenho quase de certeza que toquei Vento Negro . Neste momento, algum chegou porta e chamou meu nome. Apresentei-me, e fui informado que meu pai estava ali para buscar-me. Subi ao dormitrio e comecei a organizar minhas roupas em uma sacola que me foi dada. Percebi que elas estavam marcadas com nmeros: as meias, as calas, as camisas, camisetas, cuecas, todas as peas tinham um nmero, um mesmo grande nmero com cerca de dez algarismos. Durante algum tempo, eu ainda usei algumas destas roupas, numeradas, um cdigo indicando a propriedade de cada pea; um nmero de srie. L fora, meu pai me esperava. Perguntou-me algo, e eu me lembro de responder com uma nica palavra: Rateei . Samos dali, entramos em seu carro, e eu no tardei a perceber que no estvamos indo para casa. Paramos em uma importante avenida do bairro Menino Deus, e meu pai me conduziu at outra clnica, na qual quei um ms. Liguei para meu pai enquanto escrevia este artigo. Queria ouvir dele mais detalhes sobre esta histria. Queria saber se ele lembrava a data da rebelio na clnica, e tudo o mais que ele pudesse me dizer daquele lugar. O que mais me intrigava era o seguinte: por que razo ele quis tirar-me daquele lugar? Ele sabia que era um lugar ruim? De que modo sabia? Como o motim referido no livro
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de Caho ocorreu meses depois de minha passagem pela Jirinovski, obviamente no era uma informao advinda da mdia. Meu pai relembrou toda a histria: estava em um congresso no Rio Grande do Norte, quando recebeu uma ligao de minha me. Conta que j naquele momento ele teria dito algo como Este lugar em que voc colocou o Dnis muito ruim, mas quando eu chegar a gente v . Voltou no primeiro vo disponvel, passou em casa e foi direto para a outra clnica para a qual eu iria depois. Logo em seguida, foi at a Jirinovski e pediu para ver-me, mas informaram-lhe que isto no era possvel, pois as visitas tinham de ser negociadas com o mdico responsvel, dentre outras explicaes. Meu pai comeou a erguer seu vozeiro de italiano, e a coisa acabou se resolvendo em alguns minutos. Provavelmente uma ligao para os proprietrios resultou na liberao, como forma de evitar problemas. Fiquei curioso. Como que ele j sabia que aquele era um lugar ruim? O que que ele tinha ouvido falar? Que tipos de coisas aconteciam l dentro? Meu pai no consegue se lembrar de onde veio seu conhecimento a respeito do projeto teraputico da Jirinovski. Teria perguntado a algum depois que cou sabendo? No, no foi isto. Rearma que ele j sabia daquilo no momento em que minha me lhe disse em que lugar eu estava. S de ouvir o nome, ele j sabia. Pergunto se aquela era uma informao corrente na cidade: Sim, era algo que todos sabiam , diz meu pai. Mas ele no lembra exatamente de que modo esta informao lhe chegou. *** Cheguei a experimentar outros dispositivos alm desta passagem meterica pela Jirinovski. Como j anunciado acima, sa daquele inferno diretamente para outro local, situado, poca, dentro de um importante hospital privado na capital dos gachos. Anos depois, passei por uma comunidade teraputica. Mas nada to marcante quanto esta curta passagem pela Jirinovski. O relato presente no livro de Caho leitura que recomendo entusiasticamente muito mais rico e visceral do que o que trago
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nestas poucas linhas. Mesmo assim, julguei relevante que este texto estivesse presente nas pginas de um livro dedicado reexo sobre diversos aspectos relacionados ao tema das drogas, e produzido no Rio Grande do Sul. Creio que temos muito poucos escritos desta ordem, que problematizam o modelo manicomial em suas interfaces com o cuidado de pessoas que usam lcool e outras drogas. Para que se possa mensurar a importncia disto, basta lembrar que muitas equipes de CAPS e outros dispositivos antimanicomiais avaliam a qualidade de suas prticas justamente pela comparao com aquilo que ocorria (ainda ocorre) nos manicmios. Quanto mais parecido, mais distante do que buscamos. importante, pois, que conheamos os discursos e as prticas que permeiam estes locais, que os constituem em sua presena e em sua historicidade. Conhecemos muito sobre as prticas ordinrias em um manicmio: muitos de ns trabalhamos ou estagiamos em locais assim; lemos livros e assistimos a lmes; dedicamo-nos leitura de Foucault, de Goman e de outros autores que nos falam do cotidiano infernal nos hospitais psiquitricos. Mas so poucos os relatos como os de Caho Lopes, importante registro histrico do cotidiano em um destes depsitos de drogados . Por que ser que so poucos? Por que as pessoas que usam drogas falam to pouco? Por que razo estes relatos no habitam o campo da Sade Mental com mais intensidade? Por que nos esquecemos to facilmente dos motivos da internao de Carrano? Por que o tema das drogas marginal dentro da Sade Mental? Tanto em Canto dos malditos quanto na verso cinematogrca de Ktia Lund, o tema das drogas sai de cena logo no incio da narrativa, limitando-se condio de mero estopim do inferno manicomial no qual Carrano termina envolvido. Em Ala fechada ,o tema das drogas ganha mais densidade, pois todo o modelo de recuperao expresso nas prticas cotidianas no interior da Jirinovski construdo com foco nas especicidades do tratamento de usurios de drogas. Trata-se de um exemplo bem acabado de um certo modo de pensar e intervir sobre o fenmeno do uso de drogas, baseado em um modelo moral-punitivo; no disciplinamento e afastamento das
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ruas por longos perodos; no uso exagerado de medicamentos, inclusive como forma de castigo; na individualizao, mesmo em ambiente coletivo; no desrespeito aos Direitos Humanos e s liberdades individuais; no silenciamento; no encarceramento. Conhecer estes aspectos, a partir da fala das pessoas que viveram estes infortnios, empresta afeto ao trabalho cotidiano que muitos de ns temos dedicado construo de caminhos para o cuidado de pessoas que usam drogas no contexto do SUS e da Luta Antimanicomial. Denunciar as prticas manicomiais associadas ao cuidado de pessoas que usam drogas contribui para a construo de novos dispositivos, de outras formas de pensar e fazer o cuidado no cotidiano da vida. S h dois discursos autorizados s pessoas que usam drogas: os discursos desesperados, e os discursos hericos. So estes os discursos que veremos transitar com liberdade em inmeros contextos: nos depoimentos, nas entrevistas, nas reportagens, nas palestras e nos lmes sobre drogas. Os discursos desesperados nos falam da ausncia de perspectiva, da busca por tratamento, do desejo de ser parado por algo externo, j que a pessoa diz-se impotente diante de sua prpria vontade; j os discursos hericos nos falam do vitorioso, daquele que derrotou as drogas e que superou a prpria vontade. Talvez seja justamente por isto que um discurso como o de Caho Lopes seja to raro: um discurso que no autorizado s pessoas que usam drogas, mas entre estas mesmas pessoas. Um discurso minoritrio, que interroga o modelo manicomial com vigor, lanando-lhe perguntas que mais parecem pedras sadas do estilingue de Davi. O Golias manicomial grande e forte, tanto quanto pesado e lento. Derrubemo-lo.

Referncias
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. Kafka Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. [1970] LOPES, Caho. Ala Fechada. Porto Alegre: Editora Sulina, 1997. 64

Construindo a descriminalizao...
Domiciano Siqueira1 Em 1934, surgia a primeira verso daquela que se tornaria a primeira Lei sobre Drogas do Brasil e que j marginalizava os usurios. Na verdade, essa lei no foi a primeira a tratar do tema, mas fazia referncia toxicomania, denindo-a, a exemplo da Frana (em 1917) e de outros pases, como crime no mesmo nvel com que tratava os alcolatras, doentes mentais, mendigos, etc.. Esta situao persistiu at os dias atuais, passando por momentos importantes, como em 1976, quando, a sim, o Brasil passou a ter a Lei 6368/76 (conhecida como Lei de Drogas), cuja caracterstica principal foi uma viso da Justia que, por exigncia da elite do pas, fazia cumprir, nos morros e favelas das grandes cidades brasileiras, leis/aes discriminatrias contra pobres e, principalmente, negros, sob o vu das primeiras iniciativas de guerra s drogas no pas (conduta diferenciada foi aplicada aos mais ricos). Outro momento de grande importncia nessa trajetria foi o ano de 1988 quando, durante a Assembleia Nacional Constituinte e por intermdio dessa, o assunto drogas voltou tona. Data deste perodo uma viso de sade que passou a se encarregar do tema, tratando-o como uma doena: a Depen1 Consultor na rea dos Direitos Humanos e Processos de excluso social

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dncia Qumica. Torna-se relevante mostrar que neste perodo (1988) a AIDS caminhava rme no mundo, mas, em nosso pas, a associao entre a transmisso do HIV com o uso de drogas injetveis principalmente, ainda era quase uma incgnita, sendo lembrada e enfrentada por atitudes isoladas, porm de extrema importncia para o futuro, como as aes da Prefeitura de Santos e do governo do Estado de So Paulo. importante considerar que, naquele perodo da dcada de 80, j eram conhecidos no Brasil e j traziam excelentes resultados os grupos de Alcolicos e Narcticos Annimos que faziam sua parte na busca da dignidade e do respeito aos cidados e cidads usurios de lcool e outras drogas, tendo na abstinncia integral a sua forma mais objetiva de lidar com o desao imposto. Tnhamos, desde essa fase, a ideia e o conceito de que o uso de drogas estava diretamente ligado a trs possibilidades de interpretao e, consequentemente, de ateno e encaminhamentos em nossa sociedade, a saber: 1 Do ponto de vista da Sade, o uso de drogas seria visto como uma doena denominada Dependncia Qumica e, portanto, o caminho para sua soluo seria a Clnica Psiquitrica, nos seus mais variados nveis, que iam desde um atendimento ambulatorial at a internao em hospitais psiquitricos. Seria, ento, o SUS (Servio nico de Sade) , alm das chamadas Comunidades Teraputicas, para os mais pobres, e, para os mais abastados, as Clnicas para tratamento de dexintoxicao e recuperao, muitas vezes, em parceria com as igrejas; 2 Do ponto de vista da Justia, o uso de drogas seria considerado um delito e seu tratamento passou a ser a punio legal a sua melhor conduta, oferecendo cadeia apenas para os mais pobres, pois sabido que aos mais ricos haveria sempre os recursos de advogados especializados; 3 Na viso das religies, o uso de drogas continuaria sendo um pecado e a soluo, portanto, seria a converso, exi66

gindo apenas a assinatura de um contrato com Deus, estabelecendo, dessa forma, o seu conceito de Cidadania. Temos, assim, esses 3 lugares ou espaos para onde, ainda hoje, so destinados os usurios de drogas: Cadeia, Igreja (Comunidade Teraputica) e Hospitais Psiquitricos; lugares esses escolhidos para desempenharem funes de controle da sociedade. Control-los por meio de leis que esto estruturadas nos princpios morais e no naturais. Dessa forma, h uma produo de sujeitos com identidades padronizadas em que a individualidade, a subjetividade e as diferenas no so respeitadas, sendo deslocados para esses espaos que vo, por sua vez, oferecer a garantia de que essas diferenas continuaro a no ser vistas. A veiculao miditica de imagens ou cenas reais, tornam possveis a manuteno da ideia de que as drogas so realmente um grande mal, escondendo a inecincia da moral vigente. Fechar os olhos, por meio de implantao de leis antidrogas, no querer admitir que o uso dessas substncias faz parte da sociedade e, portanto, da cultura e dos costumes. Implantar um discurso que visa a acabar com as drogas no mundo constatar que a sociedade e as polticas de sade e justia ainda se mostram assustadas, incrdulas, surpresas e com resistncias em ver o lugar que o uso de drogas tem no mundo. Isso vem mostrar que as aes e as leis, portanto as sociedades, ainda no alcanaram uma maturidade suciente em termos morais e psicolgicos para lidar com o tema. Susam Sontag diz: Ningum, aps certa idade, tem o direito a esse tipo de inocncia, de supercialidade, a esse grau de ignorncia ou amnsia. A partir da dcada de 90, principalmente, o Brasil viu recrudescer as leis de guerra contra as drogas, principalmente por conta da poltica americanista de combate s drogas, inclusive invadindo pases do 3 mundo, produtores de matria-prima e, potencialmente, consumidores.
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Foi natural a vinculao do tema das drogas com o crime, o trco, o delito e a punio. Tornou o sistema Penitencirio um depsito de pequenos tracantes e de usurios de drogas ilegais, no por acaso, pobres e, geralmente, negros ou pardos. A opinio pblica, manipulada pelas grandes redes de comunicao, sempre a servio da classe mais nobre, passa a associar a violncia nos centros urbanos com o consumo de drogas e, a partir da, exigir polticas de segurana pblica mais adequadas e mais rgidas. Observou-se e discutiu-se a vinculao da misria, do desemprego com a violncia e, consequentemente, sua ligao com as possibilidades de atuao do trco de drogas na busca de soluo para os problemas advindos de sua existncia. O trabalho dos redutores de danos tambm, ou inicialmente, d-se nessas populaes reconhecidas como as periferias de nossas cidades ou de nossas almas, considerando que o uso de drogas, a excluso e as injustias acontecem no s nas reas urbanamente perifricas. E a partir dessa nova realidade, construda sob a tica dos Direitos Fundamentais da Pessoa, que foi possvel ao Brasil e ao mundo admitir que seria necessrio criar alternativas mais humanistas, menos discriminatrias e mais efetivas que diminussem no s a transmisso do vrus HIV no universo de usurios de drogas, mas tambm tantos outros agravos (hepatites, violncia, overdose, absentesmo, etc.) e que permitisse aos usurios que, mesmo com a manuteno do uso (enquanto no fosse possvel a abstinncia) dar conta de seus compromissos mais elementares e tornando suas vidas em vidas mais equilibradas e responsveis. Essa nova realidade foi devidamente vericada medida que se instalaram no pas, sempre com o apoio do Ministrio da Sade, inmeros Programas de Reduo de Danos estruturadas no respeito diversidade e s realidades existentes no nosso pas. Houve diminuio na transmisso do vrus HIV, diminuiu o nmero de mortes por overdose e por /AIDS, criou-se
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uma rede de usurios de drogas unidos pelo desejo de se fazer respeitados e participantes na construo de polticas pblicas de sade mais abrangentes e ecientes. Atualmente, mesmo com a reviso da Lei 6368/76, j se pode contar com uma nova lei de drogas, mesmo carente de ajustes, pois ainda pune o usurio de drogas, mas j o diferencia (minimamente) do tracante. Os prximos passos precisam ser dados e algumas questes vm tona: Legalizar as drogas realmente eliminaria o trco? Quem e como absorveria o exrcito de desempregados que hoje encontram trabalho junto aos movimentos clandestinos de venda de drogas? Em que medida diferenciaramos o uso teraputico de maconha, por exemplo, do uso recreativo desta substncia? Como aumentar os recursos nanceiros para a continuidade da implantao dos chamados CAPS AD (Centro de Ateno Psicosocial em lcool e outras Drogas) que vem se mostrando a melhor iniciativa no trato com os usurios de drogas, uma vez que desinternalizam esses? Como enfrentar os poderosos grupos que se beneciam da tragdia imposta aos usurios por mant-los na clandestinidade e na marginalidade? Parafraseando Nietzsche (in Zaratustra): Ser que eu vou ter que gritar para voc aprender a ouvir com os olhos?.

Bibliograa:
SIQUEIRA, D.J.T. (Org.). Mal(dito) cidado: numa sociedade com drogas. So Caetano do Sul: King Graf. 2006. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. FEFFERMANN, M. Vidas Arriscadas: O cotidiano dos jovens trabalhadores do trco. Petrpolis - RJ: Editora Vozes, 2006.

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A rede de assistncia aos usurios de lcool e outras drogas em busca da integralidade


Evaldo Melo de Oliveira 1 Nade Teodsio Valois Santos 2 H, na sociedade contempornea, a predominncia de um profundo sentimento de vazio, expresso tambm como um sentimento de indiferena em relao ao outro. A destruio da natureza, a excluso e destruio dos mais pobres e desprotegidos, e o crescimento da violncia nas relaes sociais so algumas das consequncias desta civilizao que, fundada em uma compreenso narcisista do homem, parece estar esgotando suas possibilidades de desenvolvimento (Plastino, 2002). Outra consequncia desta sociedade o aumento do uso de drogas, que embora acompanhe o Homem ao longo de sua histria, apresenta, na contemporaneidade, contornos de grave problema social e de Sade Pblica.
1 Psiquiatra e Psicanalista da Sociedade Psicanaltica do Recife. Diretor Tcnico do INSTITUTO RAID. Secretrio de Sade da Cidade do Recife 2003-2007. Presidente da Associao Brasileira Multidisciplinar de Estudos das Drogas (ABRAMD) 2009-2011. 2 Mdica Sanitarista, Mestra Pesquisadora em Sade Pblica do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz-PE.

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At a dcada de 1970, os Estados Unidos e a Europa adotaram polticas semelhantes no enfrentamento dos problemas decorrentes do uso de lcool e outras drogas. A chamada guerra s drogas era o principal objetivo dos governos e especialistas. Posteriormente, estes pases tomaram rumos bem diferentes. Nos Estados Unidos, permaneceram as estratgias orientadas para a reduo de demanda e de oferta, privilegiando no campo teraputico a preveno primria (preveno do uso) e secundria (abstinncia rpida); e, na Europa, diante do surgimento da epidemia de HIV/AIDS, desenvolvem-se novos modelos preventivos e teraputicos. Surgem as estratgias de Reduo de Danos ou Reduo de Riscos, denidas como um conjunto de aes individuais e coletivas, mdicas e sociais, dirigidas a minimizar os efeitos negativos associados ao consumo de drogas, considerando-se as condies jurdicas e culturais do momento (Mino, 2000). A Holanda foi o primeiro pas a estabelecer a Reduo de Danos (RD) como poltica pblica, atravs da reviso da lei sobre o pio (1976), cujos principais eixos foram: 1. Descriminalizao do consumo de maconha e sua posse para uso pessoal; 2. Implantao do programa de metadona em dois nveis, um com o objetivo de manter o toxicmano na rede sanitria, e o outro voltado para o tratamento e obteno da abstinncia a curto ou longo prazo; 3. Desenvolvimento do programa de troca de seringas; 4. Reconhecimento da toxicomania e do consumo de drogas como problemas sociais e de sade pblica (Engelsman,1989). Como resultados desta poltica, destacam-se: a queda na incidncia entre usurios de drogas de Hepatite B, de 26% para 5% em cinco anos; da incidncia de HIV/AIDS, de 12% para 3% em dois anos; aumento na idade de incio do uso; estabilizao
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Ateno aos problemas relacionados ao uso de substncias psicoativas

no nmero de consumidores e aumento signicativo da demanda por tratamento dirigido para a abstinncia. A adoo dessa poltica resgata aos cidados consumidores de drogas, dependentes ou no, o direito sade. Tais estratgias tambm mostraram sua eccia na adeso de dependentes que se mantinham margem dos servios especializados. O usurio deixa de ser percebido como indivduo inconsciente e destruidor, para ser considerado como agente ativo na preveno, responsvel por si mesmo e pelos demais (Mino, 2000). Com a implantao desta poltica, surge um novo personagem na cena das toxicomanias: o Redutor de Danos, algum que conhece os problemas da polidependncia, possui conhecimentos de sade e tem habilidades tanto teraputicas como comunitrias (Mino, 2000). As estratgias de reduo de danos tm sido utilizadas em vrios pases da Unio Europia (UE), observando-se, em 2005, o seguinte o quadro:

Fonte: Encod, Barcelona, 2005.

No Brasil, embora houvesse recomendaes para o desenvolvimento de polticas para o alcoolismo desde os anos de 1970, porm no havia nem polticas nem servios que contemplassem a especicidade da ateno aos transtornos decorrentes
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do uso de lcool e outras drogas. Aconteciam experincias isoladas, dentre as quais podemos citar a criao de uma unidade de tratamento do alcoolismo no Hospital Centenrio, em Recife, e a instalao de unidades de tratamento e de desintoxicao ligadas Clinica Pinel, em Porto Alegre. (Ramos, 1978). As internaes aconteciam em hospitais psiquitricos, que tinham mais de 50% de seus leitos ocupados por pacientes dependentes, com comorbidade psiquitrica ou no. Foi na dcada de 1980, que servios estruturados surgiram em vrios estados brasileiros: CETAD (Centro de Estudo e Terapia do Abuso de Drogas), em Salvador; CMT (Centro Mineiro de Toxicomanias), em Belo Horizonte; NEPAD (Ncleo de Estudo e Pesquisas em Ateno ao uso de Drogas), no Rio de Janeiro; PROAD (Programa de Orientao e Atendimento a Dependentes), GREAA (Grupo Interdisciplinar de Estudos de lcool e Drogas) e CEBRID (Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas), em So Paulo; Unidade de Dependncia Qumica do Hospital Me de Deus, em Porto Alegre; Centro Eulmpio Cordeiro de Recuperao e CPTRA (Centro de Preveno Tratamento e Reabilitao do Alcoolismo), em Recife. Alguns destes servios so ligados s universidades, o que garantiu continuidade de suas gestes e atividades. Outros, ligados aos municpios ou aos estados, vivem graves prejuzos no seu funcionamento pelas mudanas polticas e descontinuidade da gesto. Apesar dos dados epidemiolgicos mostrarem a alta prevalncia dos problemas de sade decorrentes do uso de lcool e outras drogas (AD), nenhuma proposta de interveno foi discutida nas I e II Conferncia Nacional de Sade Mental, contribuindo para o desconhecimento, preconceito e discriminao em relao a estes problemas. Apenas a partir da III Conferncia Nacional de Sade Mental, em 2001, propem-se aes no Sistema nico de Sade (SUS) voltadas para a ateno aos usurios de lcool e outras drogas.
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Embora a integralidade e a insero na rede SUS apaream como pressupostos bsicos, na prtica, s houve incentivos para a abertura de Centros de Ateno Psicossociais de lcool e outras Drogas (CAPS ad). Mesmo sendo um grande avano, a implantao do CAPS ad como elemento central da rede criou a fantasia do equipamento onipotente , aquele que tudo vai resolver.

Novos paradigmas
Qualquer programa de ateno sade deve atender aos princpios do SUS universalidade, integralidade e equidade e ocorrer, primordialmente, no territrio, de forma hierarquizada, acessvel e resolutiva. Em relao s polticas para usurios de AD, h que se contemplar os diferentes consumidores e suas formas de uso, as diversas drogas e contextos de consumo, com sua cultura e legislao. Quanto ao tipo de usurio, as polticas pblicas devem considerar os usurios sociais, os usurios problemticos, prejudiciais ou nocivos e a populao de dependentes. Convm sempre lembrar que a maioria dos usurios no est, nem nunca car, doente (dependente). H que se registrar a mudana signicativa no perl do usurio de drogas nos ltimos 50 anos. Os anos de 1960, dcada da revoluo cultural dos hippes e da liberao da sexualidade e dos costumes, teve o uso de maconha e LSD como marca. O lcool e o tabaco viviam tambm fase de glamour e seduo, portanto de estmulo ao uso. Havia uma diviso marcada: os adultos eram alcoolistas e os adolescentes e jovens usavam maconha. Logo em seguida, surge a cocana, ainda com uso restrito s regies Sul e Sudeste, marcada pelo uso injetvel em alguns pontos do Pas. Atualmente, cada vez mais crescente o nmero de poliusurios consumidores de mais de um tipo de droga, havendo uma migrao, ou uma associao, para o crack, tanto dos
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usurios de maconha ou solvente, quanto dos usurios de lcool. O incio do processo comea, em geral, pelo uso do melado ou mesclado, a maconha misturada com o crack, passando, em seguida, para o uso s do crack na lata. Hoje, em Recife, esto disseminadas o que se pode chamar de Salas de Uso do trco, espaos oferecidos pelos tracantes para o consumo da droga na prpria favela, em geral, perto do ponto de venda, sempre precrios e insalubres. Apesar das especicidades do uso e abuso do crack, no se justica a criao de espaos exclusivos para o atendimento desta populao, o que s reforaria o estigma e a excluso. Entretanto, precisam agregar novas estratgias teraputicas, que atendam s necessidades destes usurios. Outro aspecto da complexidade do problema est relacionado magnitude do consumo de substncias psicotrpicas. Segundo dados do I Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrpicas no Brasil, 11,2% dos entrevistados podiam ser classicados como dependentes. Para exemplicar, em uma cidade como Recife, com 1.500.000 habitantes, teramos 168.000 dependentes. Evidentemente que a sade no tem e nunca ter estrutura para atender toda essa populao, muito menos os CAPS AD, sendo necessrias aes intra e intersetoriais, que busquem a integralidade da ateno. Tambm se fazem necessrias respostas que atendam as especicidades dos diferentes grupos de usurios, como adultos, adolescentes, crianas, idosos, mulheres, indgenas, presidirios, entre outros.

Quebra de paradigmas
A maioria dos servios pblicos de ateno aos usurios de drogas trabalha dentro do lema dos Alcolicos Annimos (AA), se voc quer parar de usar drogas o problema nosso, se voc quer continuar usando drogas o problema seu. Existe uma posio passiva de esperar que o usurio venha ao servio e queira
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fazer o tratamento. Em contraponto a esta conduta, colocamos a questo tica de que o cidado/cidad que quer continuar usando drogas continua sendo responsabilidade do Estado, sendo necessrio mecanismo de aproximao para acompanhlo em seu uso. Neste contexto, fundamental os Agentes Redutores de Danos, que devem atuar nos espaos onde est o usurio de drogas. O exemplo de Salvador com seus Consultrios de Rua apontam uma possibilidade desta abordagem. Outra postura quase hegemnica nos servios para dependentes que todo tratamento/abordagem deve buscar a abstinncia. Novamente a experincia da Reduo de Danos tem possibilitado o desenvolvimento de abordagens teraputicas para pessoas que no querem parar de usar drogas, entendendo que o contrrio da dependncia no a abstinncia, o contrrio da dependncia a liberdade. A dependncia aprisiona, o tratamento deve buscar o protagonismo e a autonomia. Outra armativa que precisa ser quebrada que uma rede de cuidados em sade mental no necessita de espao de internao integral. Desde que foi deagrada a Reforma Psiquitrica Brasileira, alguns gestores e tericos defendem esta falcia, que se repetiu no mbito da ateno aos problemas relacionados ao uso de AD. Neste vcuo deixado pela poltica pblica de sade, vemos dependentes serem internados em Hospitais Psiquitricos cada vez mais sucateados, portanto, mais manicomizados, e um aumento absurdo no nmero de Comunidades Teraputicas Religiosas, que tm assento garantido em Fruns especializados e representao poltica no Congresso Nacional. Quem vive a clnica da toxicomania sabe que para um nmero signicativo de pacientes graves, em algum momento de sua trajetria teraputica, faz-se necessrio o afastamento do seu entorno, que no suporta a disrupo provocada pela sua patologia. Neste trabalho, defendemos a ideia de um equipamento na rede de ateno sade para a internao integral, propondo o modelo que vem sendo usado no Recife h 17 anos.
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A Rede de Ateno aos Usurios de Drogas: outro olhar


Contemporaneamente, os sistemas de sade podem ser classicados como modelos fragmentados ou modelos integrados de sade (Mendes, 2001). Nos modelos fragmentados, no h comunicao entre os diversos pontos de ateno sade, que funcionam isolados e se mostram incapazes de prestar uma ateno contnua populao. Nos modelos integrados, h uma comunicao uida entre os diferentes nveis de ateno sade, organizados atravs de uma rede que atende uma populao denida (Shimazaki, 2008). Nos modelos fragmentados, temos a concepo de uma estrutura piramidal e nveis hierrquicos com complexidades crescentes, bastante contestada por considerar a ateno primria como menos complexa por usar baixa densidade tecnolgica de equipamentos diagnsticos e teraputicos. Sua complexidade est nos campos do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades e mudanas de atitude, na incorporao de instrumentos tecnolgicos vindos das cincias sociais e humanas na compreenso do processo sade-doena e na interveno coletiva e individual, exigindo modicaes signicativas na abordagem do indivduo, da famlia e da comunidade bem como uma atuao integrada dos diversos setores da gesto pblica municipal (Shimazaki, 2008). Nas redes integradas de ateno sade, no h uma hierarquia entre os diferentes pontos de ateno sade, mas a constituio de uma rede horizontal de pontos de ateno sade de distintas densidades tecnolgicas, sem ordem e sem grau de importncia entre eles (Shimazaki, 2008). Deste modo, quando pensamos em um modelo integral de ateno para usurios de AD, temos que considerar outros dispositivos alm dos CAPS AD: as redes sociais e comunitrias; a ateno primria, principalmente a Estratgia de Sa78

de da Famlia; Centros de Convivncia; Agentes Redutores de Danos; Servio de Atendimento Mvel de Urgncia (SAMU); Unidades de Desintoxicao (UD); Casas do Meio do Caminho; Hospital Clnico; Hospital Psiquitrico; e Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

A Rede Social ou Comunitria, o Centro de Convivncia, o Agente Redutor de Danos (ARD) e a Estratgia de Sade da Famlia (ESF)
O fenmeno do uso de drogas pela sociedade ultrapassa as motivaes dos indivduos singulares e precisa ser vista tambm como um sintoma no qual se exprimem fatores vinculados s mltiplas facetas da vida social. uma questo complexa, cuja compreenso requer uma abordagem de diversas reas das cincias e saberes humanos e sociais (Plastino, 2002). As aes de Sade Mental foram as que primeiro buscaram a intersetoriali79

dade e interdisciplinariedade no campo da sade, trabalhando fortemente o conceito de incluso social e o compromisso com os direitos humanos. O enfrentamento dos problemas relacionados ao uso de AD, s possvel com o comprometimento dos vrios atores sociais envolvidos no mbito do territrio, entendido como um conjunto de sistemas naturais e articiais que engloba indivduos e instituies, independentemente de seu poder. Deve ser considerado em suas divises jurdicas e polticas, suas heranas histricas e seus aspectos econmicos e normativos. nele que se processa a vida social e nele tudo possui interdependncia, acarretando no seu mbito a fuso entre o local e o global (Shimazaki, 2008). no territrio que se pode dar as primeiras respostas enorme demanda dos problemas relacionados ao uso de drogas. As redes de solidariedade e de apoio social tm como caracterstica no s a mobilizao e distribuio de recursos, mas tambm a disseminao da noo e sentimento de cidadania (LANDIM, 1998). Facilitam o autoconhecimento, a elevao da autoestima, a reconstruo do cotidiano e atuam como importante auxiliar na promoo, preveno e cuidados de sade, a partir dos diversos dispositivos de apoio e de solidariedade oferecidos por atores no necessariamente inscritos no campo da sade. Nesta concepo, o Centro de Convivncia precisa ser um espao de utilizao universal e no limitado a cadastrados nos CAPS AD e de outros transtornos, evitando a criao de novos locais de excluso e isolamento social. Deve ser compartilhado por adultos, jovens, crianas e idosos, e, como espao de lazer e formao, estar preparado para oferecer respostas s diferentes demandas da comunidade. preciso que sua gesto tenha a participao da Educao, Assistncia Social, Sade, Esporte e Lazer, Cultura, entre outras. Preferencialmente, no dever ser gerido diretamente pela Sade a m de no se projetar no imaginrio popular como um local de tratamento.
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No territrio, tambm atua o Redutor de Danos, que, por conhecer a comunidade e seus problemas, um agente privilegiado de escuta e resposta social. Tem fundamental papel no processo de apoio social, de informao e educao em sade, bem como na facilitao da adeso a servios de sade, ofertando-os a quem precise e queira ajuda especializada. Na estruturao de uma rede local de cuidados, a ateno primria a principal porta de entrada e de resoluo de problemas. As equipes de sade da famlia devem ser treinadas no apenas para identicarem os usurios que necessitem de ateno especializada, mas tambm para estarem aptas a desenvolverem abordagens teraputicas. As aes de sade mental na ateno primria, entre elas as relacionadas ao AD, devem obedecer ao modelo de redes de cuidado, de base territorial e atuao transversal com outras polticas especcas e que busquem o estabelecimento de vnculos e acolhimento (Ministrio da Sade). Um ponto de contato com as demais polticas so os Ncleos de Apoio Sade da Famlia (NASF), que facilitam o matriciamento das aes, bem como constituem local privilegiado de insero dos ARD.

Centro de Ateno Psicossocial CAPS AD


Para o Ministrio da Sade (BRASIL, 2005), os CAPS so considerados dispositivos estratgicos para a organizao da rede de ateno em sade mental. Eles so referncia para um territrio e devem oferecer espao de acolhimento e convivncia para usurios de AD que desenvolveram processos de ruptura de suas relaes sociais. A reinsero social pode se dar a partir do CAPS, mas sempre em direo comunidade. OS CAPS AD devem funcionar com estratgias de Reduo de Danos, acolhendo tambm pessoas que no estejam interessadas na abstinncia, fazendo parte destas estratgias a busca
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ativa de usurios atravs dos ARD. Trabalham com projetos teraputicos individualizados, com o objetivo nal de reinsero e readaptao funcional do usurio e realizam desintoxicao ambulatorial de quadros leves, que no demandem ateno mdica contnua. dada nfase ao atendimento familiar, pois a possibilidade de recuperao aumenta sensivelmente. O usurio e a famlia precisam de um espao de fala e escuta que possibilite o entendimento das utuaes como prprias do processo, e da redistribuio de papis e poder na rede familiar como consequncia da melhorara do quadro de dependncia. Sem acompanhamento, a famlia no ter um espao para discutir a ansiedade e os sofrimentos que esta reorganizao desperta. Embora atualmente trabalhem principalmente com demanda espontnea, deveriam atuar, sobretudo, a partir de demanda referenciada, recebendo, e contrarreferenciando, os casos que a ateno primria no consiga dar resolutividade, mesmo acionando o apoio matricial e os recursos intersetoriais. Alm dos NASF, os CAPS devem realizar aes de matriciamento para as ESF e demais dispositivos de sade, bem como reforar as redes intersetoriais com objetivo de promoo de vida, socializao, oferta de atividades de esporte, cultura, lazer, insero no mercado de trabalho, entre outras (BRASIL, 2005).

SAMU
As situaes de intenso sofrimento psquico podem transformar-se em emergncias psiquitricas. A agitao psicomotora grave, a tentativa de suicdio e a agressividade na intoxicao aguda so algumas destas situaes. Usualmente, estas emergncias so tratadas como ocorrncias policiais e atendidas por policiais militares ou bombeiros. Defendemos a sua transformao em emergncias mdicas e, como tal, serem atendidas pelo SAMU com a regulao e acompanhamen82

to psiquitrico. Este psiquiatra plantonista dever tambm ser referncia para os CAPS 24 horas.

Unidade de Desintoxicao (UD)


Mais de 80% das situaes de intoxicao aguda ou crnica por lcool ou outra droga no necessitam cuidados especiais no perodo de suspenso ou diminuio do uso. A desintoxicao, ambulatorial ou domiciliar, suciente para o usurio acompanhar o programa teraputico. Os outros necessitam de cuidados especializados em ambientes protegidos. A intoxicao , em geral, um quadro predominantemente clnico, com manifestaes psiquitricas, sendo o local adequado para seu atendimento o Hospital Clnico (Hospital Geral ou UPA). No entanto, quando h uma grave comorbidade psiquitrica, o espao clnico ter poucos recursos para seu manejo, sendo indicado o tratamento no Servio de Emergncia Psiquitrica, em Hospital Clnico ou Psiquitrico. O processo de desintoxicao, com ou sem comorbidade, dura, em geral, de 03 a 12 dias, tempo que ser utilizado para abordagem e motivao para o acompanhamento mais extenso em outro equipamento da rede. A intoxicao aguda grave com riscos para o paciente ou para terceiros o nico momento da ateno aos usurios de AD, em que pode ser justicada a internao involuntria.

A Casa do Meio do Caminho (CMC)


As CMC surgem da constatao de que os CAPS, mesmo os 24 horas, no conseguem conter a ansiedade e o sofrimento daqueles usurios graves, que terminam por entrar num ciclo vicioso de usoculpa/compulso-uso. Foi necessrio pensar um equipamento psicossocial que trabalhasse a angstia da abstinncia e discutisse um projeto de vida para quem est aprisionado em seu projeto de morte.
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Para atender a esta necessidade, a Secretaria de Sade do Recife, em 2003, buscou como modelo a experincia do Instituto RAID (Instituto Recife de Ateno Integral s Dependncias), que, h 17 anos, desenvolve um espao de abordagem teraputica com caractersticas prprias. O modelo da instituio o da Penso Protegida (OLIVEIRA, 1979), funcionando como comunidade teraputica, isto , uma estrutura no-mdica na qual todas as pessoas esto envolvidas em sua administrao e funcionamento. O Instituto RAID trabalha na perspectiva psicanaltica e da Reduo de Danos, enfatiza a dependncia como uma diculdade relacionada carncia do objeto, da faltam e do desamparo. Neste aspecto, cada caso nico, exigindo estratgias teraputicas que no s levem em conta os aspectos comuns a todas as dependncias, mas que contemple os aspectos peculiares de cada indivduo. As atividades desenvolvidas consideram a complexidade do fenmeno droga/indivduo/contexto sociocultural, integrando para sua compreenso vrias abordagens cientcas e clnicas, com vistas ao desenvolvimento de tipos de interveno ecazes e adaptadas a cada situao. O programa teraputico se estrutura com a convico de que o caminho que leva recuperao nem sempre passa pela abstinncia. A abstinncia mantida dentro da instituio e funciona como estratgia para a maioria dos pacientes, sendo, para alguns, o objetivo nal. Os dois princpios bsicos do tratamento so a voluntariedade e o anonimato, que tem por objetivo : conscientiz-lo sobre a dependncia; trabalhar a abstinncia, no necessariamente como meta nal; e melhorar a qualidade de vida. A ideia fundamental que as pessoas iro fazer o tratamento e no receber. As CMC atendem usurios encaminhados pelos CAPS AD e tm como mdia de permanncia 35 dias. Aqui, so trabalhados os projetos teraputicos pactuados nos CAPS, para onde retornam os usurios aps a alta.
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Neste equipamento, destaca-se o Acompanhante Teraputico (AT), tcnico no-mdico, de nvel superior ou mdio, ou ex-dependente, que funciona como catalisador das aes. , ao mesmo tempo, representante da norma teraputica e organizador administrativo, que funciona como ego auxiliar nos momentos de maior tenso e angstia dos hspedes e da instituio (Oliveira, 1978).

Desaos para implantao do modelo integral


Como desaos para o desenvolvimento de um modelo integral de ateno sade dos usurios de AD, podemos citar a prpria resistncia implantao do SUS, sobretudo pelos interesses corporativos e de mercado. Outra questo relevante a formao prossional na rea da sade que no contempla o problema de AD, e que ainda pautada pelo modelo biologicista de causalidade, tanto perpetua e gera preconceitos com o tema, como resistncia a mudanas propostas, em especial, s estratgias de reduo de danos. Outro desao a busca da integralidade, em oposio abordagem pautada na doena, na ateno curativa, centrada na ao mdica e no uso de equipamentos e insumos, que privilegia o conhecimento cientco, em detrimento do popular, e desconsidera a subjetividade. A precariedade das relaes de trabalho e a desarticulao das polticas pblicas tambm dicultam o desenvolvimento de uma prtica integral. Tambm so desaos a serem enfrentados: a descontinuidade na administrao pblica, principalmente quando se desenvolvem aes enquanto poltica de governo, e no de Estado; o enfretamento das crescentes internaes involuntrias, criando novos manicmios; e a necessidade de mudanas na legislao que gerem maior proteo aos usurios. Finalmente, preciso enfrentar esses desaos a partir de uma mudana de atitude frente s negociaes, se o que temos
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em vista a transformao da sociedade, como bem evidenciou David Capistrano Filho3:


Nessa luta permanente pela transformao da sociedade e de todos os cidados, no devemos nos deixar amedrontar pela idia de confronto: ...se no zermos confronto e conito, no vamos avanar nem mudar nada. Umas das piores vertentes da tradio brasileira o horror ao conito, a busca do consenso, a valorizao do consenso, que gerou um tipo humano especial, que chamado de homem cordial brasileiro. Essa idia de consenso, de mascarar o conito, s serve conservao das coisas como esto.

Bibliograa
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3 Mdico sanitarista, Secretrio de Sade e Prefeito da cidade de Santos-SP, onde foi implantado o primeiro Programa de Reduo de Danos no Brasil. Proferida no 6 Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, Salvador, agosto de 2000.

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A contribuio do centro de referncia em reduo de danos: nossas palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas
Rose Teresinha da Rocha Mayer1

Resumo
Este artigo pretende situar o leitor quanto s construes no mbito das polticas pblicas, em especial no Sistema nico de Sade SUS, do cuidado s pessoas que usam drogas. Para isso, apresenta o trabalho e as elaboraes do Centro de Referncia para o Assessoramento e Educao em Reduo de Danos CRRD da Escola de Sade Pblica ESP da Secretaria de Sade do Estado do Rio Grande do Sul SES/RS. Considera, para isso, a participao no Congresso Nacional de Psicologia, promovido pelo Conselho Federal de Psicologia, a convite do Conselho Regional de Psicologia da 7 regio e do evento Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas, em uma de suas edies regionalizadas, ocorrida em Santa Maria.
1 Psicloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Coordenadora do Centro de Referncia em Reduo de Danos da ESP/RS.

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Introduo
A Educao Permanente em Reduo de Danos vive uma questo a ser superada no trabalho cotidiano: o imaginrio em torno da RD est centrado nas aes e nos servios como se a RD fosse necessariamente sinnimo de Programa de Reduo de Danos PRD, servio que se inicia no Brasil a partir de 1995, ou de um fazer especco de redutores de danos, trabalhadores da rede que iniciaram suas prticas vinculados aos PRD. (RD = PRD = redutor) Seus desaos incluem: qualicar o cuidado da rede com relao s pessoas que usam drogas; tornar a ao mais reexiva, no reduzindo o fazer aos insumos e a orientao preveno; intensicar desenvolvimento dos eixos relativos ao SUS na interao com as pessoas que usam drogas e sua rede de afetos para qualicar a Ateno (a qual inseparvel da Gesto), problematizar a concepo tradicional de Gesto em termos de hierarquia e fragmentao, fortalecer a constituio do Controle Social e diversicar possibilidades e estratgias de Educao e Sade.

Contextualizao
A Educao em Reduo de Danos o trabalho do Centro de Referncia para o Assessoramento e Educao em Reduo de Danos CRRD da Escola de Sade Pblica ESP, coordenadora do processo de educao para o SUS, que faz parte da Secretaria de Sade do Estado do Rio Grande do Sul SES/RS, cuja funo contribuir para o processo de implementao desta poltica pblica. A atribuio do CRRD consiste em planejar, acompanhar e constituir processos de educao, assessoramento e produo de conhecimento, em aes de parceria, voltados aos trabalhadores de/em sade num compromisso tico e poltico, ao considerar entre seus conceitos operadores: - Princpios e diretrizes do SUS; - Educao como criao e protagonismo;
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- Sade como qualidade de vida; - Coletivo como construo/produo/determinante social; - Uso de drogas como sintoma social; - Educao em Sade Coletiva; - Educao Permanente como processo procedimento, prescrio; - Intersetorialidade/ Interdisciplinaridade/ Entre saberes; - Quadriltero (Ateno, Gesto, Educao, Controle Social)2; - Campo Sade Pblica; - Compreenso Sade Coletiva; - nfase na Reduo de Danos diretriz de trabalho. A Educao em Sade Coletiva em Reduo de Danos, que compete ao CRRD, efetiva-se ao: 1 - Assessorar e acompanhar aes e programas de reduo de danos. Processos de trabalho, servios da rede integral e intersetorial, municpios e Coordenadorias Regionais de Sade CRS; 2 - Desenvolver educao em sade e orientao acadmica; 3 - Planejar e organizar diferentes modalidades e metodologias de processos de aprendizagem em reduo de danos e suas interfaces; e 4 - Desenvolver relaes intra e intersetoriais para implementao da RD.

Contornos e pblico de trabalho do CRRD


Entre os atores do cenrio, temos saberes e prosses, trabalhadores co-responsveis pelos caminhos a serem construdos com as pessoas que usam drogas, entre os quais se destacam os trabalhadores da sade das regionais, das redes de Ateno Bsica (Estratgias de Sade da Famlia, Unidades Bsicas de Sade), de Sade Mental (Hospital Geral, Centros de Ateno
2 Construo embasada nas contribuies da Ricardo Burg Ceccim em seu perodo como diretor da ESP.

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Psicossocial, Ambulatrios), e de Doenas Sexualmente Transmissveis e Aids DST/Aids (Centros de Testagem e Aconselhamento CTA, Servios de Atendimento Especializado SAE) e das Organizaes da Sociedade Civil (Organizaes No Governamentais ONG e Comunidades Teraputicas) das macrorregies do Estado, bem como as pessoas que usam drogas e, no dizer da Poltica Nacional de Promoo Sade, s muitas vidas que a ela se ligam e pelas que nela se expressam. Deste modo, h diversas instncias em relao aos atores do cenrio social: a dimenso sujeito/coletivo, pblico/privado, estado/sociedade, clnica/poltica, setor sanitrio/outros setores, assim como diferentes espaos entre os quais rgos denidores de polticas, universidades e localmente, nos espaos onde vivem as pessoas. A Direo de trabalho do CRRD se pauta em construo de conhecimento, incentivo, suporte e apoio produo e sistematizao deste nas prticas de trabalho. Considera-se o cotidiano como via de aprendizagem, a contradio constitutiva e operativa, o convite ao dilogo conceitual, contribuir para qualicar modos de gesto, de ateno e condies de sade a partir do vis da RD. O projeto de trabalho do CRRD visa a contribuir para qualicar o cuidado s pessoas que usam drogas e sua rede social. Para tanto, cabe estabelecer dispositivos para acompanhar a operao subjetiva de cada trabalhador na diferenciao de sade e moralidade, o que passa por uma construo conceitual que subsidie um fazer/pensar em sade anado com a Sade Coletiva3, ou seja, uma disposio compreensiva dos modos de viver e trabalhar, entendendo-os como produes sociais, as quais se inserem na transio poltica organizativa do Estado, das polticas pblicas e, mais especicamente, do SUS. Esse pro3 Esta Construo Conceitual constituda por temticas como Sade Coletiva, Drogas, Uso de Drogas como sintoma social, Reduo de Danos como diretriz de trabalho, aproximao das compreenses de Sade Mental e Sade Coletiva na efetivao de uma Sade Mental Coletiva, Integralidade, diferenciao de Sade e Moral, e inseparatividade entre Ateno e Gesto.

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cesso convida a capilarizar a Reduo de Danos, ao enriquecer e diversicar o cuidado s pessoas que usam drogas em todas as prticas, disciplinas, perspectivas tericas, prosses e servios envolvidos na integralidade e na intersetorialidade da produo de sade. Para isso, a Reduo de Danos apresenta-se como diretriz de trabalho, contorno do SUS que o transversaliza. A construo conceitual relevante para qualicar o cuidado envolve diversas dimenses e saberes que no se limitam educao em Reduo de Danos, mas que a ela se relacionam, como o quadro que segue: Desaos da construo conceitual que transversaliza a Reduo de Danos
Campo/saber Conhecimento Planejamento Organizao do trabalho Uso de drogas Sade Sade Pblica Sade Mental Ateno Bsica DST/Aids Posio Anterior especialista positivismo normativo hierarquia burocrtica moral ausncia de doena higienismo (prescrio) hospital - via de cuidado procedimento/multiprosso Preveno 3//epidemia Direo de Trabalho generalista construtivismo estratgico situacional horizontalizao entre a equipe direito sade qualidade de vida Reforma Sanitria Sade Coletiva (compreenso) Reforma Psiquitrica (subjetividade e relaes) processualidade/intersetorialidade promoo da vida/cronicidade Diretriz de trabalho do SUS garantia para o exerccio de direito

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Reduo de Danos metodologia/tcnica/ abordagem Estatuto social meio para abstinncia

4 Direito sade contribuio de Manoel Mayer Jnior, trabalhador do CRRD e da Assistncia Social do municpio de Porto Alegre. 5 Exerccio de direito elaborao da trabalhadora Flavia Costa da Silva, no perodo de coordenao da Poltica Municipal de DST/Aids e do Programa de Reduo de Danos do municpio de Santa Maria.

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Compreenses, proposies e polissemias da diretriz de trabalho da reduo de danos


A RD pode ser pensada como: histria, conceito, metodologia, estratgia, paradigma, cidadania, modo de interveno, tratamento, tecnologia leve de cuidado6, objetivo teraputico7 e diretriz de trabalho. Presente na Inglaterra, em 1926, revitalizada na Holanda e inserida no Brasil desde 1994, vinculada reduo da incidncia do HIV em usurios de drogas injetveis. Para alguns, foi equivocadamente entendida como apologia ao uso e reduzida troca de seringas, mas de todo modo contribuiu nesse perodo como metodologia de preveno terciria. Nas palavras de Wodak & Saunders (1995), como conceito a reduo de danos uma tentativa de minimizar as conseqncias adversas do consumo de drogas do ponto de vista da sade e dos seus aspectos sociais e econmicos sem, necessariamente, reduzir esse consumo. Como estratgia, decorre da aproximao com os outros espaos e trabalhadores da sade pblica, decorrente dos movimentos de interao de setores e servios responsveis pelo trabalho com HIV/DST/Aids. No CRRD, em 2003, experimentou-se a elaborao da Reduo de Danos Ampliada8 para superar distores, viabilizar interaes e aproximar efetivamente a Reduo de Danos da Sade Coletiva: construo de estratgias singulares e coletivas na perspectiva de rede que visem a fortalecer fatores de proteo e reduzir riscos em diferentes contextos e problemticas dos modos de viver e trabalhar. Contudo, em termos de nanciamento, essa elaborao ofereceu uma oportunidade de desvio dos interesses de sade para as pessoas que usam drogas para toda sorte de outras necessidades9.
6 Ao encontro das proposies de Emerson Elias Merhy na temtica de Sade Coletiva 7 Conforme contribuio de Renata Brasil nos momentos de interface com o CRRD. 8 Construo coletiva da equipe do CRRD com a participao de Carmem Reverbel e Marta Conte, trabalhadoras de sade que compuseram a equipe de trabalho no perodo. 9 Contribuio de Mrcia Rejane Colombo em seu perodo como Consultora responsvel pela Reduo de Danos da Seo Estadual de Controle das DST/Aids da SES/RS.

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deste modo que a Reduo de Danos pode ser compreendida como estratgia de Sade Pblica. Descendente de uma concepo pragmtica, contribui com a noo de um possvel a ser constitudo no espao entre o ideal e o real, via de cidadania para as pessoas que usam drogas, modo de interveno, forma de tratamento, tecnologia leve de cuidado, objetivo teraputico, mas, desde 2004, ocupa o cenrio da sade pblica brasileira como diretriz de trabalho por meio das elaboraes da Poltica Nacional de Ateno Integral aos usurios de lcool e outras drogas MS, 2004. Este entendimento reforado, em 2006, na Poltica Nacional de Promoo da Sade, a qual rearma a concepo a partir da qual a sade produzida socialmente e a busca por expandir o potencial positivo de sade, portanto, a ausncia de doenas no suciente; assim como que a promoo da sade realiza-se na articulao de diferentes dimenses (sujeito/coletivo, pblico/privado, estado/sociedade, clnica/poltica, setor sanitrio/outros setores); e, para isso, as aes de promoo concretizam-se em diversos espaos, em rgos denidores de polticas, nas universidades e, sobretudo, localmente, nos espaos onde vivem as pessoas.10 MS, 2006. Em relao RD, ressalta: resgatar o usurio em seu papel auto-regulador, sem a preconizao imediata da abstinncia e incentivar mobilizao social; reconhecer cada pessoa que usa drogas em suas singularidades; traar com ela estratgias que esto voltadas no para a abstinncia como objetivo a ser alcanado, mas para a defesa de sua vida; aumentar o grau de liberdade, de co-responsabilidade da pessoa, como mtodo; implica o estabelecimento de vnculo; os prossionais tambm passam a ser co-responsveis pelos caminhos a serem construdos pela vida daquela pessoa, pelas muitas vidas que a ela se ligam e pelas que nela se expressam. Tal compreenso da RD tambm se coaduna com as polticas nacionais de Sade Mental e Ateno Bsica. Poltica de
10 Conforme a contribuio de Vania Mello nas aes de educao em sade do CRRD.

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Sade Mental, baseada na proposta da Reforma Psiquitrica Brasileira, rene prticas em sade pautadas pelo SUS para a estruturao da rede de sade mental e tambm tem como foco o territrio. composta por uma rede de servios substitutivos ao modelo hospitalocntrico (como os Centros de Ateno Psicossocial CAPS, residenciais teraputicos, hospitais-dia, ambulatrios, centros de convivncia, entre outros) MS, 200411. A Poltica Nacional de Ateno Bsica apresenta entre suas proposies o territrio adscrito, onde a vida acontece, a aproximao da comunidade como via de sistematizar quais so seus principais recursos e quais as suas necessidades, bem como as prticas gerenciais e sanitrias democrticas e participativas e a autonomia relativa das equipes do campo da Ateno Bsica e o trabalho em equipe.12 Converge, ainda, com os Princpios e diretrizes do SUS para que, a partir da Universalidade, a sade direito de todos, para todos, portanto, nosso histrico de cuidado necessita ampliao para outras possibilidades e demandas de sade. Com a Integralidade, tem-se o desao de trabalhar com as pessoas alm de seus sintomas e da doena que possam apresentar, mas de acordo com o processo dinmico de sade/doena/cuidado/ qualidade de vida para cada pessoa. A Equidade convida a considerar vrios dispositivos e estratgias de cuidado que contemplem os diferentes ritmos de cada pessoa e seus diversos movimentos na relao com sua sade, ao trat-los diferentemente medida que se diferenciam e ao levar em conta as desigualdades sociais. A Descentralizao convoca o municpio como a via privilegiada de cuidado, e a Regionalizao prope articular com o entorno local as possibilidades de cuidado quando o municpio
11 De acordo com a elaborao de Paula Carolina Gans em seu perodo como residente da Residncia Integrada em Sade RIS na nfase Sade Mental Coletiva da ESP. 12 Sistematizao realizada para aes de educao em sade do CRRD por parte de Camila Guaranha, Gabriela Conterato e Tais de Zeni, residentes de terceiro ano de 2009 em lcool e outras drogas da nfase de Sade Mental Coletiva da RIS/ESP.

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no tem, sozinho, condies de estabelecer uma resposta efetiva s necessidades de sade de seus habitantes. A Participao convida a sociedade, por conseguinte, cada pessoa, a uma posio protagonista tanto na produo social da sade quanto em relao s escolhas referentes ao seu prprio cuidado. Assim, a Reduo de Danos via de cidadania, pois se apresenta de acordo com movimentos histricos e sociais como a Abertura Poltica, a Constituio Federal, a Reforma Sanitria, a Reforma Psiquitrica, o Estatuto da Criana e do Adolescente ECA, o Estatuto do Idoso e o Sistema nico de Assistncia Social SUAS. A Reduo de Danos como modo de interveno busca superar falsas dicotomias. Por exemplo: entre salvar e cuidar, dispe-se a uma aposta na pessoa, entre o equvoco da fragmentao entre abstinncia e reduo de danos, de acordo com a Sade Coletiva, foca em um cuidado usurio-centrado, ou seja, investe no movimento da pessoa em relao a seu cuidado, entre o ideal e o possvel, como j se disse, o destaque se coloca na construo de um possvel, a superao da dade da culpa e da responsabilidade se apresenta na nfase s combinaes a serem refeitas, revisadas e recolocadas tanto quanto necessrio na direo de uma co-responsabilizao em termos do agenciamento do cuidado. Entre a necessidade, identicada pelo olhar do trabalhador, e a demanda, que se articula inicialmente, como pedido da pessoa que usa drogas, permitir, no processo de cuidado, que emirja o desejo, a princpio desconhecido, tanto para o trabalhador em sade quanto para a pessoa que usa drogas. Entre sujeito e objeto, prioriza-se a relao; entre igualdade e diversidade, convida singularidade; entre erradicar ou minimizar o uso, ocupa-se de acompanhar o processo de cada pessoa. no entre das palavras que o cuidado pode fazer passagem: a pessoa que usa drogas pode transitar da posio de agonizar para se protagonizar. A Reduo de Danos como tratamento traz consigo a pergunta: Como fazer Reduo de Danos? para a qual a primeira
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possibilidade de resposta : com protagonismo. No existe Reduo de Danos sem protagonismo, assim como no existe Reduo de Danos sem uma estreita relao com o cuidado com as pessoas que usam drogas, mesmo que as possibilidades de trabalho possam ser exploradas em relao a outros campos e reas e tambm que no sejam exclusivas propriedades desta contribuio, a vinculao com o uso de drogas uma preocupao tcnica/ poltica do fazer/pensar em sade em Reduo de Danos. Ao se apoiar no discurso da pessoa que usa drogas e ao considerar sua co-responsabilidade, bem como a de sua rede de afetos, pode-se encontrar vias de produzir sade na perspectiva da capacidade de lidar potencialmente com sua vulnerabilidades13. O enlace da pessoa que usa drogas no cuidado de si, a partir de suas palavras, protagonismo que pode tomar diversos contornos: Risco e Proteo dimenso subjetiva do que sade para a pessoa, o que problema para ela, o que a incomoda em relao a seu cotidiano, ao tomar a integralidade como referncia (alm de sinais e sintomas), dimensionar com ela o que funciona como proteo e o que tem a congurao de risco em sua vida; Momento o uso de drogas questo? Como a pessoa se percebe e quanto ao que se questiona em relao ao seu uso, ao que se prope para qualicar sua sade. As respostas a essas perguntas delineiam um projeto compartilhado de cuidado; Ritual a narrativa do encontro com a droga possibilita vislumbrar conexes, interesses, preocupaes, bem como pode dar a ver aspectos como relao, funo, tipo de escolha, frequncia e contribui para que a palavra tome lugar em situaes nas quais a compulso pode estar dotada de intensidade; Relao experimentao, uso, abuso e dependncia como estados condio permanente. Como o trabalhador de sade situa a intensidade dessa relao: experimentao, uso, abuso, dependncia? possvel algum movimento? H disponibilidade para isso?
13 Colaborao de Lucenira Luciane Kessler em seu perodo como residente da RIS na nfase Ateno Bsica em Sade Coletiva da ESP a partir da produo de Tom Z.

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Funo o lugar do uso na vida da pessoa (via de prazer, ferramenta de sobrevivncia, suplncia o uso de drogas tem um espao estratgico e organizador no cotidiano da pessoa ou suplemento o uso de drogas um elemento entre tantos outros que compe a vida da pessoa). Este dimensionamento abre vrias possibilidades de trabalho, inclusive em relao ao projeto de vida; Projeto de vida a compatibilidade do uso de drogas com sonhos, horizontes e planos futuros da pessoa; Condio de sade dimenso objetiva do que sade para a pessoa. s vezes, na dimenso do corpo que a pessoa estabelece um ponto de toque para que o trabalho acontea; Tipo de droga reviso ou rearmao da escolha da droga ou das drogas de uso, o elenco e o repertrio de uso de cada pessoa. Esta composio pode apontar a articulao de estratgias que incidam na frequncia ou no esquadrinhamento de fatores de risco e de proteo, por exemplo; Frequncia de uso intervalos, ritmo de uso, possibilidades de inveno do cuidado de si; Co-morbidades associao com outros sofrimentos e agravos que podem mascarar a principal diculdade da pessoa ou aquilo que mais lhe provoca sofrimento. O uso de droga funciona como uma espcie auto-medicao quando determinadas situaes, sentimentos ou sensaes se apresentam? Ciclos de vida crianas, adolescentes, adultos, idosos e suas peculiaridades. Quais as especicidades a serem contempladas nos diversos modos de cuidado a serem construdos com a pessoa, sua rede, seu contexto e suas condies na vida. Algumas delas vo remeter necessidade de polticas pblicas, como no caso da relao de adultos, com baixa escolaridade, faixa em torno de 40 anos, uso de lcool e desemprego, situao que alia o cuidado no nvel da ateno14 e da integralidade e a discusso e implementao de polticas pblicas de trabalho e renda, no nvel da gesto e da intersetorialidade;
14 Refere-se aos quatro eixos do SUS: ateno, gesto, educao e controle social.

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Diversidade indgenas, negros, mulheres, etc., suas caracterizaes culturais e histricas, as vulnerabilidades relacionadas e o agenciamento de polticas pblicas que contribuam para cidadania, qualidade de vida e existncias menos tuteladas. Trata-se da apropriao de si por meio de um projeto de vida revisitado atravs das palavras que a pessoa que usa drogas possa pronunciar sobre si e sobre o que possa desejar.

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Autonomia e medidas socioeducativas


Srgio Guimar Pezzi1 O Seminrio Outras palavras... diferentes olhares, sobre o cuidado de pessoas que usam drogas , realizado em 07/10/09 na cidade de Lajeado/RS, oportunizou um debate fecundo sobre drogadio, servios pblicos voltados a esse sintoma social e a poltica de reduo de danos. Em algum momento dos debates, a palavra autonomia foi enunciada, desencadeando algumas reexes. Como integrante da equipe tcnica do Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social de Lajeado (CREAS), responsvel pela execuo das medidas socioeducativas em meio aberto, referi-me a esse conceito como algo que no est sucientemente claro, embora habite, com frequncia, nossas palavras. Uma fagulha parece ter cado acesa e, mais, provocou um desao: escrever esse artigo relacionando o conceito com a execuo das medidas socioeducativas. O que segue so reexes de cunho marcadamente losco sobre a genealogia do conceito de autonomia e uma problematizao quanto s possibilidades de seu desenvolvimento junto a adolescentes em conito com a lei. A partir de Kant (1724-1804), o conceito de autonomia, em seu mbito moral, toma vulto e vai inuenciar signicativamente vrios campos, entre eles o da Educao, da Sade e da
1 Psiclogo e Psicanalista, Mestre em Educao, Membro da Equipe Tcnica do CREAS de Lajeado/RS.

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Assistncia Social nos sculos seguintes. Contemporaneamente o encontramos, seja na legislao federal2, seja em normativas3, indicando um ideal a ser alcanado pelos sujeitos. A nfase no conceito de autonomia tem sido reforada no mbito do conhecimento, ou seja: a capacidade do sujeito de encontrar solues para problemas novos que se apresentam, valendo-se do que dispe; no mbito da gesto pedaggica, poltica e nanceira
2 Lei N 9.394, de 20 de dezembro de 1996 LDB, Ttulo V, Captulo II, Seo IV: III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico; Lei N 11.343 de 23 de agosto de 2006 - Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas: Art. 4. So princpios do Sisnad: I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto sua autonomia e sua liberdade. Art. 19. As atividades de preveno do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princpios e diretrizes: III - o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relao ao uso indevido de drogas. Lei N 9.394, de 20 de dezembro de 1996 LDB, Ttulo V, Captulo II, Seo IV: III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico; Lei N 11.343 de 23 de agosto de 2006 - Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas: Art. 4. So princpios do Sisnad: I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto sua autonomia e sua liberdade. Art. 19. As atividades de preveno do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princpios e diretrizes: III - o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relao ao uso indevido de drogas. 3 Sistema nico de Assistncia Social SUAS, NOB/SUAS - Construindo as bases para a implantao do sistema nico de assistncia social - Braslia, julho de 2005: 1, b, III. Vigilncia assistencial: A funo de vigilncia social no mbito da Assistncia Social: (...) - identica a incidncia de vtimas de apartao social, que lhes impossibilite sua autonomia e integridade, fragilizando sua existncia; (...) O sistema de vigilncia social de Assistncia Social responsvel por detectar e informar as caractersticas e dimenses das situaes de precarizao, que vulnerabilizam e trazem riscos e danos aos cidados, a sua autonomia, socializao e ao convvio familiar. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SINASE, Braslia, junho de 2006: 6.2.2. Desenvolvimento pessoal e social do adolescente: (...) As aes socioeducativas devem exercer uma inuncia sobre a vida do adolescente, contribuindo para a construo de sua identidade, de modo a favorecer a elaborao de um projeto de vida, o seu pertencimento social e o respeito s diversidades (cultural, tnicoracial, de gnero e orientao sexual), possibilitando que assuma um papel inclusivo na dinmica social e comunitria. Para tanto, vital a criao de acontecimentos que fomentem o desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e de competncias pessoais relacionais, cognitivas e produtivas. OBS: Grifos do autor.

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das instituies escolares, ou seja: processos descentralizadores e de autogesto dos procedimentos pedaggicos e administrativos das unidades escolares frente s mantenedoras, como tambm nos processos sociais autogestionrios. O que me interessa aqui o conceito de autonomia no mbito moral. Ningum arma que a autonomia moral tenha perdido sua importncia, mas as pesquisas encontradas no versam sobre esse aspecto. No atual estado de conhecimento4 sobre esse objeto veriquei, a sua pouca relevncia no campo da moral, dado que nenhuma pesquisa ali o situa, mesmo quando trata da trajetria do conceito (Martins, 2002), encaminhandoo para a esfera poltica contempornea. Notadamente, h um estiolamento do conceito, em que pese sua fundamentao para as reas j citadas. H um anseio social de que os sujeitos se autonomizem moralmente, mas, no entanto, o que signica losocamente esse conceito e quais as possibilidades dessa construo acontecer no cumprimento das medidas socioeducativas em meio aberto?

Autonomia: Breve Percurso Conceitual


Como destaquei no pargrafo anterior, a maioria das pesquisas realizadas sobre autonomia no vai ao encontro da vertente moral. Deslizam para o autogoverno administrativo e/ou pedaggico nas escolas ou para a transposio de conhecimentos. A autonomia, enquanto um valor moral, pode ser confundida com a aquisio de verdades eternas. Nada mais equvoco. De acordo com Giacoia Junior (2005, p. 36):
(...) a moral sempre foi a tentao suprema, a que jamais puderam resistir os lsofos, porque acreditavam em verdades morais, como se os valores mo4 PEZZI, Srgio Guimar. A Autonomia na Educao Escolar: to longe, to perto... Dissertao de Mestrado em Educao, PUCRS, Janeiro de 2008.

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rais fossem verdades eternas. E, sendo assim, jamais foi o caso de se problematizar a moral, de se colocar a pergunta pelo seu valor prprio, uma vez que tal valor estava, desde o incio, posto como dado, como inquestionvel, como absoluto.

Numa via parecida de explicitao desse equvoco, encontro Oelkers (2007, p.224) armando que a pedagogia geral tradicionalmente vinculada a intenes indivisveis, idias monsticas e universalismos da moral ou da tica, que so considerados absolutamente bons e, portanto, legtimos. A seguir, no mesmo texto, ele arma que toda pedagogia geral remete para conceitos de bem (...). A educao deve ser fundamentada com um conceito de bem que no se torne duvidoso pelo fato de que outros digam coisas diferentes (p. 224-225). Acrescentando, o referido autor nos diz (p. 228):
(...) o bem necessrio e passvel de fundamentao, mas apenas em concorrncia e, assim, com distanciamento de si mesmo. Do contrrio, seria impossvel corrigir o bem; o bem seria sagrado, como na tradio platnica, e no viriam tona concorrentes de direito ou ocorreriam erros produtivos mas exatamente isso deve ser possvel, uma vez que nenhuma alegao de generalidade realmente geral.

Assim como a ideia de bem no pode mais ser sustentada por fundamentao metaf sica, a autonomia moral tambm deve ser revista, o que remete a uma questo: ser construda a autonomia moral junto a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto? A resposta advir no como prescrio ao que vem sendo indicado nos documentos elencados. Esse artigo tem por objetivo problematizar a questo a partir da inveno kantiana, de tal sorte que se possam efetivar atos que impulsionem a construo de autonomia moral. Para pensar a autonomia, optei por reconstituir alguns momentos signicativos de seu percurso enquanto um conceito
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moral. Cada lsofo recoloca, critica, traz novidades ao que lhe antecedeu. Anterior formulao de Kant, h uma rica trajetria do pensamento losco, concernente ao que vir ser o conceito de autonomia, sobre o qual no vou me ater nesse artigo. um risco, porm, ao faz-lo busco constituir um entendimento que auxilie na compreenso dos deslocamentos do conceito de autonomia. No movimento das ideias, aps a contribuio de Kant, tambm farei alguns recortes sem, contudo, deixar de situar o conceito em suas transformaes. A rigor, no h meno ao conceito de autonomia, pelo menos diretamente, entre os lsofos anteriores a Kant. Mas, atravs do conceito de vontade, o conceito de autonomia, construdo na efetividade histrica do pensamento losco e como marco primordial em Kant, faz-se presente subjacentemente. Nesses recortes, que trazem uma breve trajetria do conceito, estaro presentes os embates, nada superciais, sobre o conceito em questo e as repercusses nos diversos campos de trabalho. As novas ideias na losoa moral moderna foram estimuladas pelo chamado voluntarismo. O prprio Kant, em certos aspectos de suas ideias sobre a moral, ir desenvolv-las numa oposio ao voluntarismo. O voluntarismo defende uma posio de submisso e obedincia s ordens de Deus, por serem ordens suas, sendo apenas o que nos resta. Deus est afastado de ns em perfeio e em compreenso, devemos ser mantidos em ordem atravs de comandos e sanes. Para os antivoluntaristas, o quadro outro. Deus e ns pensamos na moralidade com similitude, garantindo justia com recompensas e punies, nessa vida ou aps a morte. O movimento do voluntarismo para o antivoluntarismo e o fortalecimento do intelectualismo sero fundamentais para a genealogia da autonomia, tal como ela ser construda em Kant. Antes, porm, preciso examinar a inuncia que um lsofo francs exercer no pensamento kantiano. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deixa de dar um carter exclusivo no campo jurdico-poltico ao conceito de autonomia,
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adentrando no campo da moral. Para Rousseau, a vontade particular submete-se vontade geral, aos interesses de toda a comunidade, expressa por leis pblicas apoiadas no poder do Estado. De acordo com Rousseau:
O homem nasce livre e, por toda a parte, encontra-se a ferros. O que se cr senhor dos demais, no deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudana? Ignoro-o. Que poder legitim-la? Creio poder resolver esta questo. Se considerasse somente a fora e o efeito que dela resulta, diria: Quando um povo obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lhe arrebataram, ou tem ele o direito de retom-la ou no o tinham de subtra-la. A ordem social, porm, um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, no se origina na natureza: funda-se, portanto, em convenes. (1987, p. 22)

Por vezes, sua losoa interpretada como um caminho de regresso natureza, como um estgio anterior sociedade e, por conseguinte, de oposio civilizao e ao progresso. O que no corresponde ao que ele prprio escreveu, tal como encontramos nessa passagem do Emlio:
O homem no comea a pensar facilmente, mas logo que comea no se detm mais. (...) Mas considerai primeiramente que, querendo formar um homem da natureza, nem por isso se trata de fazer dele um selvagem, de joglo no fundo da oresta; mas que, entregue ao turbilho social, basta que no se deixe arrastar pelas paixes nem pelas opinies dos homens; que veja com seus olhos, que sinta com seu corao; que nenhuma autoridade o governe a no ser sua prpria razo. (1995, p. 291)

Na teoria social rousseauniana, de acordo com Dalbosco (2005, p. 71), s podemos agir moralmente quando ingressamos
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na sociedade. Uma vez inseridos nela, podemos nos corromper. A soluo seria o contrato social atravs da superao da liberdade natural (liberdade sem regras) para a liberdade moral (liberdade bem regrada). Numa nota de rodap, Dalbosco (2005, p. 75) traz um importante esclarecimento sobre conceitos das losoas de Rousseau e Kant:
Para expressar em termos que sero decisivos para a losoa prtica kantiana a passagem da liberdade natural para a liberdade moral e poltica caracteriza-se pela passagem da coao (Coaction-Zwang) obrigao (Obligation-Verpichtung). Ambos, Rousseau e Kant, pem a condio de que s pode se sentir obrigado quem tem direito lei universal. A lei a que o sujeito sente-se obrigado a obedecer aquela de que ele mesmo tambm seu legislador e seu soberano. (...)

Nesse mesmo texto, Dalbosco (2005, p. 82) resume, em quatro teses, a teoria social rousseauniana, apresentada no livro IV do mile: (a) o homem e a sociedade no devem ser estudados separadamente; b) a fraqueza humana torna o homem socivel; c) a socializao provoca (...) o estranhamento de si mesmo; d) o nascimento das noes de bem, de mal e de moralidade. Essas teses tero importantes desdobramentos nas losoas vindouras ps Rousseau, especicamente em Nietzsche. Rero-me ao homem massa, no qual o devir desconhecido e que, por um estranhamento de si mesmo, poder conhecer sua m conscincia. Rousseau desenvolveu o que se pode chamar de uma teoria antropolgica, na qual o ser humano constitudo por dois sentimentos: amor de si mesmo e o amor prprio. Ambos esto presentes nas relaes sociais e na prpria produo cultural humana. Rousseau (citado por Dalbosco, 2005, p. 84), numa passagem do Segundo discurso, esclarece os signicados desses conceitos:
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No se deve confundir o amor prprio com o amor de si mesmo; so duas paixes bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos. O amor de si mesmo um sentimento natural que leva todo o animal a velar pela prpria conservao e que, no homem dirigido pela razo e modicado pela piedade, produza humanidade e a virtude. O amor prprio no passa de um sentimento relativo, ctcio e nascido na sociedade, que leva cada indivduo a fazer mais caso de si mesmo do que qualquer outro que inspira aos homens todos os males que mutuamente causam e que constitui a verdadeira fonte de honra.

Nas tenses entre o amor de si mesmo e o amor prprio, ou seja: da tenso entre os afetos ternos e afetuosos, que nascem conosco, antecedem, portanto, todas as demais paixes, as quais sero variaes, com as paixes odientas e racveis, constitutivas do processo civilizatrio, formando o ncleo da inautenticidade humana; ou, de outro modo, na passagem de uma forma de liberdade a outra e no submetimento da vontade particular vontade geral, estaria, na losoa de Rousseau, a gnese do conceito de autonomia, tal como Kant o vai constituir. De acordo com as palavras do prprio Rousseau:
(...) qualquer movimento que no seja produzido por outro s pode vir de um ato espontneo, voluntrio; os corpos inanimados no agem seno pelo movimento e no h ao verdadeira sem vontade. Eis meu primeiro princpio. Acredito, portanto, que uma vontade move o universo e anima a natureza. Eis meu primeiro dogma, e meu primeiro artigo de f. (1995, p. 315)

Ainda na referida obra, Rousseau arma: Acredito, portanto, que o mundo governado por uma vontade poderosa e sbia; eu o vejo, ou melhor, eu o sinto e o que me importa saber (1991, p. 319). O lsofo francs atacou as teorias da lei natural de Hobbes, Locke e Pufendorf. Disse que o objetivo da moralidade no
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nos orientar para a felicidade, no concordando com os intelectuais de sua poca que armavam que a disseminao da razo e do conhecimento (Schneewind, 2005, p. 513) melhoraria a moral, aumentaria a felicidade e traria liberdade a todos. Paradoxalmente, armava que o que os intelectuais admitiam como progresso poderia implementar a tirania e a corrupo na vida privada. No que acompanhava os defensores da lei natural, apresentava uma considerao naturalista da necessidade de uma conveno (Schneewind, 2005, p. 514). Atravs de um contrato feito um com o outro, o movimento vai at que todos os envolvidos rmem-no, havendo, ento, um corpo moral e coletivo. Explica, assim, a passagem do estado da natureza para o estado civil. Rousseau admite que sem a linguagem no poderiam existir direitos nem leis e que, antes da atividade racional, sentimos e reagimos a dois princpios: ao amor-prprio e piedade. Desse modo, estaria justicada a bondade humana, que nos faria bons desde o incio, sem interesse em prejudicarmos ningum e teis para com os outros. Esses dois princpios formariam o direito natural e, graas a uma capacidade humana para o aperfeioamento, usufruiramos a linguagem, a abstrao e as demais capacidades racionais, tornando-nos mais complexos. Rousseau no propunha um retorno natureza, mas sim sua alterao de tal sorte que todos pudessem agir de acordo com uma vontade geral. A liberdade no seria agir de acordo com a vontade privada e sim de acordo com a vontade geral. Segundo Schneewind (Idem, p. 517), Rousseau declara:
(...) que somos divididos dentro de ns mesmos. A razo nos mostra um tipo de bem; os sentidos e nossas paixes nos atraem com outro. Ns no somos passivos diante das alternativas. Possumos a vontade; e embora no possamos evitar querer o que consideramos ser o nosso prprio bem, queremos livremente quando nossa vontade reage ao nosso prprio julgamento do bem, e no movida por nada externo a ns mesmos.
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O referido autor arma que, quando Rousseau faz esta armao: queremos livremente quando nossa vontade reage ao nosso prprio julgamento do bem e no movida por nada externo a ns mesmos, est indicado o prenncio de Kant. Immanuel Kant (1724-1804) avana a ideia de liberdade de Rousseau, do submetimento da vontade particular geral, para uma interiorizao. As leis passam a ser mandamentos da razo, reconhecidos em sua validade para todos os seres racionais. A vontade identicada como razo pura, razo prtica e origem de todos os mandamentos universalmente vlidos. Para Kant, a vontade :
(...) uma espcie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade dessa causalidade, pela qual ela pode ser eciente, no obstante as causas estranhas que possam determin-la; assim como a necessidade natural a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados atividade pela inuncia de causas estranhas. (2005, p. 79)

Kant, semelhante a Locke no que diz respeito aos desejos e prazeres, entende que os primeiros nos impulsionam para as coisas que podem nos causar prazer. A causa dos desejos seria a conscincia das coisas, mas nem eles nem o prazer diriam nada sobre as coisas. Ambos no so cognies, nem sujeitos a qualquer tipo de razoabilidade. Para ele, a primeira tarefa da vontade tentar ordenar nossos desejos, aceitando-os ou recusando-os. A vontade identicada como razo pura e razo prtica. A razo, segundo Kant, na Fundamentao da Metaf sica dos Costumes,
mostra sob o nome das idias uma espontaneidade to pura que por ela excede em muito tudo o que a sensibilidade possa fornecer ao entendimento; e mostra a sua mais elevada funo na distino que estabelece entre mundo sensvel e mundo inteligvel, assinalando assim os limites ao prprio entendimento . (2005, p.85)
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Nossa racionalidade no nos permite intuir a causalidade de nossa prpria vontade a no ser sob a ideia de liberdade e essa nos garante a independncia das causas determinantes do mundo sensvel. Sem liberdade no h autonomia e sem ela no h o princpio universal da moralidade, fundamento de todas as aes humanas. Uma vontade, portanto, no submetida a causas estranhas, no submetida s leis da natureza. uma parte de nossa composio psicolgica sem discernimento emprico devendo se constituir numa lei para ela mesma, sua prpria razo lhe fonte. Ela tem um aspecto numenal (inexplicvel) que fundamenta nossa autonomia. O efeito que a lei exerce sobre a vontade designado por Kant como sentimento moral. Esta a denio kantiana de autonomia: , pois, o fundamento da dignidade da natureza e de toda a natureza racional (2005, p. 66). Em outras palavras, na Fundamentao da Metaf sica dos Costumes (Kant, 2005, p. 70) a autonomia denida como a constituio da vontade, graas a qual ela para si mesma sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). Ela um princpio supremo da moralidade, como condio de possibilidade de um imperativo categrico: age como se a mxima da tua ao devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza (Idem, p. 52). Segundo Schneewind, a contribuio de Kant inovadora, porque acrescenta algo novo na histria da moralidade:
No cerne da losoa de Immanuel Kant (...) est a declarao de que a moralidade se centra em uma lei que os seres humanos impe a si prprios, necessariamente se proporcionando, ao faz-lo, um motivo para obedecer. Os agentes que so desse modo moralmente autogovernados Kant chama de autnomos. (...) Sua concepo da moralidade como autonomia algo novo na histria do pensamento. (1999, p. 527)

Faz-se necessrio recuperar a relao entre moralidade, autogoverno e autonomia, para car mais claro como Kant chega a sua concepo de moralidade.
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Durante os sculos XVII e XVIII, as concepes de moralidade como obedincia foram contestadas por concepes emergentes de moralidade como autogoverno. Por obedincia, nas concepes mais antigas de moralidade, entenda-se obedincia a Deus. As orientaes viriam de Deus atravs de nossa razo, ou por meio da revelao ou do clero. Nem todos tinham condies de compreender o que a moralidade queria, sendo necessria a instruo dada por autoridade adequada, como tambm as ameaas de punies e as recompensas, garantindo uma adeso que proporcionasse a ordem moral. No nal do sculo XVIII, instala-se uma crena de que todos os indivduos normais so capazes de viver juntos em uma moralidade de autogoverno. Teramos capacidade tanto de discernir o que a moralidade requer como de nos mover adequadamente, sem necessidade de ameaas ou recompensas. Essa concepo possibilita uma nova conceituao para o espao social em que cada um pode reivindicar autonomia para suas aes, sem interferncia do Estado, da Igreja, dos vizinhos ou de qualquer outro que se diga mais sbio. No sculo XVII e incio do sculo XVIII, a maioria dos lsofos no pretendia substituir a antiga concepo pela de autogoverno, estavam apenas tentando resolver os problemas trazidos por aquela. Achavam que a moralidade crist poderia continuar trazendo orientao til s diculdades at ento no enfrentadas. Schneewind esclarece:
A explicao de Kant desta crena foi mais completa e mais radical que qualquer outra. Ele sozinho props um repensar revolucionrio da moralidade. Defendia que somos autogovernados porque somos autnomos. Com isso, queria dizer que ns mesmos legislamos a lei moral. S por causa da ao legislativa da nossa prpria vontade estamos subordinados lei moral; e a mesma ao que sempre permite que todo mundo esteja sujeito lei. (Idem, p. 32)

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Conforme Canto-Sperber (2003), a capacidade de autodeterminao uma caracterstica da autonomia, sendo essa uma propriedade da vontade. Nesse sentido, dene-a como (...) o princpio determinante da ao que decorre de uma representao (...). Agir pela representao do m prprio dos seres racionais. (Idem, p. 778) Se a representao do m antecede a vontade preciso que ela seja capaz de discernir o bom e desencadear um movimento para esse bem. Logo, um saber sobre o bom e o mau se impe vontade. Para Kant, esse saber, ou seja, essa capacidade avaliadora, o sentimento de prazer e de pena. Mas o objeto no pode determinar a vontade, pois no haveria autonomia. Segundo a autora acima citada, (...) apenas a vontade movida pela lei moral corresponde a essa denio da autodeterminao. Agir moralmente, no querer bem, puro querer. A nica coisa que comanda a lei , por isso, o querer. (Idem, p. 779) Kant, nessa passagem da Fundamentao da Metaf sica dos Costumes, esclarece, ainda mais, a relao entre vontade e lei:
(...) outra coisa no h seno a representao da lei em si mesma, a qual s no ser racional se realiza, enquanto ela, e no o esperado efeito, o fundamento da vontade, podendo constituir o bem excelente a que chamamos moral, que se faz presente j na prpria pessoa que age segundo essa lei, mas que no deve esperar de nenhum efeito da ao. (...) O que reconheo imediatamente como lei para mim, reconheo-o com um sentimento de respeito que no signica seno a conscincia da subordinao da minha vontade a uma lei, sem interveno de outras inuncias sobre minha sensibilidade. A determinao imediata da vontade pela lei, alm da conscincia dessa determinao, o que se chama respeito, de modo que se deve ver o efeito da lei sobre o sujeito e no a sua causa (...) O objeto do respeito , portanto, simplesmente a lei, quero dizer, a lei que nos impomos a ns mesmos, e, no entanto, como necessria em si (...). Todo o chamado interesse moral consiste simplesmente no respeito lei. (2005, p. 28-29)
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Schneewind (2001) arma que, para Kant, a vontade tinha duas tarefas: a primeira delas tentar por ordem nos desejos, aceitando alguns e rejeitando outros. Isso seria possvel pela regra da moralidade, que controlaria os objetivos propostos pelos desejos. A segunda tarefa justamente cuidar para que essa regra seja sempre obedecida. Ainda de acordo com esse autor (2001, p. 563), Kant no deniria a vontade como livre, nem no-livre. Haveria a opo de agir segundo a razo que sua prpria atividade legislativa nos proporciona . O poder de escolha entre optar pela moralidade ou contra ela livre. Escolhendo, podemos no ceder aos desejos, mesmo causados em ns e por nossas relaes com o mundo. Assim, Kant estabelecia a autonomia. Ainda na Fundamentao da Metaf sica dos Costumes, Kant nos situa como seres racionais, considerando-nos, a ns prprios, como inteligncia, no como pertencendo ao mundo sensvel, mas ao inteligvel (2005, p. 85). A razo (Vernunft) uma faculdade pela qual nos distinguimos das outras coisas e de ns mesmos, medida que somos afetados pelos objetos. As representaes, quando somos afetados pelos objetos, constituiro nossa sensibilidade, mas, como seres racionais, pertencente ao mundo inteligvel:
(...) o homem no pode jamais intuir a causalidade de sua prpria vontade seno sob a idia de liberdade, pois a independncia das causas determinantes do mundo sensvel (independncia que a razo tem sempre que se atribuir) a liberdade. Ora, idia da liberdade est inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e a este, o princpio universal da moralidade, que serve de fundamento idia de todas as aes de seres racionais, tal como a lei natural est na base de todos os fenmenos (2005, p. 85)

Kant discorda dos lsofos que designaram o sentimento moral como padro de nosso juzo moral. Arma que ele o efeito subjetivo que a lei exerce sobre a vontade (Idem, p. 92).
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Os defensores da lei natural tinham na moralidade um meio de resolver os problemas causados por nossas relaes antissociais. Rousseau pensou que as pessoas, desde as condies naturais, movidas por raciocnios de meios e ns, chegariam a uma racionalidade prtica que, via contrato social, possibilitaria o alcance da felicidade de maneira agradvel para todos. Kant, diferentemente de Rousseau, pensou o convvio social, apesar de admitir, como Hobbes, nossa disposio para a briga, constitudo por pessoas que no pensavam s em termos de meios e ns. Acreditava que nossa razo prtica possibilitava reprimir os desejos em nome de uma aceitabilidade universal. Podemos buscar a felicidade, mas isso no signica tornar a graticao de um desejo especco parte da nossa felicidade. Podemos recusar, atravs da moral, a aceitao de um desejo como razo para agir. De acordo com Schneewind (2005, p. 593), Kant contribuiu para o progresso da moralidade, mostrando que ela se baseia em um princpio puramente racional, que em si dita os pontos essenciais da f religiosa. Dessa perspectiva, pode-se retomar a questo, posta desde Scrates: Como viver?. A resposta, a partir de Kant, : com autonomia. O que Kant arma que, em se tratando da vontade, ela no pode ser precedida da representao do objeto. H uma faculdade avaliadora, movida por sentimentos de prazer e pena, mas isso no a autodeterminao. Ela existe num puro querer, o que no signica querer o bem. Esse puro querer dado pelo submetimento da vontade lei moral. Ela no estabelece os ns, deixa livre a vontade de tudo que a impede de um puro querer. Nossa racionalidade a fonte dessa lei e esse submetimento da vontade dene a autonomia para Kant. No signica espontanesmo, na autonomia nossas motivaes independem da natureza, dos objetos de qualquer necessidade que tenhamos como seres sensveis. Contemporneo de Kant, Friedrich Schiller (1759-1805) apresenta novos elementos na compreenso da moral. Sua te113

oria sobre a moral est em Cartas para a educao esttica da humanidade, reescritas em 1794-1795. Embora concordando com os princpios da moral kantiana, alenta com a possibilidade de uma cooperao entre o aspecto racional e o aspecto sensvel do eu: dignidade aperfeioada pela graa. A concepo de autonomia muda. De acordo com Canto-Sperber:
Na verdade, a atitude de Schiller face autonomia kantiana , na melhor das hipteses, ambgua. Ele partilha com Kant a idia de que a lei moral autoimposta ou autolegiferante e que s tendo conscincia de estarmos submetidos a essa lei que podemos assegurar nossa independncia em relao causalidade natural. Mas ele arma tambm, em nome da sensibilidade (e contra Kant, em grande parte), que a forma imperativa que a lei supostamente teria na conscincia moral lhe d a aparncia de uma lei exterior, de uma lei positiva, que permite razo tiranizar o lado sensual do Eu. (2003, p. 139)

A preocupao de Schiller, frente a Kant, era quanto submisso do sensvel pelo racional e vice-versa, o que produzir um efeito destrutivo para a liberdade. No haveria autonomia apenas pelo imperativo da lei e pela conscincia de dever como armava Kant. Acompanhando Schiller, quando ele se indaga e, ao mesmo tempo, ilustra a insucincia da razo:
Nosso tempo ilustrado; vale dizer que foram encontrados e tornados pblicos os conhecimentos que seriam sucientes, ao menos, para a correo de nossos princpios prticos; o esprito da livre investigao destruiu os conceitos fantasiosos que por muito tempo vedaram o acesso verdade e minou o solo sobre o qual erguiam seu trono a mentira e o fanatismo; a razo puricou-se das iluses dos sentidos e dos sosmas enganosos, e a prpria losoa, que a princpio nos rebelara contra a natureza, chama-nos de volta para seu seio com voz forte e urgente onde a causa de, ainda assim, continuarmos brbaros? (1991, p. 61)
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Mais adiante, Schiller arma:


A educao do sentimento, portanto, a necessidade mais urgente de nosso tempo, no somente por ser um meio de tornar ativamente favorvel vida o conhecimento aperfeioado, mas por despertar, ela mesma, o aperfeioamento do saber (1991, p. 62).

Schiller compreendeu a natureza humana a partir de dois princpios opostos: duas leis fundamentais da natureza: uma que exige tornar em mundo tudo que mera forma e tornar manifestas todas as suas disposies (1991, p. 76), sua exigncia a realidade; a outra pede que aniquile nele mesmo tudo que apenas mundo e introduza coerncia em todas as suas modicaes, sua exigncia a formalidade. Haveria, ento, uma dupla tarefa ao homem: dar realidade ao necessrio que est em ns e de submeter a realidade fora de ns lei da necessidade (1991, p. 76). Essa tarefa estaria a cargo de dois impulsos: o sensvel, empenhado em nos submeter aos limites do tempo, em nos tornar matria5; e o formal, que est na nossa racionalidade, que visa a nos libertar, negando o tempo e a modicao. Caber cultura assegurar os limites dos impulsos, de tal sorte que um no sobrepuje o outro. De acordo com Rosenfeld:
(...) a teoria do impulso formal e do impulso material ou sensvel provm de Karl Leonhard Reinhold (1758-1823) (...) a nossa faculdade de ter representaes (de representar objetos) conjuga elementos formais e materiais (sensveis). Deve haver, portanto, dois impulsos que pem a funcionar esta faculdade: o impulso material e o impulso formal. O primeiro uma necessidade de receber (receptividade); o segundo uma aspirao de dar forma,
5 Matria, segundo Schiller, signica qualquer modicao ou realidade, que preencha o tempo, dando origem sensao.

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aplicando a nossa espontaneidade. Aquele sensvel e empiricamente determinado; este livre e aspira ao cumprimento do seu mais alto princpio formal, a lei moral. Sua satisfao o ato moral (...) (1991, p. 81)

Para Schiller, o objeto do impulso sensvel chama-se vida e o objeto do impulso formal chama-se forma (Gestalt). O impulso ldico contemplaria a forma viva, que signicaria, no mais amplo sentido, a beleza. Em Cartas sobre a educao esttica da humanidade, Schiller apresenta uma passagem signicativa sobre autonomia, embora no seja propriamente um conceito que Schiller tenha se detido diretamente:
Quando, portanto, dizemos que o belo permite uma passagem da sensao ao pensamento, isto no deve ser entendido como se o belo preenchesse o abismo que separa a sensao do pensamento, a passividade da ao; este abismo innito; sem interferncia de uma faculdade nova e autnoma eternamente impossvel transformar-se o individual em universal, o contingente em necessrio. O pensamento o ato imediato desta faculdade absoluta, cuja manifestao, embora propiciada pelos sentidos, plenamente independente da sensibilidade, tanto que somente em contraposio a ela pode exteriorizar-se. A autonomia com que age exclui qualquer inuncia estranha; no na medida em que auxilia o pensamento (o que seria uma evidente contradio), mas somente na medida em que lhe assegura liberdade de exteriorizar-se segundo as prprias leis, que a beleza pode tornar-se meio para conduzir o homem da matria forma, da sensao lei, do limitado a uma existncia absoluta. (1991, p. 104)

A autonomia ou faculdade autnoma viria, portanto, da prpria luta dos impulsos e seria, para Schiller, a beleza.

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Vontade: Emergncia de Outras Conguraes


Nesse ponto da argumentao, considero importante situar alguns elementos da losoa de Schelling pelo modo como interpreta o papel da vontade. Papel esse que ir se contrapor fora de determinao que Kant confere vontade racional. Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-1854), contemporneo de Kant e Schiller, desenvolve uma ontologia da natureza. O ser no mais pensado como substncia ou essncia, ele um devir, descrevendo uma produo innita da natureza. O ser uma natura naturans, cuja produtividade innita, desordenada e destrutiva, bloqueia-se de modo a realizar-se como produto. Schelling concebe uma losoa da natureza onde uma teoria do inconsciente est presente. Ele seria uma prhistria natural da conscincia e a tarefa do pensamento seria sua anamnese. Em sua losoa, a natureza mostra-se positivamente, pois no teria nada a ocultar. No haveria propriamente uma represso: o passado, ou seja, a natureza bastaria lembr-la. Canto-Sperber (2003) arma que, para Schelling, a natureza ainda rousseauniana: ela boa, bela e harmoniosa e, ainda, (Idem, p. 215) contm um Eu melhor, convocado do fundo de sua inconscincia para salvar o Eu real, histrico, de sua errncia. Segundo Maia-Flickinger, a presenticao do mundo, para Schelling, passa por trs momentos:
Primeiro, h uma produtividade originria inconsciente e nita, a qual precisa, porm, de uma contraparte que a detenha neste impulso innito, provocando o seu desaparecer. Este o segundo momento, o qual reprime a produtividade na sua innitude e no mpeto destrutivo e desordenado, deixando emergir presena produtos reais, isto , nitos. Tais produtos, por sua vez, no podem realizar todo o mpeto da produtividade originria, do contrrio o processo estancaria em sua totalidade. E aqui temos o terceiro
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momento, que determina que cada produto emerso na luta entre a atividade innita e a sua inibio seja to-somente uma iluso, uma aparncia, um substituto transitrio do produto innito, para o qual a natureza avana eternamente. (2005, p. 213)

Se a tarefa humana, na autoconscincia, o exerccio de seu poder na histria e na natureza, abandonando sua escurido e dirigindo-se luz, Schelling arma que no exercemos isso propriamente, pelo contrrio, negamos essa possibilidade, criando uma irracionalidade dominante no mundo que nos cerca. Uma nova concepo de vontade surge com Schelling, medida que ela livre para a perverso, suspeitando-se que a razo no mais orienta a naturalidade e, sim, o contrrio. De acordo com Maia-Flickinger (2005, p. 217), essa inverso signica uma perverso da vontade, submetendo, por si, a razo instncia pulsional. Temos o prenncio da moderna Antropologia e Psicanlise, muito embora Schelling tenha pensado uma soluo teolgica, misturando pensamento antigo e cristo, para resolver o problema. Conforme a losoa de Schelling h um esprito que se torna visvel na natureza. Ele fundamentalmente vontade, e a ligao entre ele e a natureza uma vontade innita de auto querer-se. No h outro ser alm do querer, pertencendo a ele, como primordial, os atributos de eternidade, ausncia de fundamento, atemporalidade e autoarmao. A vontade, portanto, no s dos seres racionais, perpassa a todos os seres. Logo, o pensamento, a inteligncia e a razo no so mais seus elementos constitutivos. Canto-Sperber considera que a vontade em Schelling ser objetivada atravs de um processo de potencializao:
O conhecimento de si em si substitudo pela intuio de si no outro, no objeto que produto do sujeito. A vontade ento essencialmente manifestao, expresso, realizao, exteriorizao. A moralidade
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, por isso, uma manifestao em meio a outras do querer, e, no campo propriamente cultural que caracteriza a realizao do homem, a arte uma objetivao mais adequada. De fato, na arte, a vontade absolutamente criadora porque seu produto um objeto exterior, no qual se realiza a identidade espiritual do real e do ideal. O mundo a objetivao de um esprito que comeo e o m de todas as coisas. (2003, p. 781)

Segundo a autora referenciada, as metaf sicas remetem ao princpio ltimo das coisas e, nesse sentido, a vontade constituise em princpio para os fenmenos da autonomia e da moral. Mas, a vontade explica-se a si mesma, no carecendo da razo. Ela sem razo. At ento, no conhecimento losco, temos a construo de identicaes entre a vontade e o entendimento, entre a natureza e o esprito (2003, p. 781). O movimento que Schiller e Schelling desencadeiam no que diz respeito vontade, ser no sentido de dar lugar, tambm, sensibilidade. Mas, fundamentalmente, a vontade inverte-se, em relao ao sentido kantiano, o que signicaria outro modo de pensarmos o conceito de autonomia. Schelling pensou o ser como um devir, uma gnese, um tornar-se espiritual incessante (apud Maia-ickinger, 2005, p. 212), destituindo-o como uma essncia ou substncia. Haveria dois princpios opostos constituindo o ser como natura naturans. Um deles constituindo-se por uma atividade innita, desordenada e destrutiva. Essa seria limitada, bloquear-se-ia em verdade, constituindo-se no outro princpio limitador, permitindo realizar-se como produto. O resultado dessa luta entre os princpios constitutivos do ser seria o de que os produtos resultantes no passam de iluso ou aparncia, transitoriedades do produto innito. Para Schelling, a razo est submetida instncia pulsional, o que se pode pensar como uma perverso da vontade, e essa a sua liberdade, ou seja: no ela que orienta a naturalidade e
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sim o contrrio, a naturalidade a orienta. Em outras palavras, a vontade , em si mesma, pulso (Maia-Flickinger, 2005, p. 217). Retomando Kant, segundo Schneewind (2001), a vontade uma causalidade dos seres vivos racionais com duas tarefas a cumprir: tentar ordenar os desejos e fazer com que essa regra seja cumprida. O prprio Kant, em sua Fundamentao da Metaf sica dos Costumes, arma:
Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligvel, o homem no pode jamais intuir a causalidade de sua prpria vontade seno sob a idia de liberdade, pois a independncia das causas determinantes do mundo sensvel (independncia que a razo tem sempre que se atribuir) a liberdade. Ora, idia da liberdade est inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e a este, o princpio universal da moralidade, que serve de fundamento idia de todas as aes de seres racionais, tal como a lei natural est na base de todos os fenmenos. (p. 85)

A autonomia kantiana est associada liberdade, atravs da qual podemos intuir a causalidade da vontade (ordenadora de desejos), o que signica independncia da causalidade do mundo sensvel via razo. Com Schiller foi possvel pensar a autonomia como beleza, mas em Schelling, o conceito de autonomia no se faz presente. Para ambos os lsofos, o conceito de autonomia muda, pois a submisso da razo pulso a coloca suscetvel ao mundo sensvel. Surgem particularidades que pediro lugar e vez: atravs de jogos, como indica Schiller; de contratos, como antecipou Rousseau, e de espao pblico, segundo Hannah Arendt. Elas forjaro universalidades possveis, que no mais dependero da fundamentao metaf sica. A fundamentao kantiana, baseada no sujeito transcendental e na vontade racional, comea a sofrer abalos. Retomando Schiller, em sua obra Cartas sobre a educao esttica da humanidade, o pensamento o ato de uma faculdade nova e autnoma possibilitando a exteriorizao do belo.
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A autonomia tambm aqui se deve ausncia de inuncias estranhas, auxilia o pensamento e lhe assegura liberdade para expressar-se. Entendo que a autonomia aqui se refere a uma propriedade do belo e de sua exteriorizao. Schiller, nesse sentido, mais kantiano que Schelling. Arthur Schopenhauer (1788-1860) se distancia da soluo schellinguiana, mas se sua Vontade de Vida, como esforo catico e cego, assemelha-se ao modelo antecedente, acrescenta-lhe a iseno de nalidade. A vontade um devir que, em nvel de conhecimento, no homem, pode alcanar a crueldade. A vontade, at ento explicando o mundo, transformarase num fenmeno espiritual, mas, com Schopenhauer, torna-se cega. De acordo com Canto-Sperber:
(...) o inverso: o esprito apenas uma forma secundria, um epifenmeno, ligado iluso da individuao. Por outro lado, a vontade est mais prxima de sua essncia obscura quando ela se manifesta na natureza em seus nveis mais baixos, a gravitao, os fenmenos biolgicos elementares. A vontade a fora que impele tudo o que existe a ocupar espao, a cercar a matria. (2003, p. 781)

Se, em Kant, a vontade era essencialmente boa, em Schopenhauer ela perde adjetivao. O que acompanha o ser para a vida uma luta sem m pela existncia. A vontade a procura incessante de algo indeterminvel, inalcanvel. Em sua obra fundamental O mundo como vontade e representao, Shopenhauer arma que a vontade no tem m ltimo, que desejo permanente, incessante e incapaz de satisfao plena. Somente o prprio desejo pode se interromper, medida que lana um obstculo para mais alm. No haveria mais a vontade de algum especicamente, esta seria a graduao de um quererviver. Todo aquele que cr querer por si mesmo sofreria de uma iluso. Podemos sentir esse fundo obscuro do mundo (CantoSperber, 2003, p. 782), mas ela, a vontade, no quer nada, no
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est escondida na natureza. Precisa ser negada para que no ocorra a repetio e o sofrimento. A vontade perde seus atributos de autonomia. De acordo com Schopenhauer, na obra citada:
Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carncia, do sofrimento. A satisfao lhe pe um termo; mas, para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. Alm disto, o desejo duradouro, as exigncias se prolongam ao innito; a satisfao curta e de medida escassa. O contentamento nito, inclusive, somente aparente: o desejo satisfeito imediatamente d lugar a um outro; aquele j uma iluso conhecida, este ainda no. Satisfao duradoura e permanente objeto algum do querer pode fornecer; como uma caridade oferecida a um mendigo, a lhe garantir a vida hoje e prolongar sua misria ao amanh. Por isto, enquanto nossa conscincia preenchida pela nossa vontade, enquanto submetidos presso dos desejos, com suas esperanas e temores, enquanto somos sujeitos do querer, no possuiremos bem-estar nem repouso permanente. (verso para ebook, p. 19)

Na mesma obra, no livro IV, verso ebook, o referido lsofo dene o que vontade:
Que a vontade como tal seja livre, deriva do fato que, tal como a consideramos, ela a coisa em si, a substncia do fenmeno. Este, como sabemos, inteiramente submisso ao princpio de razo nas suas quatro categorias; e como sabemos tambm que ser necessrio idntico a ser efeito duma causa dada, que as duas noes so recprocas, da resulta que tudo o que pertence ao fenmeno, a saber, tudo o que objeto para o sujeito cognoscente como indivduo, constitui a causa por uma parte e, por outra, o efeito, que permanece determinado necessariamente nesta ltima qualidade e de nenhum modo pode ser diverso daquilo que . Tudo quanto a natureza compreende, o conjunto dos seus fenmenos, absolu122

tamente necessrio e a necessidade de cada parte, de cada fenmeno, de cada acontecimento pode ser demonstrada em qualquer caso, desde que se possa encontrar a causa de que dependem como duma conseqncia. Isto no oferece excees e resulta da autoridade ilimitada do princpio de razo. Por outro lado, o mundo, em todos os seus fenmenos, objetividade da vontade, a qual, no sendo ela prpria nem fenmeno, nem representao, nem objeto, mas a coisa em si, no est submetida ao princpio de razo que a forma de qualquer objeto: no , portanto, o efeito duma causa, no , por conseguinte, necessria; isto quer dizer que livre (p. 83).

Essas outras compreenses sobre vontade apontam elementos novos, outras conguraes que desestabilizam a segurana metafsica da vontade racional. Conforme observa Hermann:
J no h motivos para crer num fundamento absoluto da tica nem conar que uma ao educativa baseada na losoa da conscincia, com tendncia inerente ao domnio, possa realmente assegurar a realizao do homem autnomo. A unidade do sujeito foi feita ao preo da excluso e da represso. A relao entre autonomia, propagada pela losoa iluminista, em especial a kantiana, e domnio da natureza esfacela a autoconana na razo. O projeto pedaggico moderno teria exigido demais do homem. A formao de um ser autnomo, soberano, perfeitamente integrado vida, superando profundos conitos entre a razo e sentimentos, gozando de todas as possibilidades seria, como apontou Nietzsche, um desejo que nasce da mente humana. (2005, p. 24)

Mais adiante, a referida autora sintetiza algumas ideias que venho trabalhando, desde Kant, a respeito da educao e das medidas socioedacativas:
De modo geral, a educao trabalha com a idia kantiana de formao da conscincia moral, que a virtude a ausncia de vcio e que devemos respeito ao outro
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atravs da lei determinada pela vontade racional. Por trs da amplitude da idia de educao voltada para a conscincia e o mais alto desenvolvimento moral, est a excluso do demasiado humano (Nietzsche); ou seja, a vida no reta, mas curvada, numa estranha agregao de acaso e necessidade, trazendo a suspeita de que a natureza humana muito mais complexa do que supe a idealizao linear. (2005, p. 55-56)

Neste ponto, gostaria de destacar que ideia de autonomia surgem novos questionamentos que desestabilizam, ainda mais, o que havia sido construdo por Kant no tocante a esse conceito. Para Friedrich Nietzsche (1844-1900), a vontade deixa de ser uma autoarmao que constitui o sujeito livre. Ao contrrio, o garante da dissoluo de toda unidade na plasticidade criadora do devir (Canto-Sperber, 2003, p. 782). Na modernidade anunciada por Nietzsche, o sujeito no enuncia o que , sendo constitudo por uma pluralidade de vontades. Quais seriam os fundamentos da autonomia? Um dos caminhos que particularmente me interessa o de que a vontade incapaz de dar contedo a sua exigncia normativa. Esse caminho me levar, posteriormente, a Hannah Arendt. Antes de examinar o conceito de vontade em Nietzsche, parece-me necessrio trazer o que ele desenvolveu sobre a moral, conforme o que Giacoia Jnior situa como sendo o paradigma desse lsofo: para ele, as pretenses de absoluto, seja epistemologicamente, seja no plano tico-poltico, como em Shelling ainda, deviam-se a uma signicao moral. Fazia-se necessrio evitar os efeitos narcticos da moral, a tentao suprema de que os valores morais fossem eternos (Giacoia Junior, 200, p. 36). O que Nietzsche faz problematizar a moral, buscar seu valor prprio, que, at ento, colocava-se como inquestionvel, como absoluto. Em seu livro A genealogia da moral, o lsofo alemo a apresenta:
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(...) a m conscincia como a profunda doena, na qual o homem que deveria ter cado sob a presso da mais radical de todas as modicaes que viveu de maneira geral a modicao que sobreveio quando se viu denitivamente prisioneiro da feitiaria da sociedade e da paz. maneira dos animais aquticos obrigados a se adaptarem a viver em terra ou a morrer, no foi outra coisa que aconteceu a esses semianimais, acostumados vida selvagem, guerra, s correrias, s aventuras, quando se viram obrigados de repente a renunciar a todos os seus instintos. Era preciso andar a p, a levarem-se a si mesmos, quando at ento os havia levado a gua; um peso enorme os esmagava. Sentiam-se inaptos para as funes mais simples; nesse mundo novo e desconhecido no tinham seus antigos guias, os instintos reguladores, inconscientemente infalveis; viam-se reduzidos a pensar, a concluir, a calcular, a combinar causas e efeitos. Infelizes! Viam-se reduzidos sua conscincia, a seu rgo mais fraco e mais exposto ao ridculo! Creio que nunca houve na terra desgraa to grande, mal-estar horrvel! Acrescente-se a isso que os antigos instintos no haviam renunciado de vez a suas exigncias. Mas era dif cil e raramente possvel satisfaz-las; era preciso procurar satisfaes novas e subterrneas. Todos os instintos sob enorme fora repressiva volvem para dentro, e a isso chamo interiorizao do homem; assim se desenvolve o que mais tarde ser chamada alma. Todo o mundo interior, originalmente pequeno, como que encerrado entre duas peles, cresceu e eclodiu, ganhou em profundidade, em largura, em altura, medida que a exteriorizao do homem foi inibida. As formidveis barreiras que a organizao social construa para se defender contra os antigos instintos de liberdade os castigos fazem parte da primeira linha dessas barreiras conseguiam que todos os instintos do homem selvagem, livre e vagabundo, se voltassem contra o prprio homem. A hostilidade, a crueldade, o prazer em perseguir, na agresso, na mudana, na destruio, tudo isso se dirigia contra o detentor desses instintos; essa a origem da m conscincia. (2006, p. 80-81)
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No mesmo texto, o autor analisa as consequncias da introduo da m conscincia:


Mas com ela foi introduzida a maior e mais inquietante doena, da qual a humanidade no curou at hoje, o sofrimento suscitado no homem pelo homem, por ele mesmo, consequncia de uma ruptura violenta com o passado animal, de um salto e de uma cada, por assim dizer, em situaes e condies de existncia novas, de uma declarao de guerra contra os antigos instintos que antes constituam sua fora e seu temvel carter. Acrescente-se imediatamente que, alm disso, com esse fato de uma alma animal voltada contra si mesma, tomando partido contra si mesma, deu ao mundo um elemento to novo, profundo, inaudito, enigmtico, contraditrio e pleno de futuro, que o aspecto do mundo mudou de maneira essencial. De fato, faltavam espectadores divinos para apreciar o espetculo que comeou assim e cujo m no pode certamente ser previsto ainda, um espetculo demasiado sutil, demasiado maravilhoso, demasiado paradoxal para ter o direito de jogar-se absurdamente despercebido, em algum astro risvel! Desde ento o homem, entre golpes de sorte, inesperados e apaixonantes (...) no fosse um m, mas apenas um caminho, um incidente, um ponto, uma grande promessa. (2006, p. 81-82)

Nietzsche traz-nos o conceito de vontade de poder como potncia criadora, que pretende no apenas a autoconservao, mas a autossuperao e o autodesenvolvimento. Segundo Hermann:
(...) no se trata aqui de poder na perspectiva de uma teoria poltica, mas de um poder que se autodetermina, que entra em luta com outros poderes e que no se xa numa nalidade determinada exteriormente. Trata-se de um poder que o homem experiencia de dentro para fora, como uma pluralidade de foras que no se explica a partir de um fundamento. (2005, p. 264)
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Diego Snchez Meca, prefaciando a publicao do texto pstumo de Nietzsche Sabedoria para depois de amanh (2005, p. XIII-XIV), especica o conceito de vontade de poder, relacionando-o com a arte:
A arte um poder (Macht), uma fora (Kraft) de criar aparncias, de travestir, de falsicar e de mentir. E essa fora de produo de aparncias e de mentiras que se manifesta/traduz na arte a fora universal da vida, ou seja, a fora consubstancial, por um lado, prpria atividade da natureza e, por outro, essncia da linguagem. a fora que, no pensamento maduro de Nietzsche, recebe o nome de vontade de poder. (...) Porque o que Nietzsche diz que essa fora falsicadora, essa Bilbende Kraft da qual a arte manifestao tambm , enquanto fora universal, a prpria estrutura do conhecimento, ou seja, a forma de qualquer compreenso da realidade, que , desse ponto de vista e por esse motivo, uma compreenso esttica.

Ou seja, conhecimento e arte seriam manifestaes dessa fora de vida que, necessariamente, gera falsicaes, aparncias consubstanciadas nas prprias atividades naturais como na linguagem. Ela faz parte da estrutura humana como decorrncia da ruptura com o passado animal. Dalbosco (2005, p. 279), referenciado pelos argumentos de Giacoia Junior sobre Nietzsche, arma que o mundo interior humano se constitui pela interiorizao das correntes pulsionais agressivas, caracterizando-se pela aio, autossacrif cio, tortura e perseguio. A vontade est internalizada. Essa energia dar origem matriz jurdico-obrigacional e aos prprios fenmenos morais. Segundo Giacoia Junior, apud Dalbosco (2005, p. 279), o represamento pela sociedade da crueldade primitiva poderia resultar numa descarga, como m conscincia, sob a forma de ressentimento. Dalbosco, na obra j citada, caracteriza ressentimento como um sentimento humano que decorre de um fato
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natural. Na mesma nota, arma que, para Nietzsche, haveria duas direes para o ressentimento:
(...) uma negativa, na qual o ressentimento se torna destrutivo ao assumir a forma de vingana, e a outra positiva, por meio da qual, movido pelo ressentimento, o indivduo canaliza suas energias superao construtiva de si mesmo. Nesse sentido, o conceito de vontade de poder, visto psicologicamente e moralmente, pode signicar o esforo humano no sentido de superar os pensamentos de vingana oriundos do ressentimento.

Se, em Kant, temos a submisso da individualidade a uma lei moral racional, em Nietzsche, temos a singularidade dos pensamentos, sentimentos e impulsos determinando o que fazer. A autonomia e a autenticidade encontram-se para alm do homem, num devir tico-esttico. O prprio Nietzsche arma: Ns, homens modernos, somos herdeiros da vivisseco da conscincia e da tortura do animal, aplicada a ns por milhares de anos. isso o que constitui nossa mais longa prtica, nosso savoir-faire artstico talvez, em todo caso, nosso renamento, nosso gosto dif cil (2006, p. 91). Retomando: em Kant, a vontade puro querer; em Schopenhauer, ela desejo permanente. Na losoa do primeiro, a razo ordenaria os desejos. Na losoa do segundo, os desejos desadjetivam a vontade. A vontade de vida como uma fora errante vai se transformar em vontade de poder em Nietzsche. Uma fora universal da vida, produtora de aparncias, de falsicaes, consubstancial prpria natureza e prpria linguagem. Se, de um lado, isso possvel, de acordo com Nietzsche, graas ruptura com o passado animal do homem, de outro, emerge disso uma grande promessa. Hannah Arendt vai colocar um acento exatamente naquilo que ela chama de faculdade de prometer, ou o que, para Nietzsche, era a memria da vontade ou uma continuidade no querer.

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Ao: Articulao Poltica da Autonomia


Em se tratando de autonomia, de sua problematizao, de sua transformao via mudanas no prprio conceito de vontade, e por decorrncia de um pensar o sujeito como um devir, dirijo-me losoa de Hannah Arendt. Hannah Arendt (1906-1975) arma, em sua obra A Condio Humana, que o ato de prometer a nica alternativa para uma supremacia no domnio de si mesmo e no governo dos outros. uma liberdade dada sob a condio de no-soberania e tem dupla origem:
(...) decorre ao mesmo tempo da treva do corao humano, ou seja, da inconabilidade fundamental dos homens, que jamais podem garantir hoje quem sero amanh, e da impossibilidade de se prever as conseqncias de um ato numa comunidade de iguais, onde todos tm a mesma capacidade de agir. O fato de que o homem no pode contar consigo mesmo nem ter f absoluta em si prprio (e as duas coisas so uma s) o preo que os seres humanos pagam pela liberdade; e a impossibilidade de permanecerem como senhores nicos do que fazem, de conhecerem as conseqncias de seus atos e de conarem no futuro o preo que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de conviverem com outros num mundo cuja realidade assegurada a cada um pela presena de todos. (2001, p. 255-256)

A soberania, para essa lsofa, s possvel com a unio de muitos, e quando as pessoas se renem e agem, em concerto, constituem poder. O poder se efetiva quando palavra e ato no se divorciam, quando palavras no so vazias e os atos no so brutais, quando palavras no so usadas para velar intenes, mas para revelar realidades, e os atos no so usados para violar e destruir, mas para criar relaes e novas realidades (Arendt, 2001, p. 212).
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A fora que pode manter unidas as pessoas no se confunde com o espao de aparncia onde esto reunidas, nem com o poder que constitui esse espao pblico. a fora da promessa ou do contrato mtuo. A soberania de um grupo de pessoas unidas no ocorre por uma vontade idntica, que possa, magicamente, inspir-las, mas por um propsito com o qual concordam e frente ao qual as promessas so vlidas e capazes de obrigar a todos. Arendt comenta Nietzsche:
Nietzsche, com sua extraordinria sensibilidade para os fenmenos morais a despeito de seu moderno preconceito de enxergar a fonte de todo o poder na vontade de poder do indivduo isolado viu na faculdade de prometer (a memria da vontade, como ele a chamou) a verdadeira diferena que distingue a vida humana da vida animal. (...) Nietzsche viu com inigualvel clareza a conexo entre a soberania humana e a faculdade de fazer promessas, o que o levou ao singular discernimento da relao entre o orgulho humano e a conscincia humana. Infelizmente, ambos os vislumbres permaneceram parte do seu principal conceito, o da vontade de poder, e no tiveram inuncia sobre este ltimo (...). (2001, p. 257)

Examinemos o que o prprio Nietzsche escreveu sobre o direito de prometer:


justamente isso que constitui a longa histria da origem da responsabilidade. Essa tarefa, educar um animal que possa fazer promessas, pressupe, como j foi dito, a ttulo de condio e de preparao, outra tarefa, mais imediata, a de comear por tornar o homem, at certo ponto necessrio, uniforme, semelhante entre os semelhantes, regular, e, por conseguinte, calculvel. O prodigioso trabalho daquilo que chamei moralidade dos costumes (ver Aurora, p. 7, 13, 16), o verdadeiro trabalho do homem sobre si mesmo durante o mais longo perodo da espcie
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humana, todo o seu trabalho pr-histrico, encontra aqui sua signicao e sua justicao, qualquer que seja o grau de tirania, de estupidez e de idiotice; unicamente pela moralidade dos costumes e pela camisa de fora social, o homem chegou a ser realmente calculvel. (2006, p.57)

Se, de um lado, Nietzsche indica-nos a possibilidade de uma educao que nos permita fazer promessas, tornando-nos, antes de mais nada, calculveis, por outro:
(...) nos referimos ao termo desse formidvel processo, em que a rvore termina por produzir seus frutos, em que a sociedade com sua moralidade dos costumes acaba por expor luz do dia que ela no passava de um meio, o que encontramos, o fruto mais maduro dessa rvore, o indivduo soberano, indivduo prximo de si mesmo, o indivduo livre da moralidade dos costumes, o indivduo autnomo e supermoral (porque autnomo e moral se excluem um ao outro), numa palavra, o homem dotado de vontade prpria, independente, persistente, o homem que tem o direito de prometer e que possui em si mesmo a conscincia orgulhosa, que faz vibrar todos os seus msculos, por aquilo que acabou de conseguir e por se encarnar em si, uma verdadeira conscincia de seu poder e de sua liberdade, um sentimento de plenicao do homem em geral. Esse homem livre, que tem realmente o direito de prometer, esse senhor de vontade livre, esse soberano (...) (2006, p.57)

Mais particularmente sobre a memria da vontade, Nietzsche escreveu que a memria uma faculdade que contrabalana, em certos casos, o esquecimento, fundamentalmente quando subsiste a obrigao de prometer:
(...) no se trata, portanto, simplesmente da impossibilidade puramente passiva de se subtrair da impresso, uma vez que esta tiver sido gravada, nem simplesmente do mal-estar causado por uma palavra
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dada e no cumprida, mas pelo contrrio se trata da vontade ativa de guardarmos impresses, trata-se de uma continuidade no querer, de uma verdadeira memria da vontade; de modo que, entre o primitivo eu quero, farei e o cumprimento real da vontade, seu ato pode interpor-se sem suscitar perturbaes em todo um mundo de coisas, de circunstncias e mesmo de atos de vontade novos, estranhos, sem que essa longa cadeia de querer se rompa. (Idem, p. 56)

Na trajetria de estudo sobre o conceito de autonomia, tal como percorrida at aqui, tem-se que a vontade incapaz de dar contedo a sua exigncia normativa. As aes humanas trazem riscos e a nica forma de neutraliz-los atravs da disposio de perdoar e ser perdoado, de fazer promessas e cumpri-las. Esses so os nicos preceitos morais no aplicados, desde fora de alguma faculdade supostamente superior ou de experincias, fora do alcance da prpria ao (Arendt, 2001, p. 257), s aes. Decorrem do desejo de conviver com os outros na modalidade da ao e do discurso, funcionando como mecanismos de controle da prpria faculdade de iniciar processos novos e interminveis. Hannah Arendt, ao se indagar sobre a liberdade e a soberania, arma que a capacidade de agir traria, em si, certas potencialidades que sobrepujam as inaptides da no-soberania. E, nesse sentido, refere-se a Kant numa nota de rodap:
Permanecendo intacta a dignidade humana, a tragdia, e no o absurdo, que vista como caracterstica da existncia humana. O maior expoente desta opinio Kant, para quem a espontaneidade da ao e as concomitantes faculdades da razo prtica, inclusive o poder de discernir, so ainda as principais qualidades do homem, muito embora a ao esteja sujeita ao determinismo das leis naturais e o discernimento no consiga penetrar o segredo da realidade absoluta (o Ding na sich). Kant teve a coragem de absolver o homem das conseqncias dos seus atos, insistindo unicamente na pureza dos motivos, o que o impediu de perder a f no homem e em sua grandeza potencial. (2001, p. 247)
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Kant prenuncia Nietzsche no que diz respeito tragdia como caracterstica da existncia humana, e Arendt situa a ao humana como a atividade capaz de nos alar a uma posio de maior dignidade, pois, atravs dela, podemos desfazer o que zemos e recomear. Essa a liberdade humana. Arendt situa a ao como uma das atividades humanas fundamentais. Atravs de palavras e atos nos inserimos no mundo humano, o que signica um segundo nascimento no qual conrmamos a originalidade e singularidade do nosso aparecimento f sico nesse mundo. Entre outras caractersticas, a ao:
Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presena dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu mpeto decorre do comeo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual respondemos comeando algo novo por nossa prpria iniciativa. Agir, no sentido mais geral do termo, signica tomar iniciativa, iniciar (como o indica a palavra grega archein, comear, ser o primeiro e, em alguns casos, governar), imprimir movimento a alguma coisa (que o signicado original do termo latino agere). (...) Com a criao do homem, veio ao mundo o prprio preceito de incio; e isto, naturalmente, apenas outra maneira de dizer que o preceito de liberdade foi criado ao mesmo tempo, e no antes, que o homem. (2001, p. 189)

A condio para que haja ao humana est no fato de que somos todos humanos, mas, no entanto, ningum igual ao outro, tenha ele existido, exista ou venha a existir. Em seu livro A condio humana, Arendt diferencia as atividades humanas: trabalho, produo e ao. Segundo Hermenau:
O trabalho sustenta o mundo, a produo cria as coisas concretas do mundo e, na ao, acontece a relao humana especca com o mundo. Caracterstica do trabalho a repetio de uma atividade sempre igual, sem que, assim, surja um novo objeto do mundo; caracterstica da produo o fato de ter um co133

meo e um m; de, por meio dela, surgirem objetos de uma relativa durabilidade; e caracterstico da ao o fato de, por meio dela, em seus resultados, ser innita e imprevisvel, mas tambm, de que somente por meio dela e da fala o mundo concreto das coisas adquire um real signicado, isto , torna-se efetivamente nosso mundo (...) (2005, p. 364)

A ao, segundo Hannah Arendt, implica na singularidade da pessoa, isto : dizer-se num espao comum, de compartilhamento do mundo, onde este no um aglomerado de objetos e onde haja reconhecimento da pessoa como um igual. Neste sentido, retomando o conceito de poder da referida lsofa, torna-se signicativo destacar:
o poder que mantm a existncia da esfera pblica, o espao potencial da aparncia entre homens que agem e falam. A prpria palavra, como o seu equivalente grego, dynamis, e o latino, potentia, como seus vrios derivados modernos, ou o alemo Macht (que vem de mgen e machen), indicam seu carter de potencialidade. O poder sempre, como diramos hoje, um potencial de poder, no uma entidade imutvel, mensurvel e convel como a fora. Enquanto a fora a qualidade natural de um indivduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam. (2001, p. 212)

O poder, ento, constitui-se na presena dos outros, nas aes conjuntas. As aes podem conter promessas e, certamente, esto sujeitas imprevisibilidade. No campo social, a imprevisibilidade das aes pode se tornar um problema. Frente imprevisibilidade das aes e, principalmente, pelas consequncias advindas, podemos, de acordo com Arendt, prometer algo porque existe a possibilidade do perdo. Quando agimos no temos garantia do que exatamente estamos fazendo e as consequncias dos atos podem no ser
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desfeitas. Hannah Arendt arma que a soluo para a imprevisibilidade e para a irreversibilidade , respectivamente, a capacidade de prometer e cumprir promessas e a de perdoar. Ela assinala que o cdigo moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer baseia-se em experincias que ningum jamais pode ter consigo mesmo e que, ao contrrio, se baseiam inteiramente na presena dos outros (2001, p. 249). Retomando Nietzsche (2006, p.56), em seu conceito de memria da vontade ele nos diz de uma continuidade do querer: entre o primitivo eu quero , farei e o cumprimento real da vontade, seu ato, pode interpor-se sem suscitar perturbaes em todo um mundo de coisas, de circunstncias e mesmo de atos de vontade novos, estranhos, sem que essa longa cadeia de querer se rompa. Se tornar o animal humano em algo repetvel, calculvel, o que seria prprio do trabalho, uma possibilidade, tambm possvel torn-lo autnomo, soberano, com o direito de prometer. Enquanto o lsofo alemo fala do indivduo, Arendt, sua conterrnea, fala de uma soberania que se d no coletivo, no exerccio de aes onde as singularidades tenham voz para dizerem do mundo que habitam e se percebam como iguais. A autonomia, para ela, pode se dar no espao pblico, no coletivo humano exercitando aes, enquanto que, para Nietzsche, a autonomia seria resultante do autodesenvolvimento esttico de cada sujeito humano. A respeito disso, Giacoia Junior (2005, p. 179) diz da diferena entre Kant e Nietzsche quanto a no existncia para este de uma vontade determinada pela razo pura, nem um imperativo categrico cogente para todos os seres racionais, nem mesmo valores universalmente vlidos. Acrescenta que nada mais estranho para a concepo nietzscheana de autonomia do que uma lei universalmente vlida, pelo contrrio, o que sustentaria uma autonomia nesta losoa seria exatamente uma lei do si prprio para si mesmo. No entanto, nos diz Giacoia:
(...) para Nietzsche, o atributo essencial que torna a pessoa um m em si e, por isso, a ela confere digni135

dade consiste no fato de ser um sujeito autnomo, responsvel pela legislao de sua vontade, com vistas determinao de seu agir e, unicamente por essa razo, tambm tica e juridicamente imputvel, isto , livre. para tanto, pois, que nos conduz reexo sobre esse mais pesado dos pesos, que se apresenta sob o manto difano da herica responsabilidade de ser livre. (2006)

Para Nietzsche, a responsabilidade a fonte de nossa liberdade. Curiosamente, no campo lolgico, a obligatio vincula respondeo a religio; esta, por sua vez, estabelece-se na ressonncia entre responsabilitas e spondere. Ou seja: vincula-se, etimologicamente, responder a prometer, obrigar-se, garantir. Na mesma famlia de spondere, temos sponsa, que signica noiva, promessa ou esposa; e spnsio promessa ritual, obrigao seguida de um voto. Religio, nesse contexto, tem um carter de obrigao, dever, honra, lealdade. Enm, o que deriva disso uma obrigao em responder lei, o que, numa memria ancestral, signica, de acordo com Giacoia Junior (2005, p. 180), uma remisso ao sagrado, a qual se liga noo e ao sentimento de responsabilidade. Ento, autonomia em Nietzsche a responsabilidade de um tornar-se homem para alm do arcaico, do primitivo. No uma dependncia divina, mas, desde um passado sagrado, que pelo esquecimento do represamento da natureza instintiva, o lana a caminhos de uma m conscincia ou de uma conscincia moral, na qual o ressentimento pode o levar superao dos sentimentos de vingana. a vontade de poder produzindo o tipo homem . Voltando a Arendt, a autonomia estar no exerccio da ao em que a possibilidade de prometer e perdoar faa frente imprevisibilidade e irreversibilidade humana, de tudo o que diga da luta, da tenso entre a m conscincia e a conscincia moral o que constituiria a singularidade humana em Nietzsche mas de uma promessa e de um perdo acordados coletivamente no espao pblico, em que cada um precisar reconhecer o outro como
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igual em suas diferenas, sem que isso se d por uma legislao universalizante. Um lugar para a autonomia humana, pelo espao pblico, no qual o devir de cada um est em jogo. Se tivssemos permanecido com a Lei Natural, como produziram os antigos, s teramos a fatalidade e a runa. A faculdade de desfazer os processos que desencadeamos requer crtica, requer a crtica da prpria razo. H algo para ser desfeito sobre a autonomia nos diversos mbitos e h algo para comear. Concordando com Arendt:
Se verdade que, sem a ao e o discurso, sem a manifestao constituda pelo nascimento, estaramos condenados a voltear para sempre no ciclo incessante do processo vital, tambm verdade que sem a faculdade de desfazer o que zemos e de controlar, pelo menos parcialmente, os processos que desencadeamos, seramos vtimas de uma necessidade automtica, com todas as marcas das leis inexorveis que, segundo as cincias naturais de antanho, seriam as principais caractersticas dos processos naturais. J vimos que, para seres mortais, essa fatalidade natural, embora gire em torno de si mesma e seja eterna, s pode representar a runa. Se a fatalidade fosse, de fato, a caracterstica inalienvel dos processos histricos, seria tambm igualmente verdadeiro que tudo o que feito na histria est condenado mesma runa. (...) Fluindo na direo da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a runa e a destruio, se no fosse a faculdade humana de interromp-las e iniciar algo novo, faculdade inerente ao como perene advertncia de que os homens, embora devam morrer, no nascem para morrer, mas para comear. (Idem, p. 257-258)

Uma vez percorrido os caminhos sobre a vontade e a autonomia, produzidos pelos citados lsofos, e lembrando que nesse ser to amplo e complexo como o da Adolescncia e dela com a produo de Atos Infracionais, dizemos que h veredas e precisamos conhec-las.
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Alto eu disse, no me despedir: Minha Senhora Dona: um menino nasceu o mundo tornou a comear!... Guimares Rosa, Grande Serto: Veredas, p. 427

Nossa legislao prdiga em pedir desenvolvimento da autonomia, com frequncia no sentido intelectual, o que vlido, embora bastante prejudicado haja vista a precariedade educacional escolar brasileira. Quanto ao sentido moral, acredito que ainda pouco sabemos do que se trata e, principalmente, como desenvolv-la.6 O propsito desse artigo foi trazer uma contribuio, no s conceitual sobre autonomia, mas, tambm, fazer-nos indagar quanto ao que se apresenta como criao de acontecimentos, o que, certamente, requer um outro artigo, pelo menos. Retomando uma das normativas mencionadas no incio do artigo, particularmente a do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE:
(...) Segundo o Paradigma do Desenvolvimento Humano do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) toda pessoa nasce com um potencial e tem direito de desenvolv-lo. Para desenvolver o seu potencial, as pessoas precisam de oportunidades. O que uma pessoa se torna ao longo da vida depende de duas coisas: as oportunidades que tem e as escolhas que fez. Alm de ter oportunidades, as pessoas precisam ser preparadas para fazer escolhas. Portanto, as pessoas devem ser dotadas de critrios para avaliar e tomar decises fundamentadas. As aes socioeducativas devem exercer uma inuncia sobre a vida do adolescente, contribuindo para a construo de sua identidade, de modo a favorecer a elaborao de um projeto de vida, o seu pertencimento social e o respeito s diversidades (cultural, tnico-racial, de gnero e orientao se6 Contribuir para o estabelecimento da autoconana e a capacidade de reexo sobre as possibilidades de construo de autonomias; MDS, CNAS, Tipicao Nacional dos Servios Socioassistenciais, Resoluo N 109, de 11 de novembro de 2009, p. 23.

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Sem entrar num exame mais aprofundado sobre as armaes do PNUD, destaco a frase: vital a criao de acontecimentos que fomentem o desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e de competncias pessoais relacionais, cognitivas e produtivas, acima citada. Sublinho a criao de acontecimentos para o desenvolvimento da autonomia e retomo a frase apresentada na pgina 2 desse artigo: H um anseio social de que os sujeitos se autonomizem moralmente, mas, no entanto, o que signica exatamente esse conceito, e quais as possibilidades dessa construo acontecer no cumprimento das medidas socioeducativas em meio aberto? Na execuo das medidas socioeducativas com adolescentes em conflito com a lei, necessrio que, junto ao aspecto sancionatrio, possamos encontrar o jovem e criar acontecimentos que oportunizem o desenvolvimento da autonomia. Esse encontro implica, arendtianamente, na existncia de um espao pblico onde o jovem possa dizer de sua diferena, ser escutado e de sua vontade interromper sua ao produtiva de atos infracionais, refaz-la, responsabilizar-se e saber algo do seu devir. A criao de acontecimentos visando ao desenvolvimento da autonomia no se enquadra numa recepo do sujeito puramente kantiana, dado o respeito s diversidades (cultural, tnico-racial, de gnero e orientao sexual). No h receita de acontecimentos. Nietzschenamente, h um devir a ser conhecido. Para tanto, uma escuta pelo sujeito adolescente dele mesmo, de seu discurso. Essa ao humana, segundo Hannah Arendt, precisa acontecer. No se trata de um Prometeu7 acorrentado:
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xual), possibilitando que assuma um papel inclusivo na dinmica social e comunitria. Para tanto, vital a criao de acontecimentos que fomentem o desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e de competncias pessoais relacionais, cognitivas e produtivas. (p.60)

Apoderei-me do fogo, em sua fonte primitiva; ocultei-o no cabo de uma frula, e ele tornou-se para os homens a fonte de todas as artes e um recurso fecundo... (2005, p. 13), mas da possibilidade de um prometer atos frente ao outro, capazes de mov-lo a uma posio subjetiva menos pior. Voltando mais ainda numa linha de tempo do pensamento losco, se para Rousseau a liberdade no agir de acordo com a vontade privada e sim de acordo com a vontade geral, e a ausncia dela inviabiliza a autonomia e o princpio universal da moralidade, fundamento de todas as aes humanas, Kant, pode, ento, inventar o conceito de autonomia. Na sua Fundamentao da Metaf sica dos Costumes (2005, p. 70), ela denida como a constituio da vontade, graas qual ela para si mesma sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer) . Kant acreditava que nossa razo prtica possibilitava reprimir os desejos em nome de uma aceitabilidade universal. Podemos buscar a felicidade, mas isso no signica tornar a graticao de um desejo especco parte da nossa felicidade. Podemos recusar, atravs da moral, a aceitao de um desejo como razo para agir. O movimento que Schiller e Schelling vo desencadear no que diz respeito a vontade ser no sentido de dar lugar, tambm, sensibilidade. Mas, fundamentalmente, a vontade inverte-se, em relao ao sentido kantiano, o que signicaria outro modo de pensarmos o conceito de autonomia. A autonomia kantiana est associada liberdade, atravs da qual podemos intuir a causalidade da vontade (ordenadora de desejos), o que signica independncia da causalidade do mundo sensvel via razo. Com Schiller, foi possvel pensar a autonomia como beleza, mas em Schelling, embora o conceito de autonomia no se faa presente, ele indica a vontade como

7 SQUILO (c. 525 AC 456 AC). Prometeu Acorrentado. Traduo J. B. de Mello e Souza. Verso para ebooks, EbooksBrasil.com, 2005.

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pulso. Em ambos, portanto, a submisso da razo pulso a coloca suscetvel ao mundo sensvel. Surgem particularidades que pediro lugar e vez, que atravs de jogos, como indica Schiller; de contratos, como indicou Rousseau; e de espao pblico, segundo Hannah Arendt; forjaro universalidades possveis, que no mais dependeriam da fundamentao metaf sica. A fundamentao kantiana, baseada no sujeito transcendental e na vontade racional, sofre abalos. Se, em Kant, temos a submisso da individualidade a uma lei moral racional; em Nietzsche, temos a singularidade dos pensamentos, sentimentos e impulsos, determinando o que fazer. A autonomia e a autenticidade encontram-se para alm do homem, num devir tico-esttico. Tomando esse breve recorte losco do conceito de autonomia e trazendo-o para a execuo das medidas socioeducativas, naquilo que se arma como criao de acontecimentos para o desenvolvimento da autonomia, constato que, no acompanhamento das Liberdades Assistidas e de Internaes com Possibilidade de Atividades Externas (ICPAE)8, o fator tempo oportuniza mais possibilidades. As possibilidades operacionalizam-se melhor nos encontros com a singularidade dos sujeitos. Se, por vezes, os jovens em cumprimento de medidas socioeducativas parecem prximos de uma morte matada, a ao humana em que haja um outro como alteridade e uma escuta do discurso singular desses sujeitos, nisso que se denomina como prestao de servio junto ao usurio, pode interromper uma runa, uma desgraa. Como escreveu Hannah Arendt: no nascemos para morrer, nascemos para comear. Um bom comeo pode ser por em palavras os atos infracionais. Atos de escuta para simbolizar atos simblicos.

8 Lei federal N 8.069/1990. Estatuto da Criana e do Adolescente: Art. 118 e 119; 121, 1.

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Singular e Plural: experincia em educao de jovens em situao de rua e drogadio

Guilene Salerno1 Maria Lucia de Andrade Reis2

Em 1995, aparece, no cenrio dos espaos de proteo da cidade, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA), que, desde 1994, desaava a inexistncia de estruturas e, integrada equipe de abordagem de rua, comeava seu fazer pedaggico diferente e nico. Pelas ruas da cidade dava os primeiros passos para construo de sua metodologia de trabalho prpria, escutando e respeitando as formas de organizao dos jovens que por elas circulavam. Educar passa a ser um desao maior que a escolarizao, educar passa a ser ofertar possibilidades que geram transformaes individuais e coletivas, educam-se jovens, educa-se a cidade, educa-se a rua. A necessidade de rede se impe, pois solitria, a escola no pode atender os jovens nas suas necessidades e dimenses culturais e sociais.
1 Psicloga, coordenao pedaggica da Escola Municipal POA, especializao em Sade e Trabalho - Medicina Social da UFRGS e em Terapia Comunitria - CAIFCOM, mestranda em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. 2 Professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre, terapeuta comunitria pela CAIFCOM.

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A teia de relaes se estabelece e tem seus altos e baixos conforme a conjuntura das polticas federal, estadual e municipal, mas o educador, independente da poltica, est presente e um elo frgil neste contexto. Trabalha cotidianamente conitos, pois no pode se envolver com a cultura da rua e no pode impor a sua cultura, precisa ser referncia, ser acolhedor, ser propositivo, precisa saber lidar com novos cenrios e com a dinmica da vida em que o singular e o plural se misturam. Jovens e educadores vivem mltiplas culturas, valores, certezas, incertezas e juntos explicitam contradies que compem o fazer pedaggico desta Escola. Todos os tempos e espaos da Escola so pedaggicos, no h espao que no acolha, no h regra que no seja conversada, cada passo tem um porqu e cada porqu constri mltiplos sentidos. O estudante chega ao porto da escola e acolhido, passa pela primeira conversa que indica onde est e para onde pode ir, inscreve-se no espao com o Contrato Pedaggico que se constitui de diretos e deveres, sugere atitudes para quando no conseguir cumprir combinados e, neste dilogo, inicia seus estudos. Pela manh, a escola oferece totalidades iniciais e, tarde, totalidades nais. Pode fumar no ptio, pode tomar caf preto, pode tomar banho. Porque nesta escola pode? Porque ela est para alm da escolarizao. Estas permisses tm o nome de Reduo de Danos, pois, quando h uso de drogas, precisamos reduzir seus danos at que elas deixem de existir ou tenham seu uso reduzido. Isso lento e necessrio, isso , tambm, respeito para com o sujeito, exerccio de cidadania. A apropriao desse conceito Reduo de Danos na prtica cotidiana da EPA, teve incio a partir da parceria com os servios da Secretaria Municipal de Sade, especicamente o Centro de Orientao e Apoio Sorolgico (COAS), em 1997, e o Programa de Reduo de Danos (PRD) no ano de 1998. No refeitrio, tambm aprendem a valorizar, a humanizar e escolher o que querem comer, o quanto servem de comida para saciar a sua fome e aprendem sobre desperdcio, tranquilidade, troca, prazer e alegria. Mais uma vez, o singular e o plural se movimentam
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como uma dana perfeita com passos difceis, mas prazerosos e, nestes pequenos detalhes, grandes conversas podem se estabelecer e dar sentido a muitas coisas que pareciam ter perdido o sentido. Como referido, a escola tem em seu pblico jovens que precisam de espao de fala, faz parte do pedaggico a existncia de assembleias nas quais as manifestaes e avaliaes so bem-vindas. Revendo-se a literatura, ca claro que os alicerces com que foram construdos os princpios poltico-pedaggicos da EPA esto fundados na Educao Popular, losoa pedaggica de Paulo Freire, que diz que o objetivo da escola ensinar a leitura da palavra junto com a leitura do mundo para, assim, transform-lo. Partindo dos contextos de realidade diagnosticados de modo participativo e permanente pelo coletivo da escola, busca-se a transformao da realidade interna e externa de seus sujeitos, atravs de processos de construo de autonomia (PPP, 2009, pg 06). Anton Makarenko tambm contribuiu para a percepo da escola como espao para aprendizagem da coletividade, da democracia e da autogesto de si e de seu processo produtivo, sempre pela via do reconhecimento das habilidades positivas e da prtica como princpio para teorizao (PPP, 2009, pg 06). A educao para o letramento tem com base a psicognese da lngua escrita, de Emlia Ferreiro, em que o professor acolhe as hipteses iniciais dos alunos, ressignicando a noo de erro. J no interacionismo scio-histrico ou socioconstrutivismo de Vigotski, observa-se que toda aprendizagem se constri na relao do indivduo com seu meio, pois, para este pensador, o saber vem da experincia, sendo que, para tanto, necessrio que haja a mediao entre tcnica e linguagem, feita por um educador que o impulsionador do percurso entre a habilidade do estudante e o seu desenvolvimento de novas competncias (PPP, 2009, pg 07). Da Reduo de Danos, estratgia de atendimento a usurios de drogas, a EPA incorporou a ideia de desaar cotidianamente cada jovem a rever sua relao com as drogas, com sua sade e sua condio de vida.
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Assim como expresso em sua Proposta Poltico-Pedaggica (PPP), os pontos de contato entre estas teorias se complementam num currculo e numa metodologia dinmicos, construdos e reconstrudos permanentemente para uma educao cognitiva, afetiva, civilizatria e cidad (PPP, 2009, pg 06). Para a concretizao desta proposta, no pedaggico, trs momentos so fundamentais e podem acontecer simultaneamente: estudo da realidade, organizao do conhecimento e aplicao do conhecimento. Isto, ao ocorrer de forma permanente, deixa todo o coletivo atento ao foco que tem como eixo central do currculo o Ncleo do Trabalho Educativo (NTE) que hoje se organiza para todos , por interesse e por produo . A escola oferece cermica e papel artesanal para todos os estudantes no currculo, incentivando o interesse e, mais tarde, a produo. Tambm fazem parte do NTE a informtica e a jardinagem. Todos os estudantes que participam do Trabalho Educativo participam da gesto e do acompanhamento, momento em que se conversa sobre a vida, perspectivas e possibilidades de compras pedaggicas com recursos que recebem nos grupos de produo de cermica e papel. Possibilitar aos jovens ocupar lugares de ocineiros e monitores tambm objetivo deste processo, pois quando o jovem ensina, ressignica aspectos subjetivos importantes de sua estrutura, fortalecendo sua autoestima e outras capacidades at ento oprimidas por sua condio nesta sociedade. O Projeto Extramuros vem para qualicar este fazer pedaggico, pois incentiva convivncias e trocas com comunidades que tem a ensinar e a aprender. Hoje, trabalhamos com os ndios Kaigangues, com pessoas da comunidade do entorno da Escola e com outras escolas da rede municipal de ensino na produo de cermica e de papel artesanal. O Esporte tambm uma prtica de suma importncia na EPA, pois incentiva a reduo de danos e trabalha o corpo e o espao do lazer, permitindo aos jovens o cuidado de seu corpo e de si. neste movimento que os trabalhadores da EPA mantm seu foco na Educao Ambiental e na Cultura, pois acredita-se
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que estes eixos balizam e preparam os jovens para o mundo do trabalho, viabilizando gerao de renda. Para que tudo isso acontea e a vida seja a cada momento reinventada, os trabalhadores da EPA esto em permanente ato de escuta e criao. O Planejamento Curricular parte do estudo da realidade, essa que, a cada dia, inova com as palavras ditas nos mais diversos momentos da Escola. No existe trabalhador que permanea na escola sem fazer esta opo. Quando chega no imagina todas as transformaes que viver neste ambiente e, para tanto, precisa se despir dos medos. O tempo subjetivo e marca cada um de uma forma, pouco pode ser muito e o inverso tambm. preciso reconhecer o lugar que cada um ocupa e fazer a diferena, no possvel a acomodao, se ela existir o educador desiste. O Projeto Poltico Pedaggico da EPA foi sistematizado para promover VIDA, pois o desao de viver a vida com garantia de direitos que est posto para todos aqueles que acreditam nos jovens que l esto, por isso os indicadores de Bernardo Toro so nossas referncias. Segundo o autor colombiano, so sete os cdigos da modernidade que se constituem nas capacidades e competncias mnimas para a participao produtiva no sculo XXI (PPP, 2009, pg 16), transcritos abaixo:
1.Domnio da leitura e da escrita Para se viver e trabalhar na sociedade altamente urbanizada e tecnicada do sculo XXI ser necessrio um domnio cada vez maior da leitura e da escrita. Ser preciso saber comunicar-se usando palavras, nmeros e imagens. Por isso, os melhores professores, as melhores salas de aula e os melhores recursos tcnicos devem ser destinados s primeiras sries do ensino fundamental. Saber ler e escrever j no um simples problema de alfabetizao, um autntico problema de sobrevivncia. Todas devem aprender a ler e a escrever com desenvoltura nas primeiras sries do ensino fundamental, para poderem participar ativa e produtivamente da vida social.
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2.Capacidade de fazer clculos e de resolver problemas Na vida diria e no trabalho, fundamental saber calcular e resolver problemas. Calcular fazer contas. Resolver problemas tomar decises fundamentadas em todos os domnios da existncia humana. Na vida social, necessrio dar soluo positiva aos problemas e s crises. Uma soluo positiva quando produz o bem de todos. Na sala de aula, no ptio, na direo da escola possvel aprender a viver democraticamente e positivamente, solucionando as diculdades de modo construtivo e respeitando os direitos humanos. 3. Capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situaes Na sociedade moderna, fundamental a capacidade de descrever, analisar e comparar, para que a pessoa possa expor o prprio pensamento oralmente ou por escrito. No possvel participar ativamente da vida da sociedade global se no somos capazes de manejar smbolos, signos, dados, cdigos e outras formas de expresso lingustica. Para serem produtivos na escola, no trabalho e na vida como todos, os estudantes devero aprender a expressar-se com preciso por escrito. 4.Capacidade de compreender e atuar em seu entorno social A construo de uma sociedade democrtica e produtiva requer que todos recebam informaes e formao que lhes permitam atuar como cidados. Exercer a cidadania signica: Ser uma pessoa capaz de converter problemas em oportunidades; ser capaz de organizar-se para defender seus interesses e solucionar problemas, atravs do dilogo e da negociao respeitando as regras, leis e normas estabelecidas; criar unidade de propsitos partir da diversidade e da diferena, sem jamais confundir unidade com uniformidade; atuar para fazer do Brasil um estado social de direito, isto , trabalhar para fazer possveis, para todos, os direitos humanos. 5. Receber criticamente os meios de comunicao Um receptor crtico dos meios de comunicao (cinema, televiso, rdios, jornais, revistas) algum que
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no se deixa manipular como pessoa, como consumidor, como cidado. Aprender a entender os meios de comunicao nos permite us-los para nos comunicarmos distncia, para obtermos educao bsica e prossional, articularmo-nos em nvel planetrio e para conhecermos outros modelos de convivncia e produtividade. Os meios de comunicao no so passatempos. Eles produzem e reproduzem novos saberes, ticas e estilos de vida. Ignor-los viver de costas para o esprito do tempo em que nos foi dado viver. Todos devem aprender a interagir com as diversas linguagens expressivas dos meios de comunicao para que possam criar formas novas de pensar, sentir e atuar no convvio democrtico. 6. Capacidade para localizar, acessar e usar melhor a informao acumulada Num futuro bem prximo, ser possvel ingressar no mercado de trabalho sem saber localizar dados, pessoas, experincias e, principalmente, sem saber como usar essa informao para resolver problemas. Ser necessrio consultar rotineiramente bibliotecas, hemerotecas, videotecas, centros de informao e documentao, museus, publicaes especializadas e redes eletrnicas. Descrever, sistematizar e difundir conhecimentos ser fundamental. Todas devem, portanto, aprender a manejar a informao. Capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo. Saber associar-se, saber trabalhar e produzir em equipe, e saber coordenar so saberes estratgicos para a produtividade e fundamentais para a democracia. A capacidade de trabalhar, planejar e decidir em grupo se forma cotidianamente atravs de um modelo de ensino-aprendizagem autnomo e cooperativo (Educao Personalizada em Grupo). Por este mtodo, aprende a organizar grupos de trabalho, negociar para selecionar metas de aprendizagem, selecionar estratgias e mtodos para alcanlas, obter informaes necessrias para solucionar problemas, denir nveis de desempenho desejados e expor e defender seus trabalhos. Na Educao Personalizada em Grupo, com apoio de roteiros de estudo tecnicamente elaborados, a capa151

cidade de decidir, planejar e trabalhar em grupo vai se formando medida que se permite ir construindo o conhecimento. Nestas pedagogias autoativas e cooperativas, o professor um orientador e um motivador para a aprendizagem (TORO, 1997)

Cada detalhe da proposta pedaggica reete acertos realizados na gesto poltica e administrativa, nada est separado, so tantas as costuras que fazem lembrar uma teia que diz sempre que no somos o tempo todo a mesma pessoa, estamos, temos papis e ocupamos lugares, estamos distribudos em estruturas para nos organizar, mas interagimos insistentemente, ou porque queremos ou porque necessitamos e, assim, a Direo, o Conselho Escolar, as Coordenaes Pedaggica, Cultural e Apoio Administrativo gerem com equilbrio as relaes e uxos de trabalho, desarmando possveis barreiras criadas em teias de iluso. A gesto o resultado da soma entre a tica e a criatividade que, ao interagir com todos os trabalhadores, tece a teia da vida na Escola e esse resultado que viabiliza a realizao de projetos que se traduzem em conquistas de objetivos rmados no coletivo atravs do Plano de Gesto, dos Planos Anuais e dos Planejamentos Financeiros. O exerccio permanente de escuta e fala de cada um faz com que o discurso se traduza em prtica. Hoje, os trabalhadores cuidam de si para poder cuidar dos jovens e os jovens participam da Terapia Comunitria (TC). A TC um espao de tecer teias, pois ns, humanos, no tecemos a teia da vida, somos um dos seus os, o que quer que faamos, fazemos a ns mesmos. Nesta mgica costura de palavras, carregamos de sentido e de subjetividade a vida, que se transforma a cada encontro e desencontro. A Terapia Comunitria acontece na Escola Porto Alegre desde 2002, foi criada pelo psiquiatra e antroplogo cearense Adalberto Barreto. o espao de transformar a dor em competncia. Tem como bases tericas cinco grandes eixos: o Pensa152

mento Sistmico, a Teoria da Comunicao, a Antropologia Cultural, a noo de Resilincia e a Pedagogia de Paulo Freire. Surgiu a partir da necessidade de se criar novos paradigmas para uma ao teraputica criativa e efetiva capaz de: perceber o homem e seu sofrimento em rede relacional; ver alm do sintoma, no s a extenso da patologia, mas, tambm, o potencial daquele que sofre e fazer da preveno uma preocupao constante e uma tarefa de todos. (Barreto: 2005 p.17). As etapas do processo so: acolhimento, escolha do tema, contextualizao, problematizao e encerramento (rituais de agregao, fechamento e avaliao). Na etapa do Acolhimento, o objetivo ambientar os participantes, dar as boas-vindas e celebrar a vida. O co-terapeuta apresenta uma sntese do que a Terapia Comunitria e explica as regras de funcionamento: fazer silncio, falar sempre na primeira pessoa, no dar conselhos ou fazer sermes. Durante as falas, podem sugerir msicas ou piadas, pertinentes ao tema abordado na roda de TC. Na Escolha do Tema, os participantes so convidados a falar, de forma sucinta, qual a sua inquietao, o problema que est gerando preocupao. Aps a exposio, o grupo elege aquele que ser escolhido para ser aprofundado no encontro do dia. Na etapa da Contextualizao, a pessoa que teve o tema escolhido apresenta mais detalhes sobre a situao e os participantes podem fazer perguntas para melhor compreenso do tema apresentado. Esse momento importante para que todos possam reetir e reorientar o pensamento. Durante essa fase, o terapeuta ca atento para as palavras-chaves que surgem nas falas, pois elas sero importantes na construo do Mote. O Mote uma pergunta feita pelo Terapeuta Comunitrio que vai permitir a reexo do grupo durante a Terapia, momento em que se passa da dimenso individual para a dimenso coletiva. Na etapa seguinte, da Problematizao, o grupo convidado a partilhar suas experincias, a partir do Mote colocado: Quem j viveu algo parecido e o que fez para superar?. Nesse momento, a pessoa que teve seu problema escolhido escuta
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as diferentes possibilidades de enfrentar uma mesma situao, conforme o que cada participante vai relatando. A Terapia Comunitria encerra num clima afetivo, com uma grande roda, com as pessoas se apoiando. Pode-se cantar uma msica, falar uma poesia. O Terapeuta Comunitrio procura fazer conotaes positivas acerca do que foi falado durante a roda e pede para que cada um fale o que aprendeu com as experincias que ouviu. A TC na EPA tem como objetivo ser mais um dos espaos de fala e escuta dos jovens, qualicando o acompanhamento feito aos estudantes, ressignicando os espaos interno e externo e suas histrias de vida. uma forma de transformar sem violentar, incentivando, a partir da dignidade, a construo de outro mundo, pois quando existe um fortalecimento emocional, criam-se as condies para a luta por direitos. As rodas de TC acontecem duas vezes por semana e tem a frequncia livre, mas, dicilmente, algum jovem no participa. um espao reconhecido pelos estudantes, os quais gostam de estar e de participar, alm disso, trazem questes do cotidiano. No perodo de 2007 a 2009, aconteceram 136 rodas beneciando um total de 135 participantes, incluindo familiares e a comunidade escolar, e as temticas mais frequentes foram: violncia sofrida e exercida; sofrimento; diculdades e preconceito por viver nas ruas; desejo de largar as drogas; mudar de vida; conseguir trabalho; estar longe de familiares; no conseguir car acordado nas aulas; envolvimento com trco; car adulto; tentativa de estupro; entre outros. Dentre as etapas da Terapia Comunitria, temos o Encerramento, momento em que cada participante convidado a socializar com o grupo as emoes e as aprendizagens ocorridas na Roda, a partir das perguntas: O que estou levando? e O que aprendi com as histrias que ouvi na TC?. A apreciao, aps cada encontro, traduz o que aquele tempo de conversa marcou em cada jovem que pode ter participado com sua fala, seu silncio, seu sorriso, suas lgrimas, seu desenho, sua observao, seu caminhar.
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Seguem algumas falas desta fase:


eu gostei de todas as TC, porque me ajudou em muitas coisas quando eu estava triste. mas a que eu mais gostei foi quando estvamos conversando sobre a vida de cada um e quando aprendemos a cuidar um pouquinho de nossa aparncia. eu gostei de participar e observar as histrias que parecem um lme, um pouco triste. Fico um pouco observando e, dependendo da histria, me deixa feliz e pensativo. porque eu acho um espao legal para falar sobre questes que todos ns temos um dia que desabafar, falar sobre amor, medo, sofrimentos, respostas e perguntas.

As falas dos estudantes traduzem em muito o signicado deste momento na vida. importante ressaltar que o contexto da fala sempre deve ser considerado, pois a base da TC dividir experincias e fazer destes relatos possveis alternativas para seus problemas. Buscando relacionar essas falas com o currculo da escola, em uma Assembleia com os estudantes, foi feita a devoluo das falas para que eles apontassem elementos signicativos contidos nessas. Durante este processo, a equipe de professores registrou os comentrios que os estudantes iam fazendo no momento em que explicitavam suas ideias, conforme consta na planilha a seguir.
Sofrimento pelo fato de estarem nas ruas Problemas escolhidos Entende que foram vtimas de preconceito e discriminao, como a populao de rua sofre. No existe cor, todo mundo igual. Todo mundo est no mesmo barco. Se preocupa, s vezes, com coisas que no tem nada a ver. Ser maluco ajuda porque nem eu sei. No romance ajuda, no trabalho no. Tem que correr atrs de sada. Diculdade que possui para largar o trco, uma por delidade e proteo ao amigo, outra a questo nanceira e a presso que recebem dos patres, depois que entra no sai. No conseguia largar o crack, at que conheceu algum importante para sua vida e conseguiu sair da droga e dar outro sentido vida, mas a vontade veio de dentro. preciso primeiro ter a vontade interna para, depois, ter as decises sobre os caminhos. Talvez tenha que sair do trco para conseguir ajudar o amigo que est l. Dinheiro no tudo, hoje tem casa, comida, mas est preso no trco e nem consegue ajudar o amigo. Existe o NTE na EPA e, talvez, car mais tempo longe da vila seja uma alternativa. Falas signicativas

Relao com o trabalho e o futuro No consegue largar o trco.

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Envolvido com trco - no tem conseguido propor coisas diferentes com a sistemtica que gostaria

No se consegue pensar alternativas que aproximem as pessoas que esto envolvidas com o trco. J existiram guris que passaram a fazer algo diferente e mudaram de vida. J aconteceram coisas bem legais. Tem guris que j tem famlia. Uma sada descobrir o que o cara quer fazer! A escola lugar de aprender a ler e escrever, um espao da pessoa aprender. Fazer projetos na vilinha junto com as pessoas. Projeto de Informtica, mas no tinha luz eltrica. A noite todos os gatos so pardos. Fazer jornal, entrevistas na vila para ver o que as pessoas gostam, nem todo mundo gosta de teatro e hip hop. Tem pessoas, na Vilinha, que fazem outras coisas que no tracar, so boas pessoas. Mostrar para as pessoas o que se faz na EPA.

Terminei o namoro As relaes dos jovens so diferentes, hoje no tem delidade, tem violncia... com minha namorada. dif cil manter as relaes, dif cil garantir individualidade. Os grupos de amigos inuenciam, pois conhecem outras pessoas... Os homens querem ser donos das mulheres e batem nelas. Terminei meu namoro porque apanhava muito. Eu terminei e ele levou meu lho embora s para me castigar... Por que tem pessoas que cam 50 anos juntas? Eles so mais velhos, os tempos mudaram... No tem mais sociedade, no tem mais famlia. Para respeitar o outro temos que nos respeitar, nas vontades, nos limites. Homens no podem s querer fazer, se eles fazem, ns mulheres tambm fazemos... Se as coisas so conversadas no tem estresse... O namoro termina quando as individualidades no so respeitadas ou quando a relao enjoa, as pessoas deixam de gostar. Quando se jovem tem que poder estar com muitas pessoas, experimentar para, mais tarde, decidir se queremos ou no car com algum. Fase de mudana de idade est deixando de ser jovem para ser adulto, perdeu vrias pessoas que gostava Na vida, se perde pessoas, na fase pesada das drogas, as pessoas queridas que ajudaram. A droga deixava um tempo sereno, mas, depois, via que se perdia. As amizades fora da escola o conheciam de outro jeito, o conheciam como chinelagem. Com o uso de drogas, perdeu oportunidades. Mentir para os outros mentir para si mesmo. Perdeu a conana das pessoas. Perdeu a conana das pessoas porque se largou nas drogas. Largou tudo, hoje cona mais em si e acho que vai conseguir mudar, vencer. Parou de mentir, por mais dura que seja a verdade, as pessoas acabam entendendo. Vai mostrar que consegue no mentir. Tem que ter humildade e seguir. Sua irm menor estava sendo assediada por um cara, ele se organizou com outros e pegaram o cara e deram um pau nele. No compreende como adultos podem abusar de crianas. Di o corpo, di a alma. No seja +1, pense no seu futuro, sobreviva. Tuberculose contagiosa, mas tem cura, s tomar os remdios por 6 meses direitinho, que preciso se cuidar, no d para dormir na laje, no pode car no frio e como o morador de rua no vai car na laje ou no frio? Outra coisa... No d para largar o cara, no falar mais com o cara porque pega, tem que estar perto, continuar amigo para ajudar o cara a usar a mscara, a tomar os remdios, no pode abandonar. Faz um ms que meu irmo morreu de TB e AIDS, morreu com 25 anos. No conheci meu pai. Importante ter um outro que cuida, que ajuda com a medicao.

Tentativa de estupro

Amigo est com tuberculose

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Criao da T6 no Acolhimento EPA

Depois da encomenda das pastas do CMDCA no NTE s se falava da EPA sobre meninos de rua, agora a viso bem diferenciada, isso bom para a gente. Eu estou fazendo curso de manicure. Sempre vamos deixar coisas boas, temos que fazer escolhas, no se pode ter tudo. Quando faz escolhas e o cara melhora, deixa um monte de coisas para trs. Todo mundo cresceu junto no Servio de Acolhimento Noturno, todos estabelecem vnculos como se fosse famlia e a hora de voltar para casa (quem tem casa) parece que perde algo, mas ganha, a gente s v depois. Esse negcio de sair da T6 bom, tem que sair para vida, tem que conviver com as pessoas, vai ser triste sair do colgio, mas o cara sai para vida. Tenho pouco tempo na EPA, estou aqui desde a T4, elogiei tanto a EPA que a prpria irm veio estudar aqui. Na vilinha de 300 pessoas, s 10 criticam a EPA. Quando falava da EPA no XXX criticavam a EPA e agora no mais assim, percebem que por mais que estejam na rua os jovens querem estudar e viver melhor. dif cil deixar pessoas com quem se estabelece vnculos com quem se divide problemas, se tem medo de no encontrar em outros lugares pessoas assim,mas se queremos encontrar outras coisas temos que buscar. No pode ir com pensamento negativo, nem julgar no primeiro olhar. Quando estava na FASE pensou o melhor, optou por car limpa e seguir a vida sem apanhar da Brigada. Me apeguei muito a uma professora e quando ela foi embora achei que iria deixar de estudar que no conseguiria estudar com outras pessoas, mas vi que conseguia e car na escola ajudou a ir para frente. Tem servios que outro ritmo, aqui escola, para aprender. No XXX o cara se acomoda tanto que no v que um dia vai sair. A cha caiu antes dos 18 anos. A cha caiu antes, mas cai mesmo quando chega a hora (perto dos 18)... Eu planejo a minha vida. Eu tinha o convvio com minha famlia, mas e os outros? O dinheiro que o estado/prefeitura investem acaba sendo perdido. L no XXX no d para falar nisso, pensa que l tem essa TC, essa conversa sobre o futuro? No tem isso. O que o cara vai fazer quando zer 18 anos? Aqui pergunta pro cara, l no, deixa o cara sair. A cha caiu quando foi se alistar, como no se alistou, foi para rua. Se no fosse a EPA, no tinha mais nada. Caiu a cha quando foi intimado pelo juiz. Quando voltou a estudar, a pedra no d futuro, agora t fazendo curso, namorando, pensa no futuro, quer trabalhar. quando perdeu a v, que foi segunda me, fez 18 anos e se sentiu pesado, no como pensar, por que no aproveitou quando pequeno? Quando a pessoa menor, no consegue entrar em alguns lugares. Quando maior (18 anos), o jeito de falar muda. Sobre seu trabalho atual: No sabia fazer nada e hoje j craque no que faz (nos nais de semana). Agora, a opo arrumar emprego, porque j tem casa prpria (perspectiva de transferncia com o povo da vila). Festa 2 opo na vida. Tudo o que vem fcil, vai fcil, a o cara acostuma. Quando faz 18 anos no tem cho, cfgazer o que quando se faz 18 anos? tem servios que acomodam, a EPA desacomoda.

Por que na EPA tem TC no currculo? Porque se acredita que o dilogo e a partilha de experincias so exerccios de democracia e de igualdade, em que a diversidade est colocada onde a cultura se transversaliza e emerge na vida. A partir da sistematizao das Terapias Comunitrias, constri-se sentidos, criam-se referncias para o planejamento pedaggico, estruturando o tema gerador (de onde se parte), o contra-tema (onde se quer chegar) e a questo
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geradora (o que ir impulsionar e orientar o planejamento). Sendo assim, faz sentido estudar, faz sentido estar nesta Escola, pois ela desacomoda o que parecia ter morrido dentro de cada jovem, mostrando que a potencialidade singular, mas a vida plural. A escolha do Tema Gerador, do Contra-tema e da Questo Geradora para o trabalho pedaggico do ano de 2010 foi feita a partir de uma seleo prvia, contemplando as falas destacadas pelos estudantes e aquelas coletadas nas rodas de TC. Alm dessas, tambm foram includas as conversas sobre preconceito e discriminao nos demais espaos da Escola. Assim, aps discusso envolvendo o coletivo de professores, foi escolhido como tema gerador: Por que no me tratam normal?; como contra-tema: A EPA desacomoda. Gosto daqui, porque aqui posso ser eu.; e como questo geradora: De perto, ningum normal . Tendo essa temtica como foco, a Escola trabalhar, das mais variadas formas, o cotidiano nas salas de aula, os projetos, a relao com a vida de cada estudante e trabalhador inserido neste contexto, o objetivo, o subjetivo e as relaes de aprendizagem, sempre tendo como pano de fundo a reduo de danos e a incluso social. Sem esquecer que tudo deve estar integrado, deve fazer sentido, deve tornar visvel o que antes estava invisvel, oportunizando novos pensamentos, novas formas e invenes.

Referncias Bibliogrcas
BARRETO, Adalberto de Paula Terapia Comunitria passo a passo, Fortaleza: Grca LCR, 2005. GRACIANI, M. Estela Pedagogia Social de Rua, So Paulo: Editora Cortez, 2001. LEMOS, Miriam Pereira. GIUGLIANI, Silvia - Educao Social de Rua Meninos e Meninas em situao de Rua, Polticas integradas para garantia de direitos, Srie Fazer Valer os Direitos, Volume 2 Unicef 2002. Proposta Poltico Pedaggica (PPP) da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre, 2009, Porto Alegre. TORO, Jose Bernardo - Texto reproduzido do pster Fundao Maurcio Strotsky Sobrinho e da Fundacin Social. Colmbia, 1997. Traduo e Adaptao Antnio Carlos Gomes da Costa. 158

Contrapondo o discurso miditico sobre drogas

Nem to feios, nem to sujos, nem to malvados: pessoas de bem tambm usam drogas!
Semiramis Maria Amorim Vedovatto1
As pessoas no querem discutir contedos, elas querem discutir rtulos. Mrio de Andrade

Nos ltimos meses, estamos sendo bombardeados atravs da mdia com a descoberta da chamada epidemia do crack como sendo o fato emergente do momento. Ora, parece que somente agora que as mdias descobriram o srio problema que as drogas fazem sociedade, num momento em que ela chega classe mdia da populao brasileira. As drogas esto imersas em nossa sociedade, em especial o lcool, uma droga lcita bem como o tabaco, ambas em diferentes fases histricas tiveram a sua glamorizao pois, anal, quem no se lembra das fantsticas propagandas de cigarros em cenrios lindos, com mulheres e homens maravilhosos ou o que
1 Psicloga, redutora de danos

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vemos ainda nas propagandas de cerveja, que associam bebida imagens de glamour com jogadores de futebol, mulheres lindas e sucesso. Dados indicam que os problemas maiores que nossa sociedade enfrentam esto sim relacionados ao uso/abuso de lcool e que os problemas relacionadas ao uso/abuso de substncias psicoativas ilcitas atingem uma camada bem menor de populao. Isto posto nos faz pensar em como chegamos a este caos: se os problemas maiores esto relacionados ao lcool por que, ento, o foco est, especicamente, nos ltimos tempos, na questo do crack. Um dos pontos que temos que considerar o papel que a mdia tem na construo de uma imagem negativa de pessoas que fogem a regras previamente estabelecidas, como no caso da Garota Unibam que foi culpabilizada e constrangida dentro de uma instituio de ensino to somente apenas pelo comprimento do vestido, ou ainda da ginasta que foi pega em exame antidoping por ter usado uma droga proibida (no caso um diurtico), avanando um pouco mais nas pginas dos jornais, vemos o caso de um humoristaque foi pego com 1 grama de cocana e de um msico que matou a namorada durante uma suposta crise de abstinncia. Em todos os casos enumerados, a maneira com que a mdia jornalstica conduziu, inicialmente, a questo, apontando apenas para aspectos negativos do fato, em explorar adequadamente a questo, criando outra viso sobre o fato, nestes quatro exemplos citados, as pessoas so espoliadas de sua essncia e passam a representar a pseudo moralidade vigente em nossa sociedade. a mesma mdia, por outro lado, que faz uma mistura entre realidade e fantasia na construo de mitos: sejam eles atores de TV, dolos da msica nacional ou internacional, ou atletas vendendo uma imagem de uso de drogas e criatividade, uso de drogas e rebeldia, tornando, no caso de artistas e guras pblicas, uma mistura entre a realidade do ser e a fantasia do aparentar ter. A mdia, portanto, cria personagens que podem
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ser negativos, engraados ou patticos, dependendo do tom da reportagem. No caso de celebridades, a coisa ganha ate um certo tom didtico, mas o mesmo no acontece com pessoas comuns: moradores de rua, crianas e adolescentes que passam a ser guras invisveis dentro da cidade, mesmo que usando drogas. A mdia, de certa forma, ento, serve aos interesses do capital, tornando tudo e todos passveis de serem consumidos enquanto produto. No h, portanto, espaos de criao para entendimento do que a pessoa que usa drogas, quem ela , quais suas angstias, no se criando espaos para que possamos realmente VER a pessoa que esta atrs da droga. As campanhas publicitrias direcionadas ao uso de tabaco servem para fazermos uma rpida anlise sobre a questo: no incio do sculo XIX at o ano de 2000 era possvel localizar em grandes veculos de comunicao (rdio, TV e outdors) propagandas de cigarro, como o uso do cigarro era recomendado por mdicos e dentistas ou como deixavam homens e mulheres mais bonitos e, nos ltimo tempos, tendo como foco especco o pblico jovem se apoderando de imagens de manifestaes artstico-esportivas, mesclando imagens de sade, sucesso e glamour ao tabaco, assim, a estratgia adotada durante dcadas pela industria do fumo foi difundir a ideia de que o uso do fumo era uma coisa boa e colocar o cigarro como elemento essencial de um estilo de vida glamuroso, escondendo seus malef cios e promovendo benefcios irreais ou fantasiosos. As campanhas publicitrias ligadas ao consumo do lcool passam a mesma mensagem. Por outro lado, as campanhas publicitrias destinadas a preveno do uso de drogas so estruturadas em fundos escuros, em ambientes sujos, em imagens que saem das sombras, com guras feias, passando a imagem de outsiders, de pessoas com condutas divergentes, moralmente culpabilizadas, colocando as pessoas num estilo de vida feio, culturalmente empobrecido e sempre margem, colados com a imagem de pessoas perdedoras. Ento, de um lado, temos campanhas de induzem
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ao consumo como do tabaco e lcool e, por outro, campanhas de preveno que demonizam o usurio de drogas. Nos ltimos meses, a principal rede de televiso do pas iniciou uma espcie de cruzada sagrada descobrindo e apontando os malef cios do crack em nossa sociedade. O problema do crack j havia sido apontado por diversas ONGs e OG h cerca de 10 anos, quando esse aportou em So Paulo, porm somente quando o problema passa a atingir os lhos da classe mdia, trazendo-os da pgina de variedades para as pginas policiais, que vrios segmentos televisivos passam a dar destaque questo do crack enquanto problema de sade, reforando, mais uma vez, a indstria do pnico moral de drogas no Brasil. Observamos que as peas miditicas, sejam publicitrias, sejam informativas, vendem, na esfera pblica, um Sujeito fraco, com baixa autonomia, empobrecido que acaba por ter uma atitude impensada de fazer uso de determinada substncia de maneira descontrolada, que destri famlias, via social e laboral, generalizando o fato como se todo uso fosse problemtico, como se todo uso levasse destruio, desagregao de valores morais e ticos e, at mesmo, morte. O resultado disso a construo de uma imagem do drogado que responsvel por todos os males da sociedade a produo virtual de um teleguiado que dominado pelos efeitos da entidade droga. Esses sujeitos so espoliados de seu contexto sociocultural, aponta para apenas um jeito de se relacionar com a droga como caminho sem volta , como a morte , como m , o modelo proposto BEM (no usa nunca) ou MAL (usurio compulsivo). A droga sempre a mesma: um mal poderoso que toma conta das mentes inocentes e passivas, tornando os usurios seres esvaziados de qualquer sentimento ou angstia. As posies adotadas so de uma abordagem contra um malef cio, uma guerra contra as drogas como podemos notar tanto na campanha intitulada Crack nem pensar , veiculado nos estados do Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em que todas as peas publicitrias
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mostram usurios em condies feias, escuras e perigosas, em situaes de alto risco, violentos e vitimizados. As peas reforam a construo do imaginrio coletivo de que pessoas que tem conduta desviantes (no caso, pessoas que usam drogas) so feios, sujos e malvados , apontando para o processo de biodetermismo que Lombroso props no incio do sculo XIX! Na esfera de sade, tambm cometemos esse erro ao criarmos rtulos usando termos tcnicos adictos, dependentes qumicos, drogados ou, ainda, os termos do senso comum: viciado, maconheiro, craqueiro, em que usamos uma nomeclatura baseada nas formas de uso de determinada substncia ou ainda baseada na prpria substncia, tirando do SUJEITO/ INDIVDUO sua essncia principal que o de SER HUMANO, de ser pessoa. Assim, temos que rever este posicionamento pois temos que reconhecer que o Sujeito muito mais que a droga que usa, que existe SIM uma pessoa que usa droga e, ao invs de usarmos os jarges tcnicos ou do senso comum, nos referimos a ela como uma PESSOA que usa droga. Mas a criminalizao do fenmeno das Drogas acaba por afastar a Pessoa dos servios de sade e dos espaos de participao social e poltica. A vivncia e a prtica do trabalho de Reduo de Danos nos mostra que no trabalho cotidiano de encontro com pessoas que usam drogas no campo de Reduo de Danos que vamos tirando as cascas, os rtulos que, por anos, foram colocados sobre o sujeito, e a surgiro, de fato, suas reais necessidades: que vo alem do preservativo, do kit, mas que passam pelas TROCAS efetivas e AFETIVAS de material, de emoo e de desejo. E no trabalho de campo que vamos construindo com cada comunidade diferentes formas de organizao que vo das diculdades de ter acesso a uma consulta mdica ou, ainda, de ter remdio, de fazer o carto SUS ou de ir a uma reunio da escola, das diculdades ligadas escolarizao, das diculdades de poder fazer tratamento de sade seja pela prpria questo do uso seja por outras questes, como a questo do HIV/AIDS.
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Quando chegamos populao de rua, a coisa toma outro dimensionamento: como conseguir tratamento, acolhimento e reconhecimento de cidados para pessoas que se encontram num status de invisibilidade social? J avanamos e melhoramos muito quanto a viso da pessoa que usa drogas, cito como exemplo a prpria questo da Lei, temos, desde 2006, uma nova lei de drogas que garante que pessoas que usam drogas so sujeitos de direito (Lei 11343 de 22/08/06) respeitados dentro de princpios de autonomia e liberdade. Infelizmente, na prtica, a organizao de grupos representativos desta populao ainda so podados de ter direito de livre manifestao, como pudemos observar de forma pesada quanto proibio de organizao e realizao de atividades conhecidas como Marcha da Maconha em alguns estados brasileiros. Porm, ainda possvel ver a diculdade da mudana de viso, pois, na construo de Polticas Pblicas, no caso especco do crack, vimos que a pessoa que usa drogas no tem vez nem voz, porque na formulao de Polticas Pblicas voltadas questo de drogas so chamados diversos atores sociais envolvivos na questo DROGAS: policiais, juristas, polticos, padres, pastores, mdicos, psiclogos, socilogos, dirigentes de comunidades teraputicas, representantes de associaes mdicas, Ministrio da Sade, Secretaria Nacional de Polticas de Drogas, mas no so chamados representantes do pblico-alvo, ou seja, nunca so consultadas pessoas que fazem uso de drogas para discutir qual a melhor forma de se pensar em polticas pblicas que contemplem suas necessidades, um exemplo de como isso acontece o acirrado debate sobre o uso de crack no Brasil como uma epidemia e a resposta rpida do governo na formulao de um Plano Emergencial para Ampliao do Acesso ao Tratamento e Preveno em lcool e Outras Drogas no SUS (PEAD). Outro exemplo da diculdade de lidar com a temtica ligada garantia de direitos das pessoas que usam drogas foi o que aconteceu neste ano de 2009 na sesso UNGASS /ONU, reunio
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de alto nvel da Comisso de Drogas Narcticas, se consegui um espao reduzido para a participao em plenria das ONGs contrastou com a mobilidade de seus representantes nos corredores e nos eventos paralelos, que, de alguma forma, consegui mobilizar os participantes mostrando a capacidade de mobilizao da sociedade civil, infelizmente, o documento norteador destas reunies, que basear as decises mundiais (macro poltica) ligadas temtica das drogas em que referendou em sua a Declarao Poltica no representa uma maior mudana na poltica de drogas que se manteve vigente nos ltimos dez anos, pelo contrrio, com ela, a ONU revalidou sua postura proibicionista, referendando para si o sonho de um mundo sem drogas , sendo que o termo reduo de danos, que nalmente foi excludo da Declarao Poltica. Esses exemplos acima mostram que estamos longe ainda de conseguir reconhecer o direito de visibilidade positiva e de participao poltica para pessoas que usam drogas. Algumas sadas para a questo: desmisticao do usurio de drogas como um ser do Mal, e reconhecimento desse como uma PESSOA, com direitos, deveres, desejos e necessidades. Precisamos acabar com esta fantasia que pessoas que usam drogas so pessoas ruins, dar um m para o estilo demonizador usado normalmente contra o usurio na guerra ao consumo e trco de substncias consideradas ilcitas nas campanhas miditicas. A necessidade de adotar estratgias que permitam que essas pessoas sejam ouvidas e atendidas dentro das suas especicidades, criando estratgias que permitam criar alternativas, resilncias, expectativas, novos desejos, no s no campo da Sade, mas no campo da Educao, da Cultura, do Esporte, do Lazer e da Justia. Tambm acabar com a falcia que somente os processos mais dolorosos como a internao de longa durao traro benef cios, a cura para a pessoa que usa drogas temos que reconhecer que existem inmeras alternativas para a questo do tratamento e preveno e que as pessoas tm o direito de optar pela modalidade que melhor atenda as suas necessidades.
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Os prossionais necessitam ter uma ESCUTA diferenciada e de um processo de acolhimento desta pessoa para que possa inseri-la tambm em espaos de construo de poltica pblica. Na rea de Educao, deve-se romper com o modelo da guerra s drogas e sim partir para a adoo de uma cultura/educao de MUNDO com drogas, elaborao de campanhas positivas sobre a imagem do usurio contrapondo este senso comum da pessoa que usa drogas como passiva, como doente, como bandido, e no como um cidado com direitos e deveres, com desejos e anseios, e com sonhos! Somente assim que vamos conseguir que a efetivao de polticas pblicas para atender s pessoas que tem problemas relacionados ao uso de drogas, e consequente podermos ao exercitar nossa ESCUTA e nosso OLHAR para estas pessoas para que elas possam construir as formas de atendimento as suas demandas sejam ligadas sade, educao, cultura, ao esporte e ao lazer.

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Drogas para alm do bem e do mal1

Guilherme Corra2

A identidade de drogado uma das barreiras mais fortes que se coloca entre os prossionais das reas da sade, da educao e da justia, e pessoas que fazem uso de substncias ilegais. muito raro um destes prossionais ultrapassar tal barreira e ver, para alm da ameaa representada pela gura plana e sem espessura do drogado, algum se movendo, com sonhos, vontades, tristezas, experincias, preferncias, limites prprios de suportabilidade, amor, desafetos, etc. Assim, a maioria dos contatos com identicados como usurios de drogas se do, quase que exclusivamente, com os atributos que identicam a gura do drogado, pouco ou nada parece haver para alm de uma ameaa. Desse modo temos vivido e, por dcadas, estamos sendo formados nos cursos universitrios. H uma perspectiva que une todas essas formaes e, consequentemente, as atuaes prossionais correspondentes. Essa perspectiva a da guerra s drogas. Dentro dessa perspectiva que tm coerncia percepes de usurios como doentes, o que pede tratamento e pessoal especializado nos campos da sade, psi, assistncia social e educao; como bandidos, o que pede penalizao, punio e,
1 O presente ensaio a transcrio revisada e adaptada pelo autor da palestra proferida no dia 20/11/2009 no Seminrio Estadual Outras palavras... diferentes olhares sobre o cuidado de pessoas que usam drogas promovido pelo Conselho Regional de Psicologia/RS. 2 Licenciado em Qumica, Doutor em Cincias Sociais-Poltica, PUC/SP, professor do Centro de Educao da UFSM/RS e coordenador do Projeto taca: Reduo de Danos como ferramenta para prticas intersetoriais em sade/Ministrio da Sade.

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alm do pessoal mencionado anteriormente, pessoal do campo da justia: como advogados, juzes, policiais; nalmente, pode se perceber usurios de drogas como perdidos, aqueles que no tm mais jeito seja por um grau de debilitao extremo ou de periculosidade esses nos convidam a pensar em eliminao por meio de internamentos perptuos em asilos, manicmios e hospcios e, ainda, por meio de homicdios e chacinas. A gura do drogado, que anima todas essas aes, est indissociavelmente ligada noo que temos de droga. O que droga? Do que falamos quando dizemos droga? Na atualidade, nesse nal da primeira dcada do sculo XXI, quando dizemos droga nos referimos ameaa vida, coisa que mata, ou ento, como se diz muito por a, principalmente nos meios especializados, a algo que altera a percepo, ou que altera as funes normais do organismo. Nesse ponto, bom lembrar que no h nada nesse mundo que no altere as tais funes normais. Qualquer apaixonado sabe disso, qualquer odioso sabe disso, qualquer ressentido sabe disso, qualquer pessoa que esteja contente sabe disso. No necessrio sequer qualquer reforo qumico para alterar as funes normais. Como o nome desse evento Outras palavras... Diferentes Olhares... Sobre o Cuidado de Pessoas que Usam Drogas como que podemos problematizar, do ponto de vista de outras palavras, a palavra que a palavra droga. uma palavra imensa. Qualquer coisa, pessoa ou situao que nos desagrade pode ser chamada de droga. Droga de vida! dizemos quando no gostamos do que estamos vivendo. Droga! dizemos ao pisar em um coc de cachorro. Droga! dizemos sobre ns mesmos quando falhamos em alguma situao. Aqui, todavia, referimo-nos a um conjunto de substncias, e essa outra palavra muito vaga, que classicamos como legais ou ilegais quanto ao uso, porte ou abuso. Mais especicamente, referimonos, com uma gravidade pesarosa e densa, a substncias classicadas pelas instncias tcnicas estatais, como ilegais.
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Falamos, ento, de drogas ilcitas. Quais so as ilcitas? A noo de droga ilcita se constituiu a partir do LSD, da maconha e da cocana. A partir dos anos 60, ela se consolidou. J existia antes, mas foi nos anos 60 que ela tomou fora, flego e se espalhou pelo mundo no seio de campanhas antidrogas promovidas por diversos organismos e acordos internacionais. Por que essas drogas devem ser proibidas? Esta seria a pergunta. claro que hoje ns temos centenas de substncias proibidas, a proibio est evoluindo, e bem. Mas por que essas substncias se tornaram os pilares de uma noo de droga to estreitamente vinculada proibio? Um dos pontos importantes a se destacar que esto ligadas o LSD e, principalmente, a maconha rebeldia da juventude. insuportvel para um moralista ver um jovem feliz. O que deixa um jovem feliz transar, festejar, alegrar-se, juntar-se, conversar, inventar modos de vida e tudo isso desestabiliza, desorganiza e, por vezes, transtorna e derruba alguns blocos bsicos que do sustentao ordem. Isso ameaa qualquer cabea velha e eu no estou falando de velho de idade. Temos jovens de 13 anos com 1.000 anos. Enquanto o pensamento no muda, qualquer movimento um movimento de conservao. A cocana j est ligada a uma outra questo. Independente do uso ancestral por povos amerndios, ela s adquiriu as feies de substncia perigosa, cujo uso se justica proibir, como a percebemos hoje, a partir do isolamento do princpio ativo das folhas de coca em importantes laboratrios e grupos cientcos de pesquisa qumica. Puricada, ela primeiro serviu a uma elite. No nos esqueamos de Freud, seu deslumbramento e, em seguida, sua percepo da relao entre os benef cios e os prejuzos, quando estes ltimos sobrepassaram, de maneira indesejvel, os primeiros; nem da elite esnobe que cheirava com canudinho de ouro ou com notas de 100 dlares. A cocana, como a conhecemos hoje, foi, primeiro, droga de milionrio comprada livremente nas farmcias. Quando ela virou problema para fa169

mlias de milionrios ou passou a ser referida, insistentemente, a desordens sociais, tornou-se tema de polticas pblicas, ou, o que no caso d no mesmo, de proibio. Essas trs drogas so, ento, as mais importantes e so elas a base de referncia quando se fala em droga. Hoje, temos uma nova estrela nessa pequena constelao, que o crack. Voltemos questo: por que essas drogas devem ser proibidas? O que nos faz ter certeza de que essas quatro substncias, o crack junto, devem ser proibidas? Elas fazem mal! E verdade, h muita gente a sofrendo. Ser, por exemplo, a me ou pai de um usurio de crack violento no deve ser brincadeira. Ver um lho perder o nariz por cheirar tanta cocana no deve ser bom. Muita gente sofre, muita gente se diverte e muita gente est pensando a sua vida a partir das suas experincias com droga. Temos que cuidar para no transformar a droga naquilo em que transformamos o menino usurio de crack chapado, comprimido, reduzido gura de bandido. Tudo isso tem profundidade, espao, ocupa espao, move-se, tem cheiro e joga no mundo alguma coisa. O estudo dos materiais sobre drogas que circulam por a, boa parte deles, a maioria, a esmagadora maioria, relaciona essas drogas morte. Quando descrevem seus efeitos, tais descries terminam, invariavelmente, na morte. Elas devem, portanto, ser proibidas porque matam! Esse um argumento bastante forte. Todo mundo sabe que essas substncias, em determinada medida, sob certas condies de uso, realmente matam. Eu no sei se algum morreu de overdose de maconha. Mas certo que, em determinado limite, o uso de qualquer uma delas leva morte. Dessa constatao no se pode escapar, porm no se pode escapar, de outro lado, da constatao de que os nmeros indicadores das mortes de pessoas por usos de drogas, que no to grande pois quando juntamos ao uso de drogas o narcotrco, as pessoas morrem mesmo de tiro vemos que o nmero de mortes por hipertenso ou diabetes no Brasil bem superior. O que mata diabtico e hipertenso no
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seria, basicamente, sal e acar? Lembrando do exemplo dado na palestra anterior, nessa mesma mesa, do menino que deixou de gastar cinco reais com a pedra e comprou uma lata de leite condensado: se fosse diabtico, teria dado tudo errado para ele! Talvez no estivesse mais circulando por a. Viver um risco constante. Naturalizamos a palavra droga sem nos darmos conta de que o seu contedo tornou-se melequento, difuso, boc, sem sentido... Se olhamos de frente o problema e nos permitimos pensar a palavra desconectando-a da rao discursiva distribuda em generosas pores tanto ao mais laureado doutor quanto ao mais simples popular damo-nos conta de que ela se refere a algumas substncias consideradas perigosas por determinadas instncias morais. Perigosas a ponto de justicar sua proibio a partir do argumento de que matam. O que no mata? E samos por a a perseguir essas quatro substncias. Todos ns aqui, esse evento inclusive, e muita gente mais, entre as quais quero destacar os prossionais formados em cursos de nvel superior, concentramo-nos em torno dessa perseguio. E no posso deixar passar desapercebido, muito mais que isso, quero ser muito enftico, que, nessa sociedade em que vivemos, ocupamos o lugar de estudiosos, somos os estudantes e o nosso compromisso como gente que estuda, estudar! Estudar, muito mais do que acumular contedos prontos, muito antes disso, movimentar o pensamento em torno de questes vivas, atuais e presentes. muito triste, inacreditvel mesmo, que esse estrato da sociedade o das pessoas que fazem curso universitrio e, s vezes, fazem mestrado e doutorado seja responsvel por fazer a noo proibicionista de drogas circular de modo to eciente e impensado. Noo proibicionista coextensiva ao imenso rol de iniquidades que se abatem sobre os identicados como drogados ao serem objetivados como doentes, bandidos ou perdidos. Delegados tm curso universitrio, assim como advogados, psiclogos, professores, qumicos, farmacuticos, enfer171

meiros, assistentes sociais, mdicos... E essa formao lhes confere um ttulo, d-nos eu me incluo nisso uma posio de destaque e nos autoriza a entrar em contato e intervir na vida das pessoas: professores na vida dos alunos, enfermeiros na vida dos doentes, advogados e juzes na vida de faltosos com a lei, etc. Essa formao nos d esse direito e, tambm, autoriza-nos a intervir sobre as questes relativas ao uso de drogas, mas, raramente, oferece-nos um mnimo de ferramentas para pensar essa interveno. A noo de drogas que a esmagadora maioria dos acadmicos dispe no dia da formatura a mesma que tinham no dia em que passaram no vestibular. a mesma que a Ftima Bernardes e os meios de comunicao de massa, a partir de seus interesses comerciais, propagam diariamente. incrvel que esses cursos, todo dinheiro e tempo envolvidos na formao acadmica estejam servindo para conservar uma noo to rasa. Droga uma noo que no se sustenta a partir do ponto de vista de nenhum campo do pensamento. A noo de droga utilizada nas prticas proibicionistas s se sustenta a partir de uma perspectiva moralista. De um ponto de vista qumico, por exemplo, que o que eu tenho mais intimidade, no h como armar sem conhecer as condies e os inmeros fatores envolvidos no uso, que o THC, princpio ativo da maconha, mais perigoso ou nocivo que sal, acar e mesmo farinha de trigo: hipertensos, diabticos e celacos que o digam. Ns seguimos perseguindo essas quatro substncias e muito louco essa sanha persecutria envolver tanta fora e energia no intento de abolir o uso de drogas. No se vai conseguir isso, bom que se diga, pois no h registro de sociedades que no usem substncias com m de alterar a percepo cotidiana do mundo. H os mais dispostos a isso, os menos, os mais suscetveis, os menos. E deu! S que quando investimos todo esse aparato de instituies e de pessoas que ocupam o lugar de pensar e que no pensam, satisfazendo-se com repetir slogans, estamos criando um imenso e bem aparelhado processo
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de ignorncia. Processo que se traveste de seriedade cientca ao repetir, para alm do que se pode suportar, os efeitos do uso das tais quatro substncias at que levem morte. No h, nesse mundo, substncia a respeito da qual no se possa fazer o mesmo, e incluo a gua, ar e po. O que dizer, ento, de calmantes, agrotxicos, anti-inamatrios, excesso ou falta de comida. E, alm do mais, uma pessoa tocada de maneira diferente por cada substncia. No meu caso, se eu tomo uma xcara de caf s cinco da tarde, no durmo bem noite. No entanto, conheo pessoas que tomam dois cafs expressos, deitam e dormem. E ns estamos falando de caf. H quem coma um camarozinho e, por um efeito de reao alrgica, morre. Ento, cada corpo recebe uma substncia de maneira muito diferente, espantosamente diferente. claro que se eu der uma colher de ch de cicuta para cada um aqui, todos morrem. Sabemos pelo que j acumulamos de conhecimento alguma coisa das substncias de modo a no cair nessa de vamos ver se meu organismo resiste. H muita coisa no nosso cotidiano que no droga e produz morte. Tenho uma amiga que trabalha numa escola no interior do Rio Grande do Sul e conta que as crianas estavam no intervalo e um avio agrcola passou e pulverizou as crianas todas, e ela junto. Mas no s isso, as crianas esto l e ns, aqui, estamos ingerindo, constantemente, agrotxicos. O mais importante nisso tudo que se fala sobre drogas que a relao existente entre qualquer substncia e a pessoa que a usa nica. A minha relao com o caf diferente da relao de qualquer outra pessoa. E ningum mais interessante nesse jogo todo do que eu para pensar o uso que eu mesmo fao, j que o caf no pode, n? A guerra s drogas a guerra mais covarde. Vocs j viram as drogas se defendendo da polcia e querendo lutar e fugir? J viram uma droga atacando algum? Como que se estabelece uma guerra contra coisas? Depois dessa grande investida policial, principalmente na dcada de 1990, temos, hoje, uma modulao da perspectiva
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proibicionista das drogas, agora sob o prisma da sade. O usurio, antes considerado bandido, agora, alm de bandido, porque isso pode ser atualizado o tempo todo, considerado doente. Nas duas situaes, ele passivo. Como bandido, deve ser melhorado e encaminhado, sem qualquer outra opo, a um lugar para se reeducar. Sabemos bem qual . Os resultados dessa reeducao promovida nas prises todos conhecem. Se no for por essa via, explicitamente punitiva, qualquer um que esteja envolvido com um uso classicado como abusivo de substncias ilegais deve ser tratado; ou seja, quando entra pela via do tratamento, o usurio de drogas doente. No h negociao. Ele pode no se achar nem admitir que esteja, ou seja, doente, mas, do ponto de vista dessa sade dominante, ele . E, nessa barafunda criada pela aceitao passiva do discurso e das prticas proibicionistas, comum pessoas que usam drogas ilegais mas que, devido posio que ocupam na sociedade, no se acham e nem so considerados drogados identicarem-se com a proibio e suas consequncias, justicando a necessidade de aprisonamento e tratamento obrigatrio aos bandidos. Esse discurso todo insidioso porque muito fcil. Qualquer um se sente inteligente ao manifestar sua opinio sobre drogas utilizando a meia dzia de frases das justicativas proibicionistas. Em relao cocana, por exemplo, h quem use por um ms e se acaba. Enquanto h pessoas que usam por vinte anos e nem por isso deixam de produzir coisas lindas no mundo. Penso em Billy Holiday. No questo de recomendar o uso! De jeito nenhum eu estou recomendando o uso. Mas que proibir no uma coisa que sirva! Pois a proibio impede de pensar. No h como pensar o uso em um regime proibitivo e seu covarde aparato de propaganda votado a dividir o mundo em bons e maus. Os bons vo adorar fazer o papel de bons e, por mais trapaceiros que sejam, so bons, por mais moralistas e violentos que sejam, so bons, por mais tortura psicolgica que faam, so bons. E vo fazer o bem. O problema de quem faz o bem, como disse
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Max Stirner, que eles nunca vo perguntar se o bem est sendo bom para quem tomam como objeto desse mesmo bem. Eles fazem o bem. E pronto! Toda essa fala aqui para lembrar que, ocupando esse lugar que o curso superior nos d, corremos um risco incrvel de ser violentos. Ao mesmo tempo, soa como se estivssemos livres para pensar. S que o nosso livre pensamento de slogans no tem produzido nada alm de proibio. Falar de usurio de crack como a RBS faz muito diferente de estar frente de um tpico usurio de drogas livre do pensamento de manada que crassa. As surpresas so muitas. Como educador, posso dizer com tranquilidade que burrice coisa rara. Ainda mais quando se trata de salvar a prpria pele, mesmo que se esteja debilitado e confuso. S que ns temos um mercado de drogas muito complicado e violento, um mercado de servios pblicos e privados, em relao s drogas tambm, a seu modo, complicado e violento. E algum, no meio disso tudo, porque usa drogas ilegais, identicado como bandido e sujeitado s foras desmesuradas que se abatem sobre o seu corpo. E ns, as autoridades prossionais certicadas e habilitadas em cursos universitrios, ocupamos o lugar das vlvulas que podem permitir ou impedir essas foras de atingi-lo com a violncia que lhes prpria. A maioria das pessoas que usam crack teve experincias terrveis nas escolas, e para l elas no voltam. A gurizada que anda na rua no est na rua porque so vagabundos. Seria muito dif cil pensar que, talvez, as experincias vividas na escola e em casa sejam piores do que as encontradas na rua? Ningum tolo a ponto de escolher o pior pra si. Ento, isso de drogas como agentes ativos do mal e de buscar solues algo muito perigoso. S para dar um exemplo: quando se resolveu acabar com o narcotrco atravs do aumento da represso aos tracantes pela aplicao de penas mais duras, o efeito imediato dessa medida foi a introduo do trabalho infantil no narcotrco. Vocs esto vendo como, s
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vezes, uma soluo geral d um belo tiro no p? E, em relao s drogas, isso muito comum. Mais um exemplo: o reno da cocana conta com solventes especcos para a puricao. Qual foi o raciocnio dos gerentes do bem-comum? Dicultar a circulao desses solventes implicaria em reduzir drasticamente a produo de cocana, no verdade? A implementao de medidas com esse m reduziu mesmo a quantidade de cocana disponvel no mercado. Surgiu, ento, em enormes quantidades, o crack que a pasta base misturada com bicarbonato. Vocs esto vendo como a proibio uma furada? Ento, essas grandes sacadas gerenciais esto agravando o problema. E ns no estamos a m de agrav-lo, estamos de sangue doce. S que quando assumimos a proibio, e a noo de drogas necessria para que a proibio tenha coerncia, somos violentos e produzimos ignorncia. Querer ser bom, no ser bom.

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Reduo de Danos: campo de possibilidades para prticas no proibicionistas em sade1


Flvia Costa da Silva2 Na dcada de 1980, uma nova doena a Sndrome da Imunodecincia Adquirida (Aids) chega ao Brasil. Desde ento, diferentes discursos compuseram o quadro de denies da Aids no pas. De religiosos a biomdicos, a exploso discursiva sobre a doena vem sendo alimentada h quase trs dcadas. O incio da epidemia no Brasil foi marcado pelos discursos religiosos e conservadores. Diariamente, pastores, padres e sacerdotes de vrias igrejas sustentavam que a Aids seria uma espcie de taa da ira de Deus sobre o homem. Uma ampla aliana entre igrejas crists, catlicas e protestantes agia na promoo da sexualidade heterossexual e monogmica como nico modelo para salvar-se do mal que acometia os gays (PERLONGHER 1986). As respostas religiosas davam o tom do incio da epidemia no Brasil. Os gays, um dos grupos mais afetados, eram
1 Este texto proveniente da dissertao de mestrado sob o ttulo: Percurso da noo de drogas em educao: por uma problematizao do proibicionismo apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Maria/RS em abril de 2010. 2 Cientista Social (UFSM), Especialista em Sade Pblica (ESP/RS), mestre em Educao (UFSM). Foi responsvel pela implantao e implementao do Programa de Reduo de Danos e da Poltica Municipal em HIV/aids da Secretaria de Sade de Santa Maria/RS.

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acompanhados por outros pecadores, formando o grupo chamado de os 4Hs: homossexuais, usurios de drogas injetveis (heroin-adictions), hemof licos e haitianos. Os homossexuais e os usurios de drogas, por serem os mais acometidos, de acordo com os dados epidemiolgicos, foram classicados inicialmente pela biomedicina como grupos de risco3. Tambm os mais culpabilizados pela sociedade, nacional e internacionalmente. Com o passar dos anos, a medicina lanou mo da categoria vulnerabilidade4 para os estudos e intervenes no mbito do HIV/ Aids. O pblico homossexual ocupou lugar de destaque no que diz respeito preveno ao HIV e participao nas discusses sobre as polticas de sade e, em meados da dcada de 1990, em vrias cidades do Brasil, tiveram incio s prticas em Reduo de Danos (RD). No que se refere preveno ao HIV/Aids, essas prticas consistiam na entrega do kit reduo de danos a pessoas que faziam uso de drogas injetveis, com o objetivo de evitar o compartilhamento de agulhas e seringas durante o ritual de uso. O kit, em geral, era composto por seringas, agulhas, gua destilada, leno umedecido em lcool, copo dosador, garrote, preservativo masculino e material informativo sobre as formas mais seguras de uso de substncias psicoativas pela via intravenosa e sobre como acessar alguns servios de sade. Contudo, as prticas no eram direcionadas apenas s pessoas que usavam drogas, j que a rede de interao social dessas pessoas apresentava potencialidade de ampliar o cuidado e a escuta nas questes que envolvem o uso de drogas. A proposta do Ministrio da Sade (MS) era que o trabalho em RD fosse realizado especialmente por um pblico especco, por meio de projetos e programas que renem
3 Grupo de risco elemento derivado da nomenclatura epidemiolgica (fator de risco) e diz respeito a um conjunto de atitudes que tornam esse ou aquele grupo mais suscetvel infeco pelo HIV. 4 O termo vulnerabilidade compreende a unio de, basicamente, trs fatores: o comportamento pessoal ou a vulnerabilidade individual; o contexto social ou a vulnerabilidade social e; a vulnerabilidade programtica ou as respostas dos organismos nacionais ao controle da epidemia (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993).

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[...] um elenco de aes desenvolvidas em campo por agentes comunitrios de sade especialmente treinados (denominados redutores de danos ou simplesmente redutores) que incluem a troca e distribuio de seringas, atividades de informao, educao e comunicao (IEC), aconselhamento, encaminhamento, vacinao contra a hepatite e outras aes (BRASIL, 2001, p. 12-13).

Em meados dos anos 1990, quando surgem os primeiros Programas de Reduo de Danos (PRDs) no Brasil, pode-se dizer que havia um consenso entre os tcnicos da sade de que para ser redutor de danos era importante que a pessoa zesse ou j tivesse feito uso de alguma droga e conhecesse a comunidade onde iria desenvolver o trabalho. Vrios PRDs foram compostos por agentes redutores de danos com essas caractersticas que, naquela poca, formavam o perl do redutor . Com o passar dos anos, o fazer campo5 mostrou que o redutor de danos no precisava ser, necessariamente, um usurio ou ex-usurio de drogas e nem morar na comunidade onde desenvolveria o trabalho de RD. O que era fundamental para ser um redutor de danos passou a ser a capacidade de criar vnculos, de realizar uma boa escuta6, ou seja, ter a manha , gria utilizada por alguns redutores de danos referindo-se habilidade de abordagem que consistia em saber se aproximar das pessoas, trat-las bem, escut-las e no as perceber como perigosas. Para a realizao do trabalho em Reduo de Danos, so necessrios deslocamentos e atuao de prossionais junto s comunidades que carregam o rtulo de marginalizadas ou perifricas, enm, moradores de bairros populares, onde as redes de
5 No universo da Reduo de Danos, fazer o campo signica o deslocamento dos trabalhadores at as vilas e bairros do municpio que atuam para a entrega do Kit de Reduo de Danos e criao de vnculo com as pessoas do local. 6 Quando uso a terminologia escutar, busco me aproximar da proposta de Luzeni Regina Gomes Leito (1995) em seu texto No basta apenas ouvir, preciso escutar: Para acolher a fala no seu poder mais prprio necessrio deixar-se afetar e atravessar por ela. preciso que a fala transforme o outro que est escutando no no sentido de convert-lo, mas no intuito de transgur-lo para uma instncia onde a expresso possa ser apreendida (Revista Sade em Debate, junho de 1995).

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narcotrco e criminalidade convivem com redes policiais, domsticas, escolares. Lugares em que o narcotrco e a criminalidade se incorporam s dinmicas cotidianas da vida, tramando as paisagens do legal e do no legal, do autorizado e do clandestino e tudo o que se passa entre. Esse trabalho de deslocamento e atuao nessas comunidades chamado fazer o campo, o que exige descortinar paisagens sociais e cartografar o uso de drogas nesses cenrios. Para tanto, necessrio percorrer caminhos, becos, casas desconhecidas e colocar-se em relao com o outro que habita esses territrios. Para cumprir o objetivo concreto de trocar seringas sujas por limpas e potencializar algum cuidado em sade, so necessrias muitas outras trocas. Tarefa que no nada fcil. As prticas realizadas por agentes redutores de danos diferem do trabalho desenvolvido por agentes comunitrios de sade ACS. O trabalho dos ACSs realizado em um territrio delimitado, onde so visitadas todas as casas de uma determinada rea. Alm disso, realizado um acompanhamento famlia inteira e, no nal, preenchido um formulrio que deve ser assinado pelo morador daquela casa. J os agentes redutores de danos chegam a um local, bairro ou vila e, ao invs de entrar em todas as casas, conversam com quem esta disponvel. A disponibilidade avaliada por meio da expresso facial de quem est em frente casa, embaixo de uma rvore, na calada de um bar, tomando cerveja ou em uma rodinha de chimarro. Lugares e situaes variadas caracterizam um campo. s vezes, as conversas aconteciam em um bar ao redor de uma mesa de sinuca, outras em construes inacabadas que se tornavam a casa de algumas pessoas, que, por necessidade, se submetiam a viver em locais insalubres, sem gua e luz, enm, pequenos acampamentos, em condies muito precrias. Nem todas as pessoas que pegavam o kit reduo de danos faziam uso de droga injetvel. s vezes, pediam o kit para entregar a algum amigo ou familiar. Em algumas ocasies, os redutores foram abordados por policiais que andavam por vilas e bairros da cidade fazendo o
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patrulhamento. Nessas circunstncias, os trabalhadores da sade apresentavam o crach de identicao aos policiais, e esses pediam aos redutores que se retirassem. No entanto, vrias vezes, aps a sada dos trabalhadores, os policiais bateram em quem estava portando um kit de RD, o que deixava os redutores de danos indignados. Ou seja, o simples fato de carregar um kit reduo de danos era motivo para que os policiais agissem violentamente com quem, supostamente, (o fato de estar com o kit reduo de danos no signica uso de droga injetvel) fazia uso de alguma substncia ilcita. Essas situaes desvelam a diferena das prticas de RD no campo das intervenes estatais, pois, apesar de ser uma poltica pblica mantida pelo aparato Estatal responsvel pela proibio do uso de algumas substncias, as aes da RD entendem que o uso de drogas, mesmo as ilegais, permitido. Essas situaes imprimem os paradoxos que envolvem questes relacionadas ao uso de drogas no campo Estatal. O fazer campo carregava consigo a possibilidade da surpresa, tanto no sentido positivo quanto no negativo. s vezes, os redutores chegavam a lugares com tenso entre a polcia e os moradores. O tensionamento ocorria por diversos motivos, tais como roubo, trco de drogas, briga na prpria comunidade, etc. Em outras ocasies, os trabalhadores da sade chegavam casa de algum e encontravam pessoas que eram acessadas por eles em outros locais da cidade. Assim, podiam perceber os laos de amizade e parentesco construdos pelas pessoas que encontravam no campo. Foram raras as pessoas que no receberam os redutores de danos em suas casas. Geralmente, quando eles chegavam em alguma vila, eram tratados como amigos que estavam fazendo uma visita. Durante o trabalho de campo, ao encontrarmos pessoas que usavam drogas, ao invs de focar na substncia, o que nos interessava era escut-las, conversar com elas. O fazer o campo nos possibilitou o estabelecimento de relaes com pessoas que no correspondiam aos esteretipos de drogado, violento ou marginal. Conhecemos pais e mes de famlia que desempenhavam seus papis familiares e
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sociais, tranquilamente. O uso de drogas para vrias dessas pessoas se caracterizava como uma prtica ligada ao prazer, ao programa do nal de semana. Tambm conhecemos pessoas que tinham problemas em decorrncia do uso de droga e/ou de situaes j experenciadas na vida misria, doena, abandono, etc. E, ainda, conhecemos quem incorporava perfeitamente o rtulo de drogado com demonstraes performticas do esteretipo conferido. Nossa experincia permite armar que, quando atuamos em uma perspectiva no proibicionista, a noo de droga que impera no meio social a de que faz mal, mata ou transforma pessoas sadias em doentes e delinqentes abalada. Atuar em uma perspectiva no proibicionista ser atravessado, afetado pelas histrias de vida das pessoas acessadas em campo. Muitas vezes, ter que fechar os olhos para as injustias sociais que cam evidentes, ver a beleza em cada atitude delicada dessas pessoas que nos recebem em suas casas e abrem suas vidas como se fssemos grandes amigos. O fazer o campo descortina um universo repleto de paradoxos.

Breves consideraes sobre as prticas em reduo de danos


A experincia em Reduo de Danos RD mencionada neste texto no deve ser entendida como uma sntese dos Programas de Reduo de Danos PRD no pas. Ao longo das ltimas duas dcadas, as prticas em RD vm congurando um mosaico composto por peas bastante diferentes. Depositria do saber biomdico, ela abre brechas importantes ao considerar o uso das drogas que por lei so proibidas, pois, alm da RD deixar claro o uso de substncias ilegais, ela defende que nem todo o uso de drogas danoso. No entanto, a RD deve ser entendida como uma arena onde diferentes foras relacionadas questo das drogas, concepes de sade e elementos polticos se relacionam e disputam. No que diz respeito ao seu desenvolvimento estrutural, no incio da dcada de 1990, quando a proposta chegou ao Brasil, as
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prticas em RD estavam sob tutoria dos Programas de Reduo de Danos ento restritas a Organizaes No Governamentais ONGs e ou Organizaes Governamentais OG. Com o passar dos anos as propostas em RD foram capilarizadas para diferentes espaos da sociedade, especialmente para outras esferas do sistema de sade, o que possibilitou a emergncia de novas prticas em RD. Nos servios de sade em geral, as prticas em RD esto centradas basicamente em uma postura relativizadora do uso de drogas na vida das diferentes pessoas. Seu pressuposto bsico simples: j que o uso de drogas algo inevitvel na vida de algumas pessoas, um conjunto de medidas deve ser tomado para que esse uso no apresente srias complicaes para a sade. Dessa forma, alguns trabalhadores do setor passaram a adotar essa postura em seus locais de atuao frente pessoa que faz uso de alguma droga. Embora a postura relativizadora seja a tnica das prticas em RD, em muitos casos a percepo de que o uso de drogas se caracteriza como um mal em si ainda vigora. No raramente a RD vista como um caminho para chegar abstinncia. As concepes de Reduo de Danos no esto necessariamente afastadas da perspectiva proibicionista do uso de drogas, tampouco das concepes morais que rodeiam esse campo. No so raras as situaes em que trabalhadores da RD desejam dar a luz, salvar as pessoas que fazem uso de drogas, percebendo, s vezes, o uso das substncias como um problema central na vida dos sujeitos, quando nem sempre o . Deleuze e Guatarri (2000) sugerem que produzamos foras para abalar o verbo ser. Ento, nenhuma pessoa cabe em uma gura identitria ou em um atributo: nenhuma pessoa que faz uso de droga cabe no atributo de drogado. Na medida em que as pessoas usurias de drogas no so tratadas como marginais ou criminosos, aparecem outros discursos sobre o uso das substncias ou mesmo sobre as histrias de vida dos sujeitos acessados em campo. O redutor de danos enquanto um trabalhador da sade desloca os atributos identitrios das pessoas que encontra em campo.
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A experincia junto ao PRD fez emergir uma pluralidade de modos ticos de existir e de relacionar-se com as substncias. Azambuja Jr. (2005) em sua pesquisa realizada junto ao PRD de Santa Maria arma que
[...] os usurios acessados pelo PRD com quem tive oportunidade de conversar tm diferentes formas de relao com o consumo de drogas [...]. Assim, no que diz respeito ao uso de cocana injetvel, h os que armam consumir mais de uma vez por semana, os que admitem faz-lo nos ns de semana e, os que s fazem l de vez em quando. [...] O caso da maconha bastante interessante, pois h os que no a consideram uma droga. [...] Alguns relatos apontam para a idia de que a maconha algo que tranqiliza, abre o apetite e proporciona boas noites de sono. A prpria forma como ela muitas vezes consumida em frente s casas, a qualquer hora do dia, em grandes grupos onde at mesmo a faixa etria bastante variada , sugere que h, pelo menos, uma maior tolerncia com relao ao consumo da erva entre os integrantes de classes populares, j que, cenas como as que vi so dicilmente vistas em ruas do centro da cidade ou em bairros de classe mdia, principalmente em cidades do interior como o caso de Santa Maria (p. 34).

Dessa forma, quando armo que a experincia do PRD apresentou outros modos ticos de vivncia com o uso de drogas, no me rero ao PRD propriamente, mas s situaes que emergiram a partir dele, ao fazer campo. Nesse sentido, a RD congura um campo de possibilidades para prticas no proibicionistas sobre o uso de drogas. Ao conversar com as pessoas, ao suspender o juzo e xar o olhar nos detalhes de cada produo de vida, as prticas em RD permitem se aproximar do ponto de vista dos usurios, no os considerando sujeitos com condutas homogneas, mas sim, sujeitos heterogneos com mltiplas motivaes e relaes estabelecidas com as substncias consumidas (Azambuja Jr., 2005,
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p. 45). Permite ver pessoas ali onde parece s haver drogados, marginais, criminosos, vagabundos e perceber que seus processos de vida so mais importantes do que o uso de drogas em si. Muitas vezes, esses atributos estigmatizantes servem para ocultar uma realidade sociocultural econmica que vem transformando o planeta num mercado e, seus habitantes em zumbis hiperativos includos ou trapos humanos excludos (ROLNIK 2007, P. 18). Ou seja, permite perceber que talvez o maior problema na vida de pessoas pobres, que carregam o rtulo de bandido, marginal ou drogado, seja a desqualicao de seus talentos, o impedimento da atualizao de suas potncias de vida, o efeito do desemprego, da diculdade em acessar bens culturais, enm, um conjunto socioeconmico cultural bem mais amplo, que associado ilegalidade de algumas drogas, produz atributos depreciativos na vida das pessoas que no contribuem para o aumento do sistema do lucro e do consumo. Percorrer ruas, visitar casas e conversar com as pessoas, possibilita perceber o que Deleuze (2008) chama de superfcie, o que est aparentemente visvel. Nesse sentido, houve o desmanchamento de algumas noes atribudas s pessoas que fazem uso de drogas e que vivem nas periferias das cidades. Atributos depreciativos como vagabundo , marginal , bandido so conferidos a pessoas que muitas vezes se encontram em total situao de misria. Alis, a depreciao dos pobres tem sido uma prtica comum nos mbitos sociais mais esclarecidos. Estabelecer vnculo com pessoas que moram nas periferias das cidades, faz explodir o silncio do que no dito sobre o efeito mais visvel da proibio de algumas drogas: a geopoltica da excluso global, meninos pobres vendem drogas ilegais para meninos ricos. Enquanto anestesiam-se uns, metralham-se outros . (BATISTA, 2003, p. 162). O saber sobre a questo das drogas e seus usos produzido por meio da experincia no PRD mobilizou inmeros questionamentos ao moralmente constitudo, ao que tido como politicamente correto, ao sistema jurdico e suas leis e normas de condu185

tas. Dessa forma, penso que as prticas aproximaram-se da noo de micropoltica, como a apresentam Ceccim e Merhy (2009):
A micropoltica ope-se poltica das vigncias disciplinares, das racionalidades hegemnicas, a poltica do minoritrio, das foras minoritrias, resistncia aos institudos, resistncia ao saber-poder-desejo hegemnico, disputa por outros modos de ser-existir-agir, criativos, em ato (p. 533).

Quando compusemos a primeira equipe de RD, alm da vontade de aprender a fazer um conjunto de prticas voltadas s pessoas que usam drogas, algumas questes nos preocupavam: Anal, o que Reduo de Danos? E mais, o que droga? Essas questes atravessaram todas as composies de equipe que passaram pelo PRD ao longo desses anos. possvel dizer que no chegamos a respostas nais, mas sempre a outras questes e novas possibilidades de reformular essas perguntas. Ao longo do tempo, percebemos que no havia uma resposta para o que fosse reduo de danos, nem na perspectiva macroconceitual, nem nas relaes que estabelecamos com as pessoas que usavam drogas. No entanto, algumas cartograas foram possveis: Reduo de Danos pode ser trocar seringas; substituir o uso de uma droga por outra; mudar a frequncia de uso (usar menos vezes ao dia, na semana ou ms); deslocar o foco da droga na vida da pessoa (fazer com que a droga ocupe um lugar menos importante na vida). Essas questes se apresentavam de modo bastante complexo e no tnhamos todas as respostas. Estas dependiam exclusivamente da pessoa que fazia uso de alguma droga. Ao longo do trabalho, aps muitos encontros propiciados pelo campo, e dilogo com outros trabalhadores da RD, percebemos que fazer RD podia ser muita coisa, desde que no fosse algo prescritivo. Desta forma, pensamos que as prticas do PRD apresentam potncia criadora de brechas, fendas nas cartograas homogeneizantes da noo proibicionista de drogas.

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Referncias
AZAMBUJA JR., Carlos Alberto da Cruz. Uso de Drogas, HIV/Aids e Reduo de Danos: um estudo sobre representaes sociais. UFRGS/Porto Alegre, 2005 (Monograa de concluso de curso em Cincias Sociais). BATISTA, Vera Malaguti. A construo do transgressor. In: BAPTISTA, Marcos et al (orgs) Drogas e Ps-Modernidade faces de um tema proscrito Vol II. Editora da UERJ, Rio de Janeiro, RJ, 2003. BRASIL. Ministrio da Sade. Coordenao Nacional de DST e Aids. Manual de Reduo de Danos. Sade e Cidadania. Braslia: Ministrio da Sade 2001. CECCIM, Ricardo e MERHY, Emersom. Um agir micropoltico e pedaggico intenso: a humanizao entre laos e perspectivas. In Interface Comunicao Sade Educao v.13. supl.1, p.531-42, 2009. DELEUZE, G. Conversaes. Ed. 34, Rio de Janeiro, RJ, 2008. DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Flix. Mil Plats capitalismo e esquizofrenia Vol.1So Paulo, SP, Ed. 34, 2000 LEITO, Luzeni. No basta ouvir preciso escutar. In: Revista Sade em Debate, Rio de janeiro, RJ junho 1995. MANN, Jonathan; TARANTOLA, Daniel; NETTER,Yhomas. A Aids no mundo. Editora RelumeDumar/ABIA/IMS-UERJ, Rio de Janeiro, RJ, 1993. PERLONGER, Nestor. O que aids. So Paulo, Editora Brasiliense S.A. 1986. ROLNIK, Sueli. Cartograa Sentimental Transformaes Contemporneas do Desejo. UFRGS Editora, Porto Alegre/RS, 2007.

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Manifesto Outras Palavras


quem sabe em vez de outras, muitas e vrias palavras? (Seminrio Caxias do Sul)

Ns, participantes do Seminrio Estadual Outras Palavras... Diferentes Olhares sobre o cuidado de pessoas que usam drogas, mobilizados por uma srie de discusses que vem sendo feitas em todo o estado desde maio de 2007 e que culminou num seminrio estadual em 2008 e em sete seminrios regionais em 2009 (regies de Caxias do Sul, Igrejinha, Iju, Lajeado, Passo Fundo, Pelotas e Santa Maria), com a participao de aproximadamente 2.000 pessoas, vem por meio deste convocar toda a sociedade (gestores, trabalhadores de todas as reas, usurios do SUS, familiares e comunidade em geral) discusso da temtica drogas e exigir que cada segmento social cumpra seu papel na efetivao das polticas pblicas sobre lcool e outras drogas, pautada na defesa da vida e na garantia de direitos humanos. Considerando que a atual poltica j prev uma srie de aes e dispositivos que, se efetivados, proporcionariam uma ateno integral s pessoas que usam drogas, h que se avanar na efetivao destas aes e tambm no aprofundamento do debate junto populao. A Poltica Nacional sobre lcool e outras Drogas tem como base a Legislao do SUS, que fruto de uma construo da sociedade pela democratizao do Brasil e, conseqentemente, o direito universal de acesso sade. Destacamos a importncia da poltica de Reduo de Danos como uma diretriz no cuidado s pessoas que usam drogas, pautado no protagonismo do sujeito, autonomia, respeito s diferenas e direito de acesso aos servios.
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Uma poltica para esta rea exige o compartilhamento de responsabilidades entre os diferentes segmentos (gestor, trabalhador, familiares, usurios e sociedade) numa ao conjunta baseada no apoio mtuo, conhecimento e criatividade, formando uma rede de cuidados, intersetorial e interinstitucional. Afirmamos que a questo do uso de drogas no est relacionada somente com a sade e defendemos o envolvimento dos outros setores das polticas pblicas (Educao, Justia e Segurana, Assistncia Social, dentre outros) no desenvolvimento de aes conjuntas. Afirmamos a extrema importncia da criao e ampliao dos espaos de lazer, esporte e cultura como estratgia fundamental de promoo de sade e qualidade de vida e que a ausncia de tais espaos tem implicaes diretas no aumento do consumo de drogas entre crianas e jovens. Repudiamos a constante privatizao dos espaos de vida e convivncia comunitria nas cidades, reforando a excluso e marginalizao. Ressaltamos a escassez de polticas de gerao de trabalho e renda, que um dispositivo fundamental no enfrentamento da questo das drogas e suas implicaes. Defendemos a regionalizao, que uma diretriz do SUS, mas exigimos que os municpios assumam efetivamente o compromisso com a implementao das polticas preconizadas pelo MS e OMS no que se refere ao cuidado de pessoas que usam drogas. Defendemos o investimento em aes de Educao Permanente visando a constante capacitao e qualicao dos diferentes agentes implicados no processo de cuidado e que estas aes estejam articuladas s instituies formadoras e estruturas de apoio pesquisa. Defendemos o fomento criao de Comisses ou Fruns Permanentes para funcionamento e discusso sobre o tema. Exigimos dos gestores pblicos o respeito s deliberaes do Controle Social, repudiando toda e qualquer atitude contrria a isso.
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Exigimos a garantia de direito dos movimentos sociais de livre expresso e manifestao. Defendemos a criao de equipamentos substitutivos pblicos pautadas em orientaes tcnicas preconizadas pelo MS e OMS, que atendam aqueles usurios que no conseguem beneciar-se com os CAPSad. Como exemplo, citamos a experincia de Recife (Casa do Meio do Caminho). Defendemos as diretrizes da Poltica Nacional de Humanizao (PNH) como o acolhimento, o trabalho de rede, a clnica ampliada e o matriciamento, como dispositivos para as equipes da ateno bsica no cuidado de pessoas que fazem uso prejudicial de lcool e outras drogas. Alertamos para a escassez e fragilidade da rede de ateno a crianas e adolescentes, que, por falta de integrao e qualicao do cuidado, deixam os usurios expostos a diferentes vulnerabilidades. Alertamos para as dificuldades enfrentadas pelos usurios de substncias psicoativas com comorbidade associadas e que cam sendo jogados de um servio para o outro com o pretexto de que este usurio no pertence a determinado servio (CAPSII/CAPSad). O mesmo acontece com crianas e adolescentes (CAPSi/CAPSad). Afirmamos a necessidade de ampliar a rede de cuidados, implementar os equipamentos preconizados em lei e scalizar o uso das verbas pblicas em projetos criados pelas equipes que atuam diretamente no cuidado. Reafirmamos a Reduo de Danos como diretriz no cuidado de pessoas que usam drogas e exigimos que as aes voltadas a esse cuidado contemplem a contratao de redutores de danos. Afirmamos a importncia de a populao ocupar os espaos de controle social e lutar pela garantia de direitos, levando a todos os municpios gachos esta temtica para ser discutida. O coletivo deste seminrio vem manifestar sua preocupao com o crescimento de instituies para tratamento involuntrio e
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de internaes compulsrias determinadas judicialmente para pessoas que usam drogas. Estes espaos so descritos como lugar de tortura (isolamento em sala escura, espancamento, tortura, etc), muitas vezes nanciadas pelo SUS, sem scalizao. Conclamamos o Ministrio Publico e Promotoria Pblica para scalizar tais locais. Por ltimo, ressaltamos que o discurso da mdia interfere no entendimento da sociedade com relao ao tema das drogas e o cuidado possvel s pessoas que usam drogas. O discurso comumente utilizado vem de encontro poltica do SUS e da reforma psiquitrica antimanicomial e acabam propondo medidas opostas. Assim, de responsabilidade dos gestores, de todos os nveis de governo, propor campanhas na mdia que possam rearmar aes de cuidado vida, esclarecendo a populao sobre as polticas vigentes e informando sobre os dispositivos e possibilidades de interveno. Pensamos que incidir nos espaos miditicos uma estratgia imprescindvel para desconstruo do senso comum que diculta a implementao da poltica estabelecida como, por exemplo, a campanha gacha do Crack nem pensar de cunho terrorista. Entendemos que o Sistema Conselhos de Psicologia tem um papel importantssimo de interveno nos meios de comunicao, uma vez que os mesmos incidem na subjetivao das pessoas, muitas vezes sem responsabilizar-se com o que se est produzindo. Consideramos necessria uma postura mais ativa do Sistema Conselhos frente aos discursos veiculados, bem como a articulao com os demais conselhos prossionais. Tais consideraes so colocadas por entendermos que, embora o conselho tenha atuado de forma importante com relao s polticas pblicas, as discusses ainda cam muito restritas categoria e poderiam ter maior impacto se pensadas de forma a abranger os demais atores.

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