Logoterapia e o Sentido Do Sofrimento
Logoterapia e o Sentido Do Sofrimento
Logoterapia e o Sentido Do Sofrimento
Logotherapy and the meaning of suffering: convergences in the spiritual and religious dimensions
RESUMO O presente artigo tem o objetivo de analisar o sentido do sofrimento em Logoterapia psicoterapia do sentido que prope a compreenso da existncia atravs dos fenmenos tipicamente humanos, especificamente das convergncias nas dimenses espiritual e religiosa. Com base no resgate do conceito de vontade de sentido, pretende-se estabelecer tanto uma relao entre os conceitos de pathos, finitude e morte quanto sua articulao com a perspectiva do Homo patiens em Logoterapia; assinalando o lugar da culpa, da doena, da dignidade, da responsabilidade e do sentido nesse contexto. Ademais, considerando a natureza do sofrimento como inerente constituio humana, a teoria de Viktor Frankl considera a resilincia uma adaptao positiva do homem em resposta s adversidades, as quais possibilitam ao homem superar-se. O texto tambm pontua as dimenses essencialmente humanas, enfatizando a dinmica do Homo religiosus e a dimenso notica como fatores fundamentais no processo de identificao, enfrentamento e superao do sofrimento. Palavras-chave: Logoterapia, Viktor Frankl, Sofrimento, Resilincia, Sentido.
ABSTRACT This present article has the purpose of analyzing the meaning of suffering in Logotherapy psychotherapy of meaning that seeks to comprehend existence by typical human phenomenon, specifically through the convergences in the spiritual and religious dimensions. From the rescue of the meaning's will concept, it intends to establish a relation both in the concept of pathos, finitude and death, as well as its articulation with Homo patiens perspective in Logotherapy; distinguishing the place of guilt, disease, dignity, responsibility and meaning in this context. Furthermore, considering the nature of suffering as inherent to the human constitution, the theory of Viktor Frankl considers resilience a positive adaptation of man in response to adversities, which enables him to overcome them. The text also indicates the essentially human dimensions, emphasizing the Homo religiosusdynamics and the noetic dimension as fundamental factors in the process of identifying, confronting and overcoming suffering. Keywords: Logotherapy, Viktor Frankl, Suffering, Resilience, Meaning.
A Logoterapia uma escola psicolgica de carter multifacetado de cunho fenomenolgico, existencial, humanista e testa , conhecida tambm como a "Psicoterapia do Sentido da Vida" ou, ainda, a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia. A teoria de Viktor Emil Frankl (1905-1997) concebe uma viso de homem distinta das demais concepes psicolgicas de seu tempo ao propor a compreenso da existncia mediante fenmenos especificamente humanos e a identificao de sua dimenso notica ou espiritual, a qual pela sua dinmica prpria pode despertar a vivncia da religiosidade. Se Coprnico ousou retirar a Terra do centro das rbitas planetrias e Kant ousou retirar o objeto do conhecimento do centro mesmo da epistemologia, pode-se afirmar que Frankl livrou a psicoterapia do introspectivismo, desconstruindo a noo de uma autorrealizao solipsista do centro das motivaes primrias do ser humano (Pereira, 2007). A questo no deveria ser "o que eu ainda devo esperar da vida", porm, "o que a vida espera de mim". Kierkegaard utiliza a seguinte metfora para relacionar o esforo humano na busca da felicidade: a porta da felicidade abre-se "para fora", ou seja, ela fecha-se exatamente para quem tenta empurr-la para dentro; j Frankl, a partir de sua experincia nos campos de concentrao, foi mais longe, apontando para uma dimenso que s Deus pode mensurar, na fidelidade ao sentido da existncia, misso do ser humano sobre a face da terra. "No se trata da busca de um, mas da busca do sentido" (Gomes, 1988, p. 31).
Para a logoterapia "o mtodo fenomenolgico o que deve ser tomado, pois o fenmeno no a aparncia, e sim, a manifestao ou revelao de que h a coisa mesma ou o ser em si, sendo o abrir-se e o manifestar-se da prpria realidade vivida pelo sujeito" (Pettengill & Angelo, 2000, p. 92). A logoterapia se caracteriza pela explorao da experincia imediata com base na motivao humana para a liberdade e para o encontro do sentido de vida. Ela inaugura tambm um novo campo, o qual Frankl define como uma psicoterapia orientada para o esprito. A rigor, para Frankl, a logoterapia origina-se "do" espiritual, enquanto a anlise existencial se dirige "para" o espiritual. A anlise existencial focaliza a luta do homem pelo sentido no apenas o do sofrimento,mas tambm o sentido da vida (Frankl, 1978). A logoteoria, por sua vez, a fundamentao terica da logoterapia com a finalidade de proporcionar o saber necessrio para uma leitura de mundo a partir dos seus conceitos fundamentais. A vontade de sentido Viktor Frankl reconheceu especialmente na psicanlise freudiana e na psicologia individual adleriana, o mesmo problema a preocupao com um equilbrio interno, numa perene busca pela cessao de tenso, como objetivo maior da gratificao dos instintos e da satisfao das necessidades, constituindo-se, assim, o fim de toda atividade que envolva a vida. (Pereira, 2007, p. 127) O que de fato impulsiona o homem no nem a vontade de poder (como aponta Adler), nem a vontade de prazer (como em Freud), mas sim o que Frankl chama de vontade de sentido. Para Frankl (1991), o homem s se torna homem e s completamente ele mesmo quando fica absorvido pela dedicao a uma tarefa, quando se esquece de si mesmo a servio de uma causa, ou no amor a uma pessoa. como o olho, que s pode cumprir sua funo de ver o mundo enquanto no v a si prprio. O sentido tem um carter objetivo de exigncia e est no mundo, no no sujeito que o experiencia. Na logoterapia, a vontade de sentido orientada para uma realizao de sentido, a qual prov uma razo para a felicidade; isto , "com uma razo para ser feliz, a felicidade surge automaticamente como efeito colateral" (Pereira, 2007, p. 129). Nesse contexto, as noes de "felicidade", de "prazer" ou de "poder", como objetos da busca ltima do homem, so negadas. E essa busca patolgica de uma felicidade incondicional foi denominada por Frankl como "princpio autoanulativo", segundo o qual quanto mais o homem persegue uma ideia acabada de felicidade, prazer ou sucesso, em detrimento da realizao de sentido, mais ele se distanciar desse objetivo. Para Frankl, no se deve buscar a felicidade, pois medida que houver uma razo para ela, ento ela decorrer espontnea e automaticamente. Ele inclusive utiliza a metfora do bumerangue, o qual apenas volta ao lanador se o seu alvo no tiver sido atingido. Assim, a "auto-realizao, se transformada num fim em si mesmo, contradiz o carter auto-transcendente da existncia humana" (Pereira, 2007 citado por Frankl, 1988, p. 38).
Ao falar de sentido, estamos fazendo referncia ao significado, coerncia, busca de propsito e finalidade. Frankl nos expressa como o homem que perdeu o sentido cai em um vazio existencial e sofre; esta frustrao existencial pode desembocar em uma sintomatologia neurtica que, como j mencionamos, o dito autor denomina noognica (Perez, 1997, p. 65). Ao utilizar o termo noodinmica, Frankl critica as concepes de sade mental a partir do ideal do equilbrio homeosttico, pois segundo ele, uma determinada tenso necessria para a existncia humana. A noodinmica a tenso essencialmente humana, a prpria dinmica existencial; a tenso que se estabelece entre o homem e o sentido, entre o ser e o deverser. E nela est presente a liberdade a qual permite escolher uma ou outra possibilidade (Roehe, 2005). O de que o ser humano realmente precisa no um estado livre de tenses, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente. O ser humano precisa no de homeostase, mas daquilo que chamo de "noodinmica". H muita sabedoria nas palavras de Nietzsche: "Quem tem um por que viver pode suportar quase qualquer como" (Frankl, 1985, p. 95-96). A logoterapia objetiva a conscientizao do espiritual. Em sua especificao como anlise existencial, ela esfora-se especialmente em levar o homem conscincia do seu ser-responsvel, enquanto fundamento vital da existncia humana (Frankl, 2003). Essa responsabilidade, todavia, significa sempre responsabilidade perante um sentido. Niilismo negao de sentido. "Todo o niilismo se caracteriza pelo ceticismo em relao ao sentido, ceticismo esse, acompanhado de um relativismo quanto aos valores" (Frankl, 1978, p. 261). O relativo, em vez de constituir uma refutao do absoluto, na verdade, necessita dele. Afinal, as coisas relativas apenas provam, documentam e testemunham a existncia do absoluto que as condicionou. Tanto o valor quanto o sentido so aplicados s coisas na medida em que o so assumidos em nome de algo mais elevado, por amor a algum, num sacrifcio. E exatamente aqui que consiste a verdadeira relatividade dos valores. Curiosamente, por mais paradoxal que possa parecer, as coisas tm valor para serem sacrificadas. "O que sacrifica d ao sacrifcio sentido, valor, preo. Dar sentido quer dizer entregar-se. No o que eu guardo comigo que retm valor; o que eu sacrifico que adquire valor" (Frankl, 1978, p. 263). Padecer de vida sem sentido um sofrimento, mas no uma doena. Porm, a vida realmente destituda de sentido? E se o tivesse, seria possvel comunic-lo? A sociedade contempornea satisfaz praticamente a maioria das necessidades do homem e algumas delas so criadas principalmente pelo consumismo. Todavia, s uma necessidade nada recebe, e ela a necessidade de sentido do homem, ou seja, sua vontade de sentido. Um exemplo apontado por Frankl: o que deprime as pessoas no o desemprego em si (comum na sociedade atual), mas a sensao de falta de sentido decorrente disto. O peso maior no nus financeiro, e sim as presses psquicas sofridas pelos desempregados (Frankl, 1990). Ademais, em qualquer situao humana o indivduo pode encontrar o
sentido; mesmo no ltimo momento da vida h possibilidades de t-lo. At diante daquilo que Frankl (1993) chamou de "trade trgica" a dor, a culpa e a morte possvel encontr-lo. O sentido no moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. Segundo Frankl, o sentido da vida uma realidade ontolgica e no uma criao cultural. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontr-lo. Universal no seu valor e individual no seu contedo, o sentido da vida encontrado mediante uma investigao do paciente e do terapeuta em busca de resposta questo sobre o que somente o paciente, e absolutamente mais ningum, pode fazer. Para Frankl, nenhum homem inventa o sentido da vida: cada um cercado e impelido pelo sentido da prpria vida. O sentido no pode ser dado ou criado, mas deve ser encontrado. E mais, o sentido no s deve ser achado, como ele pode ser achado. "E nessa busca o homem orientado pela conscincia. Em uma palavra, a conscincia o rgo do sentido, a capacidade de descobrir o sentido nico e irreprodutvel que se esconde em cada situao" (Frankl, 1978, p. 19). A vida, diz Frankl (1978), permanecer dotada de sentido, mesmo se todas as tradies desaparecerem e mesmo se nenhum valor de aplicao geral se mantiver. Conclusivamente, o que o homem procura no a felicidade em si, mas uma razo para ser feliz. a vontade de sentido na prxis da existncia humana. Pathos e logoterapia Na histria da humanidade, o sofrimento sempre se fez presente, decorrente de vrios fatores: guerras, pobreza, pandemias, violncia (no seu mais completo termo), desnutrio, etc. Hodiernamente, os dados apenas tm aumentado geometricamente, se considerarmos as estatsticas. Obviamente, na atuao psicolgica, "a questo do sofrimento humano tem chamado muito a ateno. O sofrimento est muito presente. E a conjuntura social contribui para isso de uma forma que no ocorria nas sociedades tradicionais" (Silveira, 2007, p. 16). O sofrimento inerente ao ser humano. Inclusive ele traz sentido vida em diferentes graus de intensidade ao longo da existncia. E o desafio se constitui em decidir o que fazer diante dele. Viktor Frankl, nos campos de concentrao, "experimentou e concluiu que a liberdade mxima do ser humano est em escolher a atitude diante das situaes limite da vida e da morte. Existe sempre algo ou algum que merea a luta pela sobrevivncia" (Sulzbach, 2008, p. 13). A deciso consiste em "entregar-se" passivamente ou "assumir ativamente" a luta por algo ou algum dignos dessa dor e sofrimento. Outro conceito importante na logoterapia a concepo de Homo patiens, que designa como o homem cumpre com sua orientao ontolgica para a realizao de sentido, no obstante o sofrimento e apesar do fracasso, considerando-se serem dois critrios no excludentes de anlise. O desmembramento de ambos os eixos permite o entendimento de por que
possvel a satisfao apesar do fracasso, bem como o desespero apesar do xito. A busca desse sentido de carter objetivo funda-se no mundo, no no sujeito, e constitui o fim ltimo de toda a atividade que envolve a existncia humana (Pereira, 2007). Analisando o problema do sentido da vida possvel distinguir, mesmo que de modo bastante geral, trs categorias de valores: valores criadores, valores vivenciais e valores de atitude. Enquanto na primeira categoria o homem se realiza mediante um fazer, na segunda, ele se realiza atravs de uma passiva acolhida (pela arte, por exemplo); j na terceira categoria, ele somente se realiza quando algo se tem que aceitar precisamente tal qual . E isso significa que a vida humana pode atingir a sua plenitude, no apenas no criar e gozar, seno tambm no sofrimento (Frankl, 2003). Pathos e sentido A anlise existencial tem demonstrado que o sofrimento tem um sentido, e que alm do sofrimento, a necessidade, o destino e a morte fazem parte da vida. "Nenhum desses elementos se pode separar da vida sem se lhe destruir o destino. Privar a vida da necessidade e da morte, do destino e do sofrimento, seria como tirar-lhe a configurao, a forma" (Frankl, 2003, p. 154). A vida s adquire forma e figura com as marteladas que o destino lhe d quando o sofrimento a pe ao rubro. S quando o homem j no tem nenhuma possibilidade de realizar valores criadores; s quando ele j no est realmente em condies de configurar o destino s ento pode realizar os valores de atitude; s nessa altura tem algum sentido "carregar a sua cruz". A essncia de um valor de atitude reside precisamente no modo como um homem se submete ao irremedivel; quer dizer: o pressuposto da verdadeira realizao dos valores de atitude consiste em se tratar realmente de qualquer coisa de irremedivel (Frankl, 2003, p. 155). O sentido do sofrimento nem sempre evidente, e quando evidenciado, apenas num tempo tardio e, portanto, restritivo. Os exemplos geralmente so extrados da prpria experincia, "donde se depreende que algum fato realmente doloroso em sua vida bem pode ter tido, a partir de uma viso mais tardia, um sentido que naquela ocasio no lhes era patente" (Lukas, 1989, p. 198). No pode, porm, ser suficientemente ressaltado que o sofrimento no de forma alguma necessrio para se preencher um sentido, ainda que possa valer muito bem, que o preenchimento de um sentido possvel apesar de um sofrimento, conquanto o sofrimento seja inevitvel (Frankl, 1990, p. 51). Ademais, a liberdade espiritual do homem lhe concede a oportunidade at o ltimo instante de tornar sua vida plena de sentido; afinal, se a vida tem um sentido, ento tambm o sofrimento tem um. Pathos e culpa
Para a logoterapia, h nas emoes humanas uma profunda sabedoria, para alm da racionalidade. Com efeito, chorar o que se perdeu parece ao senso comum algo to intil e destitudo de sentido como o prprio arrepender-se de uma culpa. Entretanto, tanto o luto quanto o arrependimento tm o seu sentido na histria interior do homem. Frankl (2003) afirma que o arrependimento tem o sentido e a fora de fazer com que um fato externo se converta em algo no-acontecido, enquanto a tristeza do luto tem o sentido e a fora de fazer com que aquilo que existiu de algum modo continue a existir. E o arrependimento, conforme Scheler salientou, pode apagar uma culpa: no, evidentemente, no sentido de que ela deixe de ser imputada ao respectivo sujeito; mas sim no sentido em que este, por assim dizer, se soergue, ao renascer moralmente. Tal possibilidade de converter o j acontecido em algo de fecundo para a histria interior do homem nem de longe est em contradio com a sua responsabilidade, mas antes numa relao dialtica. Com efeito, o tornar-se culpvel pressupe responsabilidade (Frankl, 2003, p. 152). Para a psicologia clssica, que preconiza a culpa como secundria, a busca de poder e prazer conduz, inconscientemente, a uma procura do sofrimento e da penitncia para o alvio. Tanto a psicanlise quanto as demais teorias imanentistas asseguram a autodestruio irremedivel sem quaisquer possibilidades de interferncia, uma vez que o circuito seria retroalimentado pelas tendncias inconscientes. Em contrapartida, quando o homem busca intencionalmente um sentido, apesar da ameaa de destruio, o sofrimento passa a ser um enfrentamento intencional desses condicionamentos e no uma situao penitente inconsciente. Assim sendo, o sofrimento tem um sentido inerente quando ele brota da culpa existencial ou real. Para Rodrigues (1991), a culpa considerada a "sndrome inescapvel", uma vez que o momento do erro j est no passado e no pode ser restaurado. Ou seja, na culpa, ou "adversidade inescapvel", o homem se depara com as consequncias inevitveis dos seus equvocos. A premissa existencialista assegura ao indivduo que a adversidade tem um real sentido, isto , visa motiv-lo a mudar e crescer, desafiando a sua dimenso espiritual na sua capacidade mais profunda de auto-transcendncia. Crescimento este que s pode se realizar se o paciente aceitar sua culpa, aceitar as adversidades e as consequncias de seus atos errneos. (Rodrigues, 1991, p. 167) A rigor, quais os fatores determinantes na interveno logoteraputica? A medicao farmacolgica especfica, as tcnicas psicoteraputicas, ou o apoio e a empatia? Na verdade, a conjugao de todos esses fatores contribui intensamente, mas a dimenso notica que envolve a deciso de valores, na dimenso do logos, que oferece os mximos recursos. Pathos, doena e dignidade
necessrio fazer uma distino fundamental entre as doenas (incluindo as mentais) e o sofrimento. Se o homem pode estar doente sem "sofrer" no sentido verdadeiro e prprio do termo, ele tambm sofre para alm de todo o ser-doente, ou seja, trata-se do padecimento puramente humano que se insere na essncia e sentido da prpria vida humana. Com isso, Frankl (2003) afirma que h situaes em que o homem se pode realizar plenamente a si mesmo no puro sofrimento e apenas no puro sofrimento. Agora possvel compreender por que razo Dostoievski afirmou que s uma coisa tinha que temer: o no ser digno das suas penas. Segundo Viktor Frankl, sofrimento e doena no se equivalem. O homem pode sofrer sem estar doente, e estar doente sem sofrer. O sofrimento to inerente ao humano como j definiu Jaspers que eventualmente o no-sofrer pode ser uma doena. E h estados psquicos doentios nos quais o homem, exatamente por no sofrer, sofre (Frankl, 1990). Viktor Von Weizscker j afirmara que o doente enquanto sofredor est de alguma forma acima do mdico que o atende. Um mdico que tenha a suficiente finura de sensibilidade para os imponderveis de uma situao sempre ter, diante de um doente incurvel ou de um moribundo, a sensao de no se poder aproximar dele sem uma certa vergonha. que, realmente, quando assim sucede, o mdico fica impotente e incapaz de arrancar a vtima morte; alis, enquanto o paciente surge como um homem que enfrenta com firmeza o seu destino e, ao assumi-lo num sereno sofrimento, leva a cabo, no plano metafsico, uma autntica realizao, o mdico, no mundo fsico, na esfera das realizaes mdicas, no faz mais do que falhar (Frankl, 2003, p. 158). Assim como o destino, o sofrimento tambm faz parte da nossa vida, ou seja, se a vida tem um sentido, o sofrimento tambm o tem. O padecimento, enquanto necessrio, uma possibilidade de algo pleno de sentido. Sofrimento desnecessrio sofrimento destitudo de sentido, todavia, sofrimento necessrio significa sofrimento permeado de sentido. No apenas o somtico que se abre ao psquico, mas igualmente o psquico ao espiritual. Enquanto o corpreo precisa do psquico para a sua realizao, da mesma forma depende do espiritual para a sua plena realizao. "Se alguma coisa corporal 'possvel', 'realizada' pelo psquico, porque uma 'necessidade' espiritual" (Frankl, 1978, p. 122). Segundo a logoterapia, a dignidade do homem permanece intacta mesmo depois da perda da utilidade em razo da desorganizao psicofsica da pessoa espiritual. Da mesma forma que a pessoa espiritual est "atrs" do fato mrbido psicofsico, igualmente a sua dignidade est "acima" da perda do valor biossocial. Frankl acrescenta que enquanto no estivermos profundamente convencidos da invulnerabilidade dessa dignidade ser apenas uma questo de maior ou menor foco quanto possibilidade de flertarmos com a eutansia, por exemplo. Para ele, "a pessoa espiritual deixa-se perturbar, mas no destruir por uma enfermidade psicofsica" (Frankl, 1978, p. 120). O homem factualmente condicionado, mas facultativamente incondicionado.
Pathos e responsabilidade A "trade trgica" sofrimento, culpa e morte em Frankl, a manifestao da caracterstica antropolgica da anlise existencial em logoterapia, ou seja, o ser-humano--finito. A resposta sobre o sentido do trgico encontrada na atitude mesma que elegemos ante uma situao que se nos apresenta tragicamente. S o ser humano tem o privilgio de eleger uma atitude frente ao sofrimento que se apresenta como tal. (Xausa, 2003, p. 84) Apenas diante daquilo que deciso puramente sua que a pessoa responsvel. "O ser humano propriamente dito comea onde deixa de ser impelido, e cessa quando deixa de ser responsvel" (Frankl, 1993, p. 19). Assim sou, em ltima anlise, responsvel por tudo (Frankl, 1978, p. 175). A responsabilidade significa aquilo por que somos "atrados" e a que "nos subtramos". Um mergulho na essncia da responsabilidade humana nos permitir um estremecimento pela dualidade: temvel-sublime. Temvel saber que a cada momento arco com a responsabilidade pelo momento seguinte; que todas as decises, as de menor e as de maior monta, so decises "para toda a eternidade"; que em cada momento realizo ou desperdio uma possibilidade, a possibilidade deste momento preciso e nico. Cada momento encerra milhares de possibilidades, mas eu s posso escolher uma delas para realiz-la, condenando todas as outras simultaneamente ao no-ser, e isto tambm "para toda a eternidade"! No obstante, sublime o saber que o futuro, tanto o meu prprio como o das coisas e o dos homens que me rodeiam, em certa medida, por pequena que seja, depende da deciso que eu tomo em cada instante. O que eu realizar com essa deciso, o que com ela "criar no mundo", qualquer coisa que ponho a salvo na realidade, preservando-o da caducidade (Frankl, 2003, p. 66-67). De acordo com Frankl (1978), a humanidade atingiu um ponto mximo de cincia, de conscincia e de saber. Alm disso, a um mximo de responsabilidade, mas ao mesmo tempo, a um mnimo da conscincia da responsabilidade. E o objetivo primordial da interveno logoteraputica no outro seno o apelo conscincia da responsabilidade. Se quisermos levar nossos pacientes conscincia de sua responsabilidade, teremos que tornar presente o carter histrico da existncia e, com isso, a responsabilidade do homem para com a vida. Ao paciente sentado diante de ns na hora da consulta recomendamos que aja como se estivesse, no final da vida, folheando sua biografia e se detendo exatamente no captulo referente ao momento atual e que, por milagre, lhe fosse permitido decidir o contedo do captulo seguinte e corrigir o que lhe parecesse passvel de alterao (Frankl, 1978, p. 229). Admite-se que o sofrimento purifica o homem. Afinal, "a resposta que o homem sofredor d, por meio do 'como', ao 'porqu' do sofrimento sempre uma resposta sem palavras, mas, reiteremos, ela , do prisma da f num super-sentido, a nica significativa" (Frankl, 1978, p. 283). Ademais,
to significativo quanto o prprio sofrimento o seu carter cooperativo, compassivo. Sentido e Resilincia Resilincia entendida como a capacidade do homem enfrentar as situaes, sobrepor-se e sair fortalecido pelas experincias adversas. A resilincia pode ser definida como uma adaptao positiva em resposta a determinada adversidade; superando-a, inclusive. Significa no apenas suportar uma situao adversa, mas comprometer-se em uma nova dinmica de vida. Em logoterapia, o conceito de resilincia usado como fator protetor do psiquismo e de transformao dos comportamentos negativos em novas possibilidades. A resilincia faz a pessoa encontrar motivos que favoream a descoberta de valores alm, por trs da dor e do psicolgico (Sulzbach, 2008, p. 14). Silveira (2007) distinguiu trs componentes essenciais ao conceito de resilincia, a saber: 1) a noo de adversidade, trauma, risco ou ameaa ao desenvolvimento humano; 2) a adaptao positiva ou superao da adversidade; e 3) o processo que considera a dinmica entre os mecanismos emocionais, cognitivos e socioculturais que influenciam o desenvolvimento humano. Para ele, o conceito de resilincia bem formulado, porm insuficiente para clarificar o que subjaz e motiva a resilincia. Nesse vcuo, a logoterapia, de Viktor Frankl, pode jorrar luz; ou seja, "atravs da atitude da pessoa de buscar sentido para a vida, pode-se desenvolver resilincia a resistncia diante da adversidade" (Silveira, 2007, p. 81). a partir do sentido que a pessoa golpeada pela vida motivase para reconstruir-se, mantendo a esperana, em busca dos recursos que fomentem a resilincia. As pesquisas realizadas sobre a resilincia tm evidenciado a importncia da relao entre o resiliente e o outro, a alteridade no contexto da resilincia (Silveira & Mahfoud, 2008). possvel, a partir do sofrimento, o homem superar tanto a si mesmo quanto em relao ao prprio contexto e existncia? A resposta positiva, desde que seja deslocado o foco da dor para alm dela, ou seja, para as possibilidades de superao. Ao invs de se concentrar nas enfermidades, necessidades e deficincias do indivduo, prefervel um modelo de preveno e promoo de sade com foco nas potencialidades tanto da pessoa quanto do meio em que vive (Silveira, 2007; Silveira & Mahfoud, 2008). Ou seja, a resilincia no de responsabilidade apenas do indivduo, mas de toda a ecologia na qual est inserido, quer seja famlia, quer seja amigos, profissionais e todos envolvidos na promoo da resilincia. Ademais em todas as pesquisas feitas sobre resilincia sempre se encontrou a importncia de existir a relao entre a pessoa resiliente e um outro um amigo, um parente, um conhecido, enfim, algum com quem se possa compartilhar vivncias e em quem se possa confiar. (Silveira & Mahfoud, 2008, p. 573)
Fica claro que doena no significa perda de sentido, nem tampouco traz obrigatoriamente o empobrecimento do sentido da existncia consigo. Ao contrrio, desde que possvel, ela sempre algo pleno de sentido. Pode inclusive significar um ganho existencial. Recuperando o conceito de autotranscendncia em Viktor Frankl, possvel articular a relao com a resilincia, pois o homem sempre pode avanar para alm das suas dificuldades, quando encontra um sentido para ir adiante, obviamente. Para a logoterapia nenhum sofrimento humano comparvel. O padecimento humano nico, singular e original, assim como o cada indivduo. "Falar das diferenas de grandeza do sofrimento seria por princpio sem sentido; uma diferena, porm, que realmente importa, a diferena entre sofrimento com e sem sentido" (Frankl, 1990, p. 105). Considerando a transitoriedade do tempo, vital vivenciar a melhor atitude, sem perder a chance de concretiz-la. Desenvolver a resilincia algo construdo a cada momento, a cada escolha. Dessa forma, "o sentido e realizao no passado, relembrados, constituem-se em fora para viver melhor o presente e suportar as adversidades" (Silveira, 2007, p. 91). A rigor, a logoterapia a expresso fiel de uma filosofia encarnada, cujo nome assume Viktor Frankl. Ele, sim, foi um modelo de resilincia. Silveira (2007) alista os diversos pilares para o desenvolvimento pleno da resilincia: adaptao s situaes adversas; a autoestima como consequncia da busca do sentido; a esperana e a f, as quais so importantes na dinmica da resilincia; diante da adversidade, a religio e a espiritualidade podem agir como um consolo alm da nossa compreenso; "a busca de sentido envolve uma perspectiva de futuro" (Silveira, 2007, p. 100); a liberdade do homem o permite se posicionar diante do sofrimento; o senso de humor fundamental para lidar com a adversidade; assumir uma atitude positiva diante das dificuldades o que significa resignao ativa; o cuidado com a sade um fator importante; a capacidade de controlar impulsos fortes; a flexibilidade; a capacidade de pedir auxlio; a criatividade na dimenso noolgica (espiritual); o reconhecimento do valor mtuo no encontro existencial; e a empatia, que pode ser entendida como a possibilidade do sujeito tornar-se capaz de se colocar no lugar do outro, sentir o que o outro sente e compreend-lo (Frankl, 1990). Via de regra, o homem se movimenta em um nvel horizontal, entre os plos sucesso e insucesso, e esta a dimenso do homo sapiens. Todavia, a dimenso do homo patiens est no nvel vertical. Este, por sua vez, o homem que sofre, que resiste, resiliente ao sofrimento, o qual preenche o sentido e realiza-se. Nesse contexto, os plos so satisfao e desespero. E, em virtude da distino dimensional, possvel haver satisfao apesar do insucesso, alm de desespero, no obstante o sucesso. O indivduo que se eleva acima de si mesmo caminha para a maturidade. As situaes extremas conduzem o homem a alcanar tanto a liberdade interior quanto a maturidade. "Sofrer, ento, no significa apenas esforarse, crescer e amadurecer, mas igualmente enriquecer-se" (Frankl, 1978, p. 241). Ademais, a existncia humana se nos oferece a sua maior profundidade, a paixo. A rigor, a essncia do homem ser um sofredor
Homo patiens, o homem que cumpre sua orientao ontolgica na busca do sentido, a despeito do sofrimento e apesar do fracasso. A propsito, ao Homo sapiens, contrape-se o Homo patiens. "O sacrifcio capaz de dotar de sentido at a morte, enquanto o instinto de conservao, por exemplo, no consegue sequer dar um sentido vida" (Frankl, 1978, p. 245). No processo de aprendizado da e na adversidade, surge a necessidade da resilincia, que se torna a operacionalizao para o encontro com o sentido da vida. "O sentido da resilincia, ento, a busca de sentido da vida que se traduz em criatividade, aprendizado, superao, crescimento" (Silveira, 2007, p. 105). Finitude e morte A morte , sem dvida, a maior adversidade com que o homem se defronta. No tanto a morte em si, mas o simples conhecimento de que sua vida se extinguir irreversvel e inescapavelmente.(Rodrigues, 1991, p. 181) Obviamente, ao tomar conhecimento da morte, as pessoas tm diante de si uma situao de dor e sofrimento; notadamente quando esta morte no se enquadra no padro e tempo considerados normais. claro que a finitude da vida ansiognica e tambm uma razo de sofrimento, independente do tempo no qual se d a morte, das situaes em que se desenvolve, e das pessoas envolvidas. O medo da morte nas pessoas normais leva a uma srie de reaes de defesa muito conhecidas na rotina do dia a dia: a sensao comum de que "o tempo est passando" irreversivelmente e estamos envelhecendo vem quase sempre imbuda de uma dose de ansiedade (Rodrigues, 1991, p. 181). Na logoterapia, no ser-passado que est tudo preservado. Frankl assegura que "o de que ns precisamos respeito ao passado, no ao futuro; o passado inevitvel, o futuro, o nosso futuro est frente da nossa deciso e da nossa responsabilidade" (Frankl, 1978, p. 151). O homem no apenas um ser essencialmente individual, mas completamente histrico. Para Frankl (1978), na qualidade de ser histrico, o homem jamais "", mas sempre "vem a ser". E ele somente ser um "todo" quando sua vida terminar; somente ento seu "mundo" ser concludo. Igual a uma linha circular que se fecha sobre si mesma, de igual modo a vida o faz no momento da morte. Os elementos constitutivos do sentido da vida humana so dois: o "carter de algo nico" e a irrepetibilidade. E ambos os aspectos essenciais da existncia humana manifestam-se simultaneamente na finitude do homem. Tal finitude representa algo que de alguma forma concede sentido existncia, e no algo que lho tire. Para Frankl (2003), a morte no pode corroer o sentido que caracteriza a vida. Ao contrrio, o que aconteceria se a vida no fosse finita temporalmente, mas ilimitada no tempo? Se
fssemos imortais, poderamos adiar as nossas aes infinitamente; e nunca teria a menor importncia o realiz-las agora, amanh ou daqui a dez anos. Em contrapartida, tendo em vista a morte como uma fronteira intransponvel do futuro e limite das nossas possibilidades, vemo-nos obrigados a aproveitar o tempo de vida que dispomos e a no deixar passar em vo as ocasies consideradas irrepetveis, cuja soma "finita" significa precisamente a vida toda. A finitude e a temporalidade neste contexto no so apenas um adicional vida humana, so necessariamente constitutivos do seu sentido. O sentido da existncia humana funda-se essencialmente no seu carter irreversvel. A propsito, a mxima da anlise da existncia poderia ser assim compreendida: Vive como se vivesse pela segunda vez e como se da primeira vez tivesses feito to falsamente como agora est quase a fazer. possvel tambm imaginarmos a vida como um filme que estamos "filmando", sem, contudo receber "cortes", ou seja, um filme no qual j no se pode retroceder para desfazer o que foi "tomado". A propsito, "quando se vai ao cinema, claro que o que mais importa que o filme tenha um fim, seja ele qual for, pouco importando que seja um happy-end" (Frankl, 2003, p. 111). O fato de que somos mortais, que nossa vida finita, que nosso tempo limitado e nossas possibilidades limitadas, esse fato que principalmente faz com que parea pleno de sentido empreender algo, aproveitar uma oportunidade, realizar, satisfazer, aproveitar e preencher o tempo. A morte significa a presso para tal. Assim, a morte constitui o fundo sobre o qual o nosso ser exatamente um ser responsvel (Frankl, 1990, p. 75). Assim sendo, torna-se essencialmente insignificante a durao da vida humana. Uma vida longa no a torna necessariamente plena de sentido, da mesma forma que a sua eventual brevidade no a destitui de sentido. No se julga a biografia de uma pessoa, segundo Frankl, pelo nmero de pginas da obra que o apresenta, mas pelo seu contedo. No necessrio, portanto, separar a morte da vida, seja de que modo for; porque, a rigor, o que sucede que a morte faz parte dela! Mas tambm no possvel "domin-la", como julga fazer o homem que quer "eternizarse" pela procriao, pois falsa a tese de que o sentido da vida se radica na descendncia (Frankl, 2003, p. 112). Em suma, a morte pertence vida tanto quanto o sofrimento, uma vez que nenhum dos dois torna a existncia do homem sem sentido, mas antes plena de sentido. A singularidade da vida, a irrepetibilidade do tempo e a irrevocabilidade daquilo que preenchemos nossa existncia (e at a sua ausncia) traz real significao nossa existncia. Mesmo porque o ser passado, neste sentido, a forma mais segura de ser. Ao ser que guardamos no "passado", a "transitoriedade" no pode mais causar dano algum (Frankl, 1990). Afinal, aquilo que irradiamos no mundo ser exatamente o que permanecer de ns quando j tivermos partido. A morte se revelou plena de sentido na medida em que funda a singularidade da nossa existncia e com ela nosso ser responsvel; da
mesma forma evidencia-se agora a ns a imperfeio do homem que, como ser, necessita de sentido, na medida em que agora visto positivamente como um valor apresenta-se como algo que constitui aoriginalidade de nossa essncia (Frankl, 1990, p. 78). A morte o resultado da finitude e da transitoriedade da existncia humana. "O ser humano no apenas um ser-para-a-morte, mas um serante-a-morte, pois ante ela se decide e toma uma atitude" (Xausa, 2003, p. 84). Diante da ameaa da morte, trata-se de lutar pelo sentido da morte, do morrer, e caminhar para o derradeiro fenmeno da existncia humana de cabea erguida. "Saber morrer sua morte" em logoterapia significa integrar a morte com o pleno sentido no todo da existncia; pois at na morte se satisfaz verdadeiramente o sentido da vida. A vida no se transcende a si mesma longitudinalmente no sentido da sua prpria propagao , mas "em altura", enquanto teleologicamente orientada para um sentido. Homo Religiosus e Dimenso Notica A humanidade e a animalidade so constitudas pelas dimenses biolgica, psicolgica e social, todavia, o homem difere dos animais por possuir tambm a dimenso notica. Apesar das trs dimenses, a essncia da existncia do homem reside na dimenso espiritual. Sendo assim, a existncia propriamente humana existncia espiritual. A incluso das demais dimenses inferiores garante a totalidade do homem. O termo "espiritual", em Frankl, no tem conotao essencialmente religiosa. Ela a melhor traduo do original alemo geist que se refere ao noolgico. Ademais, a dimenso espiritual compreendida, fundamentalmente, como a dimenso da vivncia da liberdade e da responsabilidade. E falar de existncia, na sua dimenso espiritual, significa falar, sobretudo, do "ser-responsvel" e do "ser humano consciente de sua responsabilidade" (Frankl, 1993). No se trata aqui da liberdade das condies biolgicas, psicolgicas e sociais comum humanidade mas da liberdade para uma deciso diante das circunstncias, quer cotidianas, quer excepcionais. A dimenso espiritual mostra-se, portanto, como uma dimenso no determinada, mas determinante da existncia (Coelho Jr. & Mahfoud, 2001). No possvel apreender o eu porque ns prprios o somos, assim como uma mo no se pode agarrar a si mesma. Na logoterapia, s o conhecimento existencial pode ser absoluto. De acordo com Husserl, "o fenmeno (igual essncia) 'vermelho', quando apreendido no modo 'absoluto', poder ser contemplado de tal maneira que nem Deus poderia observar diferentemente" (Frankl, 1978, p .91). Ou seja, o esprito no est no corpo e tambm em parte alguma do espao. A realidade aqui referida no ntica, e sim ontolgica: o ente espiritual "", em realidade, "em" outro ente espiritual. Sujeito e objeto so completamente entrelaados. Em nenhum momento a logoterapia afirma que o homem "composto" de corpo, alma e esprito. Na verdade, ele tudo isso unitariamente, todavia, o
esprito constitui e garante a unidade. Ou seja, o homem "tem" corpo e alma, mas "" esprito. Na medida em que o homem esprito, existe como pessoa; porm, neste sentido, pode-se tambm dizer que a sua existncia una, total e nova. Una, porque indivisvel; total, porque inadicionvel; e nova, porque a existncia intransmissvel. (Frankl, 1978, p. 129) Ademais, enquanto o fsico dado hereditariamente, o psquico dirigido pela educao, o espiritual no podendo ser educado tem de ser realizado. O esprito no substncia, mas movimento puro. Ressalte-se que o corpreo condio e no causa do psicoespiritual. Enquanto a doena fsica limita as possibilidades de desenvolvimento da pessoa espiritual, o tratamento somtico as restitui, dando-lhe novas oportunidades. J sabemos que a psicose no uma enfermidade da pessoa espiritual, verdadeiramente uma somatose. Adoecer, na significao geral de 'ser doente', s se aplica ao organismo psicofsico.(Frankl, 1978, p. 117). Assim, tanto a doena quanto o tratamento atuam exclusivamente no aparelho, no instrumento. Para Frankl, a pessoa espiritual permanece intacta, mesmo na psicose o esprito no afetado pela patologia "do" esprito. o psicofsico que adoece, e no o esprito. A logoterapia como referencial orientado para o sentido certamente h de se ocupar necessariamente do fenmeno da f. Ademais, "a f no um pensar diminudo da realidade da coisa pensada, mas um pensar acrescido da existncia daquele que pensa" (Frankl, 1978, p. 275). Para Frankl, a f no deve ser rgida, mas firme. Afinal, quem no sente firme em sua f se agarra com ambas as mos a um dogma inaltervel; quem est seguro na sua f dispe das mos livremente e as estende para os seus semelhantes, com os quais est em comunicao existencial. (Frankl, 1978, p. 280) O anseio mais profundo do homem no olhar para si mesmo, mas direcionar o seu olhar para o mundo exterior, em busca do sentido. Em funo da sua "autocompreenso ontolgica pr-reflexiva", ele se autorrealiza exatamente na proporo em que "se esquece de si mesmo" ao dedicar-se a um trabalho ou a uma pessoa. Frankl (1993) diferencia a dimenso espiritual da experincia religiosa, considerando esta ltima como uma das manifestaes da dimenso notica. Na referida obra, o autor fala sobre a possibilidade da espiritualidade se manifestar no inconsciente. A pessoa profunda, a saber, o espiritual-existencial em sua dimenso profunda sempre inconsciente. A propsito, uma das caractersticas mais distintas dessa dimenso a "autotranscendncia", isto , o homem a partir da intencionalidade dirigido para algo ou para algum fora de si prprio. E por meio desta
autotranscendncia o esprito se realiza; ou seja, apenas na execuo de atos espirituais. Isso definido como "realidade de execuo", na qual a pessoa fica to absorvida em seus atos espirituais que no passvel de reflexo na sua essncia atravs de um processo indutivo a partir de trs fenmenos especificamente humanos (Coelho Jr. & Mahfoud, 2001). "O homem no apenas um ser que reage e ab-reage, mas tambm que se auto-transcende" (Frankl, 1990, p. 29). Para Frankl, o carter de "dever" da conscincia moral no procede do homem, mas da transcendncia algo maior que o homem por se constituir "autoridade" que dirige o querer eficazmente em direo realizao do sentido de vida. Dessa forma, o relacionamento com o transcendente revela-se como uma caracterstica distintamente humana, ontolgica. A relao transcendental pode ser apreendida pelo sujeito por meio da experincia do dilogo, no qual o transcendente definido como um "Tu". Ao homem que experiencia tal possibilidade, Frankl o denomina de homo religiosus. Contudo, este relacionamento com o Tu tambm pode estar oculto, inconsciente ou reprimido, mas o homem est sujeito a ele. A rigor, Frankl investigou o inconsciente notico2 a partir da anlise de sonhos e constatou a presena de contedos religiosos reprimidos, mesmo em pessoas irreligiosas (Coelho Jr. & Mahfoud, 2001). A partir desses estudos com anlises de sonhos foi possvel confirmar a existncia no inconsciente notico de uma religiosidade no sentido relacional com o tu, de uma relao constante com o transcendente. Frankl a considerou como uma "f inconsciente". Para Frankl, falar de um relacionamento inconsciente com Deus ou ainda dessa presena divina como pano de fundo da conscincia moral no significa afirmar que o inconsciente seja divino ou que Deus esteja "dentro" do homem e preenchendo o seu inconsciente. Engano igual tambm seria admitir que o inconsciente seja onisciente, bem como acreditar que esta relao inconsciente provoque um contato do homem com Deus. "A verdadeira religiosidade no tem carter de impulso, mas antes de deciso" (Frankl, 1993, p. 56). Apenas Deus pode afirmar de si mesmo "Eu Sou o que Sou"3. E pode faz-lo porque actus purus, potncia atuada, possibilidade realizada. Deus uma congruncia de ser e ser-assim, de existentia e essentia. No homem, porm, h sempre uma discrepncia entre, de uma parte, o ser e, de outra, o poder e o dever. Esta discrepncia, esta distncia entre existncia e essncia so inerentes vida humana como tal. (Frankl, 1978, p. 232) Assim, encontrar resposta para a busca do sentido absoluto no est ao alcance do homem. Viktor Frankl afirma que o homem precisamente um ser mdio, ou seja, um ser que se situa entre potentia eactus. Deus, por sua vez, definido como actus purus. Para ele, a humanidade tem sempre uma oportunidade para progredir e se desenvolver. A humanizao est, obviamente,
inacabada. Recuperando o conceito deSabath, Frankl destaca que a humanizao se revela no como criao, mas como capacitao do homem, e esta aguarda a sua autorrealizao (Frankl, 1978). A logoterapia no concebe da mesma forma o fenmeno da f como crena em Deus, mas concebe-a como uma crena ampliada no sentido; sendo assim, legtimo que ela no se ocupe apenas com a "vontade de sentido", mas tambm com a vontade de um sentido ltimo, um "superssentido". Ou seja, a f religiosa uma crena no superssentido". Para Ludwig Wittgenstein, "crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido" (Frankl, 1990, p. 58). A rigor, o super-sentido no necessita de comprovao; a ausncia de sentido da totalidade, sim, que deveria ser provada. O super-sentido aparece no "efeito", no na inteno. O super-sentido, porm, impor-se- independentemente do que eu venha a fazer ou deixe de fazer, com minha ajuda ou sem ela, com minha cooperao ou sem me levar em considerao. (Frankl, 1978, p. 235) Em Frankl (2003), a iniciao na dimenso supra-humana, efetivada na f, funda-se no amor. E mais, quer seja entendido como conceito-limite ou em termos religiosos, a f no plano do suprassentido tem grande importncia psicoterpica e psico-higinica. Tal f criadora. E brotada duma fora interior esta f torna o homem mais forte. Para o crente, no h, em ltima instncia, nada sem sentido. A alma humana parece comportar-se igual a uma abbada que, prestes a ruir, sustentada pelo peso que lhe imposto. Ou seja, a alma do homem, at certo limite, torna-se mais firme quando experiencia uma determinada "carga". Assim, a libertao repentina da opresso que perdurou um determinado tempo pode colocar em risco a prpria estabilidade da alma (Frankl, 1990). queda espiritual-psquico-fsica somente uma psicoterapia que tratasse, sobretudo de dar apoio espiritual e de possibilitar a descoberta do contedo e sentido da vida teria condies de um restabelecimento e restaurao existncia humana. Na experincia religiosa, a conscincia moral a voz da transcendncia guia o homem em suas respostas s questes que a vida lhe proporciona mediante as situaes reais e concretas. Sendo assim, o homem religioso o homem de audio mais aguda que o irreligioso. O homem religioso capaz de assumir a sua vida como uma misso a ser cumprida, vivenciando esta misso como uma busca do encontro com esta instncia. Segundo Frankl, o homo religiosus foi capaz de completar a dinmica ontolgica. Nele, ser responsvel e ser consciente se do simultaneamente. Por sua vez, o homem irreligioso no foi capaz de questionar para alm de sua conscincia. A experincia religiosa, portanto, est inserida na senda para uma vida plena de sentido, na qual o homem explora a fora de sua dimenso espiritual, permitindo-se ser conduzido por Tu e orientado na dinmica da prpria conscincia (Coelho Jr. & Mahfoud, 2001).
Consideraes finais Na medida em que o homem espiritualmente livre no precisa deixar-se absorver por qualquer situao, ele pode, ao mesmo tempo, situar-se sempre "acima" de qualquer situao. E esta capacidade de estar acima das coisas tambm permite a possibilidade de ele estar acima de si prprio. E tal liberdade , essencialmente, "liberdade de" algo e "liberdade para" algo. Segundo Moreira, Abreu e Oliveira (2006), o homem pode realizar suas potencialidades na autotranscendncia quando encontra um sentido fora dele mesmo, no encontro autntico com o outro. A experincia de ser como-outro como dimenso da existncia possibilita a vivncia da conduta moral sempre concreta, situacional , que por sua vez permite desvelar o sentido dos valores da existncia com-o-outro. A partir da possibilidade de se confrontar o espiritual (logos) do homem com o psicossomtico isso significa uma tomada de posio perante as dores e isso representa invariavelmente tambm se situar "acima" das dores e mazelas. Afinal, quem decide, por ltimo, a pessoa espiritual, ou seja, a posio pessoal em relao posio natural. A logoterapia representa, em certo sentido, evidentemente, a "teraputica causal, isto , aquela teraputica que inclui na sua ao apenas a ltima e verdadeira 'causa'" (Frankl, 1978). E quando o homem assume uma atitude de aceitao ante dos condicionamentos, no momento em que opta pela responsabilidade, a despeito da irreversibilidade da situao factual, ento ele tem a possibilidade de libertar-se para encontrar um sentido real para a sua existncia. Segundo Lukas (1990), a "trade trgica" integrante bsica de nossa existncia humanamente vivel de ser superada pelo enfrentamento com os meios espirituais, a fim de se expandirem nossas vivncias e experincias existenciais. Afinal, como o ser humano pode suportar o sofrimento? Por que certas pessoas enfrentam heroicamente as grandes provaes do destino e outras entram em pnico ou se entregam ante uma aflio mnima? A capacidade de uma pessoa para superar o sofrimento depende da intensidade de sua realizao interna de sentido. Quem basicamente acredita num sentido na sua vida, tambm capaz de suportar um grande sofrimento, porque sua vida permeada de sofrimento no perde seu sentido, apesar de ter seu prazer reduzido (Lukas, 1990, p. 173). Embora haja situaes impossveis ao homem de compreender racionalmente o seu sentido, pela f e pelo amor possvel aproximar-se dele. Afinal, acima do mundo humano, existe o mundo do suprassentido, o qual d sentido a todo sofrimento humano. E neste contexto o homo religiosus encontra os recursos fundamentais para a superao de todo e qualquer padecimento. Afinal, "a verdadeira religiosidade no tem carter de impulso, mas antes de deciso" (Frankl, 1993).
"O ser humano o ser que decide o que vai se tornar" (Silveira, 2007, p. 104). Parece terrvel saber que em cada momento sou responsvel pelo prximo; que cada deciso, independentemente se menor ou maior, uma deciso "para toda a eternidade". E mais, em cada momento eu realizo ou desperdio uma possibilidade, possibilidade de momento. E cada instante ou momento permite infinitas possibilidades! E eu posso escolher apenas uma. E as demais eu as condenei e rejeitei a um jamais-ser. Frankl (1993), ao distinguir a dimenso espiritual da experincia religiosa, elege esta ltima como uma das expresses da dimenso notica. Ademais, no obstante as limitaes deste estudo, conclui-se que a logoterapia, ao resgatar o conceito de homo religiosus, permite a possibilidade da superao da existncia humana para alm da essncia do homo patiens, considerando a resilincia como um fator determinante na identificao e enfrentamento do sofrimento inerente vida humana e partcipe do seu sentido.
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Educao pela FTBP, psiclogo formado pela UFPR, e bacharel em Teologia pela FTBP. Professor adjunto na FATADC. Adriano Holanda psiclogo, doutor em Psicologia; professor adjunto da Universidade Federal do Paran. Editor da Revista da Abordagem Gestltica, autor de diversos livros e artigos em Fenomenologia, Religiosidade, GEstalt-Terapia e Pesquisa Qualitativa.
1 Endereo para correspondncia: Rua Senador Xavier da Silva, 467, Centro Cvico 80530-000 Curitiba-PR - E-mail: [email protected] 2 Referindo-se teoria freudiana, Frankl (1991) prope que, tal como os processos instintivo-inconscientes (dimenso psicolgica), o homem apresenta fenmenos notico-inconscientes (dimenso notica). Para Frankl, oeu (nous) em sua origem inconsciente, assim como o olho que, vendo, no pode ver a si mesmo, ou seja, o eu no pode autoobservar-se. 3 xodo 3.14.