Este artigo apresenta três aspectos significativos da obra do historiador português António Manuel Hespanha e sua contribuição para a historiografia: 1) Sua caracterização da monarquia portuguesa do Antigo Regime; 2) Suas análises sobre as "mercês" no período; 3) Suas incursões sobre o império português, especialmente as conquistas na América. A produção de Hespanha renovou o estudo da política na História Moderna e teve impacto nos estudos sobre a monarquia portuguesa e
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Este artigo apresenta três aspectos significativos da obra do historiador português António Manuel Hespanha e sua contribuição para a historiografia: 1) Sua caracterização da monarquia portuguesa do Antigo Regime; 2) Suas análises sobre as "mercês" no período; 3) Suas incursões sobre o império português, especialmente as conquistas na América. A produção de Hespanha renovou o estudo da política na História Moderna e teve impacto nos estudos sobre a monarquia portuguesa e
Este artigo apresenta três aspectos significativos da obra do historiador português António Manuel Hespanha e sua contribuição para a historiografia: 1) Sua caracterização da monarquia portuguesa do Antigo Regime; 2) Suas análises sobre as "mercês" no período; 3) Suas incursões sobre o império português, especialmente as conquistas na América. A produção de Hespanha renovou o estudo da política na História Moderna e teve impacto nos estudos sobre a monarquia portuguesa e
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Este artigo apresenta três aspectos significativos da obra do historiador português António Manuel Hespanha e sua contribuição para a historiografia: 1) Sua caracterização da monarquia portuguesa do Antigo Regime; 2) Suas análises sobre as "mercês" no período; 3) Suas incursões sobre o império português, especialmente as conquistas na América. A produção de Hespanha renovou o estudo da política na História Moderna e teve impacto nos estudos sobre a monarquia portuguesa e
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CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO
volume 2, nmero 1, 2013
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72 UMA LEITURA DE ANTNIO MANUEL HESPANHA 1
Francisco Carlos Cosentino 2
Resumo: este artigo apresenta a nossa compreenso de alguns aspectos da obra do historiador portugus Antnio Manuel Hespanha. Escolhemos apresentar e dialogar com trs aspectos, intimamente vinculados com a dinmica do Antigo Regime portugus, inclusive o seu mundo ultramarino, que consideramos significativos para compreenso da sua obra: a caracterizao da monarquia portuguesa, as suas colocaes a respeito das mercs e as suas incurses na anlise do imprio portugus, em particular as suas colocaes sobre as conquistas lusitanas na Amrica. Destacamos tambm, de forma breve, as contribuies de sua obra para a historiografia e alguns historiadores brasileiros.
Palavras-chave: Antnio Manuel Hespanha; Antigo Regime; Portugal; mercs; imprio portugus.
Abstract: this paper presents our understanding of some aspects of the work of the historian Portuguese Antnio Manuel Hespanha. We chose to present and interact with three aspects, closely linked to the dynamics of the Old Regime Portuguese, including its overseas world, that we consider significant for understanding of his work: the characterization of the Portuguese monarchy, their placements about the favors and their incursions the analysis of the Portuguese empire, in particular its placement on the achievements Portuguese in America. We also highlight briefly the contributions of his work for the Brazilian historiography and some historians.
Key words: Antnio Manuel Hespanha; Old Regime; Portugal; grace; Portuguese empire.
A historiografia a respeito da Histria Moderna Ibrica e mundial e do Brasil Colonial deve obra de Antnio Manuel Hespanha 3 contribuies fundamentais. Nos dias de hoje, quando a compreenso da Histria do Antigo Regime nos diversos centros de investigao do Brasil constata que necessrio superar entendimentos mecnicos e dicotmicos, os estudos desse historiador portugus se somam a produes essenciais da historiografia brasileira para consolidar certas concepes
1 Este trabalho, transformado agora em artigo, foi elaborado, inicialmente, como captulo de um livro que trataria de historiadores e, por isso, sua forma mais explicativa, em algumas das suas passagens. 2 Professor Adjunto IV do Instituto de Cincias Humanas do campus Florestal da Universidade Federal de Viosa. 3 Antnio Manuel Hespanha professor catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e investigador honorrio do Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. Foi professor, investigador visitante e membro de vrios conselhos cientficos em muitas instituies e universidades de Portugal, Macau, Europa e Brasil. CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
73 a respeito da Histria Moderna portuguesa, europeia e do Antigo Regime nos trpicos 4 . A produo de Antnio Manuel Hespanha est inserida num contexto de recuperao e renovao da Histria poltica que remonta ao final dos anos 70 do sculo XX que, longe de recuperar la superficial historia episdica, que segua siendo tildada de vnmentielle, la historia poltica en curso de renovacin se quera analtica, y no meramente descriptiva, y se interesaba por las pluriformes manifestaciones del poder y de su ejercicio. (GIL PUJOL, 2006, p. 12) 5 Nesse contexto de renovao, a produo de histria poltica, que da decorreu, provocou mudanas historiogrficas com o regresso da poltica e do poltico cena, incluindo o indivduo como objeto de estudo, particularmente no mbito dos estudos da Histria Moderna, com repercusses diversas na anlise das monarquias europeias de Antigo Regime ou nos imprios ultramarinos construdos pela expanso europeia dos Quinhentos e Seiscentos. Assim sendo, superada a mar economicista que predominou at a dcada de 70, os historiadores em geral esto cada vez mais conscientes da centralidade e onipresena das diversas temticas vinculadas ao poder e poltica. Hespanha e outros historiadores europeus, nascidos na primeira metade do sculo XX 6 , produziram estudos e interpretaes sobre diversos aspectos da vida poltica e social, com reflexos culturais visveis, a respeito de seus pases e das monarquias europeias de Antigo Regime, alm de renovar a historiografia, com preciosos intercmbios complementares com as cincias humanas em geral. Assim sendo, preciso destacar o dilogo com a antropologia, a filosofia e a Cincia Poltica, os estudos de histria das ideias polticas, como os trabalhos de Quentin Skinner, destacadamente Los fundamentos del Pensamiento Poltico Moderno. Alm disso, recorrendo mais uma vez aos argumentos de Gil Pujol, vale destacar quando pensamos nos trabalhos de Antnio M. Hespanha que:
4 Deixo aqui meus agradecimentos a dois amigos queridos Eliezer Raimundo de Souza Costa e Marlia Nogueira dos Santos pela leitura e sugestes pertinentes apresentadas a esse estudo. 5 No incio da sua produo histrica, os Annales rechaaram a histoire vnementielle que, de maneira simplista, era identificada com todo tipo de histria poltica e, Lucien Febvre, na revista dos Annales, denominou a histria poltica como sendo uma histria de pernas curtas. (LOPES, 2002, p. 23) 6 John H. Elliott, Pablo Fernndez Albaladejo, Bartolom Clavero, Francisco Toms y Valiente, Jose Antonio Maravall, Lawrence Stone, Martim Albuquerque, Emmanuel Le Roy Ladurie, Gerhard Oestreich, entre outros. CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
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durante la dcada de 1970 ha atrado atencin hacia la poltica ha sido la obra de Michel Foucault, en particular sus estudios sobre microcosmos de poder y prcticas coercitivas. La influencia de este pensador entre historiadores acadmicos es difcil de calibrar, pero, en cualquier caso, debe tenerse presente. (GIL PUJOL, 2006, p. 81)
Dessa forma, os estudos do poltico e da poltica foram colocados num patamar de importncia e, em virtude da adoo de enfoques mais amplos:
hoy en da tiene poco sentido hablar con carcter excluyente de historia poltica, historia social o historia cultural. Los lmites entre estas diversas parcelas son hoy ms borrosos que nunca, y as se ha constatado tambin desde otras parcelas de la prctica historiogrfica. (GIL PUJOL, 1995, p. 196)
A renovao dos estudos sobre o universo da poltica elevou a poca Moderna ao lcus privilegiado de investigao e a insatisfao com os grandes modelos explicativos existentes 7 originou um conjunto de estudos e revises que, apoiados num consistente trabalho emprico, tem possibilitado o desenvolvimento de investigaes de fundamental significado, especificamente nos pases ibricos, com consequncias importantes para os pases ibero-americanos. Compreenses dicotmicas, at ento utilizadas para explicar situaes desse perodo centro- periferia, metrpole-colnia, corte-pas, Estado-sociedade, revolta-obedincia etc. foram percebidas como insuficientes e motivaram investigaes renovadoras sobre a conceituao do Estado Moderno, a respeito das formas de atuao dos diversos grupos sociais, sobre o papel da cultura e das linguagens polticas, entre outros. Nesse caminho se colocaram os estudos a respeito das monarquias europeias do perodo moderno que originaram diversos questionamentos sobre a caracterizao do absolutismo, at recentemente dominante na historiografia. Essas investigaes procuraram reconstruir os diversos aspectos que caracterizam a vida poltica, olhando para o poder desfrutado e exercido pelas localidades ou na atuao e organizao dos diversos atores sociais. A produo de Antnio Manuel Hespanha est inserida e dialoga intensamente com essa produo de Histria poltica, Histria do Direito, Histria
7 No h algo mais traioeiro e subtil do que estas contaminaes poltico-ideolgicas. Trata-se da tendncia de alguns historiadores sobretudo aqueles que se abandonam a uma hermenutica histrica dirigida pelo senso comum para impor acriticamente ao passado as categorias, as classificaes e os paradigmas do presente. (HESPANHA, 1984, p. 25). CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
75 social e cultural, enfim, com essas anlises histricas e historiogrficas e contribuiu, ao analisar a monarquia e a sociedade portuguesa do Antigo Regime, de maneira relevante e incontornvel com ela 8 . Muitos so os trabalhos de Antnio Manuel Hespanha 9 e, nesse pequeno estudo, vamos citar alguns deles conforme a necessidade de apresentarmos nossa compreenso da sua produo histrica e historiogrfica. Escolhemos apresentar e dialogar com trs aspectos intimamente vinculados com a dinmica do Antigo Regime portugus, inclusive o seu mundo ultramarino, que consideramos significativos para compreenso da sua obra: a caracterizao da monarquia portuguesa, as suas colocaes a respeito das mercs e as suas incurses na anlise do imprio portugus, em particular as suas colocaes sobre as conquistas lusitanas na Amrica.
Algumas contribuies de Antnio Manuel Hespanha para a compreenso do Antigo Regime
1. A monarquia portuguesa de Antigo Regime
Hespanha, em As vsperas do Leviathan (1994), sua obra mais referenciada, revisou as abordagens historiogrficas correntes a respeito da ordem poltica na poca Moderna europeia e portuguesa. At ento, as interpretaes apontavam
8 Alm disso, Hespanha contribuiu para a formao de uma gerao de historiadores portugueses que mais do que continuar suas ideias, puseram-nas em teste com suas investigaes, constatando sua pertinncia. O quarto volume da Histria de Portugal (Editorial Estampa) um exemplo disso, com a apresentao de captulos que at hoje so referncia, alguns, inclusive, elaborados a quatro mos com ngela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos. Nuno Gonalo Monteiro, Pedro Cardim, Mafalda Soares da Cunha, Jos Damio Rodrigues, Lus Frederico Dias Antunes, Fernanda Olival, Jos Subtil, entre muitos outros, representam, com diferentes matizes, muitas vezes, com recortes prprios, o desdobramento de suas anlises. 9 No fazemos um levantamento intensivo e detalhado dos seus trabalhos; ressaltamos, entre muitos: A Histria do Direito na Histria Social (1977), Histria das Instituies. pocas medieval e moderna (1982), Poder e Instituies na Europa do Antigo Regime, organizador (1984), Poder e Instituies no Antigo Regime (Guia de Estudo) (1992), La gracia del derecho (1993), As Vsperas do Leviathan. Instituies e Poder Poltico (1994); Histria de Portugal moderno. Poltico-institucional (1995), Histria Militar de Portugal, vol. II, poca Moderna, organizador (2004). Contribuiu com artigos e captulos de livros, entre os quais, ressaltamos: O Governo dos ustria e a modernizao da Constituio Poltica Portuguesa (1989), Portugal y La Poltica de Olivares. Ensayo de Anlisis Estructural (1990), A Emergncia da Histria (1991), A monarquia: a legislao e os agentes e Os modelos normativos. Os paradigmas literrios (2010). No Brasil, contribuiu com importantes publicaes como: Arquitetura poltico-administrativa de um imprio ocenico (1996), A constituio do Imprio portugus. Reviso de alguns enviesamentos correntes (2001), Antigo Regime nos trpicos? Um debate sobre o modelo poltico do imprio colonial portugus (2010). Publicou no Brasil, entre outros, Imbecillitas (2010) e Caleidoscpio do Antigo Regime (2012). CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
76 para uma crescente absolutizao do poder real em Portugal, a partir do final do sculo XV, e apoiavam essa anlise, com argumentos como o da decadncia das cortes, da curializao da nobreza, da criao dos juzes de fora e consequente enfraquecimento da autonomia municipal, do enriquecimento da coroa com a empresa dos descobrimentos. (HESPANHA, 2000, p. 139) Questionando essa argumentao tradicional e recorrente sobre a monarquia portuguesa, particularmente para os sculos XVI e XVII, ele percebeu a carncia de estudos sobre as relaes entre a administrao central e os chamados poderes perifricos. Alm disso, constatou os limites impostos ao poder real por uma estrutura polisinodal de governo como a existente em Portugal, na qual:
os grandes tribunais ou conselhos de corte dispunham de prerrogativas quase soberanas. Alguns deles como, em Portugal, o Conselho de Estado, o Conselho da Fazenda e o Desembargo do Pao fundados na ideia de que faziam corpo com a prpria pessoa do prncipe, arrogavam-se privilgios quase majestticos. (HESPANHA, 2000, p. 287)
Outros estudos realizados em diversos pases europeus perceberam as restries enfrentadas pelas monarquias no exerccio dos seus poderes. O trao comum dessas anlises eram os limites impostos aos reis pelos poderes e interesses sociais locais, foras polticas ativas que acabaram obrigando as monarquias dos primeiros sculos do Perodo Moderno a uma contnua negociao das suas decises e necessidades com essas foras sociais, com as localidades e regies do reino. Por essa razo: O grande paradoxo do absolutismo nasce, pois do seguinte: uma crescente concentrao de poderes num centro cada vez mais reduzido e, ao mesmo tempo, uma dependncia deste centro em relao a foras sociais perifricas. (GIL PUJOL, 1991, p. 130) Cabe aqui destacar que algumas teorias historiogrficas compreendem o passado como um prenncio do presente e do futuro, um encadeamento linear de causas e consequncias de um processo predestinado. Desse ponto de vista, a histria poltica europeia entendida como uma progressiva preparao do advento do Estado (HESPANHA, 2012, p. 22) e cada um dos seus elementos era:
encarado como antecedente dum elemento do Estado contemporneo: a coroa a forma larvar da soberania estatal; as assembleias de estados, a antecipao dos parlamentos; as comunas, os antecedentes da administrao perifrica delegada; os CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
77 senhorios, o eterno elemento egosta que o Estado deve dominar e subordinar ao interesse geral. (HESPANHA, 1994, p. 22)
Entretanto, o Estado como concebemos na contemporaneidade s se constitui a partir dos sculos XVIII e XIX, com as revolues burguesas e liberais, sendo que seus antecedentes no podem ser buscados mecanicamente em todas as Histrias das sociedades europeias ao mesmo tempo e indiscriminadamente como um modelo nico a ser analisado. Respeitando as especificidades da Histria portuguesa, Antnio Manuel Hespanha nega o carter absolutista da monarquia lusitana at o sculo XVIII ao perceber que:
[...] o poder real partilhava o espao poltico com poderes de maior ou menor hierarquia; o direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado pela doutrina jurdica (ius commene) e pelos usos e prticas jurdicos locais; os deveres polticos cediam perante os deveres morais (graa, piedade, misericrdia, gratido) ou afetivos, decorrentes de laos de amizade, institucionalizados em redes de amigos e de clientes; os oficiais rgios gozavam de uma proteo muito alargada dos seus direitos e atribuies, podendo faz-los valer mesmo em confronto com rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar o poder real. (HESPANHA, 2001, p. 166-167)
No As vsperas do Leviathan, livro apoiado em fontes lidas de uma maneira nova e liberta de imagens translatcias, Hespanha construiu um entendimento do sistema poltico portugus do sculo XVI a meados de XVIII que chamou de monarquias corporativas. Essa fisionomia que comeou a se constituir no sculo XV, reuniu poderes em torno dos monarcas portugueses fazendo com que eles personificassem o reino na concepo prpria do ordenamento corporativo. Assim, a tarefa de governar pertencia ao monarca e aos seus auxiliares, ministros, tribunais e conselhos. O rei era a cabea do reino e comandava os membros e rgos restantes (ministros, tribunais, conselhos) tidos como extenses do seu corpo, rgos que permitiam a realizao da sua ao poltica, pois eram os seus olhos, ouvidos e mos. Temos aqui uma organizao social natural, sem a artificialidade da ordem poltica contempornea, sem distines entre o pblico e o privado que caracterizam os Estados do sculo XIX em diante. Nessa ordem, o poder real atuava como um centro coordenador que agia no sentido de garantir que os mecanismos poltico-administrativos desempenhassem suas funes e preservassem sua autonomia funcional. Nessa estrutura poltica de poderes eclticos e concorrentes, CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
78 os monarcas atuavam como rbitros que buscavam a manuteno da harmonia, paz e segurana, evitando a intromisso de funes e competncias entre os diversos rgos poltico-administrativos. Nas palavras do prprio Hespanha:
A funo da cabea (caput) no , pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe prprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto (foro, direito, privilgio); numa palavra, realizando a justia. (XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 115)
Compreender o poder poltico, dessa maneira orgnica, leva-nos a concluir que, to monstruoso como um corpo que se reduzisse cabea, seria uma sociedade, em que todo o poder estivesse concentrado no soberano. (XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 114) Assim sendo, o poder no s deveria ser repartido para o bom funcionamento do corpo poltico, como a sua distribuio adequada na repblica era um sinal de bom governo. Afinal, a cada uma das partes constituintes dos corpos sociais (cada rgo, num corpo vivo, tem a sua funo) deveria ser conferida a autonomia necessria para que pudesse desempenhar o seu papel, sem o comprometimento da articulao natural dos corpos. Nesse universo corporativo, a monarquia portuguesa tinha no poder dos reis um centro de autoridade, cabendo a ele e aos seus agentes a justia, a fazenda e a milcia, classificao, aparentemente temtica, no mais do que o resultado de uma tipologia mais funda de actos de governo, que decorre da imagem do rei (das imagens do rei) e das correspondentes representaes sobre a finalidade das suas atribuies e o modo de as levar a cabo. (HESPANHA, 1995, p. 216)
Entretanto, o poder real tinha sua atuao restringida na medida em que estava submetido pluralidade jurisdicional e ao imperativo de consulta das instncias representativas, prticas polticas estruturantes dessa monarquia. Essa estrutura poltica polisinodal, oriunda de uma prtica medieval costumeira de consulta, garantia a cada parte do corpo social estamental portugus, o direito de participar do processo de governao. Dessa forma, o respeito aos particularismos, ao status quo jurisdicional e aos equilbrios sociais seria garantido por meio da consulta regular dos representantes dos diversos corpos sociais estivessem eles nas Cortes ou nos diversos rgos colegiados vinculados a monarquia como o Conselho CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
79 de Estado, o Conselho de Guerra, o Desembargo do Pao, o Conselho de Fazenda, o Conselho Ultramarino, entre outros. Por todos esses argumentos, no possvel falar de monarquia absolutista para a sociedade portuguesa nesse contexto em que os poderes das estruturas intermedirias e dos setores sociais impunham restries prticas, polticas, simblicas e jurdicas aos monarcas lusitanos. Ou seja, se por um lado, durante os sculos XVI e XVII, foi construdo em Portugal um complexo orgnico-funcional que retrata as pretenses de ampliao dos espaos de centralidade poltica em torno do rei, por outro lado, esse mesmo complexo orgnico-funcional instituiu foras e rgos que atuavam em outra direo, contrariando os propsitos de centralizao poltica. Afinal, o processo de construo de uma centralidade do poder percorreu caminhos descontnuos, com muitos avanos e recuos, nos quais as foras que atuaram para a centralizao, muitas vezes tiveram que capitular diante de formas ancestrais de organizao social ou de interesses corporativos h muito estabelecidos. O papel desempenhado pelo direito foi destacado e teve mltiplas consequncias nessa monarquia corporativa, polisinodal, mas tambm jurisdicional. No estamos anacronicamente falando de leis: Hoje, quando falamos de centralidade do direito, entendemos que se fala no primado da lei, na ideia que muito comum entre os juristas de que o mundo um grande cdigo e que, para conhecer o mundo, basta conhecer os cdigos. (HESPANHA, 2012, p. 11) Apesar delas tambm fazerem parte dessa proeminncia do direito com as Ordenaes, os regimentos, as patentes e outros regulamentos elaborados pela monarquia e baseadas nessa pluralidade de direitos. Estamos, ou melhor, Hespanha est constatando, e ns concordamos com ele, sobre o:
direito praticado, ao direito vivido, aos arranjos da vida. que uma das caractersticas do direito comum era a sua enorme flexibilidade, traduzida no facto de o direito local se impor ao direito geral e de, na prtica, as particularidades de cada caso e no as regras abstratas decidirem da soluo jurdica. Isso quer dizer que a centralidade do direito se traduzia, de fato, na centralidade dos poderes normativos locais, formais ou informais, dos usos das terras, das situaes enraizadas (iura radicata), na ateno s particularidades de caso; e, em resumo, na deciso das questes segundo as sensibilidades jurdicas locais, por muito longe que andassem daquilo que estava estabelecida(o) nas leis formais do reino.
(HESPANHA, 2012, p. 11- 12) CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
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Por isso, fazer justia era a primeira atribuio do rei e a sua rea de atuao por excelncia. Na ordem corporativa, dominante na monarquia portuguesa, isso significava garantir os equilbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo direito, intervindo na resoluo de conflitos de interesses, garantindo, assim, a cada um, de acordo com sua ordem, aquilo que lhe competia. A justia abrangia o poder de editar leis, a punio dos criminosos, o comando dos exrcitos, a expropriao por utilidade pblica e a capacidade de impor tributos, mas tambm, por se basear na posio estamental dos indivduos, apresentava um aglomerado de ordenamentos justapostos e coexistentes que se comunicavam atravs de canais jurisdicionais e que geravam atritos e conflitos que ocorriam quando um dos corpos via a sua rea jurisdicional violada ou desrespeitada. Nesse sentido, fazer justia e manter intacta a ordem social constituam obrigaes rgias e em direito dos diversos organismos que formavam o reino segundo a expectativa dos vassalos quanto ao rei e sua ao governativa.
2. As mercs e as redes clientelares
Vinculado ao campo da justia, era funo do monarca, garantir a ordem natural, os direitos e deveres, dando a cada um o que era seu [...], tarefa em que consistia num plano mais terico o fazer justia ou num plano mais prtico o guardar os foros, usos e costumes (ou guardar os direitos, privilgios, liberdades, graas e doaes). (HESPANHA, 1982, p. 312) Nesse campo se coloca a concesso de graas e de mercs 10 . A atribuio de mercs pelo monarca era o princpio bsico da remunerao de servios prestados coroa no reino e nas conquistas e, envolvia todos os sditos guardados os princpios de a cada um o que era seu. Dependendo da qualidade social de cada sdito, as concesses eram feitas em remunerao ao servio prestado. Esse era o conceito da economia moral do dom, prtica costumeira na poca Moderna europeia e portuguesa. O dom fazia parte, na sociedade do Antigo Regime, de um universo normativo preciso e minucioso que lhe retirava toda a espontaneidade e o transformava em unidade de
10 Existem compreenses distintas a respeito de graa e merc e Fernanda Olival, no seu As Ordens Militares e o Estado Moderno (Lisboa: Estar Editora, 2001), enfatiza a natureza remuneratria das mercs, diferenciado essas da graa, concesso que seria produto da pura liberalidade rgia. CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
81 uma cadeia infinita de actos beneficiais (XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 340), que constitua a espinha dorsal de estruturao das relaes polticas, base de mltiplas prticas informais de poder e na formulao de mecanismos prprios e especficos a este universo poltico singular, como, por exemplo, as redes clientelares. (XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 340) Compreenso desenvolvida da obra de Marcel Mauss (2001) 11 , a atividade de dar construa uma cadeia de obrigaes que envolvia o dar, o receber e o restituir que alicerava as relaes sociais e as relaes polticas transformando o dom [em] um princpio e epifania do Poder. (XAVIER, HESPANHA, 1998, p. 340) A concesso da graa ou da merc inseria o benfeitor e o beneficiado numa relao de favores de natureza diversa que variava conforme a posio de cada um no universo social, com subjacente posse de capital econmico, poltico e simblico dos envolvidos. De toda forma, so sempre relaes desiguais, mesmo quando da amizade:
(desigual, no sentido aristotlico) que, para o plo dominante (credor), se traduz na disponibilidade de quem d um benefcio e no exige uma contrapartida expressa e/ou imediata, e, do lado do plo dominado (do devedor), est associada s ideias de respeito, servio, ateno, significando a disponibilidade para prestar servios futuros e incertos.
(XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 340)
Essas relaes desiguais de poder, construdas pela prtica do dom, instituam laos do tipo clientelar que, apesar de informais, impunham a obrigao da reciprocidade, incontornvel maneira de externar intenes polticas individuais e, principalmente, de articular alianas polticas alargadas com objetivos mais amplos e durveis. Muitas vezes essas relaes envolviam no apenas dois personagens, mas tambm um intermedirio que tambm se tornava um protagonista dessas relaes. Por mais poderoso que fosse esse intermedirio, sempre existia algum que detinha mais recursos do que ele, pois Em ltima instncia, essa pessoa era o rei, senhor dos senhores, de cuja vontade dependia a concesso da maior parte dos bens mais apetecidos. (XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 340) A esse respeito, duas questes. Quanto s relaes de clientela, se aquele que concede o benefcio no deve ser avaro, o que recebeu a benesse deve evitar a
11 Para Mauss, a cadeia de benefcios se estende e a prestao total no implica s a obrigao de retribuir os presentes recebidos; ela supe dois outros igualmente importantes: obrigao de os dar, por um lado, obrigaes de os receber, por outro. (MAUSS, 2001, p. 67) CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
82 ganncia. Sem imposies, mas racionalizando a troca de ganhos, as relaes baseadas na economia do dom obrigava aos dois participantes a prtica da economia da gratido. Assim, essa regra geral instituda de troca de vantagens impunha que:
superior e inferior eram obrigados a uma atitude de prestaes mtuas, inscritas na natureza mesma das coisas. Deste modo, e tal como a liberalidade e a caridade, a gratido uma obrigao moral. Isto tanto mais verdade quanto a gratido e o servio so devidos. (XAVIER; HESPANHA, 1998, p. 346)
Quanto s mercs concedidas pelo monarca, senhor das terras, dos cargos e dos recursos, elas se constituram na principal moeda de remunerao dos servios prestados pelos sditos ao rei. Fossem elas pecunirias, territoriais, honorficas, tivessem a forma de um cargo ou de distino simblica, a sua concesso intermediou as relaes da monarquia com seus sditos, particularmente as diversas camadas fidalgas, inclusive os titulados. A confirmao de doaes e a concesso de cargos diversos, de rendas, de comendas, de ttulos e outros, era a maneira pela qual os reis portugueses recebiam e remuneravam os servios prestados pelos sditos.
3. O imprio ultramarino portugus e a historiografia brasileira
A incurso de Antnio Manuel Hespanha na Histria das conquistas portuguesas mais recente, remontando a meados dos anos 90 do sculo XX, num estudo sobre Macau (1995). Desse trabalho derivaram outros 12 , inclusive um a respeito do Brasil (HESPANHA, 2001, p.163-188) no qual as concepes renovadas a respeito da monarquia portuguesa ganharam concretude. Hespanha, vinte anos atrs, constatou a natureza corporativa, sinodal e jurisdicional da administrao construda pelos portugueses nas suas diversas conquistas e percebeu a pluralidade governativa utilizada por eles nos seus diversos e distintos territrios espalhados pelos vrios continentes, enfatizando dessa forma a existncia, diria eu, pragmtica, de formas diversas de dominao imperial no ultramar lusitano. Nas suas prprias
12 So eles, cronologicamente, HESPANHA, 1996; HESPANHA,1997, p. 65-71; e, o mais conhecido, HESPANHA; SANTOS, 1998, p. 351-364. CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
83 palavras: O imprio portugus constitui o exemplo mais caracterstico de um imprio marcado, ao mesmo tempo, pela descontinuidade espacial, pela economia de meios e por coexistncias de modelos institucionais. (HESPANHA; SANTOS, 1998, p. 351) Dessa forma, num imprio ultramarino fortemente marcado pela disperso territorial, ao lado do problemtico controle, de fato ou de direito, dos mares, apresentava-se a questo da organizao poltico-administrativa desse imprio. Segundo Hespanha, os modelos clssicos de organizar o Poder, na tradio europeia, por meio de uma rede de funcionrios dotados de competncias bem estabelecidas, eram incompatveis com a extenso das regies a serem dominadas e com a variedade de dinmicas e realidades encontradas. Por isso, o imprio portugus no se estrutura sobre um modelo nico de administrao, antes fazendo conviver instituies muito variadas (HESPANHA; SANTOS, 1998, p. 353) Cmaras, instituies senhoriais de tipo europeu (capitanias-donatarias), feitorias- fortalezas situaes poltico-institucionais tratadas caso a caso, de maneira formal (tratados de paz, de vassalagem e protetorados) ou informal, envolvendo redes comerciais, ao de missionrios ou de aventureiros portugueses. Nas mltiplas conquistas ultramarinas sero adotadas solues diversas que foram do estabelecimento de relaes informais, a montagem de formas de organizao poltica-administrativa menos ou mais formais e, com respeito s terras americanas,
a estrutura do governo de tipo tradicional, inspirada nos modelos administrativos vigentes no Reino, foi a excepo, reservada s zonas de ocupao terrestre mais permanente, ainda que modificada; quer no seu aspecto institucional quer na forma como foi exercida. (HESPANHA; SANTOS, 1998, p. 353)
Entretanto, nas palavras de Hespanha, o modelo corporativo de governo no apenas se adaptava perfeitamente ao que as fontes da poca nos transmitiam, como era indispensvel para remover algumas distores muito difundidas na histria colonial brasileira (HESPANHA, 2012, p. 21), seja na construo dicotmica e anacrnica das relaes metrpole-colnia, seja nas interpretaes acerca da independncia de 1822. Essa compreenso da expanso e da colonizao do ultramar pelos portugueses permitiu constatar que a ordem corporativa, jurisdicional e polisinodal CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
84 do Antigo Regime portugus foi estendida s suas conquistas, adaptou-se pluralidade de realidades ultramarinas, inclusive as diversidades encontradas em terras do Brasil e, ao assim concluir, Hespanha observou a vitalidade da sociedade colonial, o seu direito espontneo ou popular, o poder surpreendente das cmaras, bem como da nobreza da terra, a rpida integrao dos oficiais da coroa nas redes locais e o no cumprimento das ordens das leis rgias. (HESPANHA, 2010, p. 51) Assim sendo, por mais que certa historiografia insista, de maneira explcita ou no 13 , numa ntida separao entre metrpole e colnia e na existncia de um projeto de submisso e explorao daquela sobre esta (HESPANHA, 2010, p. 54), essa maneira de analisar a insero das conquistas portuguesas no imprio e na monarquia portuguesa, particularmente as terras brasileiras, posta em questo, pois se depara com a ausncia de um modelo geral ou de estratgia no desenrolar da expanso portuguesa. (HESPANHA, 2010, p. 54) 14 Por outro lado, para os colonizadores 15 , metrpole e colnias formavam um quasi continnuum de tradies comuns (tambm de tradies polticas e representaes), de lngua, de relaes humanas e de ligaes mercantis. (HESPANHA, 2010, p. 72) Ainda de acordo com ele, muito difcil encontrar instituies, ou regras e organizao social, cuja matriz no possa ser localizada nas tradies jurdicas ou institucionais europeias. (HESPANHA, 2010, p. 72) O morgado no floresceu, as sesmarias se adaptaram, no tivemos nem foi constituda uma fidalguia de sangue e/ou titulada, porm, o Antigo Regime portugus se implantou na conquista americana na dinmica da administrao e da vida poltica, assim como na dinmica da vida social e cultural. Em sntese, o que entendemos dos desdobramentos das colocaes de Antnio Manuel Hespanha quanto ao imprio ultramarino portugus que a ordem monrquica, poltica e social portuguesa de Antigo Regime moldou-se ao mundo das conquistas lusitanas, permeando a organizao da sua vida administrativa, poltica,
13 A necessidade de defesa do territrio recm-conquistado exigia o povoamento e a instalao de uma estrutura produtiva, pode-se apontar que a dinmica colonial, nos moldes do chamado Antigo Sistema Colonial, estruturou-se nessa etapa (RICUPERO, 2009, p. 24) um exemplo dessa perspectiva dicotmica, partilhada por muitos outros autores. 14 Nesse sentido, apesar da sua inegvel importncia para a historiografia brasileira no momento em que foi formulada, necessrio por em questo qualquer anlise que afirme um sentido para a colonizao (PRADO Jr, 1976, 19-32) como se j houvesse, antes mesmo de qualquer iniciativa de ocupao, uma perspectiva norteadora da ocupao do ultramar conquistado pelos portugueses. 15 A que se definir quem eram os colonizadores e quem eram os colonizados. Ou melhor, se os colonizadores eram o reino e se os colonizados eram os colonos de origem europeia e sua mestiagem, onde colocamos os nativos?. (HESPANHA, 2010, p. 75) CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
85 social e cultural. E, em termos de terras americanas, particularmente o chamado Estado do Brasil, no se reproduziu tal e qual o Antigo Regime europeu, nem podia. Adaptou-se, coexistindo com a disperso territorial, a escravido, a presena das imensas populaes indgenas, as invases estrangeiras e a presena de portugueses estabelecidos ou apenas de passagem por essas terras e que para c vinham se estabelecer, enriquecer e retornar, exercer um cargo de maior ou menor expresso e poder.
4. A obra de Hespanha e a historiografia brasileira: breves concluses
A produo de Antnio Manuel Hespanha tornou-se para a historiografia brasileira incontornvel. Mesmo aqueles que ainda trabalham com percepes mais ou menos explcitas do absolutismo, de uma crescente centralizao poltica metropolitana em oposio aos interesses coloniais e outras interpretaes dicotomizadas e simplistas da histria das conquistas ultramarinas portuguesas, utilizam e citam, muitas vezes sem qualquer crtica, a obra desse historiador. 16
Por outro lado, h mais de 15 anos uma parte da historiografia brasileira, apoiada em slido trabalho emprico e terico, identifica e retrata como os valores do Antigo Regime penetram nas vrias partes da sociedade, da cultura e da vida poltica colonial brasileira. uma nova perspectiva que, se debruando sobre antigos temas de histria dessas partes americanas do imprio portugus, vem se impondo no Brasil e apontando a necessidade de:
romper com uma abordagem que insiste em analisar o Brasil- Colnia atravs de suas relaes econmicas com a Europa do mercantilismo, seja sublinhando sua posio perifrica, seja enfatizando o carter nico e singular da sociedade escravista. No plano poltico, tende-se a ultrapassar uma viso dicotmica, centrada na nfase da oposio Metrpole versus Colnia e na contradio de interesses entre colonizadores e colonos. Novas questes se colocam, tais como desfazer uma interpretao fundada na irredutvel dualidade econmica entre a metrpole e a colnia? (FRAGOSO; GOUVA; BICALHO, 2000, p. 67)
16 Digno de nota, como louvvel exceo, pois critica e, dessa maneira, contribui para o debate historiogrfico, o trabalho de SOUZA (2006), entre alguns outros que seguem a mesma concepo terico-metodolgica do Antigo Sistema Colonial. CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
86 Com a inteno de construir um ponto de vista que, ao dar conta da lgica do poder no Antigo Regime, explique as prticas e as instituies presentes na sociedade colonial, trabalhos de Histria econmica e social sobre diversas regies analisam no apenas as atividades econmicas que sustentavam a nobreza da terra dessas reas, mas tambm as ambies sociais desses grupos e suas vinculaes com os seus escravos numa prtica de clientela e apadrinhamento 17 . Estudos que analisam a vida poltica e administrativa do Brasil, inclusive nas suas relaes redes administrativas com outras conquistas portuguesas e o prprio reino, inserindo-as, inclusive, na dinmica do funcionamento sinodal dos colegiados portugueses, anlises que se tornaram possveis devido compreenso da insero das conquistas ultramarinas na dinmica do Antigo Regime portugus, ou ento trabalhos que analisam situaes nas quais indgenas requerem hbitos de cavaleiros das ordens militares e negros reivindiquem patentes militares, percebendo a que profundidade na sociedade da conquista americana de Portugal a busca pela qualificao social chegou a nossa sociedade tropical de Antigo Regime 18 . A esses trabalhos juntam-se uma srie de investigaes ainda no forno dos programas de ps-graduao que desdobram e aprofundam esses trabalhos pioneiros, consolidando uma perspectiva renovada de anlise da histria dessa parte americana do imprio portugus, com extenso necessria e indispensvel para o Atlntico e a frica 19 . A produo de Antnio Manuel Hespanha ainda um trabalho em curso e continua a propor questes instigantes para a historiografia. Com esse artigo, no pretendamos esgotar suas concepes e nem atuar como seu porta-voz j que, como no poderia ser diferente, esse trabalho tem muito do nosso entendimento sobre sua obra. Nosso objetivo foi expor algumas das linhas de anlise presentes na obra desse historiador portugus, para com isso estimular leitores e leituras a seu respeito.
17 Exemplo so os trabalhos de Joo Ribeiro Fragoso, Carla Maria Almeida, Helen Osrio, Antnio Juc Sampaio, Roberto Ferreira Guedes e muitos outros. 18 Entre eles, os trabalhos de Maria de Ftima Silva Gouva, Maria Fernanda Bicalho, Ronald Raminelli, Francisco Carlos Cosentino, Marlia Nogueira dos Santos, Monica da Silva Ribeiro, entre outros. 19 preciso citar alguns jovens historiadores, ainda finalizando seus doutorados, alguns com algumas publicaes, construindo suas pesquisas apoiadas em referenciais fundados na obra de Antnio Manuel Hespanha, como Marcello J. Gomes Loureiro, Thiago Krause, Joo Henrique Ferreira de Castro, Beatriz Carvalho dos Santos, Simone Cristina de Faria, Hugo Andr Fernandes de Arajo, Renato de Souza Alves, entre muitos outros. CULTURA HISTRICA & PATRIMNIO volume 2, nmero 1, 2013 !""# %&'()*+',
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Artigo recebido em 10 de novembro de 2013. Aprovado em 30 de novembro de 2013.