KA - 01 Matilha (Bitten)

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MATILHA

Kelley Armstrong

Mulheres de outro mundo - 01



Disponibilizao/ Traduo: Yuna
Reviso/Fomatao: Joelma
Reviso Final: Sky
P PR RO OJ JE ET TO O R RE EV VI IS SO OR RA AS S T TR RA AD DU U E ES S

Elena Michaels uma garota do sculo XXI: segura de si mesma,
afiada e inteligente, disposta a lutar. E como toda mulher, tambm tem
seus segredos. Nada fora do comum, exceto que ela realmente
extraordinria.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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PRLOGO

Tenho que faz-lo.
Estive resistindo toda a noite. Vou perder. Minha batalha to ftil como a de uma
mulher que, ao sentir as primeiras dores do parto, decide que no um momento
conveniente para dar a luz. A natureza se impe. Sempre.
So quase duas da manh, muito tarde para esta tolice e preciso dormir. Quatro noites
investigando para cumprir com uma entrega me deixou exausta. No importa. A pele
atrs dos meus joelhos e os cotovelos comeou a formigarem e agora ardem. Meu
corao pulsa to apressado que tenho que tomar ar. Fecho os olhos com fora,
desejando que essas sensaes acabem, mas no se acabam.
Philip dorme a meu lado. Ele outro motivo pelo que no posso ir, escapulir no meio
da noite outra vez e voltar com uma corrente de desculpas sem sentido. Amanh vai
trabalhar at tarde. Se to apenas pudesse esperar um dia mais. Minhas tmporas
pulsam. A sensao de ardor se estende pela pele de meus braos e pernas. A ira forma
uma bola tensa em minhas vsceras e ameaa explodir.
Tenho que sair daqui... j no tenho tempo.
Philip no se move quando saio da cama. Tenho uma pilha de roupa colocada debaixo
de meu trocador para evitar os rudos das gavetas e das portas do guarda-roupa. Pego
minhas chaves com fora, para que no tilintem, abro suavemente a porta e saio ao
corredor.
Tudo est tranqilo. As luzes parecem atenuadas, como se o vazio as dominasse.
Quando toco o boto do elevador, ele chia seu protesto de que o estorve a esta
inacreditvel hora. O trreo e a entrada esto vazios. As pessoas que tm dinheiro para
alugar um imvel to perto do centro de Toronto dormem comodamente neste
momento.
Alm de minhas pernas doerem tambm formigam e curvei os dedos para ver se
deixam de picar. Mas no. Olho as chaves do automvel em minhas mos. Agora muito
tarde para ir a um lugar seguro. A coceira condensou-se em um forte ardor. Com as
chaves no bolso, saio s ruas, procurando um lugar para me transformar. Enquanto
caminho, monitoro a sensao nas pernas que se transfere aos braos e nuca. Logo.
Logo. Quando o couro cabeludo comea a formigar, sei que j caminhei tudo o que
podia, assim procuro um beco. O primeiro que encontro est ocupado por dois homens
que se abrigam juntos, dentro de uma caixa de papelo de um televisor de tela grande,
mas o seguinte est vazio. Vou rpida at o extremo, dispo-me detrs uma barricada de
latas de lixo e oculto a roupa sob um jornal velho. Ento comeo a Mudana.
Minha pele se retesa. A sensao se faz mais profunda e tento bloquear a dor. Dor. Que
palavra corriqueira: melhor direi agonia. No se pode dizer que s "dolorosa" a
sensao de ser esfolado vivo. Respiro fundo e concentro minha ateno na Mudana,
baixando ao cho antes que me dobre em duas e me veja obrigada a faz-lo. Nunca
fcil. Possivelmente ainda sou muito humana. Esforando-me para manter o controle de
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minhas idias, tento antecipar cada fase e ponho o corpo na posio adequada, com a
cabea encurvada e os braos e pernas encolhidas, os ps e as mos flexionadas e as
costas arqueada. Formam-se ns e tenho convulses nos msculos das pernas. Esforo-
me para respirar e relaxar. Suo e o suor cai de meu corpo a jorros, mas os msculos
finalmente se abrandam e relaxam. Logo vm os dez segundos de puro inferno que antes
me faziam jurar que preferia morrer antes que suport-lo outra vez. Ento se acaba.
Transformada.
Alongo-me e pisco. Quando olho em redor, o mundo transformou-se em uma paleta
de cores desconhecidas ao olho humano, negros, marrons e cinzas com tons sutis que
meu crebro ainda converte em azuis, verdes e vermelhos. Elevo o nariz e inalo. Percebo
rastros de asfalto fresco e tomates podres e plantas em vasos de barro nas janelas e suor
de vinte e quatro horas e um milho de coisas, que se mesclam em um aroma to
cansativo que me obriga a tossir e sacudo a cabea. Ao me virar, consigo v fragmentos
de meu reflexo em uma lata amassada. Meus olhos me devolvem o olhar. Estiro os lbios
e grunho para mim mesma. Presas brancas cintilam no metal.
Sou uma loba, uma loba de sessenta e cinco quilogramas com uma pelagem loira claro.
Quo nico fica de mim so meus olhos, faiscantes de uma inteligncia fria e uma
ferocidade que arde a fogo lento, que nunca poderia confundir-se com nada que no
fosse humano.
Olho em redor, voltando a inalar a fragrncia da cidade. Aqui estou nervosa. Muito
sitiada, confinada, cheirava a humano. Devo tomar cuidado. Se me virem, acreditaro
que sou uma cadela, de um cruzamento de raas grandes, possivelmente de cadela
esquim com Lavrador amarelo. Mas uma cadela de meu tamanho causa alarme quando
anda solta. Vou para o fundo da passagem e procuro uma sada atravs das ruazinhas
emaranhadas que se cruzam pela cidade.
Meu crebro est atordoado, desorientado no por minha mudana de forma mais sim
pela modificao do que me rodeia. No consigo me orientar e o primeiro beco que
dobro resulta ser o que encontrei em minha forma humana, o dos dois homens na caixa
do Sony desbotada. Um deles est acordado agora. Puxa dos restos de uma manta com
crostas de sujeira, como se pudesse estir-la o suficiente para proteger-se da fria noite de
outubro. Levanta os olhos e me v e seus olhos se abrem. Comea a retirar-se, logo se
contm. Diz algo. Sua voz me fala com esse tom musical, exagerado, que as pessoas
usam com as crianas e os animais. Se me concentro poderia entender as palavras, mas
no tem sentido. Sei o que diz, alguma variante de lindo cachorrinho, repetida uma e
outra vez com uma variedade de inflexes. Suas mos estiradas, as palmas estendidas
para me afastar, a linguagem fsica que contradiz a vocal. Para trs, lindo cozinho, para
atrs. E a gente se pergunta por que os animais no entendem quando lhes falam.
Cheiro o abandono e o desgaste de seu corpo. Cheira a debilidade, como um cervo
ancio empurrado a borda da manada, fcil de caar para os depredadores. Se tivesse
fome cheiraria a jantar. Por sorte ainda no, por isso no tenho que conter a tentao, o
conflito, a repulso. Exalo a respirao e o ar se condensa ao sair de meu nariz, logo me
viro e saio correndo pelo beco.
Mais frente h um restaurante vietnamita. O aroma de comida est incrustado na
madeira do edifcio. Em uma extenso do edifcio, ao fundo, gira lentamente a hlice de
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um ventilador, tocando a cada volta o protetor metlico. Sob o ventilador h uma janela
aberta. Cortinas com desenhos difusos de girassis saem brisa noturna. Ouo as
pessoas no interior, uma sala cheia de gente, grunhidos, roncos de gente dormindo.
Quero v-la. Quero colocar o focinho pela janela aberta e olhar ao interior. Uma mulher
lobo pode divertir-se muito com um quarto cheio de gente desprotegida.
Comeo a me adiantar, mas me detm um repentino rangido e um gemido. O gemido
se faz mais suave, logo o sufoca a voz aguda de um homem, as palavras como ramos
quebrados. Viro a cabea para cada lado, o radar procura a fonte. Est mais adiante.
Abandono o restaurante e vou para ele. Somos curiosos por natureza.
Est parado em um estacionamento para trs automveis, na passagem estreita entre
os edifcios. Tem um walkie-talkie junto ao ouvido e se apia em um cotovelo, contra um
edifcio de tijolos, tranqilo, mas no descansa. Seus ombros esto relaxados. Seu olhar
se perde. Est crente que tem direito a estar ali e no teme a noite. Provavelmente ajuda a
essa atitude a arma que pende de seu cinto. Deixa de falar, toca um boto e coloca o
walkie-talkie em sua capa. Seus olhos observam uma vez todo o estacionamento, faz o
inventrio e, ao no ver nada que requeira sua ateno, entra mais no interior do
labirinto do beco. Isto poderia ser divertido. Sigo-o.
Minhas unhas tamborilam o pavimento. No parece not-lo. Acelero esquivando
bolsas de lixo e caixas vazias. Finalmente estou suficientemente perto. Escuta o som
contnuo de minhas unhas e se detm. Escondo-me atrs de um lixeiro, e o espio. Vira-se
e tenta ver na escurido. Logo segue adiante. Deixo-o afasta-se alguns passos e continuo.
Esta vez quando se detm, espero um segundo mais antes de me ocultar. Deixa escapar
uma maldio baixa. Viu algo, um brilho de movimento, uma sombra que se move, algo.
Sua mo direita vai arma, acariciando o metal e logo a retira, como se lhe bastasse para
sentir-se tranqilo. Vacila, logo olha a um lado e ao outro do beco, e percebe que est
sozinho e no muito seguro do que fazer a respeito. Murmura algo, logo segue adiante,
um pouco mais rpido.
Ao caminhar seus olhos vo de lado a lado, alerta, a beira do alarme. Respiro fundo, e
registro apenas brisas de temor, o suficiente para fazer meu corao pulsar forte mais
no para perder o controle. uma presa aceitvel para um jogo de caa. No vai escapar.
Posso controlar a maioria de meus impulsos. Posso espreit-lo sem mat-lo. Posso
suportar a primeira sensao de fome sem mat-lo. Posso v-lo tirar a arma sem mat-lo.
Mas se fugir no poderei me deter. Essa uma tentao contra a qual no posso lutar. Se
correr, persigo-o. Se o perseguir, mata-me ou o mato.
Ao dar a volta por outro beco, comea a tranqilizar-se.
Tudo est tranqilo. Adianto-me agora, pondo o peso sobre os calcanhares para atenuar
o som de minhas unhas. Logo estou a poucos metros. Posso cheirar sua colnia, que
quase anula o aroma natural de um comprido dia de trabalho. Posso ver suas meias
brancas que aparecem e desaparecem entre a borda do sapato e a beira das pernas da
cala. Ouo sua respirao, o ritmo ligeiramente aumentado que revela que caminha
mais rpido que o habitual. Deslizo-me para diante, o suficientemente perto para me
equilibrar e lan-lo ao cho antes que possa pegar a arma.
Sua cabea se eleva. Sabe que estou aqui. Que h algo aqui me pergunto se ele se
voltar. Atrever-se- a olhar, a enfrentar algo que no pode ver nem ouvir, a no ser s
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intuir? Sua mo vai para a arma, mas no se vira. Caminha mais rpido. E logo sai
segurana da rua.
Sigo-o at o final e observo da escurido. Avana com as chaves na mo at uma
viatura estacionada, abre e se mete dentro. O automvel ruge e sai chiando. Olho as
luzes que se afastam e suspiro. Acabou-se o jogo. Ganhei.
Foi bom, mas nem de longe suficiente para me satisfazer. Estas ruas laterais so muito
estreitas. Meu corao pulsa com uma excitao que no consegui descarregar. Minhas
pernas doem de tanta energia contida. Devo correr.
Do sul vem um sopro de vento que traz o forte aroma do lago Ontrio. Penso em me
dirigir praia, imagino-me correndo pela areia, sentindo a gua gelada em minhas patas,
mas no seguro. Se quero correr; devo ir para ravina. Fica longe, mas no tenho opo a
menos que queira ficar rondando becos com aroma de humano pelo resto da noite. Viro
para o noroeste e incio a viagem.
Quase meia hora mais tarde estou parada no topo de uma colina. Meu nariz se move,
registrando os vestgios de uma fogueira de folhas em um ptio prximo. O vento agita
minha pele, frio, revigorante. Vamos, o trfico passa como um trovo pelo viaduto
elevado. Debaixo est o santurio, um osis perfeito no meio da cidade. Lano-me para
frente. Por fim estou correndo.
Minhas pernas adquirem ritmo antes de chegar metade da ravina. Fecho os olhos um
segundo e sinto o vento no focinho. Ao golpear minhas patas contra a terra endurecida,
h espetadas de dor em minhas pernas, mas me fazem sentir viva, como se despertasse
de repente logo depois de dormir muito. Os msculos se contraem e estendem em
perfeita harmonia. Com cada passo sinto dor e uma exploso de felicidade fsica. O corpo
me agradece o exerccio, e me premia com golpes de adrenalina quase narcotizantes.
Quanto mais corro, mais leve me sinto, a dor se libera como se minhas patas j no
golpeassem a terra. Inclusive no fundo da ravina sinto que corro costa abaixo,
incrementando minha energia. Quero correr at eliminar toda a tenso de meu corpo, e
que no fiquem nada mais que as sensaes do momento. No poderia me deter embora
quisesse. E no quero.
As folhas mortas rangem sob minhas patas. Uma coruja canta suavemente no bosque.
Terminou sua caada e descansa contente, no lhe importa quem anda por a. Um coelho
sai correndo dos arbustos diante de mim, percebe seu engano e volta a ocultar-se na
mata. Sigo correndo. Meu corao bate alerta. Sinto o ar gelado contra o calor de meu
corpo, arde ao passar por meu nariz para os pulmes. Respiro fundo, desfrutando do
choque que produz ao chegar a meu interior. Corro muito rpido para cheirar algo. Em
meu crebro percebo alguns rostos em uma mixrdia
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que cheira a liberdade. J incapaz
de resistir, finalmente me detenho, lano a cabea para trs e uivo. A msica sai de meu
peito em uma evocao tangvel de pura felicidade. Ecoa no barranco e sobe ao cu sem
lua, para que todos saibam que estou aqui. Sou proprietria deste lugar! Quando acabo,
baixo a cabea, ofegando pelo esforo. Estou parada ali, olhando folhas amarelas e
vermelhas de rvores pulverizadas pelo cho, quando finalmente um som consegue
atravessar at minha conscincia. um grunhido, um grunhido suave de ameaa. H um

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Mixrdia mistura desordenada (Aurlio)
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pretendente a meu trono.
Elevo os olhos e vejo um co amarelo amarronzado a poucos metros. No, no um
co. Meu crebro demora um segundo, mas finalmente reconhecer o animal. Um coiote.
Demoro um segundo para adverti-lo porque algo inesperado. Ouvi falar de coiotes na
cidade, mas nunca me encontrei com um. O coiote se sente igualmente confuso por
minha causa. Os animais no conseguem entender o que sou. Cheiram ao humano, mas
vem um lobo e justo quando decidem que o nariz os engana, olham aos olhos e vem
um humano. Quando me encontro com ces, fogem ou atacam imediatamente. O coiote
no faz nenhuma das duas coisas. Levanta o focinho e cheira o ar, logo se arrepia e d
um grunhido prolongado com os lbios retesados. da metade de meu tamanho, no
vale a pena. O fao saber com um grunhido lento e uma sacudida da cabea que dizem
cuide-se". O coiote no se move. Olho para ele por um momento. Desvia o olhar.
Sopro, volto a sacudir a cabea e lentamente lhe dou as costas. Estou no meio do giro
quando vejo uma pele marrom que se lana contra meu ombro. Jogo-me de lado, giro,
logo me ponho rapidamente de p. O coiote me olha grunhindo. Respondo com um
grunhido srio, o equivalente canino de "agora est me zangando". O coiote fica firme.
Quer briga. Bem.
Minha pelagem se arrepia, com a cauda abrindo-se em um leque. Baixo a cabea entre
os ossos de meus ombros e aplano as orelhas. Mostro-lhe meus dentes e sinto o grunhido
que sobe por minha garganta e sai ressoando na noite. O coiote no retrocede. Agacho-
me para saltar quando algo me golpeia duro no ombro e me desequilibra. Sinto dor no
ombro. Tropeo e giro para enfrentar a meu atacante. Um segundo coiote, cinza-marrom,
pendurado em meu ombro, cravando suas presas at o osso. Com um rugido de ira e
dor, elevo-me e lano todo meu peso sobre o flanco.
Quando o segundo coiote sai voando, o outro se lana direto em minha cara.
Agachando-me, puxo-o pela garganta, mas meus dentes mordem plo em vez de carne e
ele consegue escapulir. Tenta retroceder para atacar de novo, mas me lano sobre ele,
obrigando-o a afirmar-se contra uma rvore. Eleva-se em duas patas, tentando escapar.
Lano minha cabea, apontando a sua garganta. Esta vez peguei bem. O sangue enche
minha boca, salgado e grosso. O companheiro do coiote aterrissa em minhas costas. Sinto
que minhas pernas se debilitam. Dentes que se afundam na pele solta sob meu crnio.
Sinto uma nova dor. Concentrando-me, mantenho-me obstinada a garganta do primeiro.
Afirmo-me, logo solto um segundo, o suficiente para dar o golpe fatal e rasgar. Ao me
retirar, o sangue que salta me cega. Fecho os olhos e giro forte a cabea, rasgando a
garganta do coiote. Quando sinto que est morto, jogo-o para um lado. Logo me lano ao
cho e giro. O coiote em minhas costas grunhe de surpresa e me solta. Levanto-me e giro
em um s movimento, pronta para acabar com este outro animal, mas ele foge para a
mata. Um brilho de sua cauda e se foi. Olho o coiote morto. De sua garganta sai sangue
que a terra bebe sedenta. Sinto uma sacudida, como o ltimo tremor de desejo satisfeito.
Fecho os olhos e tenho um calafrio. No foi minha culpa. Atacaram-me. A ravina est em
silncio, fazendo eco a calma que me alaga. No canta sequer um grilo. O mundo est
escuro, silencioso e dormindo.
Tento examinar e limpar minhas feridas, mas esto fora de meu alcance. Estiro-me e
avalio a dor. Dois cortes profundos, os dois sangrando, embora s o suficiente para
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manchar minha pele. Viverei. Viro e incio o caminho de volta cidade, saindo da ravina.

Transformo-me ao voltar para beco. Logo me visto e saio do beco como um drogado
ao quem tivessem pegado em fragrante. Sinto frustrao. No deveria acabar assim, suja
e furtiva, em meio ao lixo e a sujeira da cidade. Deveria terminar em um tranqilo
bosque, a roupa abandonada nas folhagens, estendida nua, sentindo o frescor da terra e a
brisa noturna fazendo ccegas na minha pele. Deveria ficar dormindo no pasto, exausta,
sem pensar, s com os vapores da satisfao flutuando em minha mente. E no deveria
estar sozinha. Em minha mente imagino a outros, descansando ao redor sobre o pasto.
Ouo os roncos familiares, sussurros e risadas ocasionais. Sinto a pele clida junto
minha, um p nu enganchado em minha panturrilha, que se agita ao sonhar que corre.
Posso cheir-los, seu suor, seu flego, mesclados com o perfume do sangue, de um cervo
morto na caada. A imagem se faz pedacinhos e me encontro olhando uma vidraa onde
meu reflexo devolve o meu olhar. Sinto o peito oprimido, de uma solido to profunda e
completa que no posso respirar.
Giro rapidamente e golpeio o objeto mais prximo. Ressoa um poste de luz. A dor
percorre meu brao. Bem-vinda de volta realidade: Transformo-me em becos e me
arrasto de volta a meu apartamento. Minha condenao viver entre dois mundos. Por
um lado, a normalidade. Pelo outro, h um lugar onde posso ser o que sou sem temor de
represlias, onde posso assassinar e nem sequer provocar um gesto de quem me rodeia,
onde inclusive me excita faz-lo para proteger esse mundo. Mas o deixei.
Ao caminhar para o apartamento, posso sentir minha ira contra o pavimento a cada
passo. Uma mulher encolhida sob uma pilha de mantas sujas me olha ao passar e
instintivamente se afunda mais em seu ninho. Ao dar a virar esquina, aparecem dois
homens que me avaliam como presa. Resisto apenas o impulso de lhes grunhir. Caminho
mais rpido e parecem decidir que no vale a pena me perseguir. No deveria estar aqui
Deveria estar em casa, na cama, no percorrendo o centro de Toronto s quatro da
madrugada. Uma mulher normal no estaria aqui. outra coisa que me recorda que no
sou normal. No sou normal. Olho a rua s escuras e posso ler um pequeno cartaz em
um posto telefnico a quinze metros. No sou normal. Sinto um leve aroma de po fresco
de uma padaria que comea a trabalhar a quilmetros de distncia. No sou normal.
Detenho-me diante de um comrcio, Puxo uma barra sobre a vidraa e me elevo. O metal
se queixa. No sou normal. Nada normal. Repito as palavras em minha mente, me
flagelando. A ira aumentando.
Na porta de meu apartamento me detenho e respiro fundo. No devo despertar Philip.
E se o fao, no devo permitir que me veja assim. No necessito de um espelho para
saber como estou, com a pele tensa, a cor intensificada, os olhos incandescentes de ira
que agora sempre vem com a transformao. Definitivamente nada normal.
Quando finalmente entro no apartamento escuto a respirao dele que chega at mim
do quarto. Ainda dorme. Estou quase no banheiro quando sua respirao se interrompe.
-Elena? -murmura sonolento.
-Vou ao banheiro.
Tento passar a porta, mas agora est sentado, me olhando com sua miopia. Franzido o
cenho.
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-Vestida? -diz.
-Sa.
Um momento de silncio. Passa a mo pelo cabelo escuro e sussurra.
- perigoso. Droga, Elena. Disse-lhe isso a semana passada. Desperta-me e irei contigo.
-Preciso ficar sozinha. Para pensar.
- perigoso.
-Sei. Sinto muito.
Entro no banheiro, e fico mais do que o necessrio. Fao de conta que uso o vaso
sanitrio, lavo as mos com gua suficiente para encher um yacuzzi, logo encontro uma
unha que necessita de minha ateno. Quando finalmente acredito que Philip voltou a
dormir, vou para o quarto. O abajur est aceso. Ele se encontra sentado, com os culos
postos. Vacilo na porta. No me decido a passar a porta, me colocar na cama com ele.
Odeio-me por isso, mas no posso faz-lo. A lembrana da noite perdura e me sinto
deslocada.
Como no me aproximo, Philip baixa as pernas da cama e se senta.
-No quis gritar com voc disse -. Mas me preocupo. Sei que necessita de liberdade e
tento...
Detm-se, esfregando a boca com a mo. Suas palavras me cortam. Sei que no quer
brigar comigo, mas o faz. Para mim um aviso de que estou fodendo a coisa, de que
tenho sorte de ter encontrado algum to paciente e pormenorizado como Philip, mas
estou desgastando sua pacincia a uma velocidade supersnica e parece que no posso
fazer mais que esperar que acontea o desastre.
-Sei que necessita de liberdade - diz novamente-. Mas tem que haver outra maneira.
Possivelmente poderia sair de amanh. Se preferir que seja de noite, poderamos ir ao
lago no automvel. Poderia caminhar. E eu fico no automvel e cuido de voc.
Possivelmente poderia caminhar contigo. Ficar vinte passos detrs de voc. - Consegue
sorrir.
-Possivelmente no. Provavelmente me prenderiam por ser um quarento que anda
espreitando uma jovenzinha.
Detm-se e logo se inclina para frente.
-A, Elena, quando voc diz que aos quarenta e um anos no se nenhum quarento.
-J veremos o que se pode fazer - digo.
No se pode fazer nada. Tenho que correr de noite e tenho que faz-lo sozinha. No h
maneira de chegar a um acordo.
Vendo-o sentado a beira da cama, sei que o ns no temos futuro. Minha nica
esperana obter que a relao seja to perfeita em todos outros sentidos para que Philip
chegue a aceitar esta excentricidade. Para obt-lo o primeiro passo teria que ser me meter
na cama, beija-lo e lhe dizer que o amo. Mas no posso faz-lo. Esta noite no. Esta noite
sou outra coisa, algo que ele no conhece e no poderia entender. No quero ir a ele
assim.
-No estou cansada - digo -. No vou me deitar. Quer tomar o caf da manh?
Olha-me. Vacila e sei que falhei... outra vez. Mas no diz nada. Volta a sorrir.
-Saiamos. Tem que haver algum lugar aberto na cidade h esta hora. Daremos uma
volta at encontrar um bar. Tomaremos cinco xcaras de caf e veremos o amanhecer.
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Est bem?
Assinto. No me atrevo a falar.
-Voc toma banho primeiro? -diz-. Ou jogamos a moeda?
-Vai voc.
Beija-me na bochecha ao passar. Espero at escutar a ducha e ento vou cozinha
s vezes me d tanta fome.


HUMANA

Fiquei parada em frente porta antes de chamar. Era o Dia das Mes e eu estava
parada em frente a uma porta com um presente, o que teria sido bastante normal caso se
tratasse de um presente para minha me. Mas minha me tinha morrido fazia muito
tempo e eu no tinha relao com nenhuma de minhas mes adotivas nem, muito menos,
levava-lhes presentes. O presente era para a me de Philip. Isto tambm seria normal se
Philip estivesse ali comigo. Mas no. Ligou do escritrio fazia uma hora para dizer que
ainda no podia sair e se queria ir sozinha ou preferia esper-lo. Decidi ir sozinha e agora
estava parada ali me perguntando se tinha sido a deciso correta. Ia uma mulher visitar a
me de seu namorado no Dia das Mes sem o aludido namorado? Possivelmente me
esforava muito. No seria a primeira vez.
As regras humanas me confundem. No que foi criada em uma cova. Antes de virar
licntropo, j tinha aprendido as coisas bsicas: como chamar um txi, usar um elevador;
pedir uma conta bancria, todas as mincias da vida humana. O problema era a
interao com humanos. Minha infncia foi bastante ruim. Ento, quando estava a beira
de me tornar adulta, morderam-me e passei os seguintes nove anos de minha vida com
outros licntropos. Nesses anos tampouco estive separada do mundo humano. Voltei
para a universidade, viajei com os outros, inclusive tive vrios empregos. Mas sempre
estiveram ali, para me dar apio, amparo e companhia. No tinha que me virar sozinha.
No tive que fazer amigos nem ter amantes nem ir almoar com meus colegas de
trabalho. E no o fiz. O ano passado, quando rompi com os outros e vim para Toronto
sozinha, pensei que me amoldar situao seria a menor de minhas preocupaes. O que
podia acontecer? Faria o elementar que aprendi quando era criana, misturado com a
capacidade de conversar como uma adulta, com um toque de cautela e voil, faria
amigos rapidamente. Veja s!
J era muito tarde para dar a volta e ir?No queria faz-lo. Respirando fundo, toquei a
campanhia. Imediatamente se escutaram passos. Ento uma mulher de rosto redondo
com cabelos castanhos grisalhos abriu a porta.
-Elena! -disse Diane-. Mame, Elena chegou. Philip est estacionando? H tantos
automveis! Todo mundo estar com visitas.
-Na realidade Philip no est comigo. Teve que trabalhar, mas vir logo.
-Trabalha no domingo? Ter que falar com ele seriamente, moa. Passa, passa. Esto
todos aqui.
A me de Philip, Anne, apareceu detrs de sua filha. Era diminuta. No chegava nem
em meu queixo com os cabelos cinza vigorosos, cortados curtos.
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- Continua tocando a campanhia, querida? Disse, levantando os braos para me
abraar. -S os vendedores tocam a campanhia. As pessoas da famlia entram sem
chamar.
-Philip chegar mais tarde - disse Diane-. Est trabalhando.
Anne fez um som profundo em sua garganta e me acompanhou para dentro. O pai de
Philip, Larry; estava na cozinha roubando doces de uma bandeja.
-Isso para a sobremesa, papai - disse Anne, espantando-o.
Larry me pegou um dos ombros com um brao, na outra mo rude tinha um doce.
-Onde est...?
-Vem mais tarde - disse Diane -. Est trabalhando. Vem para o living Elena. Mame
convidou aos vizinhos, Sally e Juan para almoar. -Baixou a voz: - Seus filhos esto todos
no oeste. -Empurrou as portas de vaivm. - antes que chegasse mame lhes estava
mostrando seus ltimos artigos no Focus Toronto.
-Isso bom ou mau?
-No se preocupe. So muito liberais. Adoraram seus artigos. Aqui estamos. Sally,
Juan, ela Elena Michaels, a namorada de Philip.

A namorada de Philip. Isso sempre soava estranho, no porque me incomodasse que
dissessem "namorada em vez de companheira ou qualquer outra ridicularia
politicamente correta do estilo. Chamava-me a ateno porque fazia muitos anos que no
era a noiva de ningum. No tinha relaes estveis. Para mim, se durava um fim de
semana inteiro, j estava ficando muito srio. Minha nica relao duradoura tinha sido
um desastre. Mais que um desastre. Uma catstrofe.

Philip era diferente.
Conheci Philip umas poucas semanas depois de me mudar para Toronto. Vivia em um
apartamento a poucas quadras. Dado que nossos edifcios tinham o mesmo
administrador, os inquilinos do seu tinham acesso ao ginsio e a piscina do meu. Ele foi
piscina um dia depois da meia-noite e ao me encontrar sozinha me perguntou se me
incomodava que nadasse um pouco, como se eu tivesse direito de expuls-lo. Com o
passar do ms seguinte nos encontramos sozinhos ali, sempre tarde da noite. Sempre
perguntou se no me incomodava. Finalmente lhe disse que o motivo pelo qual fazia
exerccios era para no ter que me preocupar de que me atacasse um estranho e que iria
contra meu objetivo ficar nervosa com sua presena. Isso o fez rir e ficou depois de seu
exerccio e me trouxe suco da mquina vendedora. Quando o suco se tornou um hbito,
foi percorrendo a cadeia alimentara com convites para tomar caf, logo almoos e
jantares. Quando chegamos a compartilhar o caf da manh j tinham passado seis
meses do dia em que nos conhecemos na piscina. Esse pde ter sido um dos motivos pelo
que me deixei apanhar, adulada de que algum investisse tanto tempo e esforo em me
conhecer. Philip me cortejou com a pacincia de quem tenta convencer a um animal meio
selvagem de que entre a casa e igual a muitos desencaminhados, encontrei-me
domesticada antes que pensasse em resistir.
Tudo andou bastante bem at que sugeriu que vivssemos juntos. Teria que ter dito
que no. Mas no o fiz. Uma parte de mim no podia resistir ao desafio de ver se podia
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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faz-lo. Outra parte de mim temia perd-lo: era a maior prova de meu xito no intento
por ter uma vida normal. O primeiro ms foi um desastre. Ento, justo quando pensei
que a borbulha estava por explodir, a tenso diminuiu. Obriguei-me a pospor mais
minhas Mudanas, o que me permitia fazer minhas corridas quando Philip viajava a
negcios ou trabalhava at tarde. obvio que no posso dizer que fui eu sozinha que
salvei a relao. Inclusive quando comeamos a viver juntos, Philip foi to paciente como
quando saamos. Quando eu fazia algo que levantaria as sobrancelhas da maioria das
pessoas, Philip o deixava passar com uma brincadeira. Quando a tenso me superava,
levava-me para jantar ou a um espetculo, para me distrair, de uma vez dava a entender
que estava disposto a me ouvir falar e que entenderia se eu no quisesse faz-lo. No
princpio pensei que era muito bom para ser real. Todos os dias eu voltava para casa do
trabalho, detinha-me em frente porta do apartamento e me preparava para o caso de
ele ter me abandonado. Mas no o fez. H algumas semanas comeou a falar de procurar
um lugar maior quando terminasse meu contrato de aluguel, inclusive insinuou que um
apartamento em um condomnio poderia ser um investimento adequado. Uau. Isso
soava a algo permanente, no verdade? Fiquei emocionada uma semana inteira. Mas
era uma forma boa de comoo.

Era meio tarde. Os vizinhos j se foram. O marido de Diane, Ken, foi-se cedo para
levar ao menor de seus filhos ao trabalho. A outra irm de Philip, Judith, vivia na
Inglaterra e teve que conformar-se com uma ligao telefnica depois do almoo e falou
com todos, inclusive comigo. Igual a toda a famlia de Philip, tratava-me como se fosse
sua cunhada em vez da namorada do momento de seu irmo. Eram todos to amigveis,
mostravam-se to dispostos a me aceitar, que custava acreditar que no fosse por simples
cortesia. Era possvel que realmente lhes casse bem, mas depois de ter tido to m sorte
com as famlias, resistia em acreditar. Desejava-o muito.
Quando estvamos lavando os pratos soou o telefone. Anne atendeu no living. Em
poucos minutos veio me buscar. Era Philip.
-Sinto muito carinho - disse, quando atendi-. Mame est zangada?
-No acredito.
-Bom. Prometi-lhe lev-la para jantar outro dia.
-Vir?
Suspirou.
-No vou chegar. Diane levar voc para casa.
-No necessrio. Posso tomar um txi ou o...
-Agora no - disse-. J disse a mame que pedisse a Diane. Agora no lhe deixaro ir
sem um acompanhante. -Fez uma pausa. -Realmente no quis abandonar voc. Est
sobrevivendo?
-Muito bem. Todos me tratam muito bem, como sempre.
-Alegro-me. Voltarei para casa s sete. No prepare nada. Comprarei comida pronta.
Caribenha?
-Voc no gosta da comida caribenha.
-Estou me castigado. Vejo voc s sete. Amo voc.
Desligou antes que pudesse dizer nada.
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-Teria que ter visto os vestidos - dizia Diane enquanto me levava ao meu
departamento -. Horrveis. Como bolsas com buracos para os braos. Os desenhistas
devem pensar que quando necessitam um vestido de me de noiva s mulheres j no
vo se importa com sua aparncia. Encontrei um vestido azul marinho bonito
provavelmente pensado para a nova esposa jovem do pai da noiva, mas a cintura era
muito apertada. Pensei em no comer uma semana para poder us-lo, mas no.
questo de princpios. J tive trs filhos, ganhei esta pana.
-Tem que haver algo melhor disse-. No procuraste em lojas que no sejam para
casamento?
- o que vou fazer. Na realidade pensava em pedir para voc que me acompanhasse. A
maioria de minhas amigas pensa que as bolsas com buracos esto bem. Camuflagem
para gente madura. E minhas filhas no querem nada que no lhes permita exibir o
piercing no umbigo.
Incomodaria-se? Convido voc para almoar. Com trs martines includos.
Ri.
-Com trs martines, qualquer vestido parecer bom. Diane sorriu.
-Esse meu plano. Sim?
-Com certeza.
-Que bom. Ligo para voc, e marcamos o encontro.
Conduziu at a esquina diante de meu apartamento. Abri a porta e ento lembrei que
devia ser amvel.
-Quer subir para tomar um caf?
Estava segura de que me daria alguma desculpa, mas em vez disso disse:
-Com certeza uma hora mais de paz antes de voltar para a trincheira. Alm disso, terei a
oportunidade de brigar com meu irmozinho por deixar voc hoje no meio dos tubares.
Ri e lhe indiquei onde podia estacionar.



CHAMADO

Talvez tivesse dado a impresso equivocada fazendo tanto alarde a respeito de meu
desejo de viver no mundo humano, como se todos os licntropos se separassem da vida
humana. No o fazem. Na realidade e por necessidade, a maioria dos licntropos vive no
mundo humano. Se no desejarem criar uma comuna no Novo o Mxico, no tm outra
alternativa. O mundo humano os prov de alimento, teto, sexo e outras necessidades.
Entretanto, embora vivam no mundo, no se consideram parte dele. Vem a interao
com humanos como um mal necessrio, com atitudes que vo do desprezo risada mal
dissimulada. So atores que fazem seu papel, s vezes desfrutam de seu momento na
cena, mas geralmente se sentem aliviados ao deix-la. Eu no queria ser assim. Queria
viver no mundo humano e, na medida do possvel, ser autntica ao faz-lo. No escolhi
esta vida e no ia me entregar a ela, renunciando a todos os sonhos de meu futuro,
sonhos medocres e ordinrios de ter um lar, uma famlia, uma carreira e, sobretudo,
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estabilidade. Nada disso era possvel sendo uma mulher loba.
Eu me criei em lares adotivos. Maus lares adotivos. Como quando era uma menina no
tive uma famlia, estava decidida a criar uma. Ao me converter em licntropo,
liquidaram-se esses planos. Mas embora no pudesse ter marido e filhos, isso no queria
dizer que no pudesse cumprir parte daquele sonho. Estava fazendo carreira no
jornalismo. Tinha um lar em Toronto. E estava formando uma famlia, embora no uma
famlia tradicional, com o Philip. J estvamos juntos a tempo suficiente para que
comeasse a pensar que era possvel obter um pouco de estabilidade. Sentia-me muito
afortunada de ter encontrado algum to normal e boa pessoa como Philip. Eu sei que
sou difcil, temperamental, obstinada, em nada o tipo de mulher que interessaria a
Philip. obvio que no me comportava assim com o Philip.
Ocultava essa parte de mim - a parte de mulher loba-, com a esperana de poder ir me
desfazendo dela, como se fosse me liberando de uma pele velha. Com o Philip tinha a
oportunidade de me reinventar, me converter no tipo de pessoa que ele acredita que sou.
Que obvio exatamente o tipo de pessoa que eu quero ser.
A Matilha no entendia por que escolhi viver entre os humanos. As reaes foram da
exasperao ao sorriso, como se fosse uma adolescente no meio de uma exploso de
rebeldia, at a crena de que me infligia um autocastigo ao viver com uma espcie
inferior. No podiam entender porque no so como eu. Primeiro, eu no nasci mulher
loba. A maioria dos licntropos sim, ou ao menos tem o sangue em suas veias ao nascer e
vivem sua primeira Mudana quando amadurecem. A outra maneira de converter-se em
licntropo ser mordida por um deles. Mas so poucas as pessoas que sobrevivem
mordida do licntropo. Os licntropos no so nem estpidos nem altrustas. Se
mordem, procuram matar. Se mordem e no conseguem matar, espreitam a sua vtima
at terminar o trabalho. uma simples questo de Sobrevivncia. Se for uma mulher
loba ou um licntropo que conseguiu adaptar-se comodamente em um povoado ou
cidade, a ltima coisa que quer um novo licntropo, meio enlouquecido solto em seu
territrio, matando gente e chamando a ateno. Embora algum consiga escapar logo
depois de ser mordido, as possibilidades de sobreviver so mnimas. Nas primeiras
vezes a Mudana um inferno para o corpo e a mente. Os licntropos hereditrios
crescem sabendo o que lhes acontece e tm seus pais para gui-los. Os licntropos
mordidos tm que se ajustarem sozinhos. Se no morrerem pela tenso fsica, a tenso
mental os leva a suicidarem-se ou a fazer suficiente alvoroo como para que os encontre
outro licntropo e acabe com seu sofrimento antes que possam causar problemas. Por
isso no h muitos licntropos por a. Segundo o ltimo censo, havia trinta e cinco
licntropos no mundo. Um total de trs no hereditrios, incluindo a mim.
Eu. A nica mulher loba existente. O gene do licntropo se transmite atravs da
linhagem masculina, de pai a filho, de modo que uma mulher s pode converter-se em
licntropo se for mordida e conseguir sobreviver, o que, tal como disse, muito raro. E
em conseqncia no causa espanto que eu seja a nica mulher loba. Mordida
propositadamente, convertida propositadamente em mulher loba. Incrvel na realidade
que tenha sobrevivido. No final das contas, quando h uma espcie com trs dzias de
machos e uma fmea, a fmea se torna um prmio a disputar. E os licntropos no
solucionam suas disputas jogando xadrez. Tampouco tm a tradio de respeitar s
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mulheres. As mulheres cumprem duas funes no mundo do licntropo: sexo e comida
ou, caso se sintam cansados, sexo seguido de comida. Embora duvide que algum
licntropo tenha vontades de me comer, sou um objeto irresistvel para satisfazer a outra
urgncia primria. Fui por deciso prpria, teriam me violado at me matar no primeiro
ano. Por sorte no me deixaram sozinha. Desde que me morderam, estive sob o amparo
da Matilha. Toda sociedade tem sua classe dominante. No mundo dos licntropos, a
Matilha. Por motivos que no tinham nada a ver comigo e sim com o status do licntropo
que me mordeu, eu fui parte da Matilha do momento em que me converteram. Parti faz
um ano. Separei-me deles e no ia voltar. Dada a opo entre ser humana e mulher loba,
escolhi ser humana.

Philip trabalhou at tarde no dia seguinte. Esperava sua ligao dizendo que chegaria
tarde, quando entrou no apartamento com o jantar.
-Espero que tenha fome - Disse, deixando uma bolsa de comida indiana sobre a mesa
da cozinha.
Estava faminta apesar de ter comido duas salsichas em um lugar vira-lata a caminho
de casa. Isso reduziu a fome, de modo que agora bastaria com um jantar normal. Outro
dos milhes de truques que aprendi para me acomodar vida humana.
Philip falou de seu trabalho ao tirar as caixas da bolsa e pr a mesa. Afastei meus
papis para um lado para lhe permitir colocar meu prato e talheres. s vezes posso ser
assim amvel. Inclusive quando a comida j estava em meu prato, consegui resistir um
segundo a comida, enquanto escrevia a linha final do artigo no qual trabalhava. Logo
coloquei de lado o papel e finquei o dente.
- Mame ligou para mim no trabalho - disse Philip-. Esqueceu-se de perguntar a voc
ontem se a ajudaria a organizar a festa de despedida de solteira de Becky.
- Srio?
Escutei o tom de felicidade em minha voz e me surpreendi. Organizar uma festa no
era motivo para entusiasmar muito a ningum. Mas tampouco ningum me convidou a
faz-lo antes. Nunca nem sequer me convidaram a uma festa como essa, salvo minha
colega de trabalho, Sara, mas ela convidou a todas suas companheiras do escritrio.
Philip sorriu.
-Aceita? Bem. A mame ficar satisfeita. Adora esse tipo de coisas.
-No tenho muita experincia no assunto.
-No importa. As damas de honra de Becky faro a despedida principal, assim esta
vai ser uma menor, limitada famlia. Bom, no exatamente pequena. Acredito que
mame queira convidar a todos os parentes que temos em Ontrio. Conhecer todos.
Estou seguro de que mame j falou com todos sobre voc. Espero que no se aflija.
-No - disse-. Eu adoro.
-Tem certeza. Diz isso agora, antes de conhec-los.

Logo depois do jantar, Philip desceu para ginsio para fazer exerccios aerbicos para
reduzir o peso. Quando trabalhava em seu horrio normal, gostava de fazer exerccio
cedo e ir para cama cedo, porque admitia que estava ficando muito velho para
sobreviver com cinco horas de sono por noite. O primeiro ms que vivemos juntos eu o
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acompanhei em seus exerccios. No era fcil demonstrar que me esforava para mover
cinqenta quilogramas quando podia fazer cinco vezes mais. Ento chegou o dia em que
estava to distrada conversando com um vizinho que no me dei conta de que estava
manejando um aparelho com uma carga de trinta quilogramas com uma mo e falando
to tranqila como se baixasse uma cortina... Quando vi que o vizinho olhava meus
pesos, compreendi que tinha metido os ps pelas mos e disfarcei com alguma tolice a
respeito de que a mquina estava mal calibrada. A partir dali voltei para meu hbito de
fazer exerccio entre a meia noite e as seis, quando o ginsio estava vazio. Disse a Philip
algo a respeito de aproveitar o ar madrugada. Ele aceitou, como tantas outras coisas.
Quando ele trabalhava at tarde, amos nadar e correr juntos, como ele fazia quando nos
conhecemos. Se no, ele ia sozinho.
Essa noite, quando Philip saiu, liguei a televiso. No algo que me interessasse
muito, mas quando olhava, afundava-me no pior da programao, fazendo zapping com
os programas educativos e os filmes de alto nvel, para ir aos de intrigas e conversas
corriqueiras. Por qu? Porque me tranqilizava ao ver que havia gente no mundo em
pior situao que eu. Sem importar o que sasse mal durante o dia, podia ligar a TV, e ver
algum idiota dizer a sua esposa e ao resto do mundo que se deita com a filha dela e me
dizer: "Bom, eu estou melhor que ela. O pior da televiso como terapia de reafirmao.
uma maravilha.
Hoje Inside Scoop, Relatrio Secreto, continuava informando de um psictico que
escapou de um crcere da Carolina do Norte h uns meses. Puro sensacionalismo. O tipo
se colocou no departamento de um estranho, amarrou o homem e o matou porque
"queria saber o que se sente. Os roteiristas temperaram a histria com palavras tais
como selvagem, louco e animal. Que estupidez. Quero ver um animal que mata
algum pelo prazer de v-lo morrer. Por que persiste o esteretipo do animal
assassino? Porque os humanos gostam. Explicam as coisas com baboseiras, elevam aos
humanos civilizados ao topo da escala evolucionista e pe aos assassinos junto aos
monstros mitolgicos, os homens-bestas, como os licntropos.
A verdade que se um licntropo se comportasse como esse psicopata no se deveria a
sua parte animal, mas sim a que ainda continuava sendo muito humana. S os humanos
matam por esporte.
O programa quase tinha terminado quando Philip voltou.
-O exerccio foi bom? -perguntei.
-Nunca bom. -disse, fazendo uma careta-. Continuo esperando o dia que inventem
uma plula para substituir o exerccio fsico. O que est vendo? -inclinou-se em cima de
minha cabea. -Alguma briga interessante? Esse Jerry Springen No posso v-lo. Tentei
uma vez. Agentei dez minutos, tentando entender o que havia detrs da linguagem
vulgar. Finalmente cheguei concluso de que tudo o que havia era a linguagem vulgar;
um descanso entre programas de catch.
Philip riu e me despenteou com a mo.
-Est com vontade de caminhar? Tomo uma ducha enquanto voc termina de ver o
programa.
-Parece bom.
Philip se dirigiu ao banheiro para tomar uma ducha. Eu fui at a geladeira e peguei
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um pedao de provolone que escondi antes entre as verduras. Quando soou o telefone,
ignorei-o. Comer era mais importante e dado que Philip j tinha aberto a torneira, no
poderia escut-lo tocar e saber que eu no o respondia. Equivoquei-me. Ao ouvi-lo
fechar a torneira, voltei a esconder o queijo e corri at o telefone. Philip era do tipo que
atendia ao telefone durante o jantar e deixava que sua comida esfriasse para responder as
perguntas de uma pesquisa telefnica. Tentava seguir seu exemplo, ao menos quando ele
estava. Estava no meio do caminho quando a secretria eletrnica comeou a funcionar.
Minha voz lanou uma saudao nauseabundamente alegre que convidou pessoa que
ligava a deixar uma mensagem. E esta o fez.
-Elena? Quem fala Jeremy - detive-me-. Por favor, me ligue. muito importante.
Ligue assim que possa.
Sua voz se interrompeu. O telefone chiou quando ele tomou ar. Sabia que estava
tentado de dizer algo mais, lanar um ultimato, mas no podia. Tinham um acordo. No
podia vir aqui nem enviar a nenhum dos outros. Resisti ao impulso de estirar a lngua
secretria eletrnica. No, no me pode agarrar. A maturidade algo ao que se d um
valor exagerado.
- urgente Elena - continuou Jeremy-. No ligaria para voc se no fosse assim Sabe
que no ligaria se no fosse assim.
Philip ia atender, mas Jeremy j tinha desligado. Ele pegou o fone e o aproximou de
mim. Eu desviei o olhar e fui para a poltrona.
-Elena? -disse-. No vais ligar para ele?
-No deixou um nmero.
-No o tem? Soava como se pensasse que o tem. um parente? Um velho amigo?
-eee... um segundo primo.
-Assim minha rf misteriosa tem famlia. Algum dia terei que conhecer este primo.
-No gostaria de conhec-lo, asseguro-lhe isso.
Riu.
-Seria justo. Eu impus minha famlia a voc. Agora pode ter sua vingana. A festa de
Betsy dar a voc o motivo para buscar seus primos loucos, encerrados h anos em
alguma colina. Embora na realidade os primos loucos que vivem em colinas so os mais
interessantes. Melhores que as tias avs que contam a mesma histria desde que era
criana e dormem na hora da sobremesa.
Fiz um gesto de exasperada solidariedade.
-Est preparado para sair?
-Terminarei minha ducha. E se ligar para o servio de informaes?
- que cobram, consigam ou no o nmero?
-Custa menos de um dlar. Podemos nos dar ao luxo. Ligue. Se no encontrar seu
nmero, possivelmente haja outra pessoa que o tenha. Com certeza h mais primos
destes, no verdade?
-Cr que tm servio de mensageiros nessas colinas? Tm sorte se tiverem luz.
-Liga Elena esbravejou, embora fosse de brincadeira, e voltou para o banheiro.
Quando saiu do quarto, fiquei olhando o telefone. Philip podia ter brincado, mas eu
sabia que ele esperava que eu respondesse a ligao de Jeremy. E por que no? Era o que
faria qualquer ser humano decente. Philip escutou a mensagem, escutou o tom de
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urgncia na voz de Jeremy. Se me negasse a responder o que parecia uma ligao muito
importante daria a impresso de ser insensvel. Um humano ligaria. O tipo de mulher
que eu queria ser ligaria.
Podia fazer de conta que ligava. Era tentador, mas no evitaria que Jeremy ligasse uma
e outra vez. No era a primeira vez que tentava comunicar-se comigo nos ltimos dias.
Podia fazer de conta que ligava. Os licntropos tm certo grau de comunicao teleptica
entre se. A maioria dos licntropos a ignora e preferem modos menos msticos de
comunicao. Jeremy refinou essa capacidade at convert-la em uma arte,
principalmente porque lhe dava um recurso a mais para meter-se debaixo de nossa pele
e nos incomodar at que fizssemos o que ele queria ele tentava se conectar e eu o
evitava. Ento recorreu ao telefone. No era to efetivo como bombardear o crebro de
algum, mas passados alguns dias de fitas cheias de mensagens, me renderia, embora
fosse mais para me liberar dele.
Parei junto ao telefone, fechei os olhos e respirei fundo. Podia faz-lo. Podia ligar para
ele, saber o que Jeremy queria, agradecer amavelmente por me dizer isso e me negar a
fazer o que quer que fosse, sabendo muito bem que ia me pedir algo. Embora Jeremy
fosse o Alfa da Matilha e eu estivesse condicionada a cumprir suas ordens, j no era
obrigada a faz-lo. Eu j no fazia parte da Matilha. Ele no tinha controle sobre mim.
Peguei o fone e disquei de cor o nmero. Soou quatro vezes, logo atendeu a secretria
eletrnica. Uma voz com um forte sotaque sulino, no o tom profundo de Jeremy, o que
me fez cortar a ligao antes de escutar toda a mensagem. Tinha suor na testa. O ar no
apartamento parecia ter subido cinco graus e perdido metade do oxignio. Passei as
mos pelo rosto, sacudi a cabea e me afastei.

Na manh seguinte, antes do caf da manh, anunciei que ia tentar me comunicar
novamente com Jeremy. Novamente Philip me deixou sozinha e foi procurar o jornal l
em baixo. Voltei a ligar para o Jeremy e outra vez a secretria eletrnica.
Embora no quisesse reconhecer, j estava comeando a me preocupar. No podia
evitar. Preocupar-me com meus antigos irmos de Matilha era instintivo, algo que no
podia controlar. Ou, ao menos, isso o que me disse quando meu corao comeou a
pulsar forte na terceira ligao sem resposta.
Jeremy devia estar ali. Raramente saa de Stonehaven e preferia reinar de seu trono,
enviando aos agentes da Matilha a fazer o trabalho sujo no mundo exterior. Bom, no era
uma descrio justa do estilo de conduo de Jeremy, mas no me sentia com nimo de
pensar bem dele. Disse-me que ligasse e, caralho, devia estar ali quando ela o fizesse.
Quando Philip voltou, eu estava junto ao telefone, olhando-o com ira como se pudesse
obrigar Jeremy a atender.
-No responde? -perguntou Philip.
Neguei com a cabea. Olhou meu rosto com mais ateno do que eu queria. Quando ia
lhe dar as costas, atravessou o quarto e me ps a mo sobre o ombro.
-Est preocupada.
-Em realidade no. S...
-Est preocupada, corao. Se fosse algum de minha famlia estaria preocupado.
Possivelmente teria que ir l. Ver o que estar acontecendo. Parecia urgente.
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Afastei-me.
-No, isso ridculo. Vou continuar ligando.
- de sua famlia, carinho - disse, como se isso pudesse antepor-se a qualquer
argumento. Para ele era assim. Isso no se podia discutir. Justo quando Philip e eu
comevamos a ter uma relao mais firme, venceu-se o contrato de aluguel de seu
apartamento. Ele disse com toda claridade que queria morar comigo, mas eu resisti.
Ento me levou para conhecer sua famlia. E ento vi como se relacionava com sua me,
seu pai e sua irm, at que ponto estavam integrados a sua vida. No dia seguinte disse a
ele que no renovasse seu aluguel.
Agora Philip considerava que eu devia ajudar algum que ele acreditava que era um
parente. Se me negasse, pensaria que no era o tipo de pessoa que ele queria? No podia
correr esse risco. Prometi que ia continuar tentando me comunicar. E prometi que se at
o meio-dia no conseguisse faz-lo, pegaria um avio e iria ver o que estava acontecendo.
Cada vez que liguei nas seguintes horas roguei que algum atendesse. Mas sempre
atendeu a secretria eletrnica.
Philip me levou ao aeroporto no automvel depois do almoo.



PRDIGA

O avio aterrissou em Syracuse s sete da tarde. Tentei me comunicar com Jeremy
mais novamente atendeu a secretria eletrnica. A esta altura estava mais zangada que
preocupada. Ao diminuir a distncia, comecei a recordar como era viver em Stonehaven,
a casa de campo de Jeremy. Em particular recordei os hbitos para responder ao telefone,
ou melhor, a falta deles. Viviam duas pessoas em Stonehaven, Jeremy e Clayton, seu
filho adotivo convertido em guarda-costas. Havia dois telefones na casa de cinco
dormitrios. O quarto de Clay tinha um ramal; mas o telefone mesmo tinha perdido a
campainha fazia quatro anos, quando Clay o jogou do outro lado do quarto, logo depois
de ser despertado por duas noites consecutivas. Tambm havia um telefone no escritrio,
mas se Clay precisava usar a linha para seu notebook muitas vezes esquecia de voltar a
conect-lo, s vezes por vrios dias. Embora houvesse um telefone funcionando na casa,
os dois homens podiam estar sentados a dois metros e no incomodar-se de atender. E
pensar que Philip acreditava que os meus eram maus hbitos.
Quanto mais pensava, mais zangada estava. E quanto mais zangada, mais decidida a
no sair do aeroporto at que algum respondesse o maldito telefone. Afinal de contas,
se me convocavam, deviam vir me buscar. Essa pelo menos era minha desculpa. A
verdade que no queria deixar o movimento do aeroporto. Sim, parece loucura. A
maioria das pessoas julga o xito de um vo de avio pelo tempo longo ou curto que teve
que passar no aeroporto. Normalmente eu sentiria o mesmo, mas sentada ali,
absorvendo o que havia para ver e cheirar e os sons que me rompiam os tmpanos,
desfrutei de quo humano era isso, o caos cotidiano e sem sentido da vida humana. Ali,
no aeroporto, era um rosto annimo em meio a muitos rostos igualmente annimos.
Reconfortava-me a sensao de ser parte de algo maior mais no estar no centro da coisa.
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As coisas mudariam no instante em que sasse dali e fosse ao isolamento fsico e
psicolgico de Stonehaven.
Duas horas mais tarde decidi que j no podia adiar a coisa. Fiz minha ltima ligao
a Stonehaven e deixei uma mensagem. Duas palavras. Estou indo". Bastaria.
No foi fcil chegar a Stonehaven. Ficava em uma parte remota do norte do estado de
Nova Iorque, perto de um povoado pequeno chamado Bear Valley. Caiu noite
enquanto ia para l e olhei pela janela do txi, vendo como se foram reduzindo as luzes
de Syracuse at que se extinguiram. O silncio da noite no campo me tranqilizou, e me
fez relaxar mais do que poderia na cidade. Os licntropos no se acomodam vida
urbana. No h aonde correr e a multido de pessoas muitas vezes provoca mais
tentao do que oferece o resguardo do anonimato. s vezes penso que escolhi viver no
centro de Toronto simplesmente porque vai contra minha natureza, outro instinto para
combater e derrotar.
Ao olhar pela janela calculei o tempo vendo passar os lugares conhecidos. Com cada
um, meu estmago batia as asas mais e mais. Temor, disse-me, no desejo de estar ali.
Embora tivesse passado quase dez anos em Stonehaven no o considerava meu lar. Para
mim o conceito de lar era difcil, uma construo etrea que emergia de sonhos e contos e
no da experincia real. obvio que por um tempo tive um lar, um bom lar com uma
boa famlia, mas no durou o suficiente como para que deixasse mais que uma mnima
impresso em minha mente.
Meus pais morreram quando eu tinha cinco anos. Voltvamos para casa de uma feira,
por um caminho secundrio, porque minha me queria me mostrar uma potranca de
pony diminuta que viu em uma granja por ali. Ouvia meu pai rir no assento dianteiro,
perguntando a minha me como esperava que visse algo em um campo a meia-noite.
No recordo o que aconteceu, nem os chiados das rodas, nem os gritos, nenhuma perda
de controle. S a escurido.
No sei como cheguei banqueta. Tinham-me prendido com o cinto de segurana,
mas devia ter me arrastado at ali depois do acidente. Quo nico recordo que estava
sentada no cascalho junto cabea de meu pai, olhando seus olhos que me observavam,
rogando que o ajudasse. Seu corpo estava a cinco metros. Lembro-me que comecei a
soluar, uma menina de cinco anos, acocorada junto ao caminho, olhando a cabea
decapitada de meu pai e soluando porque estava escuro e ningum vinha me ajudar,
soluando porque minha me estava no automvel esmagado, sem mover-se e o corpo
de meu pai estava estendido sobre a capota e sua cabea aqui na terra e estava to escuro
e frio e ningum vinha me socorrer. Se tinha mais parentes, nunca soube. A nica pessoa
que tentou me reclamar quando meus pais morreram foi a melhor amiga de minha me e
no me entregaram a ela porque no era casada. Entretanto s passei umas poucas
semanas no orfanato antes que me adotasse o primeiro casal que me viu. Ainda posso v-
los, ajoelhados ante mim, dizendo com palavras de beb quo linda era. To pequena,
to perfeita com meus cabelos loiros quase albinos e meus olhos azuis. Disseram que era
uma boneca de porcelana. Levaram a boneca para casa e comearam sua vida perfeita.
Mas no funcionou assim. Sua boneca bonita ficava sentada em uma cadeira todo o dia e
no abria nunca a boca e de noite - todas as noites - gritava at o amanhecer. Passadas
trs semanas me levaram de novo. Assim passei de uma famlia adotiva a outra, e
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sempre me escolhiam por meu rosto, mas eram incapazes de dirigir minha psique
transtornada.
Quando cheguei adolescncia, os casais que me tiravam do orfanato eram diferentes.
J no era a esposa quem me escolhia a no ser o marido, que se sentia atrado por minha
beleza infantil e meu temor. Converti-me na eleio favorita de depredadores masculinos
que procuravam uma menina muito especial. Contraditoriamente, foram esses monstros
que me fizeram descobrir minha fora. Ao crescer comecei a entender o que eram. No
eram os perspicazes e poderosos que se metiam em meu quarto de noite, a no ser
criaturas dbeis aterrorizadas de que as rechaasse e denunciasse. Ao perceber isso,
comecei a perder o temor. Podiam me tocar, mas no podiam tocar a meu eu, no ao eu
que estava alm de meu corpo. Ao dissipar o temor, tambm o fez a ira. Desprezava-os,
tanto quanto a suas esposas igualmente dbeis e cegas, mas no eram dignos de minha
ira. Ao mesmo tempo descobri outra fonte de poder: a fora de meu corpo. Cresci alta e
magra. Uma professora me inscreveu no programa de prticas na pista de esportes,
pensando que isso permitiria que me relaciona-se com outros jovens. No foi assim, mas
aprendi a correr; descobri o prazer inigualvel do fsico, senti minha fora e minha
velocidade pela primeira vez. Quando estava no meio da escola secundria levantava
pesos e fazia exerccios todos os dias. Meu pai adotivo j no me tocava naquele tempo
dificilmente algum me teria tomado por uma vtima

- aqui, senhorita? -perguntou o chofer.
No senti o automvel parar, mas ao olhar pela janela vi que estvamos em frente
grade exterior de Stonehaven. Confirmava isso uma figura sentada no pasto, com os
tornozelos cruzados e apoiado no muro de pedra. Clayton.

O chofer forou a vista, tentando adivinhar a casa na escurido, sem ver a placa de
bronze nem o homem esperando junto grade. A lua se ocultou depois de uma nuvem e
as luzes da entrada estavam apagadas.
-Deso aqui - disse.
-No. No pode senhorita. No seguro. H algo ali.
Pensei que se referia ao Clay. Algo era uma boa descrio. Estava para dizer que,
desgraadamente, conhecia esse algo, quando o chofer disse:
-Tivemos problemas neste bosque, senhorita. Parece que h ces selvagens. Uma das
garotas do povoado foi encontrada perto daqui. Massacrada pelos ces. Encontrou-a meu
amigo e disse... bom, que no era nada lindo de ver, senhorita. Fique sentada e eu abrirei
a porta e a levo ao interior.
-Ces selvagens? - repeti, segura de que tinha escutado mal.
-Sim. Meu amigo encontrou rastros. Enormes. Um tipo da universidade disse que os
rastros eram de apenas um animal, mas no pode ser. Tem que ser uma Matilha. Voc
no v... - O olhar do chofer foi at a janela lateral e saltou. -Por Deus!
Clay deixou seu lugar junto ao porto e se materializou junto a minha janela. Estava
parado ali me olhando, com um sorriso lento iluminando seus olhos pegou o trinco da
porta. O chofer se virou e ps r no automvel.
-Tudo bem - disse-lhe, muito a meu pesar-, est me esperando.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
21
A porta se abriu. Clay colocou a cabea.
-Vai descer ou s est pensando? -perguntou.
-Olhe - disse o chofer, virando-se-. No desa. Se voc for suficientemente parvo para
andar por este bosque de noite assunto seu, mas no vou deixar que esta senhorita
caminhe at a casa que est a no sei que distncia. Se quiser que leve vocs, abra o
porto e suba. Se no, feche a porta.
Clay se virou para o chofer; como se s agora notasse sua presena. Estirou os lbios e
abriu a boca. Sabia que no ia dizer nada bonito. Antes que Clay pudesse armar um
escndalo, abri a porta do outro lado e desci. Quando o chofer baixou sua janela para me
deter, deixei cair uma nota de cinqenta em seu colo e dei a volta por atrs do txi. Clay
fechou a porta com um golpe e se dirigiu para o caminho de entrada. O chofer vacilou e
logo se foi a toda velocidade, lanando uma chuva de cascalho em sinal de desgosto por
nossa tolice juvenil.
Ao me aproximar, Clay deu um passo atrs para me observar. Em que pese ao ar frio
da noite, s vestiu um jeans desbotado e uma regata preta, que permitiam apreciar seus
quadris estreitos, peito amplo e bceps perfeitamente esculpidos. No tinha mudado
nada nos dez anos transcorridos desde que o conheci. Sempre esperava ver alguma
diferena: algumas rugas, uma cicatriz, algo que afetasse seu aspecto de modelo e o
convertesse em um mortal igual a todos outros, mas sempre me desiludia.
Ao avanar para ele, inclinou a cabea e seus olhos nunca deixaram de olhar os meus.
Seus dentes brancos cintilaram em um sorriso.
-Bem-vinda a casa, carinho. - Seu sotaque sulino deformou a palavra carinho e a fez
soar como se cantasse uma cano country do oeste. Eu odiava essa msica.
- o comit de recepo? Ou que Jeremy por fim amarrou voc grade, que onde
deve estar?
-Eu tambm senti saudades.
Estendeu a mo para pegar-me, mas o esquivei e logo iniciei a marcha de quatrocentos
metros at a casa. Clay me seguiu. Uma brisa de ar fresco noturno elevou uma mecha de
cabelo de minha nuca e me trouxe uma variedade de aromas: cedro, o perfume leve das
flores de macieira e tambm o aroma de um jantar devorado h algum tempo. Cada
aroma diminua minha tenso, com lembranas prazerosas. Sacudi-me, rechaando essa
sensao e me obrigando a manter os olhos no caminho, concentrada em no fazer nada,
no falar com Clay, no cheirar nada, sem olhar a esquerda ou direita. No me atrevia a
perguntar ao Clay o que estava acontecendo. Isso significaria faz-lo falar e seria
indicativo de que queria conversar com ele. Com o Clay at o mnimo intercmbio era
perigoso. Por mais que estivesse ansiosa por saber o que acontecia, teria que esperar que
Jeremy me dissesse isso.
Quando cheguei a casa parei na porta e olhei para cima. A casa de pedra de dois
andares parecia inclinar-se para trs, alerta. As boas-vindas estavam a, mas muda,
espera que eu fizesse o primeiro movimento. To parecida com seu dono. Toquei uma
das pedras frescas e senti uma enxurrada de lembranas. Retirei a mo, abri a porta,
joguei minha bolsa no cho e me dirigi ao escritrio, esperando encontrar Jeremy lendo
junto lareira. Sempre estava ali quando eu voltava, no esperando no porto como
Clay, mas, entretanto me esperando.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
22
A sala estava vazia. Havia uma cpia do jornal de Melam, o Ccorriere della Sera, junto
cadeira de Jeremy. Sobre a poltrona e na escrivaninha havia pilhas de revistas e
publicaes sobre antropologia pertencentes Clay. O telefone principal estava na
escrivaninha e parecia intacto e ligado.
-Liguei - disse-. Por que ningum atendeu?
-Estvamos aqui - disse Clay-. Por aqui. Teria que ter deixado uma mensagem.
Deixei uma. Faz duas horas.
Bom, isso explica a coisa. Estive junto ao porto todo o dia esperando voc e sabe que
Jer nunca escuta as mensagens.
No perguntei como Clay sabia que eu viria hoje se no deixei nenhuma mensagem.
Tampouco perguntei por que ele passou todo o dia sentado junto ao porto. A conduta
de Clay no podia ser julgada de acordo com os padres humanos de normalidade...
nenhum padro de normalidade.
Ento onde est? - perguntei.
-No sei. No o vi desde que trouxe o meu jantar faz umas horas. Deve ter sado.
No precisava ver se o automvel de Jeremy estava na garage para saber que Clay no
dizia sado" no sentido usual. As palavras humanas comuns adquirem novo sentido no
Stonehaven. Significava que tinha sado por a. E no a correr.
Jeremy esperava que voasse at aqui e depois ficasse esperando que ele se dignasse a
me atender? obvio. Era o castigo por ignorar seu chamado? Em parte desejava poder
acus-lo disso, mas Jeremy nunca se preocupava com pequenezas. Se planejou sair esta
noite, o faria, viesse eu ou no. Senti-me doda alm de zangada, mas tentei ocultar isso.
Estava zangada, nada mais. Podia jogar o mesmo jogo. Jeremy queria ficar sozinho em
sua sada. O que faria eu? Invadiria sua privacidade, obvio. Jeremy pode no se
importar com as coisas pequenas, mas eu sim.
-Saiu? - disse-. Bom, ento terei que encontr-lo.
Passei junto a Clay em direo porta. Ps-se na minha frente.
-Voltar logo. Sente-se e...
Voltei a esquiv-lo caminhando para o corredor traseiro e abri a porta de atrs. Clay
me seguiu de perto. Atravessei o jardim rodeado de muros at o caminho que leva ao
bosque. As raminhas se quebravam sob meus ps. Comearam a me chegar os aromas da
noite: folhas queimadas, ganho distante, a terra molhada, uma multido de rastros;
tentadores. Em algum lugar longnquo um camundongo chiou aoitado por uma coruja.
Continuei caminhando. A quinze metros o caminho se tornava apenas um rastro de
pasto pisoteado e logo desaparecia. Parei e farejei. Nada. Nenhum rastro nem som nem
gesto de Jeremy. Nesse momento notei que no escutava nenhum som, nem sequer os
passos de Clay detrs de mim. Virei-me e s vi as rvores.
-Clayton! - gritei.
Chegou-me a resposta um instante mais tarde ao escutar algum abrir-se caminho na
mata em algum lugar longnquo. Tinha ido alertar Jeremy. Golpeei a rvore mais
prxima com a palma da mo. Realmente esperava que Clay me permitisse me
intrometer na privacidade de Jeremy com tanta facilidade? Nesse aspecto esqueci
algumas coisas no ltimo ano.
Passei entre as rvores. As raminhas golpeavam meu rosto e meus ps tropeavam
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
23
com as trepadeiras. Segui adiante, com uma sensao de ser imensa, torpe e nada bem-
vinda aqui. O caminho no era para pessoas. No tinha nenhuma possibilidade de
ganhar do Clay assim. Por isso procurei uma clareira e me preparei para a Mudana.
Minha Mudana foi acelerada, por isso resultou torpe e torturante e logo tive que
descansar, ofegando no cho, uns minutos. Ao me pr de p, fechei os olhos e respirei
fundo o aroma de Stonehaven. Senti um tremor de prazer que nascia em minhas garras,
subia por minhas patas e sacudia todo meu corpo. Deixou-me uma mescla indescritvel
de excitao e calma que me deu vontade de me lanar atravs do bosque e me deixar
cair em doce paz ao mesmo tempo. Estava em casa. Sendo humana, podia negar que
Stonehaven era meu lar, que as pessoas daqui eram minha Matilha, que o bosque era
mais que um pouco de terra alheia. Mas sendo loba no bosque de Stonehaven, havia um
coro ressonando em minha cabea. O bosque era meu. Era territrio da Matilha e,
portanto meu. Meu para correr, caar e brincar sem temer os adolescentes de farra,
caadores muito ansiosos ou raposas e guaxinins raivosos. No havia sofs descartados
que bloqueassem meu caminho, nem latas enferrujadas que cortassem minhas garras,
nada de bolsas de lixo que enchessem o ar de porcarias ou produtos qumicos que
polussem a gua que eu tomava. Este no era um grupinho de rvores para uma ou
duas horas. Eram quinhentos acres de bosque, cheios de atalhos familiares e carregados
de coelhos, cervos e meia dzia mais de animais para caar, um buf para meu prazer.
Meu prazer. Aspirei grandes baforadas de ar. Meu. Sa ao caminho. Minha. Esfreguei-
me em um carvalho, sentindo que a casca me raspava tirando a pele morta. Meu. A terra
tremeu com trs vibraes leves: um coelho a minha esquerda. Meu. Minhas pernas
queriam correr, redescobrir o mundo intrincado do bosque. Algum no fundo de meu
crebro, uma diminuta voz humana gritou: No, no, no. Isto no teu. Deixou-o. No
o quer. Ignorei essa voz.
Faltava s uma coisa, uma ltima coisa que diferenciava este bosque do barranco
solitrio de Toronto. No momento em que pensava, um uivo atravessou a noite, no o
canto musical da noite, a no ser o chamado urgente de um lobo solitrio, o sangue
chamando o sangue. Fechei os olhos e senti vibrar em mim o som. Ento lancei minha
cabea para trs e respondi. A pequena voz de alerta deixou de gritar injurias e a ira se
transformou em algo mais parecido ao terror. "No - sussurrou- isso no. Recupera o
bosque. Reclama como teu o ar e os caminhos e as rvores e os animais. Mas isso no.
Os arbustos a minha costas se agitaram, e girei para ver Clay saltando. Alcanou-me
de frente e me atirou de costas, logo ficou parado sobre mim e mordiscou a pele frouxa
de meu pescoo. Quando lhe dei uma dentada, retirou-se. Gemeu, medindo meu pescoo
com seu focinho, me rogando que brincasse com ele, me dizendo quo sozinho esteve.
Podia sentir a resistncia dentro de mim, em alguma parte, mas muito profunda e
longnqua. Peguei sua pata dianteira com meus dentes e o fiz cair. Lancei-me sobre ele.
Derrubamo-nos na mata, dando mordidas e chutando e lutando por nos colocar acima
do outro. Justo quando estava para me imobilizar, liberei-me e escapei. Corremos em
crculos. A cauda de Clay me percorria o flanco, me acariciando como uma mo.
Aproximou-se e esfregou seu flanco contra o meu... ao dar a seguinte volta, ps uma
perna diante da minha para me deter e afundou seu focinho em meu pescoo. Senti seu
flego quente em minha pele e ele absorveu meu aroma. Logo me puxou pelo pescoo e
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
24
me jogou para trs, com um grito de triunfo enquanto eu caa. No pde sustentar sua
vitria mais que um par de segundos. Lutamos um momento mais, logo me liberei. Clay
deu um passo para trs, agachou-se, deixando em alto seus quadris. Tinha a boca aberta,
a lngua pendurada e as orelhas para frente. Agachei-me como me preparando para
enfrentar seu ataque. Quando saltou, pulei para um lado e comecei a correr.
Clay me seguiu a toda velocidade. Corremos atravs do bosque, acre detrs acre.
Ento, justo quando dava a volta para voltar para a casa, soou um disparo, quebrando a
paz. Detive-me escorregando. Um tiro? Realmente escutei um tiro? obvio que enfrentei
armas no passado, as armas e os caadores eram perigos que se podia chegar a enfrentar
em um bosque estranho. Mas isto era Stonehaven. Era seguro.
Outro disparo perturbou a paz do bosque. Meus ouvidos se moviam de um lado a
outro. Os estampidos provinham do norte. Havia rvores frutferas no norte. Era que o
granjeiro usava esses aparelhos que imitam disparos para assustar aos pssaros? Devia
ser. Era isso ou algum estava caando nos campos vizinhos. O bosque de Stonehaven
estava claramente delimitado com arame farpado e avisos. As pessoas do local
respeitavam os limites. Sempre foi assim. A reputao de Jeremy com as pessoas do
lugar era perfeita. Podia no ser muito socivel, mas o respeitavam.
Ia me dirigir ao norte, para esclarecer o mistrio. No tinha andado mais de trs
metros quando Clay se interps. Grunhiu. No era um grunhido brincalho. Olhei-o, me
perguntando se tinha interpretado mal o significado. Voltou a grunhir e a soube com
certeza que estava impedindo minha passagem. Joguei as orelhas para trs e foi a minha
vez de grunhi. Fechou minha passagem. Estreitei os olhos e o olhei com ira. Obviamente
me afastei por muito tempo se ele acreditava que podia mandar em mim como fazia com
outros. Se tinha esquecido quem eu era, estava disposta a lhe dar uma lio para
refrescar a memria dele. Estirei os lbios e lancei um ltimo grunhido de alerta. No
retrocedeu. Lancei-me contra ele. Mas chocou-se comigo no ar, me deixando sem flego.
Quando recuperei os sentidos, estava estirada no cho com os dentes do Clay prendendo
a pele solta de atrs da cabea. Estava fora de forma.
Clay grunhiu e me sacudiu fortemente, como se fosse uma cachorrinha que se
comportou mal. Logo depois de faz-lo umas quantas vezes retrocedeu. Pus-me de p
com toda a dignidade que pude. Antes que estivesse parada de tudo, Clay me golpeou o
quadril com o focinho. Voltei-me para lhe d um olhar indignado. Voltou a me empurrar
no sentido contrrio ao que queria ir. Segui-se o jogo uns quinhentos metros, logo fui
para a um lado e tentei esquiv-lo. Em poucos segundos me alcanou e senti que lanava
seus cem quilogramas sobre minhas costas e me atirava sobre a terra. Os dentes de Clay
se afundaram em meu ombro, o suficiente para me fazer sangrar e que sentisse uma forte
dor e comoo. Esta vez no me deixou terminar de me pr de p que j estava me
tocando de volta a casa, mordendo minhas pernas traseiras se dava sinais de reduzir a
marcha.
Clay me levou at a clareira onde eu tinha Trocado e Trocou do outro lado da
folhagem. Minha Mudana foi mais rpida que a primeiro. Mas desta vez no precisei
descansar. A fria me deu energia. Pus minha roupa, rasgando a manga da camisa. Logo
sa da clareira. Clay estava ali, com os braos cruzados, esperando. obvio que estava
nu, sua roupa abandonada em uma clareira mais no interior do bosque. Nu, Clay era
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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ainda mais perfeito que vestido, o sonho de um escultor grego feito realidade. Vendo-o
senti o calor que percorria meu corpo, trazendo lembranas de outras corridas e sua
inevitvel conseqncia. Amaldioei a traio de meu corpo e me aproximei dele.
-Que caralho est fazendo? -gritei
-Eu? Eu? Eu no sou o idiota que quis correr para os homens com armas. No que est
pensando Elena?
-No diga sandices. Eu no sairia de nossas terras e voc sabe. Tinha curiosidade. No
faz uma hora que voltei e j est me pondo a prova. At que ponto pode manobrar-me,
at que ponto pode controlar...
-Esses caadores estavam em nossas terras Elena - a voz do Clay soava grave e seus
olhos estavam cravados nos meus.

-Esta uma estup -detive-me e estudei seu rosto-. Fala srio, verdade? Caadores?
Nas terras de Jeremy? Os anos j esto atrofiando seu crebro?
Admitiu o golpe mais do que eu esperava. Apertou os lbios. Seu olhar se endureceu.
Havia ira ali, a beira da exploso. A ira no estava dirigida a mim, a no ser contra quem
tinha se atrevido a invadir seu santurio. Cada fibra de Clay se rebelava contra a idia de
permitir que houvesse homens armados nas terras pertencentes casa. S havia uma
coisa que poderia o impedir de ca-los: Jeremy. De modo que Jeremy devia ter proibido
que ele se ocupasse dos intrusos, no s mat-los, mas tambm de utilizar suas infames
tcnicas para assust-los. O mtodo usual de Clay expulsar aos intrusos humanos. Duas
geraes de adolescentes locais em busca de lugares para fazer festas cresceram
transmitindo o conto de que os bosques de Stonehaven eram enfeitiados. Enquanto os
contos tivessem a ver com fantasmas e no se falasse de licntropos, Jeremy o permitia,
inclusive o estimulava. Afinal de contas, permitir que Clay assustasse as pessoas locais
era mais seguro e muito menos problemtico que outra alternativa. Ento por que
Jeremy no o permitia agora? O que mudou?
-Ele deve estar l dentro agora - disse Clay-. Vai e fala com ele.
Virou-se para ir em busca de sua roupa.

Ao ir para a casa pensei no que havia dito o chofer do txi. Ces selvagens. No havia
ces selvagens aqui. Os ces no se aproximariam do territrio dos licntropos. E os ces
tampouco andavam matando mulheres jovens e saudveis. Pegadas imensas de ces em
volta do corpo significavam uma s coisa. Um licntropo. Mas quem poderia estar
matando to perto de Stonehaven? A pergunta mesma era to incrvel que no podia ter
resposta. Para um licntropo que no fosse da Matilha seria suicdio cruzar a fronteira do
estado de Nova Iorque. Os mtodos de Clay para espantar aos intrusos eram to
conhecidos que nenhum se atreveu a se aproximar menos de oitenta quilmetros de
Stonehaven em mais de vinte anos. Conta-se que Clay desmembrou ao ltimo licntropo
intruso dedo a dedo, membro por membro, mantendo-o vivo at o ltimo momento
possvel, quando lhe arrancou a cabea. Naquele tempo Clay tinha dezessete anos.
Tambm era ridcula a idia de que Clay ou Jeremy pudessem ser responsveis por
semelhante feito. Jeremy no matava. Isso no significa que no pudesse matar ou que
nunca sentisse o impulso de faz-lo, mas sim, que simplesmente entendia e canalizava
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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melhor sua energia em outras coisas, assim como um general deve renunciar ao calor do
combate e dedicar-se a questes de estratgia e conduo. Se tivesse que matar algum,
Jeremy ordenava que outro o fizesse. Inclusive isso se fazia em casos extremos e
raramente se tratava de humanos. No importa qual fosse ameaa, Jeremy nunca
ordenaria matar a um ser humano em seu territrio. E quanto a Clay, por mais falhas que
tivesse, matar a seres humanos por esporte no era uma delas. Mat-los significava toc-
los, cair na indignidade de entrar em contato fsico com eles, coisa que no fazia a menos
que fosse absolutamente necessrio.

Quando voltei a entrar na casa, esta continuava em silncio. Fui de novo ao escritrio,
o corao de Stonehaven. Jeremy no estava ali. Decidi esperar. Se estivesse na casa, me
escutaria. E por sua vez, viria para mim.
Jeremy governava a Matilha com autoridade absoluta. a lei dos lobos selvagens,
embora nem sempre fosse lei da Matilha. s vezes a histria dos Alfas da Matilha fazia
que as batalhas pela sucesso imperial em Roma parecessem civilizadas. Um licntropo
da Matilha conseguia tomar o mando, manter seu posto de Alfa por alguns meses,
possivelmente inclusive alguns anos, mas terminava assassinado ou executado por um
de seus irmos mais ambiciosos, que ocuparia seu lugar at que chegasse seu prprio
fim, geralmente no por morte natural. Ser Alfa na Matilha no tinha nada que ver com a
capacidade de conduo, a no ser com o poder.
Na segunda metade do sculo vinte a Matilha estava se desmembrando. O mundo
aps a industrializao no tratava bem aos licntropos. Os bosques e as pradarias
cediam terreno extenso urbana. As pessoas na sociedade moderna respeitavam muito
menos que a da Inglaterra feudal a privacidade de seus vizinhos ricos que preferiam
viver uma vida retirada. A rdio, a televiso e os jornais podiam fazer correr por todo
mundo em poucas horas notcia de que se avistou um licntropo. Os novos mtodos de
trabalho da polcia permitiam vincular assassinatos cometidos por um co no Tallahasse
com feitos similares aos acontecidos em Miami e Key West. O mundo comeou a cercar
Matilha. Em vez de unirem-se para sua mtua defesa, os membros da Matilha
comearam a lutar entre si, disputando cada vestgio de segurana, inclusive chegando a
roubar territrios de seus prprios irmos.
Jeremy mudou tudo isso.
Embora Jeremy nunca tivesse sido considerado o melhor lutador da Matilha, possua
uma fora que era ainda mais importante para a sobrevivncia e o xito. Jeremy tinha
absoluto autocontrole. O fato de que pudesse dominar seus prprios instintos e impulsos
significava que podia analisar racionalmente os problemas que enfrentava a Matilha e os
dirigir de modo racional, tomando decises que no respondessem a meros impulsos.
medida que as cidades foram se convertendo em terras de humanos e cimento sem
frestas, mudou a Matilha para o campo. Ensinou a seus membros a conduzir-se com os
seres humanos, como ser parte do mundo e estar afastado do mundo ao mesmo tempo.
Quando as histrias a respeito dos licntropos comearam a difundir-se cada vez mais
rpido e com maior facilidade, exerceu seu controle no s sobre a Matilha, mas tambm
sobre os licntropos que no eram membros dela. No passado se considerava os
licntropos que no eram da Matilha como cidados de segunda. Sob o reinado de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
27
Jeremy os licntropos que no eram da Matilha no melhoraram seu status, mas a
Matilha descobriu que no podia se dar ao luxo de ignor-los. Se um licntropo que no
era da Matilha criava problemas no Cairo, ressonava em Nova Iorque. A Matilha
comeou a fazer arquivos dos licntropos que no eram membros dela, tomando
conhecimento de seus hbitos e rastreando-os. Quando um licntropo causava
problemas em qualquer lugar do mundo, a Matilha atuava de forma rpida e
concludente. A pena por pr em perigo Matilha ia de uma advertncia, passando por
uma surra, at uma rpida execuo. Sob o reinado de Jeremy, a Matilha era mais forte e
estvel que nunca ningum questionava sua liderana. Sabiam que tinham algo bom.
Deixei de pensar nisso e foi para perto da escrivaninha, para olhar a pilha de papis
que havia ali. As escavaes revelam novos elementos do fenmeno Chavn era o
ttulo de um artigo. Debaixo aparecia outro se referido aos antigos cultos do jaguar de
Chavn de Huntar. Que interessante, bocejei. Embora muitos se surpreendessem,
Clay era na realidade um tipo brilhante, que tinha um doutorado em antropologia.
Especializava-se em religies antropomrficas. Ou dito de outro modo, estudava
simbolismo de homens besta nas culturas antigas. Ganhou sua reputao a base de
investigaes, j que no gostava de lidar diretamente com o mundo humano, mas
quando considerava necessrio ter contato com o mundo acadmico, dava cursos breves.
Assim o conheci.
Novamente tentei deixar de lado tais pensamentos. Dando as costas aos papis de
Clay, afundei na poltrona. Olhando ao redor, notei que a sala estava exatamente como eu
a deixei h quatorze meses. Recordei como era o escritrio antes, comparei com o que via
e no encontrei uma s diferena. No era possvel. Jeremy redecorava essa sala - e a
maior parte da casa - to freqentemente que se brincava a respeito de que se algum
pestanejava j havia algo diferente. Clay disse uma vez que as mudanas tinham a ver
com ms lembranas, mas no adicionou nada mais. Mas depois que Clay me trouxesse
aqui, Jeremy me recrutou como assistente decoradora. Lembrava de ter passado noites
inteiras estudando catlogos, movendo mveis e olhando catlogos de pintura. Ao olhar
para o teto junto lareira vi montculos endurecidos de cola de papel para parede, que
datavam de uma vez em que, muito cansados j s quatro da madrugada para seguir
empapelando as paredes, Jeremy e eu travamos uma dura batalha, jogando grumos de
uma ponta outra da sala um no outro.
Lembrava ter olhado para esses montculos a ltima vez que estive no escritrio.
Jeremy estava parado em frente lareira, me dando as costas. Enquanto eu contava o que
fiz, desejava ansiosamente que ele se virasse e me dissesse que estava tudo bem. Mas eu
sabia que no era assim. Era algo totalmente equivocado. Ainda assim queria que me
dissesse algo, algo que me fizesse sentir melhor. Como no o fez, partir, jurando no
voltar. Olhei novamente aos grumos de cola. Outra batalha perdida.
-Assim, por fim... voltou.
A voz me sobressaltou. Jeremy estava na porta. Estava com uma barba curta, coisa que
acontecia quando estava muito concentrado em algo para barbear-se e logo j no queria
arrumar o assunto. Fazia que ele parecesse mais velho, embora nem de longe a sua
verdadeira idade, cinqenta e um anos. Como disse, envelhecemos lentamente. Jeremy
parecia estar no meio dos trinta; seu corte de cabelo, que chegava at os ombros e estava
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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amarrado na nuca, sublinhava essa iluso de juventude. Era um estilo que adotou no
por seguir a moda mais sim porque podia cortar menos seus cabelos. Para Jeremy as idas
ao cabeleireiro eram intolerveis, de modo que Clay ou eu o cortvamos, coisa que no
suportava mais de umas quantas vezes ao ano. Quando entrou no escritrio, caiu-lhe o
cabelo sobre os olhos, tirando toda austeridade de seu rosto. Atirou-o para trs, um gesto
to familiar que fez minha garganta doer.
Olhou ao redor.
-Onde est Clay?
Tpico. Primeiro se zanga comigo porque cheguei tarde. Logo pergunta pelo Clay.
Senti dor, mas a rechacei. No que esperasse que me recebesse aos abraos e aos beijos.
Esse no era o modo de ser de Jeremy, embora tivesse sido bom que dissesse fico feliz
em ver-te ou como foi o vo?.
-Escutamos disparos no bosque - disse. -Clay murmurou algo a respeito de tumbas
pouco profundas e se foi.
-Estive trs dias tentando contatar voc.
-Estava ocupada.
Houve um tic em sua bochecha. Nisso Jeremy era o equivalente de uma exploso
emocional.
-Quando chamar voc, me responda - disse, com voz enganosamente suave-. No
chamaria voc se no fosse importante. Se chamar, responda. Esse foi o acordo.
-Correto, esse foi o acordo. Passado. Nosso acordo terminou quando deixei a Matilha.
-Quando deixou a Matilha? Quando foi isso? Perdoe-me se perdi algo, mas no me
lembro de ter falado de tal coisa, Elena.
-Acreditei que nos entendamos.
Clay entrou na sala trazendo uma bandeja com frios e queijo. Deixou-a na escrivaninha
e me olhou e logo ao Jeremy.
Jeremy continuou.
-Assim j no parte da Matilha agora?
-Correto.
-Ento uma deles, uma piolhenta?
- obvio que no, Jer - disse Clay, deixando-se cair junto a mim no sof.
Parei e fui para perto da lareira.
-Bom, como ento? -perguntou Jeremy me atravessando com o olhar-. Matilha ou
no?
-Vamos, Jer - disse Clay-. Sabe que no disse a srio.
-Tnhamos um acordo Elena. No contataria voc se no a necessitasse. Agora
necessito de voc e choraminga e se zanga porque tive a desfaatez de recordar voc de
suas responsabilidades.
-Para que me necessita? Para que me ocupe do vira-lata intruso? Essa a tarefa de
Clay.
Jeremy sacudiu a cabea.
-No se usa dinamite para matar um camundongo. Clay tem seus pontos fortes. A
sutileza no um deles.
Clay sorriu para mim e encolheu seus ombros. Eu desviei o olhar.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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-Ento que coisa to importante h para que me necessite? -perguntei.
Jeremy virou-se e foi para a porta.
-J tarde. Falaremos pela manh. Possivelmente esteja menos agressiva depois de
dormir.
-Um momento! Disse, me interpondo em seu caminho-. Deixei tudo para vir aqui.
Faltei ao trabalho, paguei uma passagem de avio e vim o mais rpido que pude porque
ningum respondia ao maldito telefone. Se sair, no prometo que v me encontrar aqui
pela manh.
-Que assim seja -- Disse Jeremy, sua voz to fria que me fez tiritar-. Se decidir ir
embora, que Clay leve voc ao Syracuse.
-Sim, com certeza disse -. Teria mais probabilidades de chegar ao aeroporto pedindo
que o psicopata local me levasse.
Clay sorriu.
-- Esqueceu, querida, que eu sou o psicopata local.
Murmurei que concordava. Jeremy no disse nada, ficou ali e esperou que me
afastasse a um lado. Fiz. difcil quebrar velhos hbitos. Jeremy saiu da sala. Um minuto
mais tarde a porta de seu quarto acima se fechou.
-Filho da puta arrogante - murmurei.
Clay deu de ombros. Estava reclinado em seu assento, me olhando, com um sorriso
pensativo que me punha nervosa.
-Que caralho querem? - disse
Seu sorriso se fez mais largo com o brilho de seus dentes brancos.
-A voc. O que outra coisa?
Onde? Aqui? Na terra?
-No. Isso no. Ainda no. S o mesmo que sempre quis. Voc. Aqui. Para sempre.
Desejei que tivesse aceitado minha interpretao de suas palavras. Olhou-me
novamente nos olhos.
- Alegro por sua volta, carinho. Senti saudades.
Quase tropeo ao sair correndo da sala.



REUNIO

No importando o que houvesse dito Jeremy, eu sabia que no devia tentar deixar a
casa. Jeremy podia fazer de conta que no se importava com o que eu fizesse, mas me
deteria se tentasse ir sem escutar o que ele queria me dizer 'Tinha trs opes. Primeiro,
podia forar a mo e tentar de ir embora. Segundo, podia subir a seu quarto e ameaar ir
embora se no me dissesse o que acontecia. Terceiro, podia ir a meu antigo quarto,
dormir e averiguar pela manh o que queria. Avaliei as opes. Agora seria impossvel
conseguir um txi para voltar para Syracuse, dado que o servio local fechou a mais de
uma hora. Podia pegar um dos automveis e deix-lo no aeroporto, mas as
possibilidades de que houvesse um vo para Toronto s trs da madrugada eram quase
nulas e eu no gostava da idia de dormir no aeroporto. Tampouco eu gostava da idia
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
30
de brigar com Jeremy. A gente no brigava com Jeremy Danvers; podia gritar e
amaldio-lo, mas ele ficava parado com um olhar inescrutvel, esperando que algum
se cansasse, e logo com calma se negava a discutir o assunto. Eu encontrei a maneira de
superar suas defesas, mas me faltava prtica. No, esta noite lutaria me negando a seguir
seu jogo. Iria dormir, Cuidaria do assunto pela manh e iria. Simples assim.
Subi para meu antigo quarto, ignorando o fato de que embora supostamente ningum
soubesse que eu vinha - o quarto foi arejado, a janela estava aberta, havia lenis limpos
e prontos para dormir. Peguei meu celular da bolsa e liguei para Philip. medida que ia
tocando e ningum respondia, fui sentindo uma crescente desiluso. Provavelmente j
estava deitado. Quando atendeu a secretria eletrnica; pensei em desligar e ligar de
novo com a esperana de que por fim despertasse, mas sabia que era egosta de minha
parte querer falar com ele para restabelecer meu vnculo com o mundo exterior. Assim
que deixei uma mensagem breve, comunicando que cheguei bem e que voltaria a ligar
antes de partir no dia seguinte.

O silncio da casa me despertou na manh seguinte. Eu estava acostumada a despertar
na cidade, amaldioando os sons do trfico, atirando o relgio despertador no outro lado
do quarto, ameaando fazer o mesmo com o Philip se no me deixasse ficar na cama.
Quando nada conspirou para me levantar esta manh, despertei de repente as dez, meio
acreditando que o mundo se acabava. Ento me dei conta de que estava em Stonehaven.
No posso dizer que me senti aliviada.
Liberei-me dos lenis bordados e os travesseiros de pluma e corri as cortinas da cama.
Despertar em meu quarto de Stonehaven era como despertar de um pesadelo de novela
vitoriana. A cama com dossel por si s terrvel, algo tirado de um conto de fadas. Mas a
coisa ficava pior. Ao p da cama havia gaveta de cedro com cobertores de pluma e
perfume de madeira, para o caso de que no bastassem os de algodo egpcio que havia
em cama. Na janela se agitavam cortinas de voile, sobre um div embutido na parede,
forrado de seda. As paredes estavam pintadas de rosa plido e adornadas com aquarelas
de flores e crepsculos. No outro lado do quarto havia uma penteadeira de carvalho,
com espelho de moldura dourada, escova e espelho de mo com base prateada. O tampo
da cmoda estava cheio de bonequinhas de Dresden. Scarlett haveria se sentido em sua
casa.
O assento na janela foi o motivo principal pelo qual Jeremy escolheu este quarto para
mi. Isso e que as cerejeiras florescessem justo debaixo da janela. Parecia apropriadamente
lindo e feminino. A verdade que Jeremy no sabia nada de mulheres e esperar que
ficasse louca pelas flores de cerejeira foi o primeiro de muitos enganos. No se podia
esperar que soubesse muito. As mulheres tinham um papel quase insignificante em
mundo dos licntropos. O nico motivo que tem um licntropo para averiguar o que
pensa uma mulher encontrar a melhor maneira de lev-la cama. A maioria nem
sequer se molesta em averiguar isso. Se a gente for dez vezes mais forte que a fabulosa
ruiva sentada junto ao bar, por que incomodar-se em comprar um gole. Esse ao menos
o ponto de vista dos que no fazem parte da Matilha. Os da Matilha so mais sutis. Se
um licntropo quer viver em um lugar, no pode manter o hbito violar a uma mulher
cada vez que sente necessidade. Os licntropos da Matilha inclusive tm amantes e
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
31
noivas, embora nunca formem o que os humanos chamam de relaes estveis. obvio
que no se casam. Tampouco permitem s mulheres criar seus filhos. lei da Matilha
que todo filho varo deve ser separado de sua me na infncia e se devem cortar todos os
laos com ela. Assim no se podia esperar que Jeremy soubesse muito sobre o sexo
oposto, posto que foi criado em um mundo no que as mes, irms e tias eram s palavras
em um dicionrio. E no havia mulheres lobo. Exceto eu, obvio. Quando me
morderam, Jeremy esperava encontrar-se com uma criatura infantil e dcil que
timidamente aceitaria seu destino e se contentaria com um quarto bonito e roupas lindas.
Se tivesse previsto o futuro, possivelmente teria me expulsado... ou algo pior.
Quem me mordeu me traiu da pior maneira possvel. Eu o amei, confiei nele e ele me
converteu em um monstro. Ento me deixou com Jeremy. Dizer que reagi mal dizer
pouco. O do quarto no funcionou. Em uma semana Jeremy teve que me prender em
uma jaula. Minhas Mudanas ficaram to descontrolados como meus ataques de fria.
Nada que Jeremy dissesse fazia que eu o escutasse. Odiava-o. Era meu captor; o nico ao
que podia culpar de todas as minhas torturas, fsicas e emocionais. Se a jaula era meu
inferno, Jeremy era meu Sat.
Finalmente escapei. Consegui viajar para Toronto comprando a passagem com a nica
coisa que tinha para dar em troca: meu corpo. Mas poucos dias depois de chegar
compreendi que minha valorao da jaula era totalmente inexata. No era o inferno. Era
s uma estao de passagem a caminho do inferno. Viver sem limites e incapaz de
controlar minhas Mudanas era o nono crculo do inferno.
Comecei matando animais para sobreviver, coelhos, guaxinins, ces e inclusive ratos.
Em pouco tempo perdi toda iluso de me controlar e comecei a afundar na loucura.
Incapaz de raciocinar, mal podia pensar e s respondia s urgncias de meu estmago.
Os coelhos e guaxinins j no bastavam. Comecei a matar gente. Depois do segundo
assassinato, Jeremy me encontrou, levou-me para casa e me treinou. No voltei a tentar
escapar. Tinha aprendido a lio. Havia coisas piores no mundo que Stonehaven.

Desci da cama e caminhei pelo piso de madeira frio at o tapete. Minha bolsa estava l
embaixo, mas no importava. A cmoda e o guarda-roupa estavam cheios de roupa que
acumulei ao longo dos anos. Encontrei jeans e uma camisa e os vesti. No tinha vontade
de me pentear, assim que fiz uma trana.
J semi-apresentvel abri a porta do quarto e olhei a porta fechada do outro lado do
corredor. Os roncos de Clay conseguiam transpassar sua porta e eu relaxei um pouco.
Esse era um problema que queria evitar esta manh.
Sa ao corredor e passei por sua porta. De forma surpreendentemente abrupta se
detiveram os roncos. Amaldioando, desci os primeiros degraus. A porta de Clay se
abriu com um rangido e logo escutei seus ps descalos sobre o piso de madeira. No
pare", alertei-me. No pare". Ento obvio parei e me virei.
Estava parado acima, e parecia suficientemente exausto para cair pela escada. Seus
cachos dourados estavam em desordem e esmagados com o suor do sono. Tinha uma
sombra de barba loira. Seus olhos estavam meio abertos e se esforavam por me enfocar.
Vestia apenas a cueca branca com estampa de pisadas de patas pretas que comprei para
ele para fazer uma brincadeira durante um dos perodos em que estvamos bem faz uns
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
32
anos. Espreguiando-se, girou os ombros para trs, expondo os msculos de seu peito.
-Passou uma m noite vigiando minhas rotas de escapamento? -perguntei.
Encolheu os ombros. Quando eu tinha um mau dia em Stonehaven, Clay passava a
noite me vigiando. Como se eu fosse to covarde para fugir de noite. Bom, certo que o
tinha feito, mas essa no era a questo.
-Quer que acompanhe voc no caf da manh? -perguntou.
-No.
Outra vez encolheu os ombros sonolento. Dentro de umas horas no deixaria passar o
rechao sem brigar. Caralho, em algumas horas no se incomodaria de perguntar se
podia me acompanhar. Continuei descendo. Tinha dado trs passos, quando ele
despertou de repente, seguiu-me e me puxou pelo cotovelo.
-Eu preparo seu caf da manh - disse-. Verei voc no alpendre. Quero falar contigo.
-No tenho nada para dizer a voc, Clayton.
-D-me cinco minutos. J deso.
Antes que pudesse responde; subiu correndo e desapareceu em seu quarto. Poderia
segui-lo, mas teria significado segui-lo a seu quarto. Decididamente isso no era uma boa
idia.
Ao chegar ao trreo, chegou-me o aroma de presunto com mel e panquecas, meu caf
da manh favorito. Fui ao alpendre e olhei a mesa Sim, havia pilhas de presunto e
panquecas sobre um prato. No tinham chegado sozinhos ali, mas teria me surpreendido
menos se fosse assim. A nica pessoa que podia hav-lo preparado era Jeremy, mas ele
no cozinhava. No que no pudesse, no o fazia. Isso no quer dizer que ele esperasse
que Clay ou eu o servssemos, mas quando ele preparava o caf da manh, a nica coisa
que fazia era o caf. O resto era uma mixrdia de pes, queijos, frios, frutas e qualquer
outra coisa que requeresse uma preparao mnima.
Jeremy entrou detrs de mim na sala.
-Esfriar. Sente-se e coma.
No disse nada do caf da manh. Quando Jeremy fazia um gesto amvel, no gostava
que lhe agradecessem. Por um momento estive convencida de que essa era a maneira de
Jeremy me dar as boas-vindas. Ento reapareceram as velhas dvidas. Possivelmente s
preparou o caf da manh para me tranqilizar. Nunca descobriria as intenes de
Jeremy. s vezes estava segura de que me queria em Stonehaven, outras vezes pensava
que s me aceitava porque no tinha mais remdio, porque havia me metido em sua vida
e me ter calma e controlada era o melhor para sua Matilha. Sei que eu pensava muito
nisso, me esforando para interpretar cada gesto dele, muito ansiosa para ver um sinal
de aprovao. Possivelmente ainda estivesse presa aos velhos patres da infncia,
desejando um pai mais do que estava disposta a admitir. Desejava que no fosse assim.
A imagem que queria projetar no era precisamente a de uma menina carente.
Sentei-me e comecei a comer. As panquecas foram preparadas com uma mistura tirada
de uma caixa, mas no me queixei. Estavam quentes e me enchiam e tinham manteiga e
xarope de arce
2
. A coisa autntica, no a porcaria de imitao que sempre comprava para

2
Arce = Bot. 1. rvore acercea. 2. Madeira dessa rvore. Ento seria um xarope feito com a casca desta
rvore.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
33
economizar um pouco. Engoli o primeiro monto e me servi do segundo. Jeremy no
moveu um cabelo. Uma coisa boa em Stonehaven era que eu podia comer tudo o que
quisesse sem que ningum comentasse ou notasse.
Parece que enquanto Clay estava vigiando a janela de meu quarto ontem noite,
Jeremy me esperava aqui esta manh. Seu cavalete estava posto entre a janela e sua
cadeira. Havia ali uma folha com algumas linhas. No tinha avanado muito no novo
esboo. As poucas linhas que tinha esboado evidentemente tinham sido apagadas e
novamente traadas vrias vezes. Em um lugar o papel ameaava rasga-se.
-Vais me dizer o que est acontecendo? -perguntei.
-Vais escutar? Ou est procurando outro motivo para briga?
Riscou outra linha sobre o fantasma da anterior e voltou a apag-la se via o marrom da
madeira do cavalete atravs do buraco que deixou.
-Ainda no superou o que aconteceu, no verdade? - disse-lhe -. O motivo pelo qual
parti. Ainda est zangado.
No levantou a vista do esboo. Caralho, por que no me olhava?
-Eu no estava zangado contigo, Elena. Voc estava zangada consigo mesma. Por isso
partiu. Voc no gostava do que fez. Assustou-se e acreditou que podia deix-lo para trs
se partisse. Foi assim?
No respondi.
H dezesseis meses fui investigar a informao de que algum vendia informao
sobre os licntropos. A Matilha no saia perseguindo cada tipo que dizia que tinha
provas da existncia de licntropos. Isso seria um trabalho de tempo integral para cada
licntropo existente dentro e fora da Matilha. Seguimos as histrias que soam verdicas,
excluindo palavras chaves tais como balas de prata, assassinato de bebs e criaturas
metade homem, metade besta, que assolam o mundo. O que resta uma tarefa de
algumas horas que cumprimos Clay e eu. Cada um cumpre um rol. Se um licntropo de
fora estiver causando problemas e Jeremy quer lhe dar um castigo exemplar, enviava
Clay. Se o problema ia alm do que ele pudesse resolver rapidamente -Ou se havia um
humano envolvido - ento eram necessrias cautela e fineza. Para esses casos me
enviava. O caso de Jos Carter requeria meus servios.
Jos Carter era um mascate especializado em fenmenos paranormais. Passou a vida
enganando aos crdulos e vulnerveis dizendo a eles que seus seres queridos mortos
queriam entrar em contato com eles do alm. Ento, faz dois anos, enquanto trabalhava
na Amrica do Sul, chegou a um povoado onde se afirmava que havia um licntropo.
No ia perder essa oportunidade e Carter foi ao lugar para comear a reunir o que
supunha que eram evidncias falsas. O problema que no eram falsas. Um dos ces
esteve viajado pelo Equador, atacando uma aldeia detrs de outra e deixando um rastro
de cadveres. O co pensou que tinha a soluo perfeita, ao atacar aldeias to remotas
que ningum veria uma relao entre elas. No contava com o Jos Carter. E Carter
nunca pensou que ia encontrar a coisa verdadeira, mas quando o fez soube o que era
rapidamente. Foi para o Equador com as declaraes de testemunhas, amostras de plo,
moldes tirados das pegadas e fotografias. Ao voltar para o EUA se contatou com vrias
sociedades paranormais e tentou vender a informao. Estava to seguro do que tinha
encontrado que se ofereceu para acompanhar a expedio de volta a Sudamrica com
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
34
quem fizesse a melhor oferta para rastrear a besta.
Eu encontrei Jos Carter em seu 'leilo de informao em Dallas. Tentei desacredit-lo.
Tentei roubar as prova Quando nada funcionou fiz o nico que restava. Matei-o. Fiz isso
por minha conta, sem ordens de Jeremy e sem sequer me contatar com ele. Depois voltei
para hotel, banhei-me e desfrutei de um bom sono. Quando despertei, logo compreendi o
que tinha feito.
Nem tanto o que tinha feito a no ser como o tinha feito, o fcil que me resultou. Matei
um homem com tanta preocupao moral como a que me tivesse provocado matar uma
mosca.
No caminho de volta para Nova Iorque, preparei meus argumentos para explicar a
Jeremy por que atuei sem consult-lo. Carter era uma ameaa real. Fiz tudo o que pude
para det-lo. Acabava-se o tempo. Se ligasse para Jeremy ele teria dito que o fizesse,
assim simplesmente economize um passo e me encarreguei da coisa. Antes de chegar a
Stonehaven compreendi que no era ao Jeremy a quem eu queria convencer, a no ser a
mim mesma. Tinha cruzado a linha. Atuei com um s propsito o de proteger a minha
Matilha, sem uma gota de compaixo. Atuei como Clay. Isso me assustou, assustou-me
tanto que fugi e jurei nunca mais voltar para essa vida.
Tinha mudado? Sentia-me totalmente no controle de meus instintos e impulsos? No
sabia. Por um ano no fiz nada to terrvel, mas tampouco me encontrei em uma situao
onde tivesse a oportunidade. Outro motivo pelo qual no quis voltar para Stonehaven.
No sabia se j tinha tirado isso de cima de mim e no estava segura de querer averigu-
lo.

Uma comoo na porta me tirou de minha distrao. Ao levantar os olhos uma figura
alta de cabelo escuro irrompeu na sala. Nicholas Sorrentino me viu, chegou junto a mim
em trs passos e me levantou de meu assento. Enganchei a cadeira com um tornozelo e a
derrubei. Grunhiu de brincadeira ao me abraar.
-Faz muito tempo, irmzinha. Muito.
Nick me levantou e me beijou. O beijo decididamente no era fraternal, um beijo
profundo, que me deixou sem flego. A qualquer outro teria dado uma bofetada, mas
ningum mais beijava como Nick, assim decidi no reprovar sua indiscrio.
-Fique a vontade - disse uma voz com sotaque sulino da porta.
Nick se virou para Clay e sorriu. Ainda me mantinha cativa. Aproximou-se de Clay e o
golpeou nas costas. Clay pegou a cabea dele em uma chave. Liberou-me e afastou Nick.
Nick recuperou o equilbrio, sorriu e voltou a se aproximar.
-Quando chegou? -perguntou-me e logo cravou um dedo nas costelas de Clay-. E por
que no me disseram que vinha?
Algum me pegou pelas costas e me elevou do cho.
-A filha prdiga retornou.
Virei o rosto para ver um rosto to familiar como o do Nick.
- to mau como seu filho - disse me liberando dele-. No sabem dar a mo?
Antonio riu e me baixou.
-Teria que apertar voc mais forte. Possivelmente assim aprenderia a ficar em casa.
Antonio Sorrentino tinha o mesmo cabelo escuro ondulado e os olhos castanhos
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
35
impactantes de seu filho. Geralmente se faziam passar por irmos. Antonio tinha
cinqenta e trs e parecia ter a metade disso, coisa que devia tanto a sua paixo pela vida
saudvel como ao fato de que era um licntropo. Era mais baixo e macio que seu filho,
com ombros largos e bceps que faziam que os do Clay parecessem os de um peso-pena.
- Peter j chegou? - perguntou Antonio, sentando-se junto a Jeremy, que sorvia seu
segundo caf sem que o perturbasse a comoo.
Jeremy negou com a cabea.
-Vm todos? - perguntei.
-Termina seu caf da manh - disse Jeremy, com olhar crtico-. Perdeu peso. No pode
faz-lo. Se no tiver energia suficiente perder o controle. J alertei voc sobre isso.
Deixando por fim seu cavalete de lado, Jeremy se virou para falar com Antonio. Clay
estendeu a mo por sobre meu ombro, pegou um pedao de presunto e o engoliu inteiro.
Quando o olhei chateada, dirigiu-me um gesto de "s tentava ajudar voc".
-No coloque a mo em seu prato - disse Jeremy sem vira-se. O seu est na cozinha. H
para todos.
Antonio foi o primeiro a sair. Quando Nick ia segui-lo, Clay o puxou pelo brao. No
disse nada. No precisava faz-lo. Nick assentiu e foi encher dois pratos enquanto Clay
continuava a meu lado.
-Prepotente - murmurei.
Clay elevou as sobrancelhas, com os olhos azuis cintilando sua perfeita inocncia. Sua
mo tentou tirar outro pedao de presunto de meu prato. Cravei-lhe o garfo na mo com
fora suficiente para faz-lo uivar. Jeremy nos ignorou.
Antonio voltou para a sala, com o prato to carregado que pensei que em qualquer
momento as panquecas se deslizariam ao cho, porque, alm disso, sustentava o prato
com uma mo. A outra mo estava ocupada em levar uma panqueca boca. Nick chegou
detrs de seu pai e deixou cair o prato de Clay diante dele, logo aproximou uma quinta
cadeira, virou-a e se sentou com o respaldo para frente. Houve um maravilhoso silncio
por uns minutos. Os licntropos no falam muito durante a alimentao. A tarefa de
encher o estmago exige concentrao total.
O silncio podia ter durado mais se a campanhia no o tivesse feito pedacinhos. Nick
foi atender e voltou com Peter Myers. Peter era baixo e duro, com um sorriso fcil e
cabelos vermelhos rebeldes que sempre parecia como se ele tivesse se esquecido de
pente-los. Novamente o ritual de abraos de urso, batidas nas costas, beijos brincalhes,
as saudaes na Matilha eram to entusiastas como fsicas, e muitas vezes deixavam
tantas contuses como uma briga.
-E Logan? - perguntei, quando todos voltavam para sua tarefa alimentcia.
-No vem. -disse Jeremy - Teve que voar para Los Angeles para um julgamento.
Contei-lhe o que acontece, mas teremos que nos arrumar sem ele por agora.
-O que me lembra algo - disse Clay, dirigindo-se a mim-. A ltima vez que falei com
Logan, comentou que falou contigo na pscoa. obvio que isso no possvel j que
deixou de ter contato com a Matilha, verdade?
Olhei para Clay, mas no respondi. No precisei faz-lo. Podia ver a resposta em meus
olhos. Seu rosto avermelhou de ira e atacou uma fatia de presunto com fora suficiente
para sacudir a mesa. Sim, falei com Logan na pscoa, no dia de seu aniversrio e no meu,
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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no Natal e meia dzia de vezes. Disse-me que enquanto no o visse, no estava faltando
a meu voto. Alm disso, Logan era mais que meu irmo na Matilha, era meu amigo,
possivelmente o nico verdadeiro amigo que tive. Tnhamos a mesma idade e
compartilhvamos algo mais que saber os nomes de ambos os integrantes da banda de
rock Wham. Logan entendia a atrao do mundo exterior. Desfrutava do amparo e do
companheirismo que oferecia a Matilha, mas se sentia igualmente vontade no mundo
humano, onde tinha um apartamento em Albany, uma noiva de longa data e exercia a
profisso de advogado. Quando me inteirei que Jeremy convocou uma reunio, pensei
que era genial que Logan viesse. Mas agora possivelmente eu no teria nenhuma
compensao ante esta visita indesejada.

Uns minutos mais tarde, Jeremy e Antonio foram conversar no alpendre de atrs.
Como era o amigo mais prximo e mais velho de Jeremy, Antonio muitas vezes servia
para provar suas idias, uma espcie de assessor da corte. Antonio e Jeremy criaram-se
juntos, filhos das duas famlias mais distintas da Matilha. O pai de Antonio foi o Alfa da
Matilha antes de Jeremy. Quando Dominic morreu, muitos na Matilha supuseram que
Antonio ocuparia seu lugar, embora a chefia no fosse hereditria. Igual ao que acontece
com os lobos verdadeiros, o Alfa da Matilha tradicionalmente era o melhor lutador.
Antes que Clay crescesse, Antonio era o melhor guerreiro. Alm disso, tinha mais
inteligncia e sentido comum que uma dzia de licntropos normais. Mas com a morte
de seu pai, Antonio apoiou Jeremy, vendo nele virtudes que salvariam Matilha. Com a
ajuda de Antonio, Jeremy pde liquidar todas as objees a sua sucesso como Alfa.
Depois ningum o desafiou. O nico licntropo que poderia disputar a posio de
Jeremy era Clay e Clay cortaria o brao direito antes de desafiar ao homem que o
resgatou e criou como a um filho.

Quando Jeremy tinha vinte e um anos, seu pai voltou com uma estranha histria de
uma de suas viagem. Estava passando pela Luisiana quando sentiu o aroma de um
licntropo. Rastreou-o e descobriu um menino lobo, pr-adolescente, que vivia como um
animal nos pntanos. Para Malcolm Danvers, no foi mais que uma histria intrigante no
jantar, j que ningum tinha ouvido falar antes de um menino lobo. Embora os
licntropos hereditrios no tivessem sua primeira Mudana at se tornarem adultos,
geralmente entre os dezoito e os vinte e um anos, um humano mordido por um
licntropo virava licntropo imediatamente qualquer que fosse sua idade. A pessoa mais
jovem convertida em licntropo at ento tinha tido quinze anos. Supunha-se que se um
menino mais jovem fosse mordido, morreria, se no pela mordida, sem dvida pela
comoo. Embora sobrevivesse milagrosamente ao ataque, entre os licntropos era um
fato aceito que ningum de menos de quinze anos tinha fora para sobreviver a primeira
Mudana. O menino de Louisiana parecia no ter mais que sete ou oito anos, mas
Malcolm o viu em ambas as formas, de modo que era claramente um licntropo
mordido. A Matilha considerou que sua sobrevivncia era s questo de sorte, uma
casualidade, que no tinha nada a ver com a sua fora ou vontade. O menino lobo sem
dvida no viveria muito mais. A seguinte vez que Malcolm visitasse a Louisiana,
certamente se inteiraria de que o menino tinha morrido fazia tempo. Inclusive fez
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
37
apostas com seus irmos da Matilha.
No dia seguinte, Jeremy pegou um vo no Baton Rouge, onde encontrou o menino,
que no tinha idia do que lhe tinha acontecido ou desde quando era lobo. Vivia nos
pntanos e cortios, caando ratos, ces e crianas. Com to pouca idade suas Mudanas
eram incontrolveis e passava de uma forma a outra continuamente, o que quase o
deixou louco. O menino parecia um animal at em sua forma humana, nu com mechas
de cabelos mortas e unhas como garras.
Jeremy levou o menino para sua casa e tentou civiliz-lo. Resultou que a tarefa era to
impossvel como civilizar a um animal selvagem. O mais que se pode fazer foi dom-lo.
Clay tinha vivido tanto tempo como licntropo que no recordava ter sido humano.
Tornou-se lobo, mais lobo do que seria qualquer um licntropo normal, dominado pelos
instintos mais elementares, a necessidade de caar para conseguir comida, de defender
seu territrio e proteger sua famlia. Se Jeremy duvidasse disso, o primeiro encontro de
Clay com Nicholas terminou com suas dvidas.
Quando era criana, Clay no queria ter nada a ver com os meninos humanos, de
modo que Jeremy arrumou um encontro com um dos filhos da Matilha, pensando que
Clay possivelmente ia se sentir mais disposto a aceitar um companheiro de brincadeiras
que, no sendo ainda um licntropo, ao menos tivesse esse sangue nas veias. Como disse,
separavam-se os filhos da Matilha de suas mes e os criavam seus pais. Mais ainda,
criava-os toda a Matilha. Os meninos eram mimados. Talvez fosse para compens-los
pela vida difcil que tinham por diante, mas mais provavelmente fosse porque se
buscava criar os vnculos necessrios para manter unida Matilha. Os meninos muitos
vezes passavam as frias de vero indo de uma casa a outra, passando todo o tempo
possvel com os tios" e primos" que seriam seus irmos de Matilha. Dado que a
Matilha nunca era numerosa, pelo geral tampouco havia mais de dois moos da mesma
idade. Quando Clay veio viver com Jeremy s havia dois filhos da Matilha menores de
dez anos: Nick, que tinha oito, e Daniel Santos, que estava para completar os sete,
precisamente a idade que Jeremy atribuiu oficialmente a Clay. Nick seria o primeiro de
seus companheiros de brincadeiras. Possivelmente por que era filho de seu melhor
amigo. Ou possivelmente Jeremy j tinha visto algo em Daniel que o fez pensar que no
seria bom companheiro de brincadeiras. Qual quer que fosse o motivo, a escolha de
Jeremy teve Conseqncias ao longo de toda a vida dos trs meninos.
Mas essa outra histria.
Antonio trouxe Nick para Stonehaven e o apresentou a Clay, esperando que os dois
meninos fossem brincar de policia e ladro ou algo assim Conforme narra Antonio, Clay
parou um momento avaliou o moo mais velho e mais alto, logo saltou, aprisionando
Nick contra o cho, apertando sua garganta com o brao, e Nick fez xixi nas calas.
Aborrecido pela pouca coragem de seu adversrio, Clay decidiu deix-lo viver e logo
descobriu que podia usar Nick como saco de pancadas; menino de recados e seguidor
devoto. O que no quer dizer que nunca brincaram de policial e ladro, mas quando o
faziam, fosse qual fosse o papel de Nick, ele sempre terminava amordaado, amarrado a
uma rvore e s vezes abandonado.

Eventualmente Clay aprendeu a controlar melhor seu instinto, mas inclusive ento
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
38
era uma batalha contra sua prpria natureza. O instinto dominava Clay. Aprendeu
truques que podia empregar se lhe davam uma notcia antecipada das coisas, como por
exemplo, que ouviram caadores nas terras da propriedade de Jeremy a certa distncia.
Mas se no suavizavam tal alerta, dominava-o a ira e explodia, o que s vezes punha em
perigo Matilha. Por mais inteligente que fosse no podia controlar seu instinto. s
vezes eu pensava que isso fazia mais dura coisa, j que tinha inteligncia para dar-se
conta de que o qu estava fazendo era errado, mas sem poder evit-lo. Outras vezes
imaginava que se realmente fosse era to inteligente, teria que ser capaz de controlar-se.
Possivelmente no se empenhava o suficiente. Essa ltima explicao era a que mais eu
gostava.

Quando Jeremy e Antnio voltaram de seu bate-papo, fomos para o escritrio, onde
Jeremy explicou a situao. Havia um homem lobo em Bear Valley. A histria do co
selvagem era uma explicao plausvel para os vizinhos, que procuravam
desesperadamente uma resposta. No fim das contas, encontraram-se rastros caninos em
volta do cadver. A forma do crime tambm era canina, com a garganta destroada e o
corpo em parte devorado. obvio que ningum podia explicar porque a jovem andava
pelo bosque de noite, com saia e saltos altos. Parecia que um co a matou, e os vizinhos
decidiram que foi assim. Ns sabamos que no.
O assassino era um licntropo. Todos os indcios estavam ali. O surpreendente era que
ainda estivesse em Bear Valley, que tivesse chegado ali Como um dos piolhentos
conseguiu aproximar-se tanto de Stonehaven? Como matou uma mulher local antes que
Jeremy e Clay soubessem que estava ali? A resposta era simples: complacncia. Passados
vinte anos da ltima vez que um licntropo chegou mais ao norte da cidade de Nova
Iorque, Clay tinha relaxado sua vigilncia. Jeremy monitorou a coisa nos papis, mas
prestou mais ateno aos eventos em outras partes do territrio da Matilha. Se fosse para
ter problemas, seria possivelmente em Toronto ou Albany, onde Logan tinha um
apartamento, na regio das montanhas Catskills, onde estava casa dos Sorrentino, ou
em Vermont, onde vivia Peter. Mas no perto de Stonehaven. Nunca perto de
Stonehaven.
Quando a mulher desapareceu e logo foi encontrada morta, Jeremy se inteirou, mas
no prestou ateno. O desaparecimento de humanos no era algo incomum. No havia
nenhum indcio de que o desaparecimento tivesse algo a ver com um licntropo. Mas h
trs dias tinham encontrado o corpo da mulher. Ento j era muito tarde. J tinha
perdido a oportunidade de despachar o intruso de forma rpida e segura. As pessoas do
povoado j tinham levantado as armas pelo desaparecimento. Quando se encontrou o
corpo, apareceram as armas. Em poucas horas os caadores j estavam percorrendo o
bosque, procurando predadores, humanos ou caninos. Por mais que fosse respeitado na
comunidade, Jeremy no deixava de ser um forasteiro, algum que vivia ali, mas se
mantinha a margem do resto. Durante muito tempo as pessoas de Bear Valley e seus
arredores respeitaram a privacidade dos Danvers, inspirados pelas grandes somas que
chegavam de Stonehaven a cada Natal para melhorias na escola ou uma nova biblioteca
ou o que fosse que precisasse financiar o conselho da cidade. Mas quando aparecia um
perigo, a natureza humana os levava a procurar um de fora. No demorariam muito a
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
39
olharem para Stonehaven e seus habitantes generosos, mas misteriosos, e dizerem:
Sabem, na realidade no os conhecemos, No mesmo?
-O que temos que fazer antes de tudo encontrar a este vira-lata - disse Jeremy-. Elena
a que tem o melhor olfato, assim ela...
-No ficarei - disse.
A sala ficou em silncio. Todos se viraram para mim. A expresso de Jeremy era
inescrutvel. Clay apertou os dentes, preparado para briga; Antnio e Peter pareciam
preocupados e Nick me olhava totalmente confuso. Amaldioei-me por ter permitido
que a coisa chegasse at esse ponto. Em meio de uma reunio, no era o momento para
afirmar minha independncia da Matilha. Tentei dizer isso ao Jeremy a noite anterior;
mas ele obviamente preferiu ignorar para ver se eu mudava de idia logo depois de
dormir bem uma noite. Teria que ter passado parte da manh explicando a ele em vez
de me sentar para tomar o caf da manh e deixar que todos pensassem que as coisas
tinham voltado a sua normalidade. Assim funcionava Stonehaven. Eu voltava, enredava-
me - correndo com Clay, discutindo com Jeremy, dormindo em meu quarto, me
encontrando com outros - e todo o resto era esquecido. Agora, quando Jeremy queria me
impor seus planos, voltava para o anterior.
-Acreditei que tinha voltado - disse Nick, quebrando o silncio-. Est aqui. No
entendo.
-Estou aqui porque Jeremy me deixou uma mensagem urgente para que ligasse para
ele. Tentei ligar, mas ningum atendeu, ento tive que vim ver o que estava acontecendo.
Percebi que isto soava fraco no momento em que as palavras saam de minha boca.
-Liguei - disse-. E liguei e liguei e liguei. Estava preocupada. Ento tive que vim ver o
que Jeremy queria. Tentei averiguar ontem noite, mas no me disse isso.
-Ento agora que sabe, vai embora. De novo - disse Clay, sua voz era baixa, mas dura.
Virei-me para ele.
-Disse-lhe isso ontem noite...
-Jeremy chamou voc por um motivo, Elena - disse Antnio, interpondo-se entre eu e
Clay -. Precisamos saber quem este co. Voc a que tem os arquivos. Conhece-os.
sua tarefa.
-Era minha tarefa.
Nick se endireitou. Sua confuso mesclada com alarme.
-O que isto significa?
Clay comeou a ficar quieto.
Jeremy se interps.
-Significa que Elena e eu temos que discutir algo em privado. Continuaremos esta
reunio depois.



LEGADO

Peter e Antnio saram da sala rapidamente. Nick demorou um momento mais,
tentando fazer que eu o olhasse nos olhos, Quando no o fiz vacilou e logo seguiu seu
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
40
pai. Clay ficou em seu assento.
-Clayton - Disse Jeremy.
-Fico. Tem tanto a ver comigo como contigo. Possivelmente mais se Elena acredita que
pode aparecer e ir embora de novo, quando a esperei por mais de um ano...
-O que vai fazer? -disse dando um passo para ele-. Voltar a me seqestrar e prender
em um quarto de hotel?
-Isso foi h seis anos. E s tentava convencer voc para que falasse comigo antes de ir.
-Convencer? Certo. Provavelmente continuaria ali se no tivesse convencido voc a me
deixar ir te pendurando do balco pelos tornozelos. Deveria t-lo deixado cair.
-No teria servido de nada nenm. Eu ricocheteio. No pode se desfazer de mim com
tanta facilidade.
-Eu estou me desfazendo de voc agora - disse Jeremy -. Vai. uma ordem.
Clay se conteve, suspirou, ficou de p e saiu da sala fechando a porta. Mas isso no
significava que ele se foi. No se escutaram passos que se afastavam pelo corredor. Senti
a batida no piso quando se deixou cair junto porta para espiar. Jeremy decidiu ignor-
lo.
-Necessitamos de sua ajuda - disse, Jeremy, virando-se para mim- voc investigou os
vira-latas. Essa era sua tarefa Sabe mais sobre eles que qualquer um de ns.
-Eu tinha essa tarefa quando era parte da Matilha. Disse-lhe isso...
-Necessitamos de seu olfato para encontr-lo e de seu conhecimento para identific-lo.
Logo necessitamos de sua ajuda para elimin-lo. uma situao complicada, Elena. Clay
no pode dirigi-la.
Temos que proceder com total cautela. Este vira-lata j matou em nosso territrio e se
insinuou em nosso povoado. Precisamos encontr-lo sem chamar ateno nem permitir
que o pnico o domine. Voc pode faz-lo. S voc.
-Sinto muito, Jer, mas no problema meu. J no vivo aqui. No tenho que procurar
vira-latas aqui. No minha tarefa.
- minha tarefa, sei. Isto nunca devia ter acontecido. No estava suficientemente
atento. Mas isso no muda o fato de que aconteceu e que todos ns estamos em perigo,
inclusive voc. Se esse vira-lata continuar causando problemas, corre o risco de que o
apanhem. Se o apanharem, o que lhe impedir de falar de ns polcia?
-Mas eu...
-Tudo o que quero que me ajude a solucionar este problema. Quando se esclarecer,
pode fazer o que quiser.
-E se quiser deixar a Matilha? Vale o que disse ontem noite? Que sou eu quem
decide?
Algo passou pelo rosto de Jeremy. Tirou os cabelos de seu rosto e sua expresso voltou
normalidade.
-Estava zangado ontem noite. Isso no motivo para que esteja to zangada, Elena.
Disse que deixaria voc ir e que vivesse sua vida e s a convocaria caso se tratasse de
algo urgente. Isto urgente. No chamei voc por nenhum outro motivo. No deixei que
Clay entrasse em contato contigo. No a convoquei para outras reunies. No esperava
que mantivesse os arquivos nem nenhuma das outras coisas que fazia normalmente para
ns. No daria esse tratamento a ningum mais. Dou-lhe isso porque quero que tenha
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
41
toda a liberdade necessria para tomar uma deciso racional.
-Esperas que o supere.
-Adaptar-se a isto foi mais difcil para voc do que para qualquer outro. No cresceu
sabendo que seria mulher loba. Que mordessem voc j foi bastante ruim, mas o modo
como aconteceu, as circunstncias, tornaram tudo dez vezes pior. Sua natureza lutar
contra algo que no escolheu. Quando escolher, quero que seja porque passou o tempo
suficiente l fora para saber o que o quer e no porque seja teimosa e queira afirmar seu
direito de se auto-estabelecer-se aqui e agora.
-Em outros termos, esperas meu consentimento.
-Estou pedindo uma ajuda a voc, Elena. Peo, no a exijo. Se me ajudar a resolver este
problema poder voltar para Toronto. Ningum deter voc. -Olhou para a porta,
esperando o protesto de Clay, mas houve silncio. Darei a voc tempo para pensar.
Vem me v quando estiver preparada.

Fiquei no escritrio mais de uma hora. Amaldioei-me em parte por voltar; amaldioei
Jeremy por me impor isto, amaldioei Clay por... bom, por todo o resto. Queria espernear
como uma menina de dois anos e gritar que no era justo. Mas era. Jeremy agia
razoavelmente. E isso era o pior.
Tinha uma dvida com a Matilha que no havia terminado de pagar. Estava em dvida
com Antnio, Peter, Nick e Logan por sua amizade e amparo, e embora me tratassem
como a uma irmzinha mais nova; a quem deviam mimar, embalar e fazer piadas,
aceitaram-me e me cuidaram quando eu no podia faz-lo por mim mesma. Mas a quem
mais devia era a Jeremy. Por mais que me queixasse de suas exigncias e sua autoridade
tirnica, eu nunca me esquecia do quanto lhe devia.
Quando me morderam, Jeremy me acolheu, alimentou e me ensinou a controlar
minhas Mudanas e impulsos e a me adaptar ao mundo exterior. A Matilha
freqentemente brincava dizendo que criar Clay foi o maior desafiou para Jeremy, as
sete tarefas de Hrcules em apenas uma. Se soubessem o que Jeremy passou comigo,
possivelmente mudariam de idia. Viveu um inferno comigo durante um ano inteiro.
Quando me trazia comida, a jogava. Quando falava comigo, amaldioava-o e o cuspia.
Quando tentava me tocar, atacava-o. Quando finalmente escapei, pus em risco toda a
Matilha. Qualquer outro licntropo se daria por vencido, teria me caado e matado.
Jeremy me rastreou, trouxe-me de volta a Stonehaven e comeou tudo de novo.
Quando me recuperei, encorajou-me a terminar meus estudos universitrios, pagando
os custos dos estudos, um apartamento e todo o resto. Quando terminei os estudos e
comecei a trabalhar como jornalista por conta prpria, apoiou-me. Quando anunciei que
queria experimentar viver sozinha, obviamente esteve em desacordo, mas me deixou ir e
me protegeu de longe. Agora o amaldioava por interferir em minha nova vida. A
verdade que sem a ajuda de Jeremy, no teria uma nova vida. Se tivesse sobrevivido,
seria como os vira-latas, apenas capaz de controlar minhas Mudanas, totalmente
incapaz de controlar meus impulsos, matando humanos, indo de um lugar a outro,
escapando das suspeitas, sem emprego, sem apartamento, sem amigos, nem amante,
nem futuro.
Agora me pedia algo. Um favor, que nem sequer pedia de tal modo. Um pedido de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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ajuda.
No podia me negar.

Disse ao Jeremy que ficaria o tempo suficiente para ajud-los a encontrar e matar a
esse co, com a condio de que, quando o assunto terminasse partiria sem que ele ou
Clay tentasse me impedir Jeremy aceitou. Depois foi dizer aos outros, e levou Clay para
o fundo da sala para lhe dar uma explicao especial e mais extensa. Quando Clay
voltou, estava contente, brincava com Peter, lutava com Nick, falou com o Antnio e me
ofereceu o sof quando voltamos para o escritrio para continuar a reunio. Dado que
Jeremy no ocultaria o acordo a Clay, obviamente o tinha reinterpretado com sua prpria
lgica, uma lgica to indecifrvel como seu prprio cdigo de conduta e tica. Logo o
faria ver a realidade.
Como era de se esperar, o plano era caar e matar ao co. Em vistas da delicadeza do
assunto, terei que faz-lo em uma ou duas etapas. Esta noite os cinco, todos menos
Jeremy, iramos ao povoado para rastrear ao co. Dividir-nos-amos em dois grupos,
Antnio e Peter por um lado e o resto no outro grupo. Se encontrssemos sua guarida,
Antnio e eu conduziramos atuao do grupo e decidiramos se podamos matar o co
sem perigo. Ns decidiramos. Se no fosse possvel tnhamos que reunir as informaes
necessrias, voltaramos para casa e sua morte seria adiada para outra noite. Depois do
fiasco com Jos Carter, surpreendeu-me que Jeremy ainda estivesse disposto a me dar a
responsabilidade de tomar uma deciso, mas ningum mais a questionou, assim fiquei
calada.

Antes de almoar fui a meu quarto e chamei Philip, l em baixo Peter e Antnio
debatiam aos gritos alguma sutileza das altas finanas. Abriam-se e fechavam gavetas na
cozinha e me chegou o aroma de cordeiro assado quando Clay e Nick comearam a fazer
o jantar. Embora no pudesse escutar Jeremy, sabia que ele continuava onde o tnhamos
deixado, no escritrio, estudando mapas com o fim de estar em condies de determinar
as melhores reas do povoado para o rastreamento da noite.
J em meu quarto, abri o dossel da cama, instalei-me com o celular e deixei que se
fechasse a cortina, para me isolar. Logo disquei o nmero. Philip atendeu segunda
chamada. Quando me chegou sua voz pela linha, pareceu-me que se detinha todo o
rudo l de baixo e me senti transportada a outro mundo, onde planejar a caa de um
licntropo s era tema para um filme ruim.
-Sou eu- disse-lhe- Est ocupado?
- Estou indo almoar com um cliente. Um cliente em potencial. Recebi sua mensagem,
desci para o ginsio por trinta minutos e por isso no estava quando ligou. D-me o
nmero de seu telefone ai? Espera vou procurar um papel.
-Estou com meu celular.
-Certo, que idiota. Assim se quiser falar com voc ligo para o celular. No Verdade?
-No posso lev-lo ao hospital. No deixam us-lo ali. Mas logo verei se me deixar
uma mensagem.
-O hospital? Caralho. Sinto muito. Estamos falando faz cinco minutos e nem sequer
perguntei o que aconteceu com seu primo. Foi um acidente?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
43
- Na realidade foi sua esposa que sofreu um acidente. Antes eu vinha para c no vero
e nos juntvamos vrios, Jeremy, seus irmos, Clia, sua esposa. Philip sabia que meus
pais tinham morrido, mas no lhe contei nada dos detalhes acidentados, nem que idade
eu tinha quando aconteceu, de modo que podia improvisar livremente Sabe como ,
Clia sofreu um acidente com o automvel, esteve beira da morte, foi quando Jeremy
me chamou. O pior j passou.
- Graas a Deus, que horrvel. E como seu primo est suportando?
-Est bem. O problema so as crianas. Tm trs. Jeremy no sabe como manej-los
preocupado como est com a Clia e a confuso dos meninos. Ofereci-me para ficar uns
dias, ao menos at que voltem os parentes da Clia da Europa. Neste momento esto
bastante sacudidos.
-Imagino. Espera Senti rudo na linha bem, j sa da rota. Sinto muito. Assim voc
fica ajudando-o?
- At na segunda-feira. Est bem?
-Com certeza, claro. Se no tivesse tanto trabalho esta semana iria dar uma mo a voc.
Quer algo?
-Estou com o carto de crdito.
Riu.
todo o se necessita hoje em dia. Se ultrapassar seu limite me avise e transfiro
dinheiro de minha conta. Droga, passei da sada.
-Bom, desliguemos.
- Sinto muito. Ligue para mim esta noite se puder, embora suponha que estar
bastante ocupada. Trs crianas. Merda, de que idades?
-Todos tm menos de cinco anos..
-Ai. Sim vais estar ocupada. Vou sentir saudades de voc.
- Sero somente alguns dias.
-Bom, falaremos logo. Amo voc.
-Eu tambm. Tchau.
Ao cortar a comunicao fechei os olhos e soltei o ar contido nos pulmes. V? No foi
to terrvel. Philip continuava sendo Philip. No tinha mudado nada. Philip e minha
nova vida me esperavam ali. Em poucos dias eu voltaria.

Logo depois de almoar fui ao escritrio para ver meus arquivos, esperando
encontrar algo que pudesse me ajudar a descobrir qual era vira-lata que estava causando
problemas em Bear Valley. Uma de minhas tarefas na Matilha era fazer o seguimento dos
licntropos que no pertenciam a ela. Criei um arquivo com fotos e sinopse de condutas.
Podia recitar de cor duas dzias de nomes e ltimo lugar onde se encontravam e dividir
a lista entre os bons, os maus e os feios: os que podiam conter o impulso de matar, os que
no e os que nem sequer tentavam. A julgar pela conduta deste vira-lata, pertencia
terceira categoria. O que reduzia a lista de vinte e sete a uns vinte.
Voltei minha ateno aos armrios sob a biblioteca. Abri o segundo, corri as taas de
brandy e medi o painel posterior em busca de uma trava. Quando a encontrei, a girei e o
painel se abriu. Dentro do compartimento secreto se guardavam os nicos elementos
condenatrios de Stonehaven, os nicos que podiam nos vincular com o que somos. Um
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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deles era minha pasta com o arquivo. Mas no a encontrei ali - Suspirei. Jeremy era o
nico que poderia hav-la tirado e ele foi caminhar fazia uma hora. Podia ir busc-lo,
mas sabia que no estava simplesmente fazendo exerccios. Estava arquitetando os
planos para nossa caada ao vira-lata de noite. E no lhe agradava que o interrompesse
em tais circunstncias.
Quando estava fechando o compartimento, vi o outro livro que se guardava ali e, por
impulso, tirei-o e o abri, embora o tivesse lido tantas vezes j que podia recit-lo de cor.
Quando Jeremy me falou pela primeira vez do Legado, esperava encontrar um livro
mido, fedorento e meio podre. Em vez disso, o livro que tinha vrios sculos de idade
parecia melhor que muitos de meus livros de texto da universidade. Certo que as
pginas estavam amareladas e eram frgeis, Olhe cada Alfa da Matilha o conservou em
um compartimento especial, livre de p, umidade, luz e qualquer outro dos elementos
que pudessem estragar o livro.
O Legado contava a histria dos licntropos, em particular da Matilha. Mas no era
um relato com datas e eventos. Em vez disso, cada Alfa tinha agregado o que
considerava importante, por isso consistia em uma mixrdia de histria, genealogia e
tradies.
Uma seo estava dedicada inteiramente experimentao cientfica com a natureza e
os limites da condio do licntropo. Um Alfa da poca do renascimento em particular se
viu fascinado pelas lendas da imortalidade dos licntropos. Tinha detalhado todas e cada
uma, das histrias de licntropos que se tornaram imortais bebendo sangue de infantes
at as histrias de licntropos que se convertiam em vampiros, depois da morte. Ento
realizou experimentos bem controlados com licntropos vira-latas que capturava,
trabalhava e matava, e logo esperava sua ressurreio. Nenhum de seus experimentos
teve xito, mas teve grande xito em reduzir a populao de vira-latas da Europa.
Um sculo mais tarde, um Alfa da Matilha se obcecou por ter relaes sexuais: o nico
fato surpreendente disso que levou vrias centenas de anos para obt-lo. Comeou com
a hiptese de que as relaes sexuais entre licntropos e humanos eram inerentemente
insatisfatrias Porque envolviam duas espcies diferentes. Ento mordeu a algumas
mulheres. Como no sobreviveram, concluiu que os rumores da existncia de mulheres
lobo ao longo dos sculos eram falsos e que tal coisa era biologicamente impossvel.
Avanando, tentou variaes das relaes sexuais: lobo com lobo, humano com lobo,
lobo com humano. Nada disso se aproximava do sexo entre humanos, assim voltou para
as mulheres e comeou a experimentar com variaes de posies, atos, lugares, etc.
Finalmente encontrou o mximo em satisfao sexual: esperar at que soassem as
primeiras notas do clmax e ento destroar com mordidas a garganta de seu casal.
Descreveu sua frmula com vvidos detalhes, com toda a emoo aflorando no texto.
Afortunadamente sua prtica nunca se fez popular na Matilha, provavelmente porque o
Alfa foi queimado alguns meses mais tarde, logo depois de ter liquidado a
disponibilidade de mulheres jovens em sua aldeia.
Pelo lado menos factual, o Legado continha incontveis histrias de licntropos ao
longo dos sculos. A maioria eram histrias do tipo minha me me contou isso quando
era criana", muitas originadas antes que se escrevesse a primeira edio do Legado.
Havia histrias de licntropos que viveram suas vidas ao reverso, mantendo-se como
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lobos a maior parte do tempo e mudando para humanos s quando o impunha a
necessidade fsica. Havia histrias de cavalheiros e soldados e bandidos e assaltantes que
supostamente foram licntropos. A maioria destes nomes desaparecidos da histria, mas
as pessoas ainda eram conhecidas, inclusive por quem nunca tinha aberto um livro de
histria. A histria humana conta a lenda de que a rvore genealgica de Gengis Khan
comeava com um lobo e uma serva. Segundo o Legado, havia nisso mais de verdade
que de alegoria: o lobo era um licntropo e a serva uma analogia de uma me humana.
Segundo essa linha de raciocnio, Gengis Khan mesmo foi um licntropo, o que explicava
sua sede de sangue e sua destreza quase sobrenatural na guerra. Provavelmente essa no
era mais certa que as inumerveis genealogias humanas que incluem Napoleo e
Clepatra na rvore genealgica. Mas a histria era divertida.
Outra boa histria se encontra tambm na mitologia humana sobre os licntropos.
Qualquer aficionado nos contos de licntropos conhece a histria do nobre recm casado
cuja aldeia sofria ataques de um licntropo. Uma noite quando rastreava besta, o nobre
escutou um rudo na mata e ento viu um lobo monstruoso. Salta da montaria e o
persegue pelo bosque a p. A besta escapa. Em um ponto se aproxima o suficiente para
cortar uma das patas dianteiras do lobo. A criatura escapa, mas quando o nobre vai
procurar a pata esta se converteu em uma mo de mulher. Exausto, volta para casa e vai
contar a sua esposa o acontecido. Encontra sua esposa escondida nos quartos traseiros,
enfaixando o coto ensangentado de seu brao sem mo. Ao compreender o que
acontecia, a mata. A verso humana da histria culmina ali, mas o Legado vai mais
frente, dando ao final um giro em favor dos licntropos. Na histria do Legado, o nobre
mata a sua esposa lhe abrindo o estmago. Ao faz-lo, saem vrios filhotinhos de lobo,
seus prprios filhos. vista disso o nobre enlouquece e se mata com sua prpria espada.
Como sou uma mulher loba, eu no gosto muito da idia de ter a barriga cheia de
cachorrinhos. Prefiro interpretar os cachorrinhos como um smbolo alegrico da culpa do
nobre. Quando percebe que matou sua esposa sem lhe dar oportunidade de defesa, fica
louco e se mata. Um final muito mais digno.
Alm de escrever estas histrias e divagaes, cada Alfa tinha que fazer a crnica da
genealogia da Matilha durante seu reinado. Isso inclua no s a rvore genealgica, mas
tambm breves descries da histria de cada pessoa e de suas vidas. A maioria das
rvores genealgicas eram longas e complicadas. Mas na atual Matilha havia trs
excees, nomes sem antecessores. Clay e eu fomos dois deles. Logan era o terceiro.
Diferente de Clay e de mim, Logan era um licntropo por herana. Ningum sabia quem
era o pai de Logan. Tinham-no deixado para adoo quando era um beb. Quando o
adotaram de menino, com ele veio com um envelope que devia ser aberto em seu dcimo
sexto aniversrio. No interior do envelope havia um pedao de papel com dois
sobrenomes e dois endereos: os Danvers no Stonehaven e os Sorrentino em sua manso
nos subrbios de Nova Iorque. Era improvvel que o pai de Logan fosse da Matilha, j
que nenhum membro da Matilha daria seu filho em adoo. Mas seu pai sabia que a
Matilha no abandonaria um licntropo de dezesseis anos, no importando quem fosse
seus pais, por isso dirigiu seu filho a eles, assegurando-se de que Logan descobrisse o
que era, antes de sua primeira Mudana e, ao faz-lo, tivesse a oportunidade de iniciar
sua nova vida com a necessria educao e amparo. Possivelmente a histria de Logan
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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fosse uma prova de que nem todos os vira-latas eram maus pais ou possivelmente que as
anomalias so possveis em qualquer forma de vida.
A maioria das outras rvores genealgicas da famlia tinha muitos ramos. Ao igual aos
Danvers, a famlia Sorrentino tinha suas origens no comeo mesmo do Legado. O pai de
Antonio, Dominic, foi Alfa at sua morte. Teve trs filhos, Gregory, que morreu,
Benedict, que deixou a Matilha antes que eu chegasse, e Antonio, o mais novo. O nico
filho de Antonio era Nick. No Legado, junto s iniciais de Nick aparecia anotado LKB
entre parntese. Nick no sabia o que significava. At onde eu sabia, nunca perguntou.
Se que chegou a ler o Legado, o que duvido, teria chegado concluso de que se
ningum lhe explicou seu significado no devia ter importncia. Assim era Nick,
aceitava tudo. As letras eram importantes, mas no fazia sentido dizer a Nick seu
significado, provocando interrogaes sem resposta e emoes que no encontrariam
satisfao. LKD eram as iniciais da me de Nick. Era o nico lugar do Legado no qual
figurava uma me. Jeremy foi quem as ps ali. Nem Jeremy nem Antnio me explicaram
isso. Foi Peter quem me contou a histria faz anos.
Quando Antonio tinha dezesseis anos e era aluno de uma escola particular muito cara
nos subrbios da cidade de Nova Iorque, apaixonou-se por uma garota do lugar. Sabia
que no tinha que contar isso a seu pai, mas sim contou a seu melhor amigo, Jeremy, que
ento tinha quatorze anos. E os dois ocultaram a relao Matilha. A coisa funcionou
durante um ano. Ento a menina ficou grvida. Por conselho de Jeremy, Antnio contou
a seu pai. Aparentemente Jeremy acreditou que Dominic entenderia que seu filho estava
apaixonado e lhe permitiria quebrar a lei da Matilha. Suponho que todos fomos jovens
um dia. Jovens, romnticos e muito ingnuos. Inclusive Jeremy. As coisas no
funcionaram como Jeremy esperava. Grande surpresa. Dominic tirou Antnio da escola e
o confinou em casa enquanto a Matilha aguardava o nascimento do beb.
Antonio fugiu com a ajuda de Jeremy, voltou para a garota e se declarou independente
da Matilha. A partir dali a coisa ficou realmente feia. Peter no entrou em detalhes. To
somente narrou que Antnio e sua garota se esconderam enquanto Jeremy ficou como
intermedirio entre o pai e seu filho, desesperado por reconciliar-se. Em meio a isso tudo
nasceu Nick.
Trs meses mais tarde Antnio teve sua primeira Mudana. Nos seis meses seguintes
compreendeu que seu pai tinha razo. Por mais que amasse a me de Nick, a coisa no ia
funcionar. No s arruinaria a vida dela, mas tambm arruinaria a de seu filho,
condenando-o a viver como um vira-lata. Uma noite pegou Nick, deixou um envelope
com dinheiro na mesa e se foi. Entregou Nick a Jeremy e lhe disse que levasse o beb
para Dominic. Ento desapareceu. Antonio ficou ausente por trs meses e nem Jeremy
sabia para aonde ele foi. Reapareceu abruptamente. Encarregou-se da criao de Nick e
nunca voltou a mencionar a garota. Todos acreditaram que a terminava a histria. Mas
anos mais tarde Peter foi visitar Antonio e o seguiu at um subrbio, onde o encontrou
em seu automvel em frente a uma praa, observando uma jovem mulher que brincava
com um menino pequeno. Perguntei-me quantas vezes teria feito isso, perguntei-me se
continuava fazendo-o, isso de ver como andava a me de Nick, possivelmente vendo-a
brincar com os netos. Ao v Antnio - barulhento, seguro de si mesmo - no posso
imagin-lo mantendo aceso o fogo de um amor perdido, mas desde que o conheo nunca
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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o ouvi mencionar a nenhuma mulher. H mulheres em sua vida, mas nunca duram o
suficiente para que hajam motivos para falar delas.
Naquele tempo naquele tempo me perguntei por que Peter me contou isso, um
captulo da histria da Matilha que nunca apareceria no Legado. Mais tarde compreendi
que pensou que ao me fazer conhecer um segredo inofensivo da Matilha, me faria sentir
mais integrada e me ajudaria a entender melhor a meus irmos de Matilha. Peter fazia
isso seguidamente. No que outros me exclussem ou me fizessem sentir rechaada.
Nada nesse estilo. Do nico que cheguei a duvidar a respeito era de Jeremy e
possivelmente isso fosse mais problema meu que dele. Conheci Logan e Nick, atravs de
Clay, antes de me converter em licntropo. Logo depois que me mordeu, os dois
estiveram a meu lado, e quando estive disposta a aceitar sua ajuda fizeram tudo o que
estava em seu alcance para me levantar o nimo. Tudo o que se pode levantar o nimo
de algum que acaba de inteirar-se de que se acabou sem remdio a vida que levou at
ento. Quando conheci Antnio em minha primeira reunio na Matilha, elogiou-me,
brincou e conversou comigo com tanta facilidade como se me conhecesse h anos. Mas
Peter foi diferente. No lhe bastava aceitao. Sempre fez um esforo a mais. Foi o
primeiro que me contou seus antecedentes, como um tio recm descoberto que me
informasse coisas da famlia.
Peter foi criado na Matilha, mas aos vinte e dois decidiu deix-la. No foi por uma
briga ou por rebelio. Simplesmente decidiu experimentar a vida fora da Matilha, mas
um exerccio no conhecimento de outros estilos de vida que uma rebelio contra a
Matilha. Como dizia Peter, Dominic no o considerava nem perigoso fora da Matilha
nem necessrio dentro dela, de modo que deixou que se fosse. Tendo obtido seu ttulo
universitrio em tecnologia udio-visual, Peter obteve o trabalho mais apaixonante que
pde imaginar: tcnico de som de bandas de rock. Comeou com bandas que tocavam
em bares e, em cinco anos, chegou a trabalhar em grandes concertos. A foi que se tornou
perigoso seu desejo de novas experincias, porque assimilou todo o estilo de vida das
bandas de rock: drogas, lcool e festas interminveis. Ento aconteceu algo, algo ruim.
Peter no me explicou isso, mas disse que foi algo suficientemente ruim para justificar
que a Matilha o matasse se chegasse a descobri-lo. Poderia ter corrido para ocultar-se
com a esperana de que a coisa passasse. Mas no o fez. Em vez disso ficou a analisar sua
vida e o que tinha feito e percebeu que a coisa no ficaria melhor se fugisse.
Simplesmente voltaria a fazer o mesmo. Decidiu pedir clemncia Matilha. Se Dominic
ordenasse sua execuo, ao menos seu primeiro erro seria o ltimo. Entretanto, esperava
que Dominic o absolvesse, permitindo retornar Matilha, onde poderiam ajud-lo a
recuperar o controle de sua vida. Para ter maiores probabilidades de xito, apelou ao
irmo da Matilha em quem mais confiava. Ligou para Jeremy. Em vez de levar o assunto
a Dominic, Jeremy foi para Los Angeles levando consigo Clay, que ento j tinha dez
anos. Enquanto Peter cuidava de Clay, Jeremy passou uma semana apagando todos os
rastros do erro cometido por Peter. Logo levou Peter de volta Nova Iorque e organizou
sua volta Matilha sem dizer uma palavra de seu mau passo na Califrnia. Hoje
ningum poderia adivinhar que Peter cometeu um engano de tal magnitude, nem sequer
que deixou a Matilha. Queria com tanta devoo ao Jeremy como Clay e Antnio,
embora a sua maneira, silenciosa. Jamais discutia nem discordava. A nica coisa que
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restava do passado de Peter era seu trabalho. Seguia trabalhando como tcnico em som e
era um dos melhores. Habitualmente saia em excurso, mas Jeremy nunca se preocupava
com ele nem duvidava de que atuasse com absoluta circunspeo no mundo exterior.
Jeremy inclusive permitiu que eu fosse com Peter por algumas semanas quando
comeava a me orientar como licntropo. Peter me convidou para acompanh-lo em uma
excurso de U2 pelo Canad. Foi a melhor experincia de minha vida, fez-me esquecer os
problemas que enfrentava o que era precisamente a inteno de Peter.
Enquanto pensava em tudo isso, um par de mos me puxou pelas axilas e me
levantaram da cadeira.
-Acorda! -disse Antnio, me fazendo ccegas e logo me deixou cair novamente na
poltrona. Inclinou-se sobre meu ombro e pegou o Legado.
-Bem a tempo, Peter. Cinco minutos mais de leitura e estaria em coma.
Peter se moveu diante de mim, pegou o livro das mos de Antnio e fez uma careta.
-Somos uma companhia to ruim que prefere se esconder aqui lendo essa coisa?
Antnio sorriu.
-Acredito que no a ns a quem procura evitar, a no ser a certo tornado loiro.
Jeremy o enviou s compras com o Nick, assim pode sair de seu esconderijo.
-Viemos perguntar se quer ir caminhar - disse Peter-. Estirar as pernas, nos pr em dia.
-Na realidade...
Antnio voltou a me pegar pelas axilas e esta vez me obrigou a ficar de p.
-Na realidade ia nos buscar para dizer o quanto sentia saudades e que morria por ficar
em dia.
-Eu...
Peter me puxou pelas mos me arrastando para a porta. Cravei os calcanhares.
-Vou - disse-. S queria dizer que devia ler os arquivos, mas Jeremy deve ter tirado eles
daqui. Pensei que poderiam servir para descobrir quem o responsvel por tudo isto.
Vocs pensaram em algo?
-Em muitas coisas. -disse Antonio-. Agora vem caminhar e lhe diremos.

Quando deixamos o jardim e entramos no bosque, Antnio disse:
-Eu aposto que Daniel.
-Daniel? -Peter franziu o sobrecenho-. De onde tirou isso?
Antnio elevou a mo e comeou a enumerar as razes.
-Um, era da Matilha e sabe o quanto perigoso matar assim em nosso territrio, que
no podemos e no iremos sair do lugar. Dois, odeia Clay. Trs, odeia Jeremy. Quatro,
odeia a todos. Com exceo de nossa querida Elena que, convenientemente, estava fora
de Stonehaven e no se veria afetada, coisa que estou seguro de que Daniel sabia. Cinco,
realmente odeia Clay. Seis -ah, um momento, a outra mo- seis, um filho da puta
canibal assassino. Sete, j disse que escolheu faz-lo quando Elena no estava por aqui?
Oito, Elena poderia estar procurando uma nova parelha e ele poderia chamar sua
ateno. Nove, seriamente, seriamente, SERIAMENTE, odeia Clay. Dez, jurou vingar-se
de toda a Matilha, em particular daqueles membros que vivem atualmente em
Stonehaven. Acabaram-me os dedos, amiguinhos. Quantos motivos mais necessitam?
-Que tal algum que tenha a ver com a estupidez suicida? No se ofenda, Tnio mais
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acredito que imagina que Daniel est metido nisto porque o que desejas. fcil jogar a
culpa nele e querer derrub-lo. E no que eu no gostaria de ser quem o derrubasse.
Mas se abrir s apostas, pequenas, por favor; no tenho tanto capital como voc, eu
apostaria em Zachary Cain. Estpido e bruto. Com certeza despertou uma manh e
pensou: "Ei, por que no mato uma garota no territrio da Matilha para me divertir?
Provavelmente se perguntou por que no tinha pensado antes nisso. Porque estpido,
estpido.
-Pode ser algum mais insignificante - disse-. Um dos que odeia ver-se longe do centro
da questo. Algum vira-lata andou fazendo confuses ultimamente?
-Coisas de garotas - disse Antnio-. Nenhum das ligas menores andou fazendo
grandes jogadas. Dos quatro grandes, Daniel, Cain e Jimmy Koenig estiveram tranqilos.
Karl Marsten matou a um vira-lata em Miami o inverno passado, mas no acredito que
ele tenha provocado isso. No seu modus operandi, a menos que alm de matar
humanos agora goste de com-los. No provvel.
-A quem matou? --perguntei.
-A Ethan Ritter - disse Peter-. Disputa por uma rea. Matana limpa. Desapareceu por
completo. Coisa tpica de Marsten. S soubemos por que passou pela Florida na
primavera com uma banda. Marsten me encontrou, convidou-me para jantar, disse-me
que tinha liquidado Ritter assim podia tirar ele de seus arquivos. Tivemos um lindo bate-
papo, o jantar custou uma soma astronmica e ele pagou em dinheiro. Perguntou se
tnhamos noticias suas e enviou saudaes.
-Surpreende-me que no envie cartes de Natal - disse Antnio-. Imagino-os. De bom
gosto, os melhores que se possa roubar. Pequenas notas de saudao com caligrafia
perfeita. "Feliz festas. Espero que todos estejam bem. Fiz migalhas ao Ethan Ritter em
Miami e pulverizei seus restos no Atlntico. Meus melhores augrios para o ano novo.
Karl".
Peter riu.
-Esse tipo nunca decidiu de que lado da cerca estar.
-Sim decidiu - disse-. E esse o motivo pelo qual nos convida para jantar e nos pe em
dia com suas matanas de vira-latas. Espera que esqueamos de que lado da cerca est.
-Coisa pouco provvel - disse Antnio-. Um vira-lata um vira-lata e Karl Marsten
claramente um vira-lata. E perigoso. Assenti.
-Mas como voc disse no provvel que ande comendo humanos em Bear Valley eu
tenho tanta antipatia por ele como voc, mas realmente gosto da idia de que seja Daniel.
Sabemos onde est?
Houve um instante de silncio. E depois mais. Muito mais silncio.
-Ningum o vigiou - disse Peter por fim.
-No grave - disse Antnio com um sorriso, e me elevou e lanou pelos ares.
Esqueamos a Matilha. Diga-nos o que anda fazendo. Sentir saudades.
Mas o assunto era grave. Eu sabia por que brincavam. Porque era minha culpa. O
acompanhamento dos vira-latas era minha tarefa. Se tivesse dito a Jeremy no ano
passado que ia deixar a Matilha, teria procurado outro que o fizesse. Se tivesse ligado em
qualquer momento para dizer que no voltaria, tambm teria procurado outro. Mas eu
fui deixando a porta aberta para voltar. Como sempre. J tinha fugido antes de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Stonehaven, para fugir de Clay, reflexo de uma briga, em busca de um descanso
reparador. Passavam dias e at semanas, mas voltava. Esta vez, as semanas se tornaram
meses, logo um ano. Pensei que teriam se dado conta, que entenderiam que no ia voltar,
mais possivelmente no, possivelmente continuavam esperando, como Clay, que me
esperou todo o dia no porto da entrada, acreditando que voltaria porque sempre o fazia
e porque no disse que no o ia fazer. Perguntei-me quanto teriam esperado.

Logo depois do jantar, quando me dirigia a meu quarto para pr uma roupa mais
quente, de repente Nicholas saiu do quarto de Clay, puxou-se pela cintura e me arrastou
para dentro. O quarto de Clay era o oposto do meu, tanto em localizao como em
decorao. Estava pintado de branco e preto. O tapete era branco. Jeremy pintou as
paredes de branco, com figuras geomtricas pretas. A cama de Clay era de bronze e
enorme e estava coberta com um edredom preto e branco, que tinha smbolos de alguma
religio escura bordados.
Ao longo da parede oeste havia um moderno sistema de entretenimento, com o nico
equipamento de estreo, vdeo e televiso da casa. A outra parede estava coberta de fotos
e gravura minhas, montagem nas quais me recordava os altares que se encontram nas
casas de psicopatas obcecados, o que, pensando bem, no era to m descrio de Clay.
Nick me jogou sobre a cama e saltou sobre mim, tirando minha camisa dos jeans para
me fazer ccegas na barriga. Sorriu sugestivo, com os dentes brancos brilhando sob seu
bigode escuro.
-Entusiasmada para esta noite? -perguntou subindo os dedos do meu umbigo para
cima. Dei batidinhas em sua mo e ele a baixou novamente a meu estmago.
-No se supe que vamos nos divertir - disse-. uma questo sria e requer uma
atitude sria.
Do banheiro chegou uma gargalhada. Clay saiu, secando as mos com uma toalha.
-Quase o diz a srio, carinho. Estou impressionado.
O olhei exasperada e no disse nada.
Clay se deixou cair junto a mim, fazendo as molas do colcho ranger.
-Vamos, admita. Voc gosta.
Encolhi meus ombros.
-Mentirosa. Quantas vezes podemos correr pela cidade? Uma caada oficialmente
sancionada.
Os olhos de Clay brilharam. Estendeu a mo para acariciar a parte interior de meu
antebrao e eu estremeci. Senti uma sensao de nervos em meu estmago. Girando a
cabea, Clay olhou o entardecer pela janela. Fez-me ccegas no lado interior do cotovelo.
Meu olhar percorreu seu rosto, sua mandbula, os tendes de seu pescoo, a sombra de
sua barba e a curva de seus lbios. Senti um calor no estmago que se irradiou para
baixo. Virou-se para me olhar. Tinha as pupilas dilatadas e podia cheirar sua excitao.
Riu com risada rouca, inclinou-se para mim e sussurrou essas cinco pequenas palavras.
- hora de caar, carinho.



Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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PARCERIA

Bear Vailey era um povoado de operrios, com uma populao de oito mil almas que
nasceu com a industrializao e teve seu esplendor mximo nos anos quarenta e
cinqenta. Mas trs recesses e as demisses nas fbricas tiveram seu efeito. Restavam
uma fbrica de tratores ao leste e uma fbrica de papis ao norte, e a maioria das pessoas
trabalhavam em alguma das duas. Era um povoado que se orgulhava de seus valores
familiares, em um ambiente em que as pessoas trabalhavam duro, jogavam duro e
enchiam o estdio de beisebol, mesmo que a equipe de segunda diviso local estivesse na
primeira colocao ou na ltima. Em Bear Valley, os bares fechavam a meia-noite nos
dias de semana, o leilo anual (da Associao de Pais e Mestres) era um evento social
importante e o controle de armas significava que, no era permitido aos jovens atirar
com nada que superasse o calibre vinte. Em particular recordei os hbitos para responder
ao telefone, ou melhor, a falta deles. Viviam duas pessoas em Stonehaven, Jeremy e
Clayton, seu filho adotivo convertido em guarda-costas. Havia dois telefones na casa de
cinco dormitrios. O quarto de Clay tinha um ramal; mas o telefone mesmo tinha
perdido a campainha fazia quatro anos,
Separamo-nos. Antnio e Peter se dirigiram ao lado oeste do povoado onde estava o
nico edifcio de apartamentos de Bear Valley e dois hotis. O que significava que
tinham o melhor setor, j que era mais provvel que o vira-lata se encontrasse ali; mas o
problema era que Jeremy decidiu que deviam manter-se em forma humana, dado que
no poderiam andar pelo complexo de apartamentos como lobos.
Clay, Nicholas e eu devamos percorrer o leste, onde poderamos encontrar o vira-lata
em uma casa ou em um quarto alugado. Levamos meu automvel, um velho Camaro,
que estava em Stonehaven. Clay Dirigia. Na realidade foi minha culpa: desafiou-me a
correr at a garagem. Meu ego aceitou e meus ps perderam. Chegamos cidade pouco
depois das nove e meia. Clay me deixou detrs de uma clnica mdica que fechava s
cinco. Transformei-me entre dois depsitos de lixo que fediam a desinfetante.
Mudar de forma era igual a qualquer outra funo corporal, mais fcil quando o
corpo o necessita. Um licntropo descontrolado transforma-se sob duas circunstncias:
quando o ameaam ou quando seu ciclo interno lhe impe a necessidade de faz-lo.
Nossa Mudana se apia aproximadamente nos ciclos da Lua, embora tenha pouco que
ver com a lua cheia. O ciclo natural pode variar entre trs dias e uma semana para
pessoas diferentes. Quando se aproxima o momento, podemos sentir os sintomas: a
inquietao, a ardncia, as cibras e dores internas, a sensao angustiosa de que se tem
que fazer algo e que o corpo e a mente no podero descansar at que se satisfaa essa
necessidade. Os indcios so to reconhecveis instintivamente como os da fome. E igual
fome, podemos posp-lo, mas em pouco tempo o corpo obriga Mudana. E igual
fome, podemos nos antecipar aos sintomas e Trocar antes que apaream. Ou podemos
deixar de lado o ciclo natural por completo e Trocar tanto como queiramos. Isso o que
nos ensinou a Matilha. Trocar mais freqentemente para melhorar o controle e nos
assegurar de no esperar muito, dado que isso poderia provocar efeitos secundrios
complicados, tais como iniciar uma Mudana no meio das compras ou, tendo Trocado,
nos sentir frustrados pela ira e o desejo de sangue. Em Toronto deixei de lado os ensinos
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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de Jeremy e Trocava s quando era necessrio, em parte para me distanciar da
maldio e em parte porque a Mudana em Toronto era uma grande produo, que
requeria tanto planejamento e cautela que me deixava exausta por muitos dias. Assim
estava fora de prtica. Tinha Trocado ontem. E sabia que faz-lo novamente menos de
vinte e quatro horas depois seria terrvel, como ter sexo sem preliminares. Seria doloroso
ou possivelmente no poderia faz-lo. Devia ter esclarecido isto ao Jeremy quando disse
que tnhamos que Trocar para a caada, mas no pude. Senti-me envergonhada. Em
Toronto Trocava o menos possvel porque me dava vergonha. Dois dias mais tarde,
estava em, Stonehaven, me negando a admitir que no podia Trocar possivelmente,
porque me dava vergonha. Outra coisa mais para que meu crebro entrasse na confuso
total.
Demorei mais de meia hora para Trocar, o triplo do tempo normal. Doa? Bom, no
tenho muita experincia com a dor que no tenha que ver com a mudana de forma, mas
acredito que se pode dizer que se me esquartejassem doeria um pouco menos. Quando
terminei, fiquei ali outros vinte minutos, descansando e agradecida por ter podido
Trocar. Frente opo entre a agonia que significava a Mudana e admitir diante de Clay
e outros que j no podia Trocar de acordo com minha vontade, escolhia o
esquartejamento. A dor fsica desaparece antes que o orgulho ferido.

Comecei por uma subdiviso de fileiras de casas velhas que no se converteram em
condomnios e provavelmente nunca o fariam. Eram mais de dez, mas as ruas j estavam
desertas. Os pais ansiosos tinham tirado seus filhos das praas, muitas horas atrs. E
inclusive os adultos se protegiam ao cair do sol. Em que pese que era uma clida noite de
maio, no havia ningum tomando ar nos alpendres nem crianas brincando nas
entradas das garagens. Em troca havia janelas fechadas atravs das quais saam luz dos
televisores. Ouviam-se gargalhadas dos programas de televiso, que ofereciam um
escape para os nervosos. Bear Valley tinha medo.
Deslizei-me pela frente das casas, escondida entre as paredes e os arbustos que as
adornavam. Em cada porta usava o focinho e farejava, logo corria para me esconder atrs
da seguinte fileira de arbustos. Cada brilho de luzes de automveis me paralisava. Meu
corao bombeava, cheio de excitao nervosa. No era divertido, mas o perigo
adicionava um elemento que no experimentava desde que era criana. Se me vissem,
sequer por um segundo, estaria em perigo. Era uma loba farejando pelo povoado, no
meio de um pesadelo coletivo por um suposto co selvagem. Se minha silhueta se
recortava por um segundo a luz das janelas, sairiam com escopetas em um instante.
Passada mais de uma hora, estava a meio caminho de meu quarto beco de casas em
fila, quando senti passos que sapateavam na calada. Apertei-me contra os tijolos frescos
da casa e escutei. Algum vinha pela calada e cada passo ressoava com seu clique.
Pensei por um instante em Clay. No o faria, verdade? Melhor que no. Detive-me oculta
atrs dos ramos baixos de um cedro e tentei ver. Era uma mulher que vinha rpido pela
vereda, com os saltos tamborilando sobre o cimento. Vestia um uniforme de algum tipo,
com uma saia de polister que mal que cobria seus largos quadris. Usava uma bolsa de
couro falso apertada nas mos e caminhava o mais rpido que lhe permitiam seus saltos
de cinco centmetros. A cada passo olhava para trs. Farejei e senti um leve aroma de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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colnia Obsesso, mesclada com o fedor de gordura e o aroma de cigarro. Uma garonete
que voltava para casa do trabalho e que no esperava que a rua estivesse to escura.
Quando se aproximou mais cheirei outra coisa. Temor. Inconfundivelmente temor.
Roguei para que no comeasse a correr. No o fez. Lanando outro olhar de medo,
entrou em sua casa e fechou a porta. Voltei para o trabalho.
Alguns minutos mais tarde escutei um uivo no silncio da noite. Era Clay. No
utilizou o uivo tpico dos lobos, que tivesse chamado indevidamente a ateno, mas sim
imitou o chamado de um co solitrio. Encontrou algo. Esperei. Quando me chegou um
segundo uivo, localizei-o e comecei a correr. O cho flua sob meus ps enquanto ia
tomando velocidade. Mantive-me no limite da rua, mas no me preocupei muito de me
esconder. A esta velocidade, quem quer que me visse s divisaria um pouco de pele
clara.
Ao chegar ao caminho principal descobri que tinha que cruz-lo. Isso me levou uns
minutos. Do outro lado da rua estava a rea de Clay, uma subdiviso de casas e duplex
da poca da guerra. Justo quando tentava encontrar seu rastro, percebi outro, que me fez
parar e quase ca para trs. Sacudi-me, amaldioando minha estupidez e retrocedi. Ali,
no cruzamento de duas ruas, OH um licntropo, algum a quem no reconheci. O rastro
era velho, mas claro. Tinha passado por ali mais de uma vez. Olhei rua abaixo. Era na
direo de onde escutei ao Clay, assim mudei de rumo e comecei a seguir o rastro do
vira-lata de ruas.
O rastro me levou a uma casa de tijolos de uma s andar, com extenses de chapa de
alumnio atrs. O ptio traseiro era pequeno e a grama estava recm cortada, mas as
hortalias competiam de igual a igual com o mato. Havia lixo empilhado junto entrada
e o aroma me incomodou. Parecia haver dois anexos a casa, um com porta lateral e outro
com a porta presumivelmente atrs. A casa estava escura. Farejei a vereda. O aroma do
licntropo era forte e no podia distinguir um rastro de outro. O fator mais notrio era
sua Antigidade. Esteve passando por aqui durante uma semana. Ficou aqui.
Estava to excitada por encontrar o apartamento, que no vi a sombra que se
aproximava. Quando a percebi, girei a cabea para ver Clay em forma humana. Passou
sua mo sobre minha nuca. Atirei-lhe uma dentada e me ocultei atrs dos arbustos. Logo
depois de Trocar para a forma humana, sa.
-Sabe que odeio isso - murmurei, passando os dedos pelos cabelos cacheados-. Quando
estiver Trocada, mantenha-se Trocado ou respeite minha privacidade. Acariciar-me no
serve de nada.
-No estava "acariciando voc, Elena. Deus, at o mnimo gesto... - conteve-se, tomou
ar e voltou a comear. -Este o lugar do vira-lata, o apartamento do fundo, mas no est
aqui.
-Esteve l dentro?
-Estava investigando um pouco e esperando voc.
Olhei seu corpo nu e depois o meu.
-Suponho que no se incomodou de procurar roupa enquanto andava por aqui.
-Espera que eu encontre algo pendurado nos varais a esta hora? Sinto muito, carinho.
Mais veja, isto tem suas vantagens. Se o dono vier, estou seguro de que pode convenc-lo
a no chamar polcia.
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Soprei e fui porta traseira. S tinha uma fechadura comum. Foi fcil for-la. Tinha
aberto apenas uma fresta quando me chegou o aroma ftido de carne podre. Tive que me
esforar para no tossir. Cheirava como um matadouro. Ao menos para mim. O nariz
comum provavelmente no sentiria o cheiro de nada.
A porta dava para o living. Parecia-se com o tpico apartamento de solteiro, com
roupas sem lavar jogada sobre o sof e latas de cerveja vazias em um canto. Obviamente
o aluguel no inclua servio de limpeza. Havia caixas com fatias de pizza e restos de
peixe e batatas fritas sobre uma mesa no canto. Mas essa no era a fonte do mau cheiro.
O vira-lata tinha matado aqui. No havia sinal de um cadver; mas o forte aroma de
sangue e carne podre o delatava. Trouxe uma mulher a seu apartamento, matou-a e
ocultou os restos em outro lugar.
Comecei pelo quarto principal, olhando nos armrios e sob os mveis, em busca de
algum indcio da identidade do vira-lata. No reconheci seu aroma, mas possivelmente
pudesse saber quem era com um par de pistas.
Como no encontrei nada, fui ao quarto onde Clay procurava. Estava no piso, olhando
debaixo da cama. Quando entrei, tirou um couro cabeludo e o jogou para um lado e
seguiu procurando algo interessante. Olhei a coisa sangrenta e senti que vomitaria. Clay
lhe deu tanta ateno como a um leno de papel, mais preocupado por haver sujado as
mos que por outra coisa. Clay tinha um quociente de inteligncia de mais de cento e
sessenta, mas no podia entender por que matar humanos era um tabu. No matava
pessoas inocentes, pelo mesmo motivo que qualquer pessoa no mataria
intencionalmente um animal com seu automvel. Mas se um humano representava uma
ameaa, o instinto lhe dizia que fizesse o necessrio. Jeremy lhe proibia matar os
humanos, e o evitava s por esse motivo.
-Nada - disse em voz baixa. Saiu de baixo da cama. -E voc?
-O mesmo. No deixou nada que o identifique.
-Mas no sabe que no pode atacar s pessoas do lugar.
-Hereditrio, mas jovem - disse-. Cheira a novo, mas nenhum licntropo mordido
poderia ter essa classe de experincia, assim deve ser jovem. Jovem e presunoso. Seu
papai deve ter lhe ensinado o bsico, mas no tem experincia suficiente para evitar
problemas e manter-se longe do territrio da Matilha.
-Bem, no vai viver o suficiente para ter a experincia necessria. Sua primeira
mancada foi a ltima.
Estvamos revisando pela ltima vez o apartamento quando Nick passou pela porta,
ofegando.
-Ia chama-los - disse-. Encontrou seu apartamento? Est aqui?
-No - disse.
-Podemos esperar? -pergunto. Nick, esperanoso.
Vacilei e logo neguei com a cabea.
-Sentiria nosso cheiro antes de chegar porta. Jeremy disse que o matssemos s se
pudssemos faz-lo sem perigo. E no podemos. No um novato; ele sentiu nosso
aroma. Com um pouco de sorte, entendeu a indireta e saiu da cidade. No obstante
podemos apanh-lo e assassin-lo depois, fora daqui, um trabalho totalmente limpo.
Clay estendeu a mo e puxou da mesinha de cabeceira as coisas que tirou de debaixo
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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da cama. Entregou duas caixinhas de fsforos.
-Agora sabemos onde passa as noites - disse-. Se no estiver aqui quando nos
vingarmos amanh, aposto que estar em algum destes mercados de carne procurando o
jantar.
Olhei as caixas de fsforos. O primeiro era do Botequim do Rick, um dos trs
estabelecimentos autorizados da rea. A segunda era uma caixinha marrom fajuta, com
um endereo anotado no lado. Memorizei os nomes dos bares, j que no poderamos
levar nada disso, pois no tnhamos bolsos.
-De volta ao automvel - disse Clay-. Melhor Trocamos.
Meu corao comeou a pulsar acelerado.
-Por qu?
-Por qu? Bem carinho, acredito que trs pessoas nuas correndo pela rua poderiam
chamar a ateno.
-H roupa aqui
Clay bufou.
-Prefiro que me vejam nu a vestir a roupa de um vira-lata. -Como no lhe respondi,
virou-se com o cenho franzido. -Aconteceu algo, carinho?
-No, s... no. No est acontecendo nada.
Virei-me e fui ao quarto, deixando a porta um pouco aberta, para poder sair quando
Trocasse, se que conseguiria faz-lo. Por sorte ningum pareceu estranhar que quisesse
Trocar em privado. o que faz a maior parte da Matilha. No importa a confiana que se
tenha em algum, h coisas que ningum no quer que outros vejam. Clay era a exceo,
como em todas as coisas. No se importava que o vissem Trocar. Para ele era um estado
natural e nada do que envergonhar-se. Embora na metade da Mudana fossemos algo
digno de um circo. Para Clay, a vaidade era outro conceito estranho dos humanos. Nada
natural devia ser ocultado. As fechaduras dos banheiros em Stonehaven esto quebradas
h vinte anos. Ningum se dignava a arrum-las. Algumas coisas no valiam pena
serem discutidas com Clay. Mas divergamos com respeito a Trocar.
Passei ao outro lado da cama para que ningum pudesse me ver atravs da abertura
da porta. Ento me pus no piso e me concentrei esperanosa. No aconteceu nada por
cinco longos minutos. Comecei a suar e tentei com mais afinco. Passaram-se vrios
minutos mais. Acreditei sentir que as mos se convertiam em garras, mas quando olhei,
eram s meus dedos muito humanos fundados no tapete.
Pela extremidade do olho vi a porta move-se. Um nariz negro se meteu no quarto.
Seguiu-o um focinho dourado. De um salto, fechei a porta antes que Clay pudesse me
ver. Gemeu com tom interrogativo. Grunhi, com a esperana de que o som fosse
suficientemente canino. Clay respondeu com outro grunhido e se afastou da porta. Uma
pausa, mas breve. Em menos de cinco minutos tentaria de novo. Clay era muito
impaciente.
Empurrei um pouco a porta para poder abri-la se Trocasse - quando, por favor;
quando Trocasse-. Mas pelas dvidas pensei em um plano alternativo. Pegar um pouco
de roupa e escapar pela janela? Enquanto avaliava se poderia saltar pela janela, comecei
a sentir um comicho na pele que se retesava. Olhei e percebi que minhas unhas se
engrossavam, meus dedos diminuam. Com um forte suspiro de alvio fechei os olhos e
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deixei que a transformao seguisse seu curso.

Atravessamos o ptio traseiro e samos do lado norte do centro comercial de Bear
Valley onde havia locais de todos os boxes de comida sucata. Escapulimos pelas margens
do estacionamento, entrando em um labirinto de becos em meio aos galpes. Como j
no estvamos luz dos refletores, atrevemo-nos a correr.
Pouco depois que Clay e eu comeamos a correr. Era mais uma corrida de obstculos
que outra coisa, com escorreges e tropees. Eu estava na frente quando ouvimos que
uma lata de lixo caa no final do beco. Ns trs paramos escorregando para escutar.
-Que merda est fazendo? -disse uma voz jovem-. Tome cuidado e comece a andar. Se
meu velho descobrir que escapamos vai nos esfolar.
Outra voz masculina respondeu com uma risadinha de bbado. A lata de lixo foi
arrastada pelo cascalho e logo apareceram duas cabeas. Tentei retroceder s sombras e
bati contra uma parede. Estava presa entre uma pilha de lixo e um monto de caixas. Em
frente de mim, Clay e Nick se meteram em um portal, afundando-se na escurido, de
modo que s se divisava o fulgor azul dos olhos de Clay. Olhou-me e logo aos moos, me
dizendo que as sombras no me ocultavam. Era muito tarde. S podia esperar que os
moos estivessem muito bbados para prestarem ateno ao que os rodeava enquanto
avanavam a tropees.
Os moos falavam de algo, mas as palavras passaram por meus ouvidos como rudo
sem significado. Para entender a fala humana estando sob esta forma, tinha que me
concentrar, como tinha que me concentrar para entender a algum que falasse em
francs. Agora no podia me ocupar disso. Estava muito ocupada olhando os ps deles
medida que se aproximavam.
Quando chegaram junto pilha de lixo, agachei-me e me esmaguei contra o piso Suas
botinhas deram mais trs passos, e Passaram justo diante de meu esconderijo. Obriguei-
me a no escutar; a olhar seus rostos somente e me guiar pelo que visse. No tinham
mais de dezessete anos. Um era alto e vestiu uma jaqueta de couro com a cabea rapada e
piercing nos lbios e no nariz. Seu companheiro estava embelezado de modo similar,
mas sem a cabea rapada e os piercings, lhe faltava a coragem ou a idiotice para
converter uma moda em uma desfigurao semipermanente.
Continuaram falando enquanto se afastavam. Ento o menino rapado tropeou. Ao
cair; girou para pegar o lado do lixeiro e me viu. Piscou uma vez. Logo puxou a manga
de seu amigo e me mostrou. O instinto me levava a responder ameaa com o ataque. A
razo me obrigou a esperar. H dez anos teria matado aos meninos no momento em que
entraram no beco. Faz cinco anos, teria saltado assim que um deles se deu conta de
minha presena. Ainda hoje podia sentir o impulso nas vsceras, um temor que fazia
meus msculos se retesarem, preparados para atacar. Era isso - a batalha pelo controle de
meu corpo - o que mais odiava.
Um grunhido grave ecoou pelo beco, e era eu quem grunhia. Tinha as orelhas
esmagadas contra a cabea. Por um momento, meu crebro tentou controlar o instinto, e
logo percebi que era melhor me render a ele, deixar que os meninos vissem o perto que
estavam de morrer.
Grunhi mais forte. Os dois moos saltaram para trs. O que tinha cabelo, virou-se e
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
57
correu pelo beco, tropeando com o lixo. Os olhos do outro moo seguiram seu amigo.
Mas ento, em vez de correr atrs dele, sua mo pegou algo do lixo. Algo brilhou a luz
da Lua. Virou-se para mim com uma garrafa quebrada na mo, o temor substitudo por
uma careta de poder. Houve um movimento impreciso a suas costas e eu consegui
divisar Clay a ponto de saltar. Olhei ao moo e saltei. Clay saltou. No ar, esquivei-me do
moo e me choquei diretamente com o Clay. Camos juntos e corremos ao chegar ao
cho. Nick nos seguiu, provavelmente antes que o menino soubesse o que via. Corremos
o resto do caminho at o automvel.

Chegamos casa pouco depois das duas. Antnio e Peter no haviam voltado, mas
no havia uma maneira segura de rastre-los e lhes dizer que j tnhamos descoberto
onde se alojava o vira-lata. Quando entramos, a casa estava silenciosa e escura. Jeremy
no se incomodou de nos esperar levantado. Sabia que se tivesse acontecido algo, o
despertaria. Clay e eu corremos at os degraus, brigando para ser o primeiro a subir.
Detrs, Nick zombava de nossa briga, nos seguindo de perto. Chegamos acima e
corremos at o quarto de Jeremy no fim do corredor. Antes que pudssemos chegar ali a
porta se abriu.
-Encontraram-no? -perguntou Jeremy, uma voz sem corpo que saa da escurido.
-Descobrimos onde fica - disse-. Est...
-Mataram-no?
-No - disse Clay-. Muito arriscado. Mas...
-Bem. Contam-me o resto pela manh.
A porta se fechou. Clay e eu nos olhamos. Encolhi os ombros e retrocedi pelo corredor.
-Terei que ganhar de voc amanh - disse.
Clay correu e saltou sobre mim, me jogando no piso. Ficou em cima de mim,
sustentando meus braos contra o cho e Sorrindo, com a excitao da caada ainda nos
olhos.
-Voc acha? Que tal se decidimos com um jogo? Voc decide qual jogo.
-Pquer disse Nick.
Clay se virou para olh-lo.
-E por que jogamos?
Nick sorriu.
-O habitual. Faz muito tempo.
Clay riu, saiu de cima de mim e me levantou. Quando chegamos a seu quarto, atirou-
me em sua cama e foi at o bar para preparar bebidas. Nick se jogou em cima de mim.
Afastei-me para um lado e me levantei.
-O que os faz pensar que quero jogar? -perguntei.
-Sentiu saudades. - disse Nick.
Desabotoou a camisa e a tirou, assegurando-se de que eu visse seus msculos, despir-
se era um maldito ritual de emparelhamento com estes tipos. Pareciam acreditar que a
viso de um belo rosto, bceps musculosos e um estmago plano me converteria em uma
massa de hormnios indefesa, disposta a jogar seus jogos juvenis. Geralmente
funcionava, mas essa no a questo.
-Usque e soda? -disse Clay do outro lado do quarto.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
58
-Perfeito - disse Nick.
Clay no se incomodou de perguntar o que eu queria. Nick tirou a presilha do meu
cabelo e comeou a mordiscar minha orelha, com seu flego quente que cheirava
levemente a molho de tacos. Relaxei na cama. Quando seus lbios percorreram meu
pescoo, girei o rosto e o afundei no seu e inalei seu aroma familiar. Baixei at o oco de
sua clavcula e senti que seu corao dava um salto.
Nick deu um coice. Elevei a vista e vi Clay que apertava um copo frio contra suas
costas. Pegou Nick pelos ombros e o tirou de cima de mim com um puxo.
-V procurar as cartas - disse.
-Como vou saber onde as guardas? - perguntou Nick.
-Procure. Manter voc ocupado um momento.
Clay se sentou junto a minha cabea e me entregou a bebida. Bebi rum e coca. Engoliu
o seu e se inclinou sobre mim.
-Noite perfeita, no verdade?
-Poderia ser - sorri-lhe- Mas voc estava ali.
-O que significa que foi s o comeo de uma noite perfeita.
Ao inclinar-se sobre mim, seus dedos roaram meus quadris e se deslizaram sobre ele.
O aroma espesso e evidente do Clay me fez sentir um calor que se irradiava para baixo
desde meu estmago.
-Divertiu-se - disse-. Reconhea.
-Possivelmente.
Nick voltou para a cama.
-Hora de jogar. Vo manter a aposta? O ganhador diz a Jeremy o que aconteceu esta
noite?
Os lbios de Clay se curvaram em um lento sorriso.
-No. Eu quero outra coisa. Se ganhar, Elena vem comigo ao bosque.
-Para que? -perguntei.
O sorriso se ampliou, mostrando seus dentes brancos e perfeitos.
-Isso importa?
-E se eu ganhar, que me dar? - perguntei.
-O que queira. Se ganhar, voc escolhe seu prmio. Voc pode dizer a Jeremy o que
aconteceu, ou pode matar ao vira-lata amanh, ou qualquer outra coisa que queira.
-Posso mat-lo?
Atirou a cabea para trs e riu.
-Sabia que voc gostaria disso. Com certeza, querida. Se ganhar, o vira-lata teu.
Era uma oferta que no pude resistir. Assim jogamos. Clay ganhou.




CULPA

Segui Clay ao bosque. Nick quis vir conosco, mas um olhar de Clay o fez ficar no
quarto. Quando chegamos clareira, Clay se deteve, virou-se e me olhou sem dizer nada.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
59
-No podemos - tremi de frio.
-Por que no? -sussurrou, com a voz rouca-. A noite no se acabou. No est pronta
para isso.
Quantas vezes repetimos esta cena? No aprendia nunca? J sabia como terminaria
isto quando peguei as cartas. No pensei em outra coisa desde esse momento.
Beijou-me. Podia sentir o calor de seu corpo, to familiar que podia me afogar nele. O
rico aroma dele me alagou o crebro, to intoxicante como a fumaa de peiote
3
. Senti que
sucumbia ao perfume, mas a parte de meu crebro que ainda podia pensar fez soar forte
os alarmes. J estive ali. J o fiz. Recorda o resultado?
Retrocedi um pouco, provando sua reao mais que resistindo seriamente. Atirou-me
contra uma rvore, suas mos baixaram a meus quadris e os pegou com fora. Seus
lbios voltaram para os meus, seus beijos ficaram mais profundos e me atravessavam.
Comecei a resistir. Apertou-se contra mim, me prendendo contra a rvore. Chutei-o e ele
se retirou, sacudindo a cabea. Tentei me recuperar e olhei ao redor. A clareira estava
vazia. Clay se foi. Quando meu crebro confundido tentava processar isso, meus braos
foram dobrados detrs de minha cabea, me pondo de joelhos.
-O que...?
-No resista - disse Clay de atrs de mim-. Tento ajudar voc.
-Ajudar-me? Ajudar-me a qu?
Tentei baixar os braos, mas me sustentava com fora. Senti algo suave em volta de
meus pulsos. Senti um ramo que se movia. Ento Clay me soltou. Movi meus braos, mas
s uns centmetros at que o tecido se apertou sobre meus pulsos. Uma vez que viu que
no podia me soltar, virou-se e se ajoelhou em cima de mim, obviamente muito feliz com
o que via.
-Isto no engraado - disse-. Desamarre-me. Agora.
Ainda sorridente, Pegou a parte de acima de minha camiseta e a rasgou ao meio.
Depois soltou meu suti. Comecei a dizer algo, logo me detive e inalei profundamente.
Tinha tomado meu peito em sua boca e brincava com meu mamilo. Moveu sua lngua e
se endureceu. Senti que o desejo nublava minha mente. Riu e a vibrao de sua risada me
fez ccegas.
-Assim est melhor? -sussurrou-. J que no pode lutar contra mim, no poderia me
deter. No est sob seu controle.
Sua mo desceu de meu seio e comeou a me acariciar o estmago, movendo-se para
baixo com lentido frustrante. Tive uma imagem de seu corpo nu sobre mim. Acendeu
meu desejo. Ele se moveu. Senti sua ereo subindo pela coxa. Abri um pouco as pernas
e senti seu jeans que me arranhava. Ento se retirou.
-Pode sentir a noite ainda? -sussurrou, dobrando minha orelha-. A caada. A
perseguio. Correr na cidade.
Tive um calafrio.
-Onde a sente? - perguntou Clay, sua voz mais grave, seus olhos de um azul
fosforescente.
Baixou as mos at meus jeans, desabotoou-os e os tirou. Tocou o lado interno de

3
Peiote = cacto pequeno que quando se fuma vira um alucingeno como a maconha.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
60
minha coxa. Deixou seus dedos a o suficiente para que meu corao desse um salto.
-Sente-a ali?
Logo baixou sua mo at detrs de meus joelhos, riscando o caminho dos calafrios que
me percorriam. Fechei os olhos e deixei que as imagens da noite flussem por meu
crebro, as portas fechadas, as ruas silenciosas, o perfume do medo. Recordei a mo do
Clay me acariciando a pele, a fasca de fome em seus olhos ao entrar no apartamento, a
alegria de correr pela cidade. Recordei o perigo no beco, enquanto observava os
adolescentes, esperando, ouvindo o rugido de Clay ao equilibrar-se sobre eles. A
excitao continuava ali, pulsando em cada parte de meu corpo.
-Pode senti-la ali? - perguntou, com seu rosto perto do meu. Comecei a fechar os olhos.
-No - sussurrei-.
-Olhe-me.
Seus dedos subiram por minhas coxas lentamente. Brincou com a borda de minha
calcinha um momento e logo os afundou em mim. Deixei escapar um suspiro. Seus
dedos se moveram dentro de mim, encontrando o centro de meu prazer. Mordi meus
lbio para no gritar. Justo quando as ondas do clmax comeavam a subir, meu crebro
comeou a funcionar e percebi o que fazia. Lutei para resistir a sua mo, mas a manteve
ali, com seus dedos em movimento. O clmax comeou a subir novamente, mas resisti
no queria lhe dar isso. Fechei os olhos fortemente e puxei as ataduras. A rvore rangeu,
mas no pude escapar. De repente sua mo se deteve e saiu. O som que produziu ao
baixar o seu zper cortou o ar da noite.
Meus olhos se abriram e o vi baixar o jeans. Ao ver seu desejo nos olhos e no corpo,
meus quadris subiram para ele. Sacudi a cabea tentando me afastar e me virar. Clay se
inclinou pondo seu rosto junto ao meu.
-No vou forar voc, Elena. Voc gostaria de pensar que eu o faria, mas no o farei.
Tudo o que tem que fazer dizer que no quer. Dizer que pare. Que desamarre voc. E
eu o farei.
Sua mo se meteu entre minhas coxas, separando-as antes que pudesse fech-las. Saiu
a seu encontro meu calor e minha umidade, meu corpo me traiu. Senti que a ponta de
seu pnis me roava, mas no avanou.
-Diga-me que pare -sussurrou-. Diga-me isso.
Olhei-o com ira, mas as palavras no saram de meus lbios. Ficamos um momento
nos olhando nos olhos. Ento me pegou embaixo dos seus braos e me penetrou. Meu
corpo se convulsionou. Por um instante no se moveu. Podia senti-lo dentro de mim,
seus quadris junto dos meus. Retirou-se lentamente e meu corpo protestou, movendo-se
involuntariamente com ele, tentando ret-lo. Senti que seus braos subiam. Liberou
minhas mos. Entrou em mim novamente e j no pude resistir. Coloquei as mos em
seus cabelos, as pernas envolvendo-o. Desamarrou meus braos e me beijou, beijos
profundos que me devoravam enquanto se movia dentro de mim. Fazia tanto tempo.
Fazia tanto tempo e senti tantas saudades.
Quando se acabou nos afundamos na grama, ofegando como se tivssemos corrido
uma maratona. Ficamos ali, ainda enredados. Clay afundou seu rosto em meus cabelos,
disse-me que me amava e lentamente dormiu. Eu fiquei nas nuvens. Finalmente virei a
cabea e o olhei. Meu amante demnio. H onze anos dei tudo a ele. Mas no foi
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
61
suficiente.
-Mordeu-me - sussurrei.

Clay me mordeu no escritrio em Stonehaven. Estava sozinha com Jeremy, que
tentava encontrar uma maneira de se desfazer de mim, embora eu no soubesse ento.
Parecia estar fazendo perguntas simples e benignas, do tipo que faria um pai preocupado
em conhecer uma jovem com quem seu filho pensava em casar. Clay e eu estvamos
comprometidos. Havia me trazido para Stonehaven para me apresentar a Jeremy.
Quando Jeremy me interrogava, acreditei escutar os passos de Clay; mas se detiveram.
Tinha-o imaginado ou ele foi tomar o caf da manh. Jeremy estava parado junto
janela, em um canto de perfil para mim. Olhava o ptio traseiro.
-Quando se casarem, Clayton ter terminado seus estudos na universidade - disse
Jeremy-. O que acontecer se conseguir trabalho em outro lugar? Est disposta a
abandonar seus estudos?
Antes que pudesse formular uma resposta, a porta se abriu. Queria poder dizer que se
abriu com um chiado de dobradias ou algo igualmente detestvel. Mas no foi assim.
Simplesmente se abriu. Vendo que se movia, virei-me. Um co grande entrou, com a
cabea encurvada como se esperasse que o desafiassem por estar em um lugar indevido.
Era imenso, quase to alto como um grande Dinamarqus, mas to slido como um
pastor de msculos bem desenvolvidos. Sua pele dourada refulgia. Ao entrar na sala,
olhou-me. Tinha olhos de um azul muito brilhante. O co me olhou e abriu a boca. Eu lhe
sorri. Em que pese seu tamanho, sabia que no tinha nada que temer. Senti isso
claramente.
-Uau - disse-. bonito. Ou uma fmea?
Jeremy virou-se. Seus olhos se abriram e empalideceu. Deu um passo para frente, logo
se deteve e chamou Clay.
- Clay o deixou escapar? -perguntei-. Tudo bem. No me importo.
Deixei cair minha mo, convidando ao co com meus dedos.
-No se mova - disse Jeremy em voz baixa-. Retire sua mo.
-No h perigo. Vou deixar ele me cheirar. Supe-se que se deve fazer isto com um co
estranho antes de acarici-lo. Tive ces quando era garota. Ao menos meus pais adotivos
os tinham. V sua postura? As orelhas para frente, a boca aberta? Meneia a cauda.
Significa que est calmo e curioso.
-Retire sua mo agora.
Olhei para Jeremy. Estava tenso, como se ele se preparasse para saltar sobre o co se
me atacasse. Voltou a chamar Clay.
-Srio, no h problema - disse, j zangada-. Se for nervoso vai assust-lo gritando.
Confie em mim. Um co me mordeu uma vez. Um chihuahua bem pequeno, mas doeu
muito. Ainda tenho a marca. Este uma besta bruta, mas amigvel. Como a maioria
dos ces grandes. dos pequenos que ter que se cuidar.
O co se aproximou mais. Com um olho olhava Jeremy, alerta, observando sua
linguagem corporal, como se esperasse uma surra. Senti ira. Maltratavam ao co? Jeremy
no parecia esse tipo de pessoa, mas o conhecia fazia menos de doze horas. Dei as costas
ao Jeremy e estendi mais a mo.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
62
-Vem, moo - sussurrei-. Sim que lindo, verdade?
O co deu outro passo para mim, lento e cauteloso, como se temssemos nos assustar o
um ao outro. Seu focinho veio para minha mo. Ao elevar seu nariz para cheirar meus
dedos, de repente pegou minha mo e a beliscou com seus dentes. Dei um grito, mais por
surpresa que por dor ou medo. O co comeou lamber minha mo. Jeremy saltou atravs
da sala. O co se esquivou dele e saiu correndo pela porta. Jeremy o seguiu.
-No - disse-lhe, ficando de p-. No quis me machucar. Estava brincando.
Jeremy veio para junto de mim e inspecionou a mordida. Dois dentes tinham
atravessado minha pele, deixando pequenas feridas das quais s saram um par de gotas
de sangue.
-Apenas me furou a pele - disse-. Uma dentada de afeto. V?
Passaram-se alguns minutos enquanto Jeremy examinava minha ferida. Logo houve
um rudo na porta. Olhei para cima, esperando voltar a ver o co. Mas era Clay. No
pude ver sua expresso. Jeremy estava entre nos dois, me obstruindo a viso.
-O co me mordeu - disse-. No nada. Jeremy se virou para Clay.
-Sai - disse, com voz to baixa que mal o ouvi.
Clay no se moveu. Ficou petrificado na porta.
-Saia! -gritou-lhe Jeremy.
-No sua culpa - disse-. Possivelmente deixou o co entrar, mas... detive-me. A mo
comeava a arder. Olhei para baixo.
As duas perfuraes ficaram muito vermelhas. Sacudi fortemente a mo e olhei para
Jeremy.
-Melhor eu ir lava-la - disse-. Tm algum desinfetante?
Ao avanar, minhas pernas cederam. Quo ltimo vi foi que Jeremy e Clay tentaram
me segurar. E depois tudo se obscureceu.

Depois que Clay me mordeu, no recuperei a conscincia at dois dias mais tarde,
embora naquele momento acreditasse que s tinham passado algumas horas. Despertei
em um dos quartos de hspedes, que logo se converteria em meu dormitrio. Tive que
fazer esforo para abrir os olhos Tinha as plpebras quentes e inchadas. A garganta, os
ouvidos e minha cabea, doam. At meus dentes doam. Pisquei um par de vezes.
O quarto se movia e logo consegui enfocar os olhos. Jeremy estava sentado em uma
cadeira junto a minha cama. Levantei a cabea. A dor detrs de meus olhos explodiu.
Minha cabea caiu no travesseiro e dei um gemido. Ouvi Jeremy parar, depois o vi me
olhando.
-Onde est Clay? -perguntei. Soou mas bem como ohedaclay, como se falasse com a
boca cheia de mato. Engoli, e senti mais dor. -Onde est Clay?
-Est doente. - disse Jeremy.
-Srio? No tinha me dado conta. -O sarcasmo me custou muito. Tive que fechar os
olhos e engoli antes de continuar. -O que aconteceu?
-Mordeu-te.
Voltou-me a lembrana. Agora sentia pulsaes na mo. Esforcei-me por elev-la. As
duas feridas estavam incharam at alcanar o tamanho de um ovo de codorna. Sentia o
calor que irradiavam. No havia sinal de pus ou infeco, mas claramente acontecia algo
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
63
ruim. Senti medo. O co estava com raiva? Quais eram os sintomas da raiva? Que mais
podia causar uma mordida de co? Babava?
-Hospital - disse-. Tenho que ir para o hospital.
-Tome isto.
Um copo apareceu ante meus olhos. Parecia gua. Jeremy colocou sua mo detrs de
meu pescoo e me levantou a cabea para que pudesse beber. Afastei-me, choquei o copo
com o queixo e o derrubei. Jeremy amaldioou e tirou o cobertor molhado de mim.
-Onde est Clay?
-Tem que beber - disse.
-Pegou outro cobertor que estava ao p da cama e o estendeu sobre mim. Escapuli-me.
-Onde est Clay?
-Mordeu-te.
-Sei que o maldito co me mordeu - disse me afastando da mo de Jeremy quando me
ps isso na frente-. Responda. Onde est Clay?
-Clay te mordeu.
Deixei de resistir e pisquei. Acreditei que tinha escutado mal.
-Clay me mordeu? - disse lentamente.
Jeremy no me corrigiu. Ficou ali, me olhando, esperando.
-O co me mordeu - disse.
-No era um co. Era Clay. Ele... ele mudou de forma.
-Mudou de forma - repeti.
Olhei para Jeremy e logo me movi de lado a lado e tentei me levantar. Jeremy me
puxou pelos ombros e me conteve. O pnico me dominou. Lutei com mais fora do que
acreditava ter, agitando os braos e chutando. Esmagou-me contra a cama com tanto
esforo como o que necessitaria para conter a uma criana de dois anos.
-Basta, Elena. - Meu nome em sua boca soava estranho, como uma palavra estrangeira.
-Onde est Clay? - gritei, ignorando a dor que fazia minha garganta arder -. Onde est
Clay?
-Foi-se. Fiz que se fosse quando... mordeu voc.
Jeremy segurou por ambos os braos e me conteve, to firme que eu no podia me
mexer. Tomou ar e recomeou.
- um... -deteve-se, logo sacudiu a cabea. -No preciso dizer o que ele , Elena. Viu
trocar de forma. Viu-o converter em um lobo.
-No! -Chutei o ar. -Est louco. Est louco, caralho. Vi um co. Solte-me! Clay!
-Mordeu voc, Elena. Isso significa... significa que o mesmo que ele. Est se
transformando na mesma coisa que ele. Por isso est doente. Tem que deixar que eu
ajude voc. Tenho que ajudar voc para que possa sobreviver.
Fechei os olhos e gritei, lhe sufocando as palavras. Onde estava Clay? Por que me
deixou com esse louco? Por que me abandonou? Amava-me. Sabia que me amava.
-Sei que no acredita em mim, Elena. Mas me olhe. S me olhe. a nica maneira.
Virei o rosto para no v-lo. S podia sentir seus braos que me aprisionavam contra a
cama. Passado um momento, seu brao pareceu tremer e contrair-se. Sacudi a cabea,
sentindo que a dor ricocheteava dentro de mim como uma brasa. Minha vista se nublou
e logo se esclareceu. O brao de Jeremy entrou em convulses, sua mo se apertava e se
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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retorcia. Queria fechar meus olhos, mas no pude. O que estava vendo dominava-me.
Engrossaram os cabelos negros de seu brao. Apareceram mais cabelos, que saam de sua
pele, cada vez mais longos. Afrouxou-se a presso de seus dedos. Olhei e j no havia
dedos. Havia uma garra negra. Fechei os olhos ento e gritei at que o mundo voltou a
apagar-se.

Levei um ano para compreender realmente no que me converti, que no era um
pesadelo nem nenhuma loucura e que no se acabaria, que no havia cura alguma. Clay
teve permisso para voltar dezoito meses mais tarde, mas as coisas nunca voltariam a ser
iguais entre ns. No podiam s-lo. H coisas que no se pode perdoar.

Despertei algumas horas mais tarde, sentindo o brao de Clay que me abraava,
minhas costas contra ele. Senti uma lenta quebra de onda de paz que me acariciava. Mas
ento despertei de repente. Seu brao. Minhas costas contra ele. Deitados no pasto. Nus.
Merda
Separei-me dele sem despert-lo, e fui rapidamente para casa.

Jeremy estava no alpendre traseiro, lendo o New Cork time com a primeira luz da
alvorada. Assim que o vi parei, mas j era tarde. Tinha me visto. Sim, estava nua, mas
esse no era o motivo pelo qual desejava evitar Jeremy. Os anos de vida com a matilha
me fez perder toda vergonha Quando corramos, sempre terminvamos nus e muitas
vezes longe de onde tnhamos deixado a roupa. No princpio era algo desconcertante
isso de despertar do descanso depois de correr e encontrar-se com trs ou quatro tipos
nus. Experincia desconcertante embora no de tudo desagradvel, dado que esses tipos
eram todos licntropos e, portanto estavam em excelente estado fsico e no se viam
muito mal ao natural. Mas estou saindo do tema. A questo que fazia anos que Jeremy
me via nua. Quando sa de entre as rvores sem roupa nem sequer o notou.
Dobrou o jornal, levantou-se da cadeira e esperou. Elevei o queixo e avancei at o
alpendre. Ele ia sentir o aroma de Clay em mim. No podia fugir disso.
-Estou cansada - disse, tentando passar ao lado dele-. Foi uma longa noite. Vou para
cama.
- Queria saber o que encontraram ontem noite.
Sua voz era suave. Um pedido, no uma ordem. Teria sido mais fcil ignorar uma
ordem. Parada ali, a idia de ir para cama, de ficar a ss com meus pensamentos, afligiu-
me. Jeremy me oferecia uma distrao. Decidi aceit-la. Afundei-me em uma cadeira e
lhe contei toda a histria. Bom, no foi tudo, mas lhe contei que encontramos o
apartamento do vira-lata, sem mencionar os moos no beco e excluindo todo o
acontecido desde que voltamos. Jeremy escutou e falou pouco. Justo quando terminava,
divisei um movimento no jardim. Clay saa do bosque, os ombros rgidos, a boca dura.
-Vai para dentro - disse Jeremy-. Dorme. Eu me ocupo dele.
Escapei para o interior da casa.


Em meu quarto peguei o celular de minha bolsa e liguei para Toronto. No liguei para
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
65
Philip, mas no porque me sentisse culpada. No liguei para ele porque sabia que devia
me sentir culpada e como no era assim, no me parecia bem ligar para ele. Faz sentido?
Provavelmente no.
Se tivesse tido sexo com outro que no fosse Clay, teria me sentido culpada. Por outro
lado, a possibilidade de que enganasse Philip com algum que no fosse Clay era to
nfima que a coisa no fazia sentido. Eu era leal por natureza, quisesse-o ou no. Mas o
que havia entre eu e Clay era to velho, to complexo, que me deitar com ele no podia
ser considerado sexo normal absolutamente. Era me render ante algo to profundo que
toda ira, dor e dio do mundo no podiam evitar que voltasse para ele. Ser mulher lobo.
Estar em Stonehaven e me unir a Clay eram coisas to entrelaadas que no podia as
separar. Rende-me a uma coisa era me redimir de todas. Entrega-me a Clay no era trair
a Philip era trair a mim mesma. Isso me aterrorizava. Sentada na cama, com o telefone
em uma mo, podia sentir como perdia o controle. A barreira entre os dois mundos se
solidificava e eu estava presa do lado errado.
Fiquei ali, olhando o telefone, tentando decidir a quem ligar; que contato de minha
vida humana tinha o poder de me levar de volta ao outro lado. Meus dedos discaram os
botes por iniciativa prpria. Quando o telefone soou, perguntei-me a quem teria ligado.
Ento escutei a secretria eletrnica. "Ol, comunicou-se com Elena Michaels da Focus
Toronto. Agora no estou no escritrio, mas se me deixa seu nome e seu nmero quando
escutar o sinal, ligarei para voc o quanto antes possvel. Soou o bip. Desliguei, levantei
os lenis, deitei-me, logo peguei o telefone e apertei o boto para que voltasse a ligar
para o mesmo nmero.
quinta chamada, dormi.

Era quase meio-dia quando despertei. Enquanto me vestia, escutei no corredor uns
passos que me paralisaram.
-Elena? -Era Clay. Sacudiu o trinco.
-Escutei voc se levantar. Deixe-me entrar. Quero falar com voc.
Terminei de vestir meu jeans.
--Elena? Vamos. -A porta se sacudiu mais forte-. Sabe que posso quebrar isto. Estou
tentando de ser amvel. Deixe-me entrar. Temos que conversar.
Coloquei a presilha no cabelo. Logo cruzei o quarto, abri a janela e saltei, caindo no
cho com um golpe. Senti dor nas panturrilhas, mas no me machuquei. Um salto do
primeiro andar no era perigoso para uma mulher lobo.
Vamos, Clay comeou a golpear minha porta. Dei a volta na casa e entrei pela frente.
Jeremy e Antnio vinham pelo corredor quando entrei. Jeremy se deteve e elevou uma
sobrancelha.
-Voc j no gosta das escadas? -perguntou.
Antonio riu.
-No tem nada que ver com gostar. Acredito que pelo lobo mau que quer derrubar
sua porta. -Gritou pela escada. -Pode deixar de sacudir a casa, Clayton. Ela escapou. Est
aqui embaixo.
Jeremy sacudiu a cabea e me levou para a cozinha.
Quando Clay desceu, eu j tinha terminado a metade do caf da manh. Jeremy lhe
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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indicou uma cadeira na outra ponta da mesa. Queixou-se, mas obedeceu. Nicholas e
Peter chegaram um pouco depois e, no caos do caf da manh, relaxei e pude ignorar
Clay. Quando terminamos de comer, dissemos aos outros o que tnhamos descoberto,
enquanto falvamos, Jeremy olhava os jornais. Eu estava terminando quando Jeremy
deixou o jornal e me olhou.
- tudo? - perguntou.
Havia algo em sua voz que estava me desafiando, mas assenti de todos os modos.
-Est segura? -perguntou.
-Sim. Parece-me que se..
Dobrou o jornal com grande alvoroo e o ps ante mim. A primeira pgina do Bear
Valley Post. Ces selvagens na cidade.
-Ai disse- Up.
Jeremy fez um rudo que poderia ser interpretado como um grunhido, mas no disse
nada. Em vez disso, esperou que eu lesse o artigo. Eram os dois meninos que tnhamos
visto no beco. Seus pais despertaram ao editor do jornal em sua casa. Tinham visto os
assassinos. Dois, possivelmente trs, imensos ces tipo pastores no centro da cidade.
-Trs. Disse Jeremy, a voz contida-. Os trs. Juntos.
Peter e Antnio saram da mesa. Clay olhou para Nick e lhe indicou com o queixo que
podia sair tambm. Ningum culparia Nick disto. Jeremy sabia distinguir os instigadores
dos seguidores. Nick sacudiu a cabea e ficou. Aceitaria sua parte da culpa.
-Voltvamos do departamento do vira-lata - disse-. Os meninos dobraram pelo beco.
Viram-me.
-Elena no teve culpa - interveio Clay-. Um deles pegou uma garrafa quebrada. Eu me
descontrolei. Ataquei-os. Elena me deteve e escapamos. No aconteceu nada com eles.
-A eles no mais a ns sim - disse Jeremy mostrando o jornal; disse que andassem
separados.
-Fizemo-lo - disse-. Isso foi depois que encontramos o apartamento.
-Disse-lhes que Trocassem logo depois de encontr-lo.
-E o que amos fazer? Ir at o automvel nus?
Jeremy fez uma careta. Houve um minuto de silncio. Logo Jeremy ficou de p, indicou-
me que o seguisse e saiu da sala. Clay e Nick me olharam, mas sacudi a cabea. Este era
um convite privado, por mais que eu quisesse compartilh-lo. Segui Jeremy.
Jeremy me conduziu ao bosque pelos caminhos. Havamos andando um quilmetro e
meio antes que dissesse algo. E inclusive ento no se virou, seguiu adiante.
-Sabe que estamos em perigo - disse.
-Todos ns sabemos.
-No estou seguro de que seja assim. Possivelmente esteve afastada muito tempo,
Elena. Ou possivelmente acredite que porque mudou para Toronto, isto no lhe afeta.
-Est sugerindo que sabotei o plano de propsito...?
- obvio que no. Digo que talvez tenha que lhe recordar o quanto isto importante
para todos ns, no importa onde vivamos. As pessoas de Bear Valley procuram um
assassino, Elena. O assassino um licntropo. Ns somos licntropos. Se o apanharem,
quanto tempo acredita que demoraro a vir aqui? Se encontrarem a esse vira-lata vivo e
descobrirem o que , conectaro-no diretamente comigo e com Clayton e, atravs de ns,
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
67
com o resto da Matilha e, eventualmente, com todo licntropo existente, incluindo os que
tentam negar sua vinculao com a Matilha.
-O que me inclui. Cr que no entendo isso?
-Era voc quem devia levar a batuta
4
ontem noite, Elena.
-Bom, ento esse foi seu erro - ladrei-lhe-. No pedi que confiasse em mim. Olhe o que
aconteceu com Carter. Confiou em mi. No verdade? Quem se queima com leite...
-No que a mim concerne seu nico erro com o Carter foi no ter avisado antes de agir.
Sei que significa mais para voc, mas esse precisamente o motivo pelo que tem que se
contatar comigo, para que eu d a ordem. Eu tomo a deciso. De matar ou no matar sei
que voc...
-No quero falar disso.
- obvio que no.
Caminhamos em silncio. Senti que as palavras tentavam desesperadamente sair de
minha garganta. Queria ter a oportunidade de falar do que fiz e do que senti. Enquanto
caminhvamos percebi um aroma e as palavras se dissiparam.
-Cheira isso?
Jeremy suspirou.
-Elena. Queria que...
-Sinto muito. No quis interromper voc, mas... -Meu nariz se franziu, registrando o
aroma na brisa. -Esse aroma. Cheira-o?
Os orifcios nasais do Jeremy se abriram. Ele moveu a cabea de um lado a outro,
farejando. Logo piscou. Essa pequena reao bastava. Tinha-o cheirado tambm. Sangue.
Sangue humano.



INTRUSO

Segui o aroma do sangue at a linha do alambrado do leste. Ao nos aproximar se
desvaneceu, superado por algo pior. Carne em decomposio.
Chegamos a uma ponte de madeira sobre um arroio. Ao chegar ao outro lado me
detive. J no senti o aroma. Voltei a cheirar o vento. Havia rastros da podrido no ar,
mas no o aroma forte. Virei-me e olhei o arroio. Havia algo plido debaixo da ponte. Era
um p descalo, inchado, com dedos cinza apontando ao cu. Baixei trotando e entrei na
gua. Jeremy se inclinou sobre a ponte, Viu o p, logo se retirou e esperou que eu
investigasse.
Pegando o lado da ponte, ajoelhei-me na gua fria do arroio, e molhei o jeans do
tornozelo ao joelho. O p nu estava unido a uma panturrilha magra. O aroma era
insuportvel. Meu estmago se convulsionou. Agora podia sentir o aroma de podre.
Voltei a respirar pelo nariz. A panturrilha rematava em um joelho, logo se via pele e
msculos destroados e um osso protuberante. O fmur se parecia como um grande osso
de presunto mordido por um co com mais desejo de destruir que de comer. A outra

4
Batuta= basto com o qual o maestro rege a orquestra, quem leva a batuta comanda.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
68
coxa era um coto infestado de vermes, com o osso partido por mandbulas poderosas. Ao
olhar sob a ponte vi o resto da segunda perna, ou melhor, pedaos dela, esparramados,
como quando se sacudisse a lata de lixo e se esparramassem os ltimos restos. Por cima
do quadril, o torso era uma massa irreconhecvel de carne destroada. No vi se tinha
braos. A cabea estava retorcida para trs, a garganta quase partida. No quis olhar o
rosto. mais fcil de suportar se no se olha a face, se pode pensar que o cadver em
decomposio apenas parte do cenrio de um filme de terror de segunda. Mas o mais
fcil nem sempre o melhor. No era uma pea de cenrio e ela no merecia que lhe
considerasse assim. Supus que era uma mulher pelo tamanho e porque era uma pessoa
muito magra, mas ao virar a cabea percebi o meu engano. Era um jovem, pouco mais
que um menino. Tinha os olhos muito abertos e cheios de terra, opacos. Fora isso, o rosto
no tinha marcas, pele suave, bem alimentado e muito, muito jovem.
Era outro assassinato de um licntropo. Embora no pudesse cheirar ao vira-lata pela
decomposio e o sangue, soube pela maneira brutal que foi destroado o pescoo e as
marcas dos dentes no torso. O vira-lata trouxe o corpo at aqui. A Stonehaven. No o
matou aqui. No havia sinais de sangue, mas havia terra ali, sobre sua pele plida. Tinha
enterrado ele. O vira-lata o matou h alguns dias, enterrou-o, depois o tirou da terra e o
atirou aqui. Ontem noite quando revistvamos seu departamento. Estava trazendo o
corpo para Stonehaven, onde pudssemos encontr-lo. Zombava de ns o insulto me fez
tremer de ira.
-Teremos que nos desfazer do cadver - disse Jeremy-. Por agora o deixe. Voltemos
para a casa...
Um rudo nos arbustos o fez calar. Tirei a cabea de debaixo da ponte. Vinha algum,
fazendo tanto barulho como se fosse um rinoceronte. Eram humanos. Rapidamente me
inclinei, lavei minhas mos no arroio e subi pela borda. Tinha chegado acima quando
dois homens com coletes de caador laranja saram do bosque.
-Isto uma propriedade privada - disse Jeremy e sua voz cortou o silncio da clareira.
Os dois homens se sobressaltaram e se viraram. Jeremy ficou na ponte, estendeu a mo
e me aproximou dele.
-Disse que uma propriedade privada - repetiu.
Um homem, um menino de vinte anos, avanou.
-Ah sim. E ento o que faz aqui velho?
O homem mais velho o puxou pelo cotovelo e o fez retroceder.
-Perdoe as maneiras de meu filho. Senhor. Suponho que voc ... tentou recordar o
nome, mas no pde.
-SIM, eu sou o dono - disse Jeremy, a voz ainda suave.
Um homem e uma mulher vinham atrs dos dois homens, e quase os derrubaram.
Detiveram-se e nos olharam como se fssemos; uma apario. O homem mais velho lhes
sussurrou algo e logo se virou para Jeremy, enquanto esclarecia a garganta.
-Sim, senhor. Entendo que seja o dono desta terra, mas veja h um problema. Estou
seguro de que ouviu falar da garota morta faz poucos dias. Foram ces, senhor. Ces
selvagens. Grandes. Dois meninos do povoado os viram ontem noite. Logo nos
chamaram esta manh, dizendo que viram algo no outro lado do bosque por aqui, ao
redor da meia-noite.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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-Assim est investigando.
O homem se endireitou e esboou um pequeno sorriso.
-Sim. Assim, se no se importar...
-Sim me importo.
O homem piscou.
-Sei, mas veja, teremos que ver o que estar acontecendo e...
-Passaram pela casa para pedir autorizao?
-No. Mas...
-Ligaram a casa para pedir autorizao?
A voz do homem subiu uma oitava e o menino detrs dele se movia e grunhia. Jeremy
continuou com o mesmo tom, sem alterar-se.
-Ento sugiro que voltem por onde vieram e me esperem na casa. Se querem procurar
no bosque, necessitam de autorizao. Dadas s circunstncias, obvio que lhes darei
permisso, mas no quero ter que me preocupar com encontrar gente baleada em minha
propriedade.
- Procuramos ces selvagens - disse a mulher-. No gente.
-Com a excitao da caa se pode cometer qualquer engano. Dado que so minhas
terras, no quero correr esse perigo. Eu uso este bosque. Por isso no permito caadores
aqui. Agora, se forem a minha casa terminarei minha caminhada e os verei ali. Posso lhes
dar mapas da propriedade e alertar a meus convidados para que no venham ao bosque
enquanto estejam aqui. Parece-lhes razovel?
O casal se uniu ao moo nas queixa, mas o homem mais velho parecia estar pensando,
analisando os inconvenientes versus o correto. Justo quando pensei que o homem ia
aceitar soou uma voz detrs de mim.
-Que caralho est acontecendo aqui?!
C1ay saiu do bosque. Eu estremeci e me pareceu ver que Jeremy fazia o mesmo,
embora pudesse ter sido um efeito da luz do sol atravs das rvores. Clay se deteve no
limite da clareira e olhou ao grupo de pessoas, a ns e de volta ao grupo.
-Que caralho fazem aqui? -disse, aproximando-se do grupo de pessoas.
-Procuram os ces selvagens - disse Jeremy brandamente.
Clay tinha os punhos apertados ao lado do corpo. Sua fria se sentia de lado a lado da
clareira. O outro dia, quando escutamos aos caadores no bosque. Clay estava furioso.
Tinham invadido seu territrio. Mas pde controlar-se porque no tinha visto os
intrusos, lhe tinha proibido se aproximar e cheir-los e reagir seguindo seu instinto. Isto
era diferente. Os intrusos j no eram armas invisveis que disparavam na escurido, a
no ser seres humanos, parados diante dele, alvos de sua ira.
-No viram os malditos avisos ao entrar? -grunhiu, virando-se para o jovem, o mais
forte do grupo -. Ou so muitas slabas para que vocs as entendam, caralho?
-Clayton - alertou-o Jeremy.
Clay no o ouviu. Dava-me conta de que s podia sentir o sangue que ressoava em
seus ouvidos e a necessidade de defender seu territrio que uivava em seu crebro.
Aproximou-se mais do jovem. O moo retrocedeu para uma rvore.
-Isto propriedade privada. Entendem o que isso significa?
Jeremy desceu da ponte e eu o segui. Tnhamos chegado ao centro da clareira quando
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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se ouviu outro som no bosque. Um co de caa uivando. Um co seguindo um rastro.
Olhei ao Jeremy e ao Clay. Ambos se detiveram a escutar, tentando localizar de onde
vinha o som. Voltei para a ponte. O uivo do co se aproximava e se repetia mais e mais
rpido, cheio de alegria pelo triunfo. Tinha encontrado seu objetivo. Tinha cheirado o
corpo sob a ponte.
Dei outro passo para trs. Antes que pudesse pensar, o co saiu do bosque. Dirigia-se
direito para mim, sem ver, seu crebro dominado pelo aroma. Chegou a um metro de
mim e se deteve. Cheirava algo mais. Eu.
O co me olhou. Era um cruzamento de pastor e galgo avermelhado. Por um segundo
baixou o focinho e piscou confuso. Ento elevou a cabea e grunhiu. No sabia o que eu
era, mas no gostava do que cheirava. Um dos homens gritou. O co o ignorou. Voltou a
grunhir, me alertando. O homem mais velho deu um salto para frente e correu para o
co. Vendo que se evaporava minha oportunidade, olhei ao co nos olhos e lhe mostrei
meus dentes. Vem brigar. Ele veio.
O co me atacou. Seus dentes pegaram meu antebrao. Ca no cho, elevando meus
braos para me proteger. O co me mordeu com fora. Quando seus dentes se
afundaram em meu brao, dei um uivo de dor e medo. Chutei fracamente besta, apenas
tocando seu estmago. Escutei um tumulto. Algo arrastou o co para trs, puxando-o de
meu brao. Quando o co ficou desfalecido. Soltou meu brao. Vi Clay parado sobre
mim, com as mos ainda pegando a garganta do co morto. Tirou o cadver para um
lado e ficou de joelhos. Afundei a cabea em meus braos e comecei a soluar.
-Vamos, vamos - disse, me abraando e acariciando meu cabelo -. J passou.
Esforava-se por no rir, mas se sacudia pelo esforo. Resisti ao impulso de belisc-lo e
continuei choramingando. Enquanto seguamos sentados no cho, o alvoroo se fazia
maior Jeremy exigiu saber quem era o dono do co e se suas vacinas estavam em dia. As
pessoas do grupo gritavam suas desculpas. Algum foi em busca do dono do co. Clay e
eu ficamos no cho, eu soluava e ele me consolava. Desfrutava-o muito, mas no me
atrevi a parar por medo que as pessoas notassem que no havia lgrimas em meus olhos
e que estava estranhamente composta para ser uma jovem que foi atacada por uma besta
selvagem.
Passados alguns minutos apareceu o dono do co, e no estava nada feliz de encontrar
seu sabujo favorito morto. Mudou de tom quando soube o acontecido e comeou a
prometer que pagaria os gastos mdicos, temendo provavelmente um julgamento.
Jeremy o repreendeu por deixar a seu co solto em propriedade privada. Quando Jeremy
acabou, o homem lhe assegurou que o co estava vacinado e depois levou o cadver com
ajuda do jovem. Esta vez, quando Jeremy disse que se fossem, ningum discutiu.
Quando se acabou o caos tirei Clay de cima de mim e fiquei de p.
-Como est seu brao? -perguntou Jeremy, vindo para mi. Examinei a ferida. Havia
quatro buracos de onde ainda saia sangue, mas no me esmigalhou. Abri e fechei o
punho. Doa muito mas tudo parecia funcionar bem. No me preocupei muito. Os
licntropos cicatrizam rpido, o que provavelmente era o motivo pelo que nos
machucvamos ao brincar sem nos preocupar muito.
-A primeira ferida de guerra - disse.
-Oxal seja a ltima - disse Jeremy cortante, pegando meu brao para examinar o dano.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
71
Podia ser pior, suponho.
-Sim, fez bem Elena - disse Clay.
Olhei-o com dio.
-No teria que faz-lo se no tivesse vindo gritando como um louco. Jeremy quase j os
tinha tirado de cima quando chegou.
Jeremy se moveu esquerda, me impedindo de ver Clay, como se fssemos peixes
siameses de rixa que no pudssemos atacar se no nos vamos.
-Vem comigo a casa e limparemos seu brao. Clay, h um corpo embaixo da ponte.
Coloque-o no abrigo e nos desfaremos dele esta noite.
-Um corpo?
-Uma menina. Provavelmente fugindo.
--Quer dizer que esse vira-lata trouxe um corpo...?
-Tira o daqui antes que decidam voltar.
Jeremy me puxou pelo brao so e me afastou antes que Clay pudesse discutir.

A Caminho da casa conversamos. Ou devo dizer que Jeremy falou e eu escutei. Cada
hora que passava, o perigo parecia aumentar. Primeiro nos viram na cidade. Depois
encontramos um corpo na propriedade. Ento tivemos um choque com as pessoas do
lugar, chamando a ateno e provocando suspeitas. Tudo em doze horas. O vira-lata
tinha que morrer. Essa mesma noite.

Quando Clay voltou para a casa quis falar com Jeremy e comigo. Eu inventei uma
desculpa e fui para meu quarto. Sabia o que ele queria dizer. Queria pedir desculpas por
complicar as coisas. Por enfrentar-se com as pessoas e criar problemas. Que o absolvesse
Jeremy. Era sua tarefa.

Depois de conversar com Clay. Jeremy levou os restantes ao escritrio. Enquanto ele
contava aos outros o que aconteceu fui a meu quarto e liguei para Philip. Contou-me
sobre uma campanha publicitria em que trabalhava, algo respeito de condomnios em
frente ao lago. Tenho que admitir que no prestei muita ateno a suas palavras. Em
troca, escutei sua voz, fechando os olhos e imaginando que estava junto a ele, em um
lugar onde os cadveres no ptio traseiro seriam motivos de horror indescritvel e no
motivo para concretizar planos de extermnio. Tentei pensar o que Philip teria feito,
sentiria compaixo e pena por esse menino morto, uma vida to plena como a minha
liquidada.
Enquanto Philip falava, eu pensava na noite com Clay. No precisava me esforar
muito para saber como Philip receberia isso. Que diabos estive pensando? No pensei e
esse foi o problema. Se antes no sentia culpa, sentia-a agora, escutando Philip e
imaginando como reagiria se soubesse onde passei a noite. Eu era uma idiota. Tinha um
homem maravilhoso que se preocupava comigo e eu andava de farra com um monstro
que me traiu da pior maneira possvel.
Tudo o que podia fazer agora era reconhecer que me equivoquei e jurar que no se
repetiria.

Matilha Mulheres de outro mundo - 01
72
Logo depois de um almoo tardio, Jeremy levou Clay para caminhar para lhe dar
instrues sobre o que teramos que fazer a noite. J tinha me dito isso. Clay e eu iramos
atrs do vira-lata, juntos. No tinha opo, mas mesmo assim discuti. Eu encontraria o
vira-lata e o conduziria a um lugar seguro onde Clay o liquidaria. Era uma velha rotina
e, embora eu no quisesse reconhecer, funcionava.
Enquanto outros lavavam os pratos, escapuli. Vaguei pela casa e terminei no escritrio
de Jeremy. O sol do meio tarde danava atravs das folhas da castanheira l fora,
lanando sombras que faziam piruetas no piso.
Folheei uma pilha de telas que estava junto parede, cenas de lobos brincando e
uivando e dormindo juntos, com seus membros e peles enredados. Junto a esses havia
desenhos de lobos em becos, olhando os transeuntes passarem, lobos que permitiam que
as crianas os tocassem enquanto suas mes olhavam para outro lado. Quando Jeremy
aceitou vender um de seus quadros, o que o pblico quis foi o segundo estilo. As cenas
eram enigmticas e surrealistas, pintadas em vermelhos, verdes e prpuras to escuros
que pareciam tons de negro. Havia toques de amarelo e laranja que eletrificavam a
escurido em lugares incongruentes, como o reflexo da lua em um atoleiro. Tema
perigoso. Mas Jeremy era cuidadoso. Vendia-os sob pseudnimo e nunca aparecia em
pblico. Ningum fora da Matilha vinha a Stonehaven, salvo pessoas que deviam fazer
algum servio, de modo que seus quadros estavam resguardados aqui no escritrio.
Jeremy tambm pintava modelos humanos, embora s membros da Matilha. Um de
seus favoritos estava na parede da janela. Mostrava-me a beira de uma ravina, nua e de
costas. Clay estava sentado no cho junto a mim, seu brao em volta de minha perna. Ao
p da ravina, uma matilha de lobos brincava em uma clareira do bosque. O ttulo estava
escrito abaixo, em um canto: den.
Na parede em frente havia dois retratos. No primeiro se via Clay no fim da
adolescncia, sentado ao fundo em uma cadeira de palha, branca. Tinha um meio sorriso
sonhador no rosto, com o olhar enfocado em algo acima do pintor. Parecia o David de
Miguel Angel, vivo, perfeio juvenil, todo inocncia e sonho. Em um bom dia o retrato
parecia uma expresso dos desejos de Jeremy. Em um mau dia parecia um auto-engano.
O retrato junto a esse era igualmente inquietante. Era eu. Estava sentada de costas para
o pintor, virada de modo que me visse o rosto e a parte superior do corpo. Meu cabelo
caa solto para cobrir meus seios. Mas, igual ao quadro de Clay, a expresso era o centro.
Meus olhos azuis escuros pareciam mais claros e definidos que o normal, como tivessem
adquirido um brilho animal. Sorria com os lbios separados mostrando os dentes. O
efeito era de sensualidade selvagem, com um toque perigoso que eu no vejo ao me olhar
no espelho.
-Ah - disse Nick da porta-. Assim aqui que voc se esconde. Ligao para voc.
Logan.
Sa to rpido que quase bato em uma pilha de pinturas. Nick me seguiu e mostrou o
telefone do escritrio. Quando ia pelo corredor, Clay entrou pela porta de atrs. No me
viu. Meti-me no escritrio e fechei a porta enquanto escutava Clay perguntar a Nick
onde eu estava. Nick deu uma resposta vaga, sem atrever-se a lhe dizer a verdade e
zang-lo. Clay continuava zangado de que eu tivesse me contatado com Logan durante
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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minha ausncia. No que suspeitasse que me deitasse com Logan nem nada to banal.
Sabia a verdade: que Logan e eu ramos amigos, muito bons amigos mais isso bastava
para lhe provocar cimes, no de meu corpo, mas sim de meu tempo e minha ateno.
Peguei o telefone da escrivaninha e disse "ol".
-Ellie! -A voz de Logan ressoou atravs da esttica. -No posso acreditar que esteja ai.
Como est? Continua viva?
-At agora sim, mas s passaram-se dois dias. D tempo coisa. -A linha zumbiu.
Interrompeu-se a comunicao um segundo e logo voltou. Los Angeles tem pior
servio que o Tibet ou voc fala de um celular. Onde est?
-Estou em um automvel indo para o tribunal. Escuta, as coisas esto se arrumando
rpido aqui. Temos um acordo. Por isso ligue.
-Vem para c?
Sua risada chegou distorcida pela linha.
-Est ansiosa para me ver? Sentiria-me adulado se no suspeitasse que s queira
amparo contra Clayton. Sim, volto no sei exatamente quando, mas deveria ser esta noite
ou amanh pela manh, hora de Nova Iorque. Temos que terminar o trabalho aqui e
pego o primeiro avio que possa.
-Que bom. Tenho muita vontade de ver voc.
-O mesmo digo, embora siga ofendido porque no me permitiu ir a Toronto no Natal.
Queria comer suas bolachas de gengibre queimadas. Outra grande tradio festiva que se
perde.
Possivelmente o faamos este ano.
-Este ano, sem dvida. -O telefone chiou e voltou a ficar em silncio uns segundos e
logo voltou. -... a?
-Continuo aqui.
-Bom. Melhor desligar antes de perder voc. No me espere acordada. Vejo voc
amanh e levo voc para almoar fora assim poder relaxar por um momento. De
acordo?
-Absolutamente de acordo. Vemo-nos.
Disse adeus e desligou. Quando desliguei, consegui escutar Nick que juntava
jogadores para um jogo de futebol. Deteve-se junto porta do escritrio e bateu.
-Eu jogo -disse-. Vemo-nos l.
Voltei a olhar o telefone. Logan vinha. Isso bastava para me fazer esquecer de todos os
problemas e molstias do dia. Sorri sa pela porta, com o esprito elevado e de repente
desejosa de algumas sacudidas antes da excitao da caada noturna ao vira-lata.


PREDADOR

Logo depois do jantar comecei a me preparar para sair. A escolha da roupa era um
problema. Se ia fisgar ao vira-lata, tinha que pr a mascar que melhor funcionava com
os licntropos: Elena a predadora sexual. O que no significa minissaia, meias de rede e
blusa transparente, em primeiro lugar porque no tenho nada disso, e no porque me
ache ridcula com essas coisas. Os tops escassos, os saltos agulha e as saias diminutas me
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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fazem parecer uma menina de catorze anos brincado de mulher fatal. A natureza no me
benzeu com curvas abundantes e meu estilo de vida no me permitiu adicionar recheio.
Sou muito alta, muito atltica para que algum tipo me veja como carne de revista porn.

Quando cheguei a Stonehaven minha roupa era estritamente esportiva e barata, mais
quando cheguei aqui no importava quanto dinheiro me desse Jeremy. No sabia o que
mais comprar. Quando Antnio comprou entradas para um camarote em uma estria na
Brodway entrei em pnico. No havia mulheres a quem pedir conselho para comprar
roupa, e no me atrevia a perguntar ao Jeremy por medo de terminar como uma
monstruosidade apta para um baile de escola secundria. Tentei ir a uma sucesso de
lojas caras em Nova Iorque, mas logo me perdi. No sentido literal e figurado. Meu
salvador foi algum um pouco inesperado: Nicholas. Nick passava mais tempo com as
mulheres, em especial com mulheres jovens, bonitas e ricas, que qualquer homem fora de
um filme de James Bond. Seu gosto era impecvel. Interessavam-lhe os desenhos
clssicos, tecidos simples e linhas suaves que de algum modo convertiam minha altura e
falta de curvas em coisas positivas. Toda minha roupa comprei levando Nick comigo.
No s no se incomodava de passar uma manh percorrendo a Quinta Avenida comigo,
mas tambm punha seu carto de crdito no balco antes que eu pudesse tirar um de
minha carteira. Outro motivo pelo qual era to popular com as damas.
Escolhi um vestido para essa noite, um que Nick me comprou em meu aniversrio
justo antes que partisse de Stonehaven. Era de seda azul anil, chegava ao joelho e no
tinha nenhum adorno. Para que no fosse to coberta, decidi no colocar meias e usar
sandlias.
Quando estava me maquiando, Clay entrou e estudou meu conjunto.
-Est bonita -disse. Depois olhou em redor de meu quarto de princesa e sorriu. -
obvio que no vai com o ambiente. Necessita algo. Talvez um xale de renda feito com o
tecido das cortinas. Ou um raminho com flores de cerejeira.
Grunhi-lhe do espelho e continuei me maquiando estudando um pote de algo rosado e
tentando lembrar se era para os lbios ou para as bochechas. Detrs de mim, Clay
ricocheteou sobre minha cama, acomodando-se nos travesseiros e rindo. Vestia uma
cala folgada, uma camiseta branca e um bluso de linho solto. O conjunto ocultava seus
msculos e lhe dava um aspecto de estudante limpinho, um jovem nada ameaador.
Nick devia ter ajudado ele a escolher a roupa. Clay no sabe o que quer dizer no
ameaar.

Samos s nove. Fomos com o Explorer. Clay odiava esse veculo pomposo, mas
necessitaramos de espao se por acaso consegussemos capturar e matar o vira-lata. Essa
noite Antnio e Nicholas se desfariam do corpo da jovem no lixeiro local. Poderamos
lhes ter economizado a viagem e lev-lo ns, mas o aroma de carne decomposta no era
um bom perfume se procurvamos nos mesclar com seres humanos.
Apesar de no gostar da idia de passar a noite com Clay depois do acontecido, logo
me tranqilizei. No mencionou a noite anterior nem disse nada sobre a ligao de
Logan. Quando chegamos cidade, estvamos distrados em uma conversa
perfeitamente normal em relao ao culto do jaguar no Sudamrica. Se no o conhecesse,
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quase teria pensado que um esforo para ser amvel. Mas o conhecia. E fossem quais
fossem suas motivaes, segui-lhe o jogo. Tinha que fazer um trabalho e tnhamos que
estar juntos toda a noite. Primeiro o dever.
Nossa primeira parada foi no apartamento do vira-lata. Estacionei no McDonald's
detrs da casa e logo demos volta. O apartamento estava s escuras. O vira-lata tinha
sado. Nossa esperana era encontr-lo em algum dos bares.
No estava em nenhum dos trs bares. O quarto da lista no tinha nome, s um
endereo que Clay memorizou. Era o endereo de um depsito abandonado detrs da
fbrica de papel. Pelos sons que saam dali, essa noite no estava abandonado.
-Que isto? -perguntou Clay.
- um lugar para festas clandestinas, um rave. Nem bar, nem festa privada.
-Ah. Pode entrar?
-Provavelmente.
-No h problema ento. Entra. Eu fico junto a uma janela.
Fui parte traseira. A entrada era uma porta do poro ao p de uma escada. Saa luz
pelas bordas. Quando bati um homem calvo abriu a porta para mim. Com uma
inclinao de cabea e um sorriso prometedor consegui um punhado de tickets grtis
para o bar. Esperava que fosse algo um pouco mais difcil.
Um corredor estreito conduzia a uma sala imensa, mais ou menos retangular. Apesar
de ser segunda-feira, o clube estava cheio. Caixas poeirentas e taboas velhas faziam s
vezes de bar com o passar do muro da esquerda. Diante do bar esparramaram mesas e
cadeiras enferrujadas, o tipo de mobilirio que se encontrava nas liquidaes e que teria
de ser deixadas de lado se no estivesse com a vacina antitetnica em dia.
Preocupava-me que isso fosse como as rave de Toronto, onde a metade dos
participantes passava mais tempo preocupada com exames da universidade que com o
pagamento de contas hipotecrias. Decididamente em uma festa assim no passaria
despercebida. Eu parecia jovem, mas j tinha passado decididamente do tempo da
ortodontia. No era necessrio que eu me preocupasse. Bear Valley no era uma grande
cidade. Havia alguns menores, mas os superavam em nmero os adultos jovens e no
to jovens, a maioria dos quais se conformava com cerveja e maconha. Embora alguns
usassem herona de maneira to aberta como bebiam. Esse era o bairro de Bear Valley
que os vereadores tentavam ignorar. Se um poltico local aparecesse por aqui, teria se
convencido de que todas as pessoas eram de fora do povoado, provavelmente da cidade
de Syracuse.
O lado direito era a pista de dana, uma extenso sem mveis no qual as pessoas
danavam ou sofriam um ataque de epilepsia em massa. A msica era ensurdecedora, o
que no me incomodaria tanto se no soasse como algo que os valentes da bola de
boliche tivessem gravado na sala de atrs. O aroma de bebida barata e perfume caro
faziam piruetas em meu estmago. Contive a nusea e comecei a procurar.
O vira-lata estava ali.
Encontrei o rastro na segunda volta pela sala. Movendo-me em meio s pessoas, segui
o aroma at que conduziu a uma pessoa. Quando vi quem conduzia o rastro, duvidei de
meu nariz e dei uma volta para voltar a chec-lo. Sim, o tipo da mesa era definitivamente
o vira-lata. E nunca vi um licntropo menos impressionante. At eu parecia mais temvel
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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que este tipo. Tinha cabelos castanhos, era magro, limpo, com cara de boa pessoa, o
perfeito estudante universitrio. Parecia-me conhecido, mas no tinha tentado
memorizar as caras nas fotos dos arquivos. No importava quem era. S importava que
estivesse ali. Senti uma exploso de ira. Esse era o vira-lata que causava tantos
problemas? Esse nen de mame tinha toda a Matilha enlouquecida de medo, olhando
por sobre o ombro e correndo pela cidade para encontr-lo. Tive que me conter para no
ir at ele, peg-lo pelo pescoo e jog-lo l fora para que Clay acabasse com ele.
Resisti inclusive ao impulso de ir para junto dele. Que ele me encontrasse. Sentiria meu
aroma logo e saberia quem eu sou. Todos os vira-latas sabem. Lembrem que sou a nica
mulher loba. Por meu aroma o vira-lata poderia saber que era um licntropo e mulher. O
que significa que descobrir quem sou no exatamente uma faanha sherlockiana para
um licntropo. Passei a cinco metros da mesa do vira-lata e no sentiu meu aroma. Os
aromas da sala eram muito fortes ou ele era muito parvo para usar o olfato.
Provavelmente se tratasse do ltimo.
Sabendo que terminaria por me cheirar, pedi um rum com coca, encontrei uma mesa
junto pista de dana e esperei. Olhando para a multido, voltei a encontrar facilmente o
vira-lata. Com seus cabelos curtos, camiseta e cara barbeada, parecia um f de Paul
McCartney em um concerto de Iron Maiden. Estava sentado sozinho, olhando a multido
com uma fome que tirava a inocncia de seus olhos.
Tomei uns goles, logo olhei a mesa do vira-lata. Foi-se. Senti alarme. Estava para me
pr de p quando me deteve uma voz a minha costa.
-Elena.
Sem me virar, farejei. Era o vira-lata. Voltei a me sentar, tomei outro sorvo e continuei
olhando a pista. Deu a volta mesa, olhou-me e sorriu. Logo pegou uma cadeira.
-Posso me sentar? -perguntou.
-No.
Ia sentar se.
Olhe-o.
- Disse que no, no verdade?
Vacilou, Sorrindo enquanto esperava algum sinal de que eu estava brincando.
Enganchei a cadeira com o p e a virei para aproxim-la da mesa. Deixou de sorrir.
-Sou Scout - disse. Scott Brandon.
O nome fez ccegas no fundo de minha mente. Quando tentei encontrar mentalmente
sua pgina no arquivo da Matilha, no o obtive. Tinha passado muito tempo. Precisava
me pr em dia.
Deu um passo para mim. Olhei-o com ira e retrocedeu. Voltei a beber e o olhei sobre a
borda da taa.
-Sabe o que acontece aos vira-latas que se metem no territrio da Matilha? -perguntei.
-Deveria?
Soprei e sacudi a cabea. Jovem e desafiante. M combinao. Mas era mais
inoportuno que perigoso. Obviamente o pai do vira-lata no contou nada a respeito de
Clay. Um buraco em sua educao que logo se solucionaria. Quase sorri.
-E o que traz voc a Bear Valley? - disse, fingindo um aborrecido interesse pelo tema -
A fbrica de papel no contrata pessoas h anos, assim espero que no esteja procurando
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
77
trabalho.
-Trabalho? -um sorriso malvolo nos olhos-. No. Eu no gosto de trabalhar. Procuro
diverso. Nosso tipo de diverso.
Olhei-o por um longo minuto e logo me pus de p e me afastei. Brandon me seguiu.
Cheguei at o muro do lado oposto antes que Brandon me puxasse pelo cotovelo. Seus
dedos apertaram at o osso. Dei um puxo e me virei para enfrent-lo. J no estava
sorrindo. Seu sorriso foi substitudo por uma expresso dura mesclada com o mau
humor petulante de um menino mau criado. Tudo bem. Agora tudo o que tinha que
fazer era escapar e deixar que me seguisse para fora. Estaria ento suficientemente
zangado para no ver Clay at que fosse muito tarde.
-Estava falando com voc. Elena.
-E?
Puxou-me pelos dois braos e me empurrou contra a parede. Elevei os braos para
afast-lo, mas me contive. No podia me dar ao luxo de fazer uma cena e uma mulher
lutando com um homem sempre chama ateno, em particular se pode lan-lo do outro
lado da sala.
Quando Brandon se inclinou para mim, um sorriso feio desfigurou seu rosto. Com um
dedo acariciou minha bochecha.
- to bonita, Elena. Sabe a que cheira? -Inalou e fechou os olhos. -Uma puta de classe.
-apertou-se contra mim para que sentisse sua ereo. -Poderamos nos divertir muito.
-No acredito que voc goste de meu tipo de diverso.
Seu sorriso se tornou predador.
-Estou seguro de que sim. Estou seguro de que temos muito em comum, Elena. Soube
que no se diverte muito. Tem Matilha sobre voc, sufocando voc com todas suas
normas e leis. Uma mulher como voc merece algo melhor. Necessita algum que ensine
a voc o que matar, matar de verdade, no a um coelho ou a um cervo, a no ser a um
humano, um humano que pensa, respira, um humano consciente.
Deteve-se e logo continuou.
-Viu alguma vez os olhos de algum que sabe que vai morrer, no momento que se d
conta de que voc a morte?
- Inalou, logo exalou lentamente, com a ponta da lngua entre os dentes. Os olhos cheios
de desejo. -Isso poder, Elena. Poder verdadeiro. Posso mostrar isso a voc esta noite.
Sem soltar meus braos, afastou-se para um lado para me mostrar a multido.
-Escolhe a algum, Elena. Qualquer um. Hoje morrer. Esta noite tua. Como isso faz
voc se sentir?
No disse nada.
Brandon continuou.
-Escolhe algum e imagina-o. Feche os olhos. Imagine conduzindo-o para fora,
levando-o a um bosque para abrir a garganta dele. -Percorreu-o um estremecimento. -
Pode ver seus olhos? Pode cheirar seu sangue? Pode sentir o sangue por toda parte, que
empapa voc, o poder da vida fluindo a seus ps? No ser suficiente. Nunca . Mas eu
estarei ali. Eu farei que seja suficiente. Farei amor com voc ali mesmo, no atoleiro de seu
sangue. Pode imaginar isso?
Sorri para ele e no disse nada Em vez disso, baixei um dedo por seu peito e seu
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
78
estmago. Brinquei um momento com um boto de sua braguilha, logo lentamente
coloquei a mo sob sua camisa e acariciei seu estmago, fazendo crculos em volta de seu
umbigo. Ao me concentrar podia sentir que minha mo se engrossava, as unhas se
tornavam maiores. Clay me ensinou isto, um truque que nenhum outro licntropo
conhecia, trocar s parte do corpo. Quando minhas unhas se transformaram em garras,
raspei-as sobre o estmago de Brandon.
-Sente? -sussurrei em seu ouvido, me apertando contra ele.
-Se no se retirar agora mesmo, vou arrancar suas tripas e lhe farei come-las. Esse
meu tipo de diverso. Brandon tentou se afastar. Contive-o com minha mo livre.
Atirou-me contra a parede. Afundei minhas garras no meio da transformao em seu
estmago, sentindo como atravessava sua pele. Seus olhos se abriram e esbravejou, mas a
msica cobriu seu grito. Olhei em volta, para assegurar-me de que ningum prestava
ateno no casal de jovens abraados no canto. Quando me virei para Brandon, percebi
que tinha deixado que o jogo se prolongasse demais. Sua face se retorcia seu pescoo
ficou rgido e suas veias saltaram. Seu rosto brilhou e se ondulou como um reflexo em
uma correnteza em movimento. Sua testa comeou a engrossar e sua bochecha a ir para
seu nariz. O clssico reflexo de medo de um licntropo treinado: a Mudana.
Peguei Brandon por um brao e o arrastei at o corredor mais prximo. Enquanto
procurava uma sada, pude sentir que seu brao se transformava em minha mo, rasgou-
se a manga de sua camisa, seu antebrao pulsava e se contraa. Estava quase no final do
corredor quando percebi que no era uma sada, apenas levava para as duas portas do
banheiro. A porta do banheiro dos cavalheiros foi aberta e um homem arrotou com fora.
Outro riu. Olhei de novo para Brandon, com a esperana de que sua Mudana no
tivesse ido mais frente do ponto que pudessem ver como uma deformidade. Mas no
era assim. A menos que a pessoa estivesse suficientemente bbada para no prestar
ateno a algum cujo rosto parecia como se tivesse vermes gigantes movendo-se sob a
pele. Um homem saiu do banheiro. Fiz Brandon se virar e vi um depsito a poucos
metros. Empurrei-o para frente e corri em direo porta, quebrei a fechadura, abri a
porta e empurrei Brandon dentro.
Apoiada contra a porta, minha mente procurava a toda velocidade uma soluo. Podia
tir-lo? Com certeza, punha uma coleira e uma corrente em um lobo de setenta e cinco
quilogramas e o podia levar assim at a porta. Ningum se daria conta. Amaldioei-me.
Como pude permitir que isto acontecesse? Tinha-o. No momento em que se ofereceu
para matar a um ser humano o tinha. S tinha que dizer que sim. Escolher algum que
sasse do bar e segui-lo rua. Brandon teria me seguido e Clay estaria esperando l fora.
Final do jogo. Mas no, no me bastava. Tinha que levar a coisa mais longe, para ver at
onde podia chegar.
-Merda, merda, merda - murmurei.
Detrs da porta fechada havia um rugido de dor, que a msica no conseguiu cobrir.
Duas mulheres que passavam se viraram para olham
-Meu namorado disse, tentando sorrir-. Est doente. Droga ruim. Um novo vendedor.
Uma das mulheres olhou a porta fechada.
-Talvez deva lev-lo ao hospital - disse, mas logo continuou caminhando, depois de ter
dado seu conselho e cumprido seu dever.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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-Clayton sussurrei - Onde est?
No estava surpresa que Clay no tivesse atirado abaixo a porta quando Brandon me
abandonou. Clay nunca subestimava minha capacidade de me defender. S vinha em
meu resgate quando estava em perigo. No estava em perigo agora, mas necessitava de
sua ajuda. Desgraadamente, onde estivesse oculto, no podia me v no corredor.
Dentro do depsito senti um rudo forte. Brandon tinha terminado sua Mudana.
Agora tentava sair. Tinha que impedi-lo. E para impedi-lo, quase com certeza teria que
mat-lo. Podia faz-lo sem chamar ateno? Outro rudo do interior do quarto, seguido
do som de madeira quebrando. Logo o silncio.
Abri a porta. Havia roupa destroada no cho. Na parede que dava ao sul havia uma
segunda porta. No meio do aglomerado barato havia um imenso buraco.



CAOS

Corri sala principal. No havia gritos. No imediatamente. Os primeiros sons que
escutei eram vozes, mais zangadas que alarmadas. Que caralho.." "Viu...?" "Cuidado".
Quando dava a volta na esquina do corredor vi uma sucesso de cadeiras e mesas cadas,
em um semicrculo que ia do depsito at a pista de dana. Havia gente em volta das
mesas, recolhendo seus casacos e carteiras e copos quebrados. Um rapaz, claramente
menor de idade, estava sentado com as pernas cruzadas no cho e sustentava seu brao
quebrado. Uma mulher estava parada sobre uma cadeira, apontando com uma taa vazia
para o caminho que Brandon abriu na pista e reclamando que o "maldito filho da puta"
pagasse seu gole desperdiado, como se de algum modo no notasse que o "maldito filho
da puta" em questo tinha presas, e nenhum lugar vista onde guardar uma carteira.
Estava indo para a pista quando escutei o rugido de Brandon. Logo o primeiro grito.
Logo o trovo de cem pessoas correndo para a sada.
A correria complicou as coisas. Especialmente porque meu objetivo se encontrava em
direo oposta ao fluxo humano. No princpio fui amvel. Srio. Disse perdo", tentei
d passagem s pessoas, inclusive pedi desculpas por pisar em alguns calos. O que posso
dizer, sou canadense. Logo depois de algumas cotoveladas no peito e algumas
obscenidades gritadas em meu ouvido, dei-me por vencida e abri caminho cotoveladas
tambm. Quando um grando tentou de me empurrar para trs, peguei pelo pescoo e
lhe dei uma sada por uma via rpida. A partir dali a coisa ficou um pouco melhor.
Embora j no estivesse em perigo imediato de que me pisoteassem, avanava a
centmetros. No podia ver nada. Meo um metro e oitenta mais mesmo uma super-
estrela da NBA provavelmente no poderia ver atravs dessa massa de humanos. Pelo
pouco que podia ver, no havia maneira de me esquivar da multido. Se havia porta
atrs ou sada de emergncia, ningum parecia dar-se conta. Todos foram para a entrada
principal, amontoando-se no estreito corredor.
No s no podia ver. Tampouco podia ouvir outra coisa que no fosse o rudo da
multido, as maldies e gritos e exclamaes, em uma torre de Babel de rudo, nada
claro exceto a linguagem universal do pnico. As pessoas se empurravam e golpeavam,
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
80
como se estar um passo mais perto da porta significasse a diferena entre a vida e a
morte. Outros pareciam no mover-se por vontade prpria, mas sim os arrastava a
multido. Olhei rostos e no vi nada. Estavam to em branco e sem expresso como
mscaras de gesso. S os olhos diziam a verdade, enlouquecidos, dominados pelo
instinto de sobrevivncia. A maioria provavelmente no sabia do que fugia. No
importava. Podiam cheirar o medo surgindo da multido to bem como qualquer
licntropo e lhes metia no crebro infectando-os com seu poder O cheiravam, sentiam-no
e fugiam. Davam a Brandon exatamente o que queria.
Estava na metade da pista de dana quando tropecei com uma mulher no cho. O
sangue ainda saa de sua garganta a fervuras salpicando tudo o que passava perto. As
pessoas a pisoteavam e escorregavam em seu Sangue. Ningum se incomodou de olhar
para baixo. Eu tampouco devia olhar. Mas o fiz. Seus Olhos se encontraram com os meus
por um instante. De seus lbios saa uma baba sanguinolenta. Sua mo se convulsionou
no cho como se tentasse pega-lo. Logo se deteve no ar e caiu no atoleiro de sangue. Seus
olhos morreram. O sangue deixou de sair a jorros. Agora saa um pequeno fio. Um
homem tropeou com ela olhou para baixo. Amaldioou e a chutou para um lado. Deixei
de olh-la e segui adiante.
Quando passava sobre o corpo, escutei um estalo de vidros. Elevando o olhar divisei
os ps de Clay atravessando uma janela perto do bar. Desprendeu-se e caiu no piso Foi
uma queda de cerca de sete metros, algo que Jeremy no nos tinha animado a fazer
diante de uma multido, mas quando ningum prestava ateno a um cadver sob seus
ps, certamente ningum perceberia que um homem se lanava atravs de uma janela.
Clay subiu no bar e estudou a multido. Ao me ver, Fez sinal para que fosse para junto
dele. Indiquei ao interior da multido, onde supus que Brandon estava. Clay sacudiu a
cabea e me chamou novamente. Escolhi um ngulo que me permitisse Seguir o
movimento das pessoas e me aproximei dele.
-Eu adorei a entrada - gritei por sobre o clamor, subindo sobre o balco.
-Viu a porta da frente, carinho? Teria necessitado de uma tocha de acetileno para
atravessar a multido. A nica outra entrada est selada com tijolos.
Olhei por sobre a multido.
-Assim Brandon no est nesse canto?
-Quem?
-Ele o vira-lata. Est ali?
-Sem dvida. Mas gastas energias inutilmente tentando apanh-lo.
Finalmente divisei Brandon. Tal como suspeitei, transformou-se completamente em
lobo. Parecia estar ricocheteando entre as paredes do canto, saltando e atirando dentadas
no ar. Estava para dizer que parecia que o vira-lata tinha ficado louco. Logo a multido
se abriu o suficiente para me deixar ver que estava atacando algo mais que o ar. Havia
um homem atirado ao cho, barriga para acima, com os joelhos sobre o peito, a cabea
encurvada, as mos protegendo sua nuca. Suas roupas pareciam farrapos e cobertas de
sangue. Estava imvel, obviamente morto, mas Brandon no o deixava. Lanou-se contra
o homem, pegou seu p e o fez girar, logo se moveu para trs, com a cauda elevada.
Agachou-se e fez que atacava, lanando-se de um lado. O homem agora jazia retorcido e
de lado, e consegui ver mais de suas feridas do que teria desejado. Sua camisa estava
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
81
rasgada. Seu torso coberto de sangue, seu estmago vermelho. A ponta do cinto caa ao
cho. Ento percebi que no era um cinto, a no ser o intestino. Quando me virei, o corpo
se moveu. O homem se balanou, como se tentasse ficar de cara para cho para proteger-
se.
-Por Deus -sussurrei-. No est morto.
Brandon voltou a saltar sobre o homem, afundando os dentes na sua cabea. Elevou-o,
atirou-o para um lado e voltou a afastar-se se balanando.
-Nem sequer tenta mat-lo - disse.
-Por que o faria? -disse Clay, retraindo o lbio-. Est se divertindo.
Expressava o desprezo com cada palavra que dizia. Isto no era matar para comer ou
para sobreviver. Clay no podia entender. Isto para ele era um rasgo humano
incompreensvel: matar por prazer.
-Enquanto est ocupado, vou inspecionar - continuou Clay-. D-me cinco minutos.
Quando as pessoas comearem a diminuir, pode agir. Toca-o para o corredor do lado.
Estarei esperando.
Clay saltou do bar e desapareceu no meio da multido. Olhei ao Brandon torturando a
sua presa. E novamente no quis v; no queria pensar no que acontecia ali, que um
homem estava sofrendo uma morte horrvel, mas ainda estava vivo e eu no fazia nada a
respeito. Recordei-me que quase com certeza era muito tarde para salv-lo e, embora
sobrevivesse, teria que ir ao hospital, coisa que no podamos permitir porque, dado que
foi mordido, o homem j era licntropo. Embora racionalmente soubesse que no podia
me arriscar a ir em sua ajuda, senti-me obrigada a faz-lo, embora que fosse para acabar
com seu sofrimento. s vezes penso que seria melhor que fosse como Clay, capaz de
entender que o que Brandon fazia estava errado, mas tambm que no podia evit-lo e
lhe dar as costas sem sentir remorsos. Mas no quero ser assim, to dura, to insensvel.
Clay tinha uma desculpa para ser assim. Eu no.
Deixei de olhar Brandon e sua presa. Doente filho da puta, pensei. Nenhum animal
faria isso. Enquanto pensava, algo se moveu em meu crebro, uma pea que caiu com tal
ressonncia que me sobressaltei. A sala de repente estava em silncio, o rugido de meus
ouvidos sufocava o da multido, o que me deu um momento de claridade perfeita no
meio do caos.
Sabia onde tinha visto o rosto de Brandon e escutado seu nome, e no foi no arquivo
de licntropos da Matilha. A televiso. Inside Scoop. A histria do assassino na Carolina
do Norte. Voltei a ver em minha imaginao a entrevista da polcia, a imagem granulosa
que ganhava vida com um sorriso malvolo. Queria que algum morresse. Scott
Brandon. Sacudi a cabea. No, no podia ser. No fazia sentido. Um licntropo no
podia sobreviver na priso sem que o descobrissem. Ento recordei novamente o aroma
de Brandon, um matiz que registrei em seu apartamento aquela noite. " novo", havia
dito ao Clay. Podia cheir-lo e tambm soube que era um licntropo jovem e hereditrio.
Mas no era. Foi mordido.
Novamente meu crebro rechaou a idia. Brandon s tinha escapado fazia um par de
meses. Um licntropo levava mais tempo para se recuperar do choque de ser
transformado. Ou no? Era impossvel que se recuperou to rpido? Tinha que admitir
que no. Minha prpria recuperao foi dificultada por minha negao a aceitar o que
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
82
me aconteceu. E o que acontecia quando no era assim? O que acontecia quando algum
queria a maldio, estava preparado, desejava-a? A podia estar diferena.
Mas havia algo mais que no fazia sentido. Que fazia Brandon ali? Se era um
licntropo hereditrio, isso explicaria por que sabia de Bear Valley, a Matilha e
Stonehaven. Como podia saber a respeito disso um licntropo recm convertido? Mas
Brandon sabia. Sabia muito. Chamou-me por meu nome. mais de uma vez, disse que
ouviu coisas sobre mim. De quem? De outro licntropo, obvio. Um licntropo
experiente. Mas os forasteiros no faziam isso. No permitiam que aos licntropos
mordidos vivessem e muito menos falavam com eles ou os ajudavam. Era impossvel.
No, corrigi-me. Impossvel no. S to incrivelmente improvvel que meu crebro se
negava a pensar nas implicncias.
No podia pensar nisso agora. Tnhamos um problema mais srio entre as mos que
descobrir os por que e os como da existncia de Brandon. Bastava sua existncia.
Terminar com ela no seria to simples. No era um menino descuidado, e sim um ser
um pouco mais perigoso: um assassino. Virei-me e procurei Clay, com a inteno de
alert-lo. Ento percebi que no serviria de nada. Brandon era um assassino do mundo
humano. Se dissesse a Clay que Brandon era um contador diplomado teria o mesmo
efeito. No entenderia.
Saltei do extremo do balco e avancei em meio dos atrasados da multido. No fundo,
Brandon continuava brincado com sua comida que de vez em quando dava um coice.
Quando cheguei atrs a multido j estava fora da sala e apertada no corredor.
Continuei avanando. Brandon voltou a brincar com sua presa e saltou. Tinha as presas
afundadas no antebrao do homem, quando pressentiu minha presena. Grunhiu com
incerteza, seu crebro afogado em sangue demorou a me reconhecer.
Detive-me. Olhamo-nos. Pensei em quo perigoso era enfrent-lo assim. Pensei nos
olhos de Brandon que brilhavam com desejo quase carnal ao falar de matar. Pensei no
que poderia me fazer antes que Caly chegasse em minha ajuda. Funcionou. Comecei a
cheirar a medo. O que chamou a ateno de Brandon. Deixou sua presa e se lanou
contra mim. Esperei at que estivesse no ar, logo girei e corri. obvio que me seguiu. A
presa que escapa muito mais divertida que a variedade quase em coma.
Dei a volta para o muro de atrs para evitar que Brandon fosse para a sada. Corri por
detrs do balco e me dirigi para as escadas da plataforma. Quando estava para pisar no
primeiro degrau, virei e corri para o corredor que levava aos banheiros. Clay estava ali.
Passei-o e me detive escorregando. Detrs de mim, Brandon fez o mesmo, com suas
unhas chiando no linleo
5
. Ao virar, vi Brandon parado em frente a Clay. Movia a cabea
de lado a lado, com as abas do nariz abertas, novamente duvidando. Seu nariz dizia que
Clay era um licntropo e uma parte de seu crebro que mal funcionava indicava que era
motivo de preocupao. Grunhiu tentativamente. O p de Clay bateu sob seu focinho e o
lanou de costas. Antes que Clay pudesse aproximar-se novamente, Brandon ficou de p,
virou-se e fugiu. Clay correu detrs dele e desapareceram rumo ao salo principal.
Quando cheguei ali, Clay j perseguia Brandon na plataforma.
Eu estava quase no degrau mais alto que dava para plataforma quando Brandon

5
Linleo = tela recoberta de substncia impermevel e que usada para tapetes
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
83
saltou sobre a borda, seguido de um ressoante: Caralho!" Clay saltou a borda e logo ao
cho antes que pudesse me virar. Desci correndo a escada e corri para a sada para
impedir que Brandon sasse por ali. O corredor continuava lotado. Ningum saa nem
entrava.
Brandon no foi para a sada. Fez uma curva para o canto posterior do quarto. Clay o
seguia de perto. Contive o impulso de segui-lo e fiquei em meu posto junto sada.
Brandon correu para o canto, possivelmente porque era vagamente familiar para ele.
Quando chegou, quase se chocou contra a parede. Girou e fez uma volta fechada,
tropeando com o corpo no cho. Esta vez, o homem no se moveu. Seus olhos mortos
olhavam o teto. Recuperado do tropeo, Brandon voltou para o canto esperando que ali
se materializasse uma porta. Finalmente percebeu que estava encurralado e se virou para
enfrentar Clay.
Por vrios segundos Clay e Brandon se olharam. Senti pela primeira vez ansiedade.
Nem sequer Clay estava a salvo frente a um licntropo em forma de lobo. Senti a tenso
que zumbia em meu corpo. O instinto me dizia que protegesse Clay enquanto que o
sentido comum me indicava que cuidasse da sada.
Brandon quebrou o impasse com um grunhido. Agachou-se, elevando os quadris. Clay
no se moveu. Brandon voltou a grunhir como se o alertasse. Logo saltou. Clay se deixou
cair e rodou para um lado. Brandon caiu de repente e patinou sobre o linleo. Antes que
pudesse recuperar-se Clay se jogou em cima. Pegou Brandon pela pele solta de detrs da
cabea e ps sua perna sobre as costas de Brandon. Logo esmagou a cabea de Brandon
contra o cho, imobilizando-o.
Brandon se debateu enfurecido. Suas patas rasparam o cho sem poder firmar-se.
Grunhiu e bufou, atirando dentadas, tentando agarrar as mos de Clay. Clay ps seu
joelho esquerdo nas costas de Brandon e o puxou pela garganta. Quando Clay comeou a
apertar, Brandon deu um tremendo pinote. O p direito de Clay se separou do cho, o
suficiente para faz-lo mudar de posio. Quando voltou a baix-lo, vi que seu p cairia
em um atoleiro de sangue do homem morto.
-Clay! -gritei.
Muito tarde. Seu p caiu no sangue e seu tornozelo torceu, deslizando-se de lado.
Brandon se lanou para frente justo no instante que tirou Clay de cima dele. Nesse
instante Brandon viu a sada e se lanou para l.
No tentei impedir sua passagem. Poderia jog-lo para um lado sem esforo. Em vez
disso, quando passava, lancei-me para ele e peguei sua pele com as duas mos. Camos
juntos. Ao rodar, atirou uma dentada em meu brao. Tentei evit-lo, mas no com
rapidez suficiente. Um de seus caninos enganchou na pele de meu antebrao, abrindo-a
at o cotovelo e reabrindo a ferida da manh. Fiquei sem ar ao sentir a dor no brao. No
o soltei, mas afrouxei minha mo esquerda. Para Brandon isso bastou para liberar-se.
Clay chegou um segundo tarde. Brandon j corria pelo corredor. O outro extremo
continuava entupido de gente, mas de algum modo conseguiram abrir passagem ao
verem Brandon.
Clay ia perseguir Brandon, mas eu estendi a mo e o puxei pela camisa.
--No. Disse - No devemos sair juntos.
-Certo... Voc o segue. Eu sairei de novo pela janela.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
84
No sabia como poderia obt-lo, a menos que tivesse desenvolvido a capacidade de
escalar muros, mas no havia tempo de debater a questo. Assenti e corri pelo corredor.
Ao sair pela porta me encontrei em meio a um caos muito pior que o que houve dentro
do local. A multido se deteve sada. Algumas pessoas pareciam revoltadas. O restante
no se movia porque no queria perder nada. Alm disso, tinham chegado toda a fora
policial de Bear Valley e um batalho de agentes do estado, a maioria dos policiais
continuava meio dormindo, dando voltas em confuso. Uivavam as sirenes. Os policiais
vociferavam instrues. Ningum os escutava. No havia sinal de Brandon.
Fiquei ali um minuto, me orientando. Finalmente pude filtrar os necessrios me
centrar nas pistas. A minha esquerda havia uma barricada derrubada. Um dos da festa
apontavam o caminho. Trs policiais corriam at ele. Segui-os. Quando consegui passar a
barricada cada descobri que outro grupo de policiais j o perseguia. Cobriam o
caminho, gritando instrues e apontando para um beco. Quando dois agentes
comearam a correr para l, algum os deteve, dizendo que no havia por que correr, era
um beco sem sada. Brandon estava preso.
Eu estudava a rea, vendo se poderia chegar a Brandon antes que os policiais e
preferentemente sem receber nenhuma bala perdida. Quando desci o cordo de
isolamento, algum me puxou pelo brao. Virei-me para ver um agente do estado,
quarento.
-Volte para trs da linha, senhorita. No h nada para ver.
-Graas a Deus - suspirei-. Estive tentando encontrar algum. Ningum se dispe a d
ateno... todos... Parei de respirar -Dentro. H... h um co, um co imenso. Gente
machucada. Meu namorado...
O agente amaldioou e deixou cair meu brao. Voltou-se para o grupo mais prximo
de policiais que se dirigiam para o caminho.
-H gente l dentro! gritou - Algum averiguou se h feridos?
Um policial se virou e disse algo que no escutei. Deslizei-me para trs enquanto os
dois agentes gritavam e gesticulavam. Aparentemente. Nenhum dos dois sabia quem
estava encarregado ou se tinham pedido ambulncias ou se algum tinha entrado.
Outros mais somaram suas opinies. Vrios correram para o local. Eu cruzei a rua.
Ningum se deu conta.
Ainda havia agentes suficientes guardando entrada do beco para que eu no pudesse
entrar ali e enfrentar ao Brandon. Procurei uma sada. Avanava por um beco prximo,
quando escutei soar uma lata de lixo. distncia vi movimento iluminado pela Lua.
Uma figura de quatro patas apareceu sobre uma parede de tijolo. Agachou-se e saltou.
Obviamente o beco no estava to bloqueado como os policiais esperavam embora
tivesse que reconhecer que por certo no esperavam que um animal saltasse sobre um
muro de trs metros de altura.
Ia correr para o muro quando notei que Brandon fugia em direo oposta para mim.
Esperei. Quando Brandon se aproximou o suficiente para ver-me, corri e saltei por sobre
suas costas, caindo na terra detrs dele com uma cambalhota e aterrissando em pose de
corredor. Foi um movimento absolutamente perfeito que no poderia jamais repetir.
obvio que no havia ningum ali para apreci-lo. Calculei corretamente. O desejo de
Brandon de me perseguir superou seu instinto de sobrevivncia. Quando virei em uma
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
85
esquina me seguiu. Corri pelos becos, afastando-o da rua bloqueada pela polcia. Uma ou
duas vezes senti o aroma de Clay. Estava perto, espera de poder embosc-lo, mas o
lugar no era apropriado. Finalmente olhei ao longo de um beco que saa a um caminho.
Do outro lado, a seo industrial se abria a um parque com rvores. Perfeito. Um lugar
para Trocar e emboscar ao Brandon sem perigo e logo tirar seu corpo.
Corri para o caminho. Desgraadamente, esqueci a norma mais elementar do jardim
da infncia. Atravessei a rua sem olhar. Cruzado diretamente diante de um caminho,
to perto que o vento me fez cair. Girei para um lado do caminho e me pus de p de um
salto. Ao girar, escutei um disparo. Brandon cruzava o caminho quando o tiro o
alcanou. Sua cabea estalou em uma exploso de sangue e crebro. A fora do tiro o
lanou para um lado, diante de um automvel. O automvel bateu nele, produzindo um
rudo horrendo, depois perdeu o controle, com o corpo do Brandon encravado nas
ferragens. No precisava mais olhar. Brandon tinha morrido assim que recebeu o tiro. As
balas de prata eram um bom toque gtico, mas no eram necessrias para matar a um
licntropo. Algo que mate a um ser humano ou a um lobo pode nos liquidar tambm.
Uma multido juntava-se em volta do corpo maltratado de Brandon. Tudo o que
podiam ver era um co marrom muito grande e muito morto. No se transformaria em
humano. Essa era outra mentira em relao aos licntropos. De acordo com o mito, os
licntropos viram humanos quando so feridos. H milhes de lendas de granjeiros ou
caadores que matam um lobo, mas quando rastreiam besta ferida encontram - Ai
Deus! - com rastros humanos ensangentados. Lindo truque, mas no funciona assim. O
que bastante bom, porque do contrrio estaramos trocando de forma cada vez que um
irmo da Matilha nos mordisca um pouco forte. Na realidade seria muito inconveniente.
A verdade que caso morra sendo um lobo melhor se esquece dos planos para um
funeral de corpo presente. Os restos de Brandon seriam levados a Sociedade Protetora de
Animais de Bear Valley e se desfariam dele sem cerimnias nem autpsia. Jamais
encontrariam a Scott Brandon, o assassino fugitivo da Carolina do Norte.
Caralho, espero que lhe dem um enterro apropriado - disse uma voz detrs de mim-.
O pobre bastardo desorientado com certeza merece um bom enterro, no concorda?
Virei-me para Clay e sacudi a cabea.
Fiz um desastre.
No. Est morto. Esse era o objetivo. Fez a coisa certa, carinho.
Ps seu brao em volta de minha cintura e se inclinou para me beijar. Fugi disso.
Temos que ir. Disse Jeremy no gostaria que ficssemos.
Clay tentou me pegar novamente, tentando dizer algo. Girei rapidamente e caminhei
para a rua Ele veio em seguida trotando detrs de mim. A caminhada at o
estacionamento foi silenciosa.

Demos volta na esquina do armazm, onde deixamos o Explorem. O estacionamento
estava escuro, as luzes foram apagadas ao fechar os comrcios: Bear Valley era o tipo de
lugar aonde a luz ainda se usava para os clientes e no pensando na segurana. O
Explorer estava estacionado no fundo do lote, junto a uma cancela de correntes. Havia
mais alguns automveis quando chegamos mais agora no, dado que os bares legais
tinham fechado fazia algum tempo. Tirei as chaves da carteira. Soaram alto no silncio.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
86
Filho da puta murmurou Clay.
Virava-me, pensando que o som das chaves o tinha sobressaltado, mas olhava para o
Explorer. Andou mais devagar e sacudiu a cabea.
Parece que algum conseguiu pegar o vo da noite disse. Segui seu olhar. Havia um
jovem de cabelo claro e barbado sentado no asfalto, apoiado na roda dianteira do
Explorer com os tornozelos cruzados. Uma bolsa a seu lado. Logan. Sorri e comecei a
correr. Detrs de mim, Clay gritou. Ignorei-o. Esperei um ano paro ver o Logan. Clay
podia enfiar os cimes no traseiro. Melhor ainda, podia ir caminhando para Stonehaven,
amaldioando. Afinal de contas, eu tinha as chaves.
Ei! exclamei. Chegou atrasado uma hora. Perdeu todo entretenimento.
Agora ouvia Clay correndo, gritando meu nome. Detive-me diante de Logan e sorri
para ele.
Vai ficar ai sentado o...
Detive-me. Os olhos de Logan olhavam para o outro lado do estacionamento. Em
branco. Sem ver. Mortos.
Nosussurrei. No.
Mal escutei Clay que me alcanou correndo e senti seus braos me segurando quando
cai para trs. Um uivo ensurdecedor partiu o silncio da noite. Algum uivava. Era eu.



DOR

No recordo como voltei para Stonehaven, suponho que Clay me enfiou no Explorer.
Depois colocou o corpo de Logan na mala e nos levou para casa. Lembro vagamente de
ter entrado na casa pela porta da garagem e ser recebidas pelo Jeremy no corredor
perguntando o que tinha acontecido com o vira-lata. Deve ter visto algo em meu rosto
porque no terminou a pergunta. Passei junto a ele. Detrs de mim escutei Clay dizer
algo, escutei a maldio de Jeremy, ouvi correrem os outros que tinham escutado e
comearam a aparecer dos lugares de onde estavam nos esperando. Eu segui para a
escada. Ningum tentou me deter. Ou possivelmente sim, no me lembro. Fui para meu
quarto, fechei a porta, abri o cortinado de minha cama e me meti em seu santurio
escuro e silencioso.
No sei quanto tempo se passou. Talvez horas. Provavelmente fossem minutos, o
tempo que necessitou Clay para explicar o assunto aos outros logo escutei os passos dele
na escada. Deteve-se em frente a minha porta e bateu. Como no respondi, bateu mais
forte.
Elena? chamou-me.
V embora.
A porta se queixou como se ele se apoiasse nela.
Quero v voc.
No.
Deixe-me entrar em falar contigo. Sei o quanto est doendo...
Levantei-me e gritei:
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
87
No tem idia do que me di. Por que teria que t-la? Provavelmente est contente de
que no viva mais. Um obstculo a menos para que voc preste ateno. tudo o que
era para voc, no verdade? Um obstculo para que me tivesse.
Respirou fundo.
No verdade. Sabe que no assim. No importa o que sentisse quando Logan
estava perto de voc, no deixei de gostar dele como a um irmo. -A porta voltou a
queixar-se. Deixe-me entrar, carinho. Quero ficar contigo.
No.
Elena, por favor. Quero...
No!
Ficou em silncio um momento. Escutei sua respirao, ouvi que deixava de respirar
um instante para engolir saliva. Depois fez um som baixo de angstia que se
transformou em um rugido de dor. Seus sapatos chiaram quando girou de repente,
depois bateu o punho contra a parede do outro lado do corredor. Uma chuva de gesso
chegou ao cho. A porta de seu quarto se fechou com uma batida. Logo outra coisa se
chocou contra a parede, algo maior esta vez: um candelabro ou um abajur. Em minha
cabea, segui o alvoroo, vendo pedaos do mobilirio que ele fazia migalhas e
desejando poder fazer o mesmo. Queria lanar coisas, as destruir, sentir a dor de minhas
mos golpeando a parede, golpear tudo o que houvesse ao redor at que minha pena e
minha fria fossem tragadas pelo cansao. Mas no podia faz-lo. Deteve-me uma parte
racional de meu crebro, que me recordou que isso teria conseqncias. Quando
recuperasse o controle ia me envergonhar de ter perdido o controle produzindo uma
destruio pela qual outro pagaria. Olhei as pastorazinhas de Dresden sobre minha
cmoda e pensei em lan-las contra o piso, ver seus rostos inspidos em meio a vidros
quebrados. Seria uma sensao maravilhosa, mas no ia fazer isso. Recordei o quanto
custou, o tempo que Jeremy dedicou para escolh-las para mim, o quanto o machucaria
se destrusse seu presente.
Por mais que quisesse explodir, no podia faz-lo. No podia me dar esse luxo. E odiei
Clay porque ele sim podia faz-lo.
Incapaz de descarregar minha dor; passei as horas que se seguiram encolhida sobre a
cama, sem me mover at que cibras nos msculos das pernas me rogaram para que
mudasse de posio. Mantive o olhar fixo no cortinado da cama. A mente o mais em
branco que podia, com medo de pensar ou de sentir alguma coisa. Horas mais tarde
continuava assim quando Jeremy bateu em minha porta. No respondi. A porta se abriu,
depois se fechou. As cortinas sussurraram e o colcho se afundou quando Jeremy se
sentou junto a mim. Suas mos descansaram sobre meu ombro. Fechei os olhos e senti o
calor de seus dedos que atravessava minha camisa. Durante vrios minutos no disse
nada. Logo tirou uma mecha de cabelo de meu rosto e o colocou detrs de minha orelha.
No merecia sua bondade. Eu sabia. Suponho que era por isso que sempre questionava
seus motivos. No incio, cada vez que ele fazia algo amvel, tentava descobrir o mal
oculto atrs desse gesto, uma motivao nefasta. Afinal de contas, era um monstro. Tinha
que ser malvado. Quando percebi que no havia nada de ruim em Jeremy, recorri outra
desculpa; que era um bom comigo porque no podia me tirar dali, porque era um tipo
decente e inclusive porque sentia certa responsabilidade pelo que seu filho adotivo me
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
88
fez. Se me levasse ao teatro na Broadway e para jantar em lugares elegantes, era porque
me queria tranqila e contente, no porque desfrutasse de minha companhia. Queria
que desfrutasse de minha companhia, mas no podia acreditar nisso porque no via
muito em mim que o merecesse. E no que acreditasse que no era merecedora de amor
e cuidados, mas no de algum do calibre moral de Jeremy. Eu no consegui ganhar o
afeto de uma dzia de pais adotivos, assim no acreditava que agora o tivesse ganhado,
de algum que valia mais que todos esses homens juntos. Mesmo assim houve
momentos em que me permiti acreditar que Jeremy gostava mesmo de mim, quando
estava muito doda para me negar essa fantasia. E esta era uma dessas vezes. Fechei os
olhos, senti sua presena e me permiti acreditar.
Ficamos em silncio um momento e logo disse com suavidade:
Enterramo-lo nos fundos. H algo que queira fazer?
Sabia que estava me perguntando se havia algum rito humano de enterro que pudesse
me fazer sentir melhor. Desejei que fosse assim. Desejei poder encontrar dentro de mim
algum ritual de morte tranqilizador, mas minhas experincias religiosas juvenis no me
deram confiana no poder de um ser todo-poderoso. Minha lembrana mais vvida da
igreja era estar sentada em um banco no meio de um dos casais que me adotou, minha
me adotiva inclinada para diante, tentando ouvir o pastor e tentando ignorar o fato de
que a mo de seu marido estava explorando os mistrios espirituais ocultos sob minha
saia. S aprendi a rezar para que me liberasse dessa tortura. Deus deve ter estado
ocupado com algo mais importante. Ignorou-me e eu aprendi a responder do mesmo
modo.
Mesmo assim, e apesar de minhas crenas, considerei que tinha que fazer algo para
marcar a morte de Logan, pelo menos ir ao lugar onde estava enterrado e me despedi
dele. Quando disse isso a Jeremy; ofereceu-se a me acompanhar, coisa que aceitei com
um movimento de cabea. Ajudou-me a me levantar, segurou-me pelo cotovelo e me
conduziu brandamente escada abaixo. Se tivesse sido outro ou em outro momento, teria
rechaado a ajuda. Mas nesse momento agradeci. O cho parecia mover-se e afundar-se
sob meus ps. Desci com cautela os degraus e samos ao corredor de atrs. A porta do
escritrio se abriu e Antonio mostrou a cabea, com uma taa de brandy meio cheia na
mo. Olhou para Jeremy, transmitindo uma pergunta silenciosa. Quando Jeremy sacudiu
a cabea Antonio assentiu, logo retrocedeu ao escritrio. Quando samos pela porta, ouvi
que se abria novamente. Sem necessidade de olhar sabia quem estava saindo. Jeremy
olhou por sobre seu ombro e elevou uma mo. No ouvi que se voltasse a fechar a porta,
nem ouvi que os passos de Clay nos seguissem. Imaginei-o no corredor olhando como
nos afastvamos, e caminhei um pouco mais depressa.
Enterraram Logan no meio de um arvoredo, no bosque detrs da casa. Era um lugar
bonito, onde o sol do meio-dia danava nas folhas e caa sobre as flores silvestres. Pensei
nisso e logo notei o absurdo de se escolher um lugar agradvel para enterrar aos mortos.
Logan no podia v-lo. No lhe importava onde jazia. O lugar escolhido cuidadosamente
era s reconfortante para os vivos. E no me reconfortava.
Inclinei-me e peguei umas flores brancas diminutas para deix-las sobre a terra
removida. Tampouco soube para que isso. Logan no importaria. Outro gesto sem
sentido que procurava oferecer um pequeno grau de consolo, o consolo de um ritual
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
89
realizado sobre os corpos dos mortos desde que os seres humanos comearam a velar a
seus mortos. Parada junto tumba, agarrada a meu pattico raminho de flores, recordei
do ltimo e nico funeral no que estive. O de meus pais. A melhor amiga de minha me
a que tentou me adotar fez os acertos para o pequeno funeral. Mais tarde soube que
meus pais no tinham seguro de vida, assim estou segura de que a amiga de minha me
deve ter custeado tudo. Levou-me ao funeral, ficou junto a mim e me segurou a mo. Foi
a ltima vez que a vi. O sistema de adoo impunha como regra a separao total.
Esse dia fiquei parada ali, olhando as tumbas e esperando. Voltariam. Sabia. Tinha
visto os atades e pude ver minha me dentro de um deles, vi os homens baixar as
gavetas e os cobrir de terra. No importava. Voltariam. No tinha nenhuma experincia
com a morte real, s a coisa ruidosa e gritalhona que via nos desenhos animados aos
sbados pela manh, nos quais o coiote morria e voltava a morrer, mas sempre voltava
para tentar outro plano idiota antes que terminasse o assunto. Assim funcionava. A
morte era temporria, s durava o suficiente para provocar risadas em crianas vestidas
com pijamas, sentadas de pernas cruzadas diante do televisor, enchendo-se de cereais.
At tinha visto um truque quando meu pai me levou a um show de magia na festa de
Natal de seu escritrio. Colocaram uma mulher em uma caixa, cortaram-na ao meio e
fizeram a caixa girar. Quando reabriram a porta, saiu de um salto, sorridente e completa,
recebendo os aplausos e as risadas das pessoas. E meus pais sairiam de suas caixas
enterradas do mesmo modo, sorridentes e inteiros, a cabea de meu pai onde devia
estar. Era uma brincadeira. Uma brincadeira maravilhosa e apavorante. Tudo o que tinha
que fazer era esperar que ela terminasse. Parada junto s tumbas de meus pais, comecei a
rir. O pastor se virou para mim, me condenando com o olhar por ser uma garotinha sem
sentimentos. No me importou. Ele no sabia da brincadeira. Fiquei ali, sorridente e
esperando... esperando.
Olhando a tumba de Logan, desejei que essa fantasia retornasse, que me permitisse
pensar que ele ia voltar, que a morte era s temporria. Mas agora sabia da verdade.
Morto morto. Enterrado enterrado. Foi-se. Ca de joelhos, esmagando as flores em
meus punhos. Algo se quebrou dentro de mim. Ca para frente e uivei minha dor sobre
uma terra indiferente. Uivei at que meus gritos se transformaram em soluos e ganidos,
o nico som que saa de minha garganta maltratada. Logo me encolhi sobre a terra
revolvida e a senti sob o peso de meu corpo, como se a tumba se abrisse para me receber.
Cobri meu rosto com os braos e comecei a soluar. Passados alguns minutos, uma voz
conseguiu chegar a minha mente. No era a do Jeremy, que estava em silencio junto a
mim, sabendo que no devia interferir. Aquele era o nico que se atrevia a interferir.
Agora! gritava Clay. No posso escut-la e no...
A voz de Jeremy, palavras suaves em um sussurro suave e contido.
No! -gritou Clay. No podem fazer isso. Ao Logan. Nem a ela. No vou ficar
quieto...
Outro murmrio que o interrompeu.
Deus! Como pode... -A voz do Clay se afogou em sua prpria fria.
Escutei algo, um roce nos ramos, Jeremy afastando Clay, levando-o ao interior do
bosque, me deixando com minha dor. Arremessada sobre a terra, escutei-os. Clay queria
ir busca do assassino de Logan, nem amanh, nem esta noite. Agora mesmo. Jeremy
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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tentava dissuadi-lo, dizendo que ainda era de dia, estava muito zangado, precisavam
planejar as coisas. No importava o que Jeremy dissesse nem se o que dizia tinha
sentido. A tormenta da fria de Clay afogava toda a lgica. Sabia qual seria o resultado.
Sabia o que Clay ia fazer com ou sem permisso de Jeremy. Ao esfregar minhas mos
cheias de terra sobre meu rosto mido, o medo superou a dor. Enquanto discutiam me
levantei, sa silenciosa do bosque e fui rpido a casa.
Dez minutos mais tarde, Clay abriu a porta de seu automvel e se deixou cair
pesadamente no assento atrs do volante.
Aonde vamos? perguntei. Minha garganta me permitia apenas sussurrar.
Sobressaltou-se e virando-se me viu encolhida ao seu lado.
Vai atrs dele disse antes que pudesse dizer algo . Quero estar ali. Necessito-o.
Isso era certo em parte. Precisava exorcizar de algum jeito minha dor e, igual Clay, s
conhecia uma maneira de faz-lo. A vingana. Quando pensava que um vira-lata tinha
matado Logan, a fria que me enchia quase me dava medo. Retorcia-se dentro de meu
corpo como uma vbora demonaca, incitando a cada parte de meu corpo a sentir a fria,
movendo-se to rpido e to sem controle que tive que apertar os punhos e me conter
para evitar golpear algo. Passei por momentos de fria assim na infncia. Ento me senti
frustrada por minha incapacidade de us-la, de agir de algum modo efetivo. Hoje podia
usar a fria mais do que jamais acreditei ser possvel. O que era ainda mais apavorante.
Nem sequer sabia o que aconteceria se entregasse a ela. Saber que entrava em ao ao
sair em busca do assassino me ajudava a controlar minha ira.
Havia outro motivo para ir com Clay. Temia deix-lo sozinho, temia que se eu no
estivesse ali para cuidar dele haveria outra tumba no bosque. Essa idia me fez sentir
coisas que nem sequer podia admitir.
Est segura? perguntou, girando a cabea para mim. No tem que vir.
Sim, tenho que faz-lo. No tente me deter ou direi a Jeremy que partiu. Direi-lhe
que o proba. E se j tiver partido, lev-lo-ei at voc.
Clay estendeu a mo para me tocar, mas eu olhei pela janela. Logo depois de um
momento de silncio, abriu-se a porta automtica da garage com um chiado e o motor do
automvel se ligou com um rugido. Deu r pelo caminho de sada a toda velocidade e j
estvamos na rota para Bear Valley.

A Caminho de Bear Valley, a bruma de dor e fria que girava em meu crebro se
dissipou ante a perspectiva de ao: ao clara e definitiva. Centrei minha mente nisso.
Qualquer impulso de correr para Bear Valley e procurar enloquecidamente ao assassino
de Logan se dissipou sob o peso frio da realidade. Necessitvamos de um plano. Ao
entrar em Bear Valley, ficamos no meio do trfico e tivemos que esperar toda uma
mudana de luzes no semforo antes de podermos virar esquerda de uma rua principal
para outra.
Quando o segundo semforo ficou vermelho, Clay o passou, ignorando as buzinadas.
Sabe aonde vai? perguntei-lhe.
Estacionar.
E depois...?
Encontrar ao filho de puta que matou Logan.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Boa idia. Um plano preciso. Segurei o trinco da porta quando Clay virou na
entrada do nico estacionamento pblico do centro do povoado. No podemos ca-lo
agora. de dia. E se encontrarmos ao vira-lata, no poderemos fazer nada.
O que sugere? Desfrutar de um jantar enquanto o assassino de Logan anda solto?
Embora no tivesse comido desde a noite anterior, meu estmago rechaou a idia de
comer. Queria ir em busca do assassino de Logan tanto quanto Clay, mas devia ser
cautelosa. Por mais que me repelisse a idia de que algo pudesse nos distrair de vingar
ao Logan, isso era o que tnhamos que fazer, nos distrair umas horas.
Devemos investigar o que aconteceu ontem noite.
Clay colocou o carro em um espao para estacionar.
O qu?
Descobrir como reage o povoado ante o que aconteceu na festa de ontem noite.
Avaliar o dano. Ainda procuram mais ces selvagens? Vo fazer algo com o corpo do
Brandon? Algum viu voc saltar da janela do primeiro andar? Algum me viu com o
vira-lata?
Por Deus, quem se importa com o que viram ou pensaram?
Voc no? No se preocupa que estudem o que restou de Scott Brandon e encontrem
algo um pouco estranho? seu quintal Clay. Seu lar. No pode se dar ao luxo de no se
importar.
Clay fez um rudo, mescla de suspiro e grunhido de frustrao.
Bom. O que sugere?
Dei uma pausa, j que ainda no tinha pensado. A imagem de Logan ainda alagava
meu crebro. Afastei-me para um lado para me concentrar nos passos seguintes. Logo
depois de alguns minutos disse:
Compraremos o jornal, vamos ao caf e o lemos escutando as pessoas falarem.
Depois planejaremos como rastrear o vira-lata. E quando anoitece o fazemos.
Ler um jornal no nos vai ajudar a encontrar ao assassino de Logan. Melhor
comemos.
Tem fome?
Desligou o motor e ficou em silncio um momento.
No.
Ento a menos que tenha uma maneira mais produtiva de passar um par de horas,
esse o plano.



RASTRO

Logo depois de comprar um jornal, procurei um telefone pblico para ligar ao Jeremy.
Peter atendeu, assim na realidade no necessitei falar com ele. Pedi ao Peter que lhe
dissesse que estava com Clay e que o convenci de que no era o momento de ir atrs do
assassino de Logan. Em vez disso, estvamos fazendo um inventrio do dano causado na
noite anterior. obvio que no disse que rastrearamos ao assassino de Logan depois.
Era tudo uma questo de interpretao. No estava mentindo. Verdadeiramente.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Bear Valley tinha trs cafs, mas The Donut Hole era o nico que importava. Os outros
dois estavam reservados as pessoas de fora do povoado, caminhoneiros e qualquer outra
pessoa que sasse da estrada para reanimar-se com um pouco de cafena e acar. Ao
entrar no Hole, soou o guizo sobre a porta. Todos se viraram. Algumas pessoas sorriram
do balco, algum elevou a mo em saudao. Eu podia lhes parecer vagamente familiar,
mas a quem reconheceram foi ao Clay. Em um povoado de oito mil habitantes, um tipo
com o aspecto de Clay tinha tantas chances de no ser notado como seu Porsche Boxster
no estacionamento local. Clay odiava que prestassem ateno nele. Para ele, a maldio
era seu rosto, no seu sangue de licntropo. Clay no queria outra coisa que passar
despercebido como um ser humano a mais. Acredito que se desfaria do Boxster se
pudesse, mas igual ao meu quarto, era um presente de Jeremy, o ltimo de uma srie de
automveis esportivos que foram comprados para satisfazer ao prazer que Clay tinha ao
dirigir rpido e fazer as curvas a toda velocidade.
Mesmo assim, Clay tinha sorte em Bear Valley. Embora seu automvel e seu rosto
fizessem os olhos se virarem para ele, ningum o incomodava como fariam em uma
cidade. Estava isento da ateno indevida das mulheres pela aliana de ouro que usava
no quarto dedo de sua mo esquerda, sendo Bear Valley um lugar onde uma aliana de
casamento ainda significava que uma pessoa no estava disposio do sexo oposto. A
aliana tampouco era uma mentira. Clay no se rebaixaria a tal coisa. Sua aliana era
igual a que comprou para mim h dez anos, antes que a pequena questo de uma
mordida em minha mo acabasse com a felicidade marital para sempre. Clay no se
importava com o fato de que no houve casamento. A cerimnia em si era irrelevante,
um ritual humano sem sentido. O que lhe importava era o compromisso de fundo, a
idia de uma companheira por toda vida, algo que o lobo que havia nele reconhecia,
chame-se matrimnio ou emparelhamento ou o que queiram. Assim usava a aliana. Isso
eu podia suportar, considerava-o outra fantasia de seu crebro dominado pelas iluses.
Foi quando me apresentou como sua esposa que a coisa ficou feia.
The Donut Hole era um caf tpico, incluindo os assentos de vinil vermelho rasgados
dos reservados e o persistente aroma de chicria queimada. No havia modo de escapar
da seo de fumantes:
Embora pudesse encontrar um reservado sem cinzeiro, a fumaa das mesas prximas
chegava as outras em segundos, ignorando a emisso do sistema de ventilao muito
fraco. As garonetes eram todas mulheres maduras, que provavelmente j tinham criado
uma famlia e que, tendo decidido passar seus anos de ninho deserto ganhando um
pouco de dinheiro, descobriram que esse era o nico emprego para o qual o mundo as
considerava qualificadas. A essa hora do dia, a maioria dos clientes eram trabalhadores,
que vinham em busca de uma ltima bebida antes de ir para casa ou que se atrasavam ali
para evitar voltar para casa mais cedo do que o necessrio.
Enquanto eu procurava um reservado, Clay foi ao balco e voltou com dois cafs e
duas pores de bolo de ma caseiro. Coloquei a comida de um lado e abri o Bear
Valley Post sobre a frmica da mesa. O incidente no bola de boliche ocupava parte da
primeira pgina. O jornal fazia referncia a uma grande festa privada cheia de
"atividades ilegais, o que o fazia aparecer como algo muito mais divertido do que era
em realidade. Embora o jornal no dissesse explicitamente, insinuava que a maioria dos
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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festeiros era de fora de Bear Valley. Claro.
Os detalhes em relao ao incidente eram escassos, devido a uma combinao de
fatores mitigantes, quer dizer, que a maioria das testemunhas estava bbada ou drogada
e que o criminoso era um co morto, o que o fazia duplamente difcil de entrevistar. Os
fatos se reduziam a isto: um grande co massacrou trs pessoas em uma festa antes que a
polcia o matasse. No era exatamente material para encher a primeira pgina, por isso o
reprter o inflou com suficiente especulao para conseguir um trabalho em um jornal
sensacionalista. Supunha-se que o co morto era um co e todos pareciam contentes com
essa explicao, o que significava que as autoridades no tinham inteno de chamar
peritos em vida selvagem ou enviar os restos a um laboratrio caro da cidade. O que
restou de Brandon j tinha sido eliminado", quer dizer, incinerado na sociedade
protetora dos animais. Nem sequer fizeram testes para ver se tinha raiva, provavelmente
porque se considerava que qualquer um que tivesse participado da festinha merecia
suportar algumas injees anti-rbicas, embora fosse mais para que os torturassem um
pouco. Alm disso, o reprter deixou obvio que o co morto esteve envolto no
assassinato da jovem da semana anterior, embora a polcia no descartasse a
possibilidade de que houvesse mais ces selvagens no bosque, especialmente porque os
jovens viram dois ces na noite anterior. Finalmente, e alm de tanta especulao, no
havia nenhuma meno de que algum tivesse visto um homem ou a uma mulher loiros
que pareciam estar envolvidos no incidente. Tal como eu esperava, Clay e eu no fomos
mais que duas testemunhas no meio do caos.
uma perda de tempo queixou-se Clay. Esteve lendo o artigo ao reverso. No h
nada.
Bem. Isso o que queramos, assim no foi uma perda de tempo que nos
assegurssemos.
Bufou e cravou seu garfo no bolo, provocando uma exploso de crosta. Logo a afastou
sem prov-la.
Est seguro sobre quem farejou no Logan inalei para suportar a dor que me
produziu pronunciar seu nome foi algum a quem no reconheceste.
Sim os olhos de Clay se nublaram e logo faiscaram de ira Um vira-lata. Um puto
vira-lata. Dois em Bear Valley. De todos...
No podemos ficar pensando nisso agora. Esquea como e por que. Concentre-se em
quem.
No reconheci o aroma. E nenhum dos outros o reconheceu. O que quer dizer que
um vira-lata com quem no cruzamos o suficiente para lhe reconhecer o aroma.
Ou novo. Igual a Brandon.
Clay franziu o sobrecenho.
Dois novos vira-latas? Um j bastante raro, mas...
Bom, deixemo-lo a. No o reconheceu. Vejamos se conseguimos ouvir algum falar
do que aconteceu ontem noite.

Clay se queixou. Ignorando-o, recostei-me no respaldo para ouvir a conversa ao redor,
enquanto procurava beber o caf. A experincia era deprimente, no porque ningum
falasse do incidente, mas sim porque o que a maioria discutia no dava uma imagem
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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muito positiva da vida das pessoas comuns. De todos os cantos da sala chegavam
queixam de patres injustos, colegas de trabalho traidores, filhos ingratos, vizinhos
intrometidos, trabalho aborrecido e matrimnios ainda mais aborrecidos. Ningum
parecia feliz. Possivelmente no fosse to ruim como parecia. Possivelmente as relaes
impessoais nos cafs do pequeno povoado fossem perfeitas para descarregar as
frustraes corriqueiras da vida que as pessoas das grandes cidades levariam a um
terapeuta, investindo muito mais que um dlar em caf para descarregar-se.
Enquanto escutava, comeou a aflorar em mim uma antiga ira e ressentimento. Por
que as pessoas se queixavam de seus empregos, cnjuges, filhos e demais parentes? No
se davam conta de que eram afortunados por terem essas coisas? At quando era uma
menina odiava ouvir outras crianas queixarem-se de seus pais e irmos. Queria gritar:
se no gostam de suas famlias, dem eles, eu fico com eles e nunca me queixarei de ter
que ir cedo cama ou de que me incomode minha irm mais nova. Ao crescer estive
rodeada de imagens de famlias. Pareciam estar em cada livro, cada programa de
televiso, cada filme, cada publicidade. Me, pai, irmo, irm, avs, mascotes e lar.
Palavras to familiares para cada criana de dois anos que qualquer outro tipo de vida
seria impensvel. Impensvel e equivocada, simplesmente equivocada. Quando superei
a etapa da autocomiserao, percebi que perder estas coisas na infncia no significava
que as tinha perdido para sempre. Podia ter uma famlia quando crescesse. Nem sequer
teria que ser a tradicional marido, trs filhos, co e um lindo chal. Qualquer variao
seria boa. A questo era que poderia mudar minha vida e conseguir tudo o que a vida
me negou. E ento, no momento em que me tornava adulta, virei mulher lobo.
Meus planos para o futuro desapareceram em uma noite. Podia forjar uma vida no
mundo humano, mas nunca seria o que tinha imaginado. No teria marido. Viver com
algum j era bastante arriscado, compartilhar a vida com algum era impossvel: havia
muito que no poderia compartilhar. Nada de filhos. No havia antecedentes de uma
mulher lobo que desse a luz. Embora estivesse disposta a correr o risco, no podia
submeter uma criana possibilidade de viver como licntropo. Nada de marido nem
de filhos e, faltando isso, nenhuma esperana de formar uma famlia ou ter um lar.
Tirou-me tudo isso, colocando to longe de meu alcance como quando era menina.
Clay me olhava, com os olhos cheios de preocupao.
Est bem?
Buscou-me, no com comiserao nem com tapinhas no joelho, nem nada to bvio.
Em troca, deslizou sua perna para frente at tocar a minha e continuou estudando meu
rosto. Virei-me para olh-lo. Ao encontrarem-se nossos olhares, queria lhe gritar, lhe
dizer que no estava bem, que nunca estaria bem, que ele se assegurou de que assim
fosse. Roubou todos meus sonhos e toda esperana de ter uma famlia em um gesto de
egosmo imperdovel. Retirei minha perna bruscamente e desviei o olhar.
Elena? -disse, inclinando-se sobre a mesa . Est bem?
No. No estou bem.
Detive-me. Do que serviria dizer algo mais? Estvamos aqui para caar ao assassino de
Logan, no para brigar por nossos problemas pessoais. No era o momento. E no fundo
sabia que nunca chegaria o momento. Se falssemos, possivelmente federamos
solucionar a coisa. Era um risco que no estava disposta a correr. No queria esquecer e
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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no queria perdo-lo jamais. No me permitiria isso.
Arrumar as coisas com Clay significaria me render. Significaria lhe dar a vitria,
reconhecer que me morder valeu a pena. Ele teria a companheira que desejava, seria a
concretizao de seus sonhos. Mas eu tinha meus prprios sonhos e Clay no tinha
nenhum lugar neles. Licntropo ou no licntropo, no suportava a idia de renunciar a
eles, especialmente agora que vi as possibilidades que me abriam com o Philip. Tinha um
homem bom e decente, algum que reconhecia e inspirava meu potencial para ser boa e
normal, coisa que Clay no via, que nem sequer se importavam e por certo que nunca as
inspiraria. Talvez o casamento, os filhos e a casa nos subrbios no fossem nossos
destinos, mas, como disse, qualquer variante era bom. Com Philip podia imaginar uma
variante satisfatria, com um companheiro, um lar, uma famlia. 'Tudo o que tinha que
fazer era sair desta confuso com a Matilha, voltar para Toronto e aproveitar a
oportunidade que me oferecia.
No repeti. No estou bem. Logan est morto e seu assassino anda solto e estou
em um estpido caf com... Engoli o resto. supe-se que escutaramos os rumores,
recorda? Cale-se e escute.
Fiz um esforo por voltar a me concentrar nas conversaes em redor. As pessoas
seguiam se queixando de suas vidas, mas os ignorei e me concentrei em tentar escutar o
que queria ouvir. Junto com a desesperana geral, aqui e ali os clientes comentavam os
eventos da noite anterior com esse tom lento que diz "aonde iremos parar, que as
pessoas provavelmente usaram desde que os primeiros homens viram seus vizinhos
caminharem em duas patas. Embora a maioria das pessoas repetisse o que dizia o artigo
do jornal, alguns faziam nascer rumores que andariam por todo o povoado at o
anoitecer. Uma mulher em um canto ao fundo disse que escutou que no se tratava de
um animal selvagem, mas sim de um co de guarda de um parente do prefeito que
fugiu, e que subornaram ou ameaaram polcia para que dissesse que foi um co
selvagem. Alguns inclusive pensavam que o co no teve nada que ver, que quem os
matou foram as pessoas enlouquecidas pelas drogas. Ficaram loucos, iniciou-se o pnico
e os policiais mataram a um pobre co. As pessoas s vezes podem ser muito criativas.
Surgiram outras histrias aqui e ali, embora nenhuma to interessante como essa. Mas o
certo que ningum falava de lobos muito grandes nem exigiam uma investigao para
saberem por que o animal atuou como o fez. Todos achavam obvio que era
perfeitamente natural que um co se descontrolasse e massacrasse a vrias pessoas em
um local lotado de gente. Enquanto eu prestava ateno conversao, Clay fazia de
conta que lia o jornal. Digo "fazia de conta" porque eu sbia que no se importava um
caralho com o que acontecesse em Bear Valley ou em nenhum outro lugar do mundo.
Igual a mim, tentava pescar algum rumor; embora no o admitisse.
J podemos ir? perguntou finalmente.
Sorvi meu caf frio. Ficavam trs quartos da taa. Clay nem sequer tinha provado o
seu. E nenhum dos dois havia meio doido o bolo. Por uma vez a fome era uma
preocupao distante.
Suponho que podemos comear disse, olhando pela janela . Falta muito para que
escurea, mas provavelmente levaremos um tempo para encontrar um rastro.
Comearemos pelo estacionamento?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
96
No podia dizer o estacionamento onde encontramos Logan, mas Clay sabia a qual
me referia. Assentiu, ficando de p e abriu a porta para mim sem dizer mais nada.

Quando amos nos aproximando do estacionamento do armazm, detive-me antes de
dobrar a esquina, para no ver o lugar onde tnhamos encontrado Logan. Meu corao
pulsava to rpido que tive que me concentrar para poder respirar.
Posso faz-lo disse Clay, pondo sua mo em minhas costas. Fique aqui. Eu
encontrarei o rastro e verei aonde conduz.
Afastei-me de sua mo.
No pode. O aroma j se desvaneceu muito ontem noite. Ser pior agora. Necessita
de meu olfato.
Posso tentar.
No.
Virei esquina, vacilei, quase me detive, logo me impulsionei para frente. Quando vi o
lugar onde esteve estacionado o Explorer, desviei o olhar, mas foi muito tarde. Minha
mente j reproduzia a cena de ontem noite: eu corria para frente, Clay me chamava e
corria detrs de mim. Ele percebeu o que tinha acontecido antes que eu. Por isso tentava
me deter. Agora eu entendia, embora seu motivo no importasse agora. Era s uma
distrao sem sentido que atravessou minha mente, evitando que pensasse no acontecido
aqui na noite anterior.
De dia, o estacionamento parecia outro lugar. Havia gente indo dos automveis aos
negcios e vice-versa. Igual ao caf, o estacionamento estava cheio de trabalhadores, a
maioria de jeans, alguns em ternos. Carregavam bolsas com o jantar da noite ou leite ou
po comprado a caminho de casa. Ningum prestou ateno em ns quando passamos
rumo a um lugar perto da grade posterior. O lugar estava vazio, ficava muito longe do
comrcio para que o usassem, salvo nos dias em que havia mais clientes.
Fiquei do lado direito, onde esteve a porta do acompanhante do Explorer. Fechei os
olhos e inalei. O aroma de Logan me alagou o crebro. Senti que meus joelhos
amoleciam. Clay me pegou pelo cotovelo. Firmei-me, logo voltei a aspirar, tentando
bloquear o aroma de Logan. No funcionou. Seu rastro deslocava todos os aromas menos
familiares. Com os olhos fechados podia imagin-lo parado diante de mim,
suficientemente perto para toc-lo. Abri os olhos. A luz do dia fez a fantasia retroceder
para as sombras de minha mente.
Eu... tentei falar . Tenho problemas.
Est aqui disse Clay . Muito leve, mas registro algo. Espere um segundo e verei se
posso pesc-lo.
Foi esquerda, deteve-se, sacudiu a cabea, logo voltou e se dirigiu em outra direo.
Em sua segunda ronda dos quatro pontos cardeais, voltou para mim.
Encontrei disse. O rastro vem do leste, mas o vira-lata saiu por aqui.
No havia nada em um rastro que pudesse dizer sequer ao melhor rastreador se
algum vinha ou ia. Clay sabia por que o rastro de aproximao tambm traria o aroma
de Logan, embora no dissesse.
Vem aqui e tenta disse.
Ao me afastar do lugar comecei a me tranqilizar. Clay estava parado perto de uma
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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minivan. Fui para junto dele e farejei. Sim, aqui estava o rastro. Um licntropo
desconhecido. O rastro me conduziu atravs do estacionamento, me afastando do
armazm para a loja de artigos de caa e ferragens. Dali ia para oeste pelo atalho, logo
voltava para a rua principal, onde o seguimos at o centro. Se isso parece incrivelmente
rpido e fcil, no foi assim. Caminhando direto do ponto A ao B, teramos demorado
quinze minutos. Mas levamos mais de uma hora, perdamos a cada momento o rastro,
retrocedamos para descobrir onde tinha entrado o vira-lata e voltamos a comear. Uma
ou duas vezes perdi o rastro por completo. O rastreamento como humana fazia o assunto
ainda mais difcil, no s porque tinha menos olfato, mas sim porque no podia pr o
nariz contra o cho para cheirar. Bom, podia, mas a sociedade educada geralmente
rechaa tais aes e normalmente conduzem a uma visita ao psiquiatra mais prximo.
Algum que fareja ou anda em crculos j provoca surpresa. Assim devia ser discreta.
Embora pudesse convencer Clay a esperar at a meia-noite, no poderamos nos
transformar em lobos. Depois de tudo o que tinha acontecido em Bear Valley, isso no
seria um risco, seria suicdio.
O centro de Bear Valley fechava as cinco, permitindo que os empregados chegassem a
suas casas a tempo para jantar e ignorando o fato de que todos trabalhavam at as cinco e
precisavam ir s compras depois. Semelhante descuido podia ser a explicao da
quantidade de locais vazios no centro, o que afetava a um comrcio, logo ao seguinte e
ao seguinte, at que a quadra inteira parecesse como um aviso gigante da Imobiliria de
Bear Valley. Para quando chegamos ali, j eram mais de sete e at o mais dedicado dos
clientes j tinha partido. As ruas estavam vazias. Todo o povoado parecia ter fechado.
Pude dissimular menos o rastreamento e avanamos outros oitocentos metros em vinte
minutos. O rastro chegava a um Burger King que foi separado de seus similares no lado
leste do povoado. Aparentemente o vira-lata parou aqui para colocar combustvel.
Passados outros vinte minutos de dar voltas, avanos e retrocessos voltei a encontrar o
rastro. Dez minutos mais tarde estvamos parados no estacionamento do Big Bear Motor
Lodge.
Isto sim que no foi nenhuma genialidade murmurei enquanto estudvamos a
coleo de pick Up e automveis de quatro portas . H dois hotis. No era muito difcil
encontr-lo.
Voc foi quem insistiu para que comessemos pelo estacionamento do armazm.
No ouvi voc propor outra coisa.
Isso se chama instinto de sobrevivncia, carinho. Sei quando fechar a boca.
Desde quando...? detive-me, notando a presena de uma mulher junto a sua porta
que no tentava ocultar que escutava nossa conversa. Sempre lindo saber que podemos
oferecer entretenimento quando a novela da tarde j terminou.
Dei a volta em uma pick up e olhei o edifcio de dois andares.
Quantos quartos h?
Trinta e oito disse Clay sem um segundo de demora. Dezenove em cada andar.
Uma porta principal embaixo. No primeiro andar uma entrada principal e uma de
emergncia.
Se fosse eu, conseguiria um quarto no trreo disse . Acesso direto. Mais fcil entrar
e sair a qualquer hora.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Mas o primeiro andar tem balces, carinho. E uma grande vista.
Olhei para o outro lado do caminho, a um lote vazio coberto de mato, entulhos e lixo
suficiente para manter um grupo de meninos exploradores ocupados todo um dia.
trreo disse Eu comeo. V se esconder.
Sim. J jogamos este jogo. Eu me oculto. Voc nunca procura. Sou lento, mas comeo
a ver seu jogo.
V.
Clay sorriu, puxou-me pela cintura e me beijou, logo escapou antes que pudesse
castig-lo. Embora fosse bom ver que estava de melhor nimo, seria ainda melhor que
no fosse perspectiva de um assassinato o que lhe produzira tal coisa. Eu tambm
estava melhor dos nimos. Nas ltimas duas horas de rastreamento esqueci o
ressentimento que saiu superfcie no caf. Isso podia ser sinal de que fugia do assunto
ou uma diminuio da capacidade mental, mas na realidade era uma tcnica de
sobrevivncia. Se me concentrasse em minha ira contra Clay cada segundo que me visse
obrigada a passar com ele, teria me convertido em uma bruxa amargurada muitos anos
atrs. Alguns obvio poderiam sustentar que tinha cruzado essa porta fazia muito
tempo, mas essa no a questo.
Enquanto Clay ia em busca de um lugar adequado para esperar, eu olhei para ver se
podia encontrar algo que justificasse minha presena perto de um Impala enferrujado vi
uma folha de papel. Era um recibo de um novo rdio para o carro, que esperei que no
tivesse sido colocado no Impala, porque se fosse assim, o dono tinha gasto mais no
sistema de udio que no automvel. Tirei a folha molhada do recibo, alisei-a, depois a
dobrei ao meio e me dirigi caminho que levava a entrada do andar superior. Comecei da
sada de emergncia e lentamente fui pelo caminho, fazendo de conta que estudava o
recibo e me permitindo parar de forma prolongada diante de cada porta a farejar. A
mulher fofoqueira tinha voltado para seu quarto. Duas pessoas saram de um dormitrio
perto do fundo, mas ignoraram a jovem que tinha tal dificuldade para encontrar o
nmero do quarto escrito em seu papel. As pessoas acham que as loiras tm menos
capacidade mental.
Quando cheguei ao final, encontrei o rastro do licntropo, que se dirigia recepo.
Aqui o aroma era forte, o que indicava que passou vrias vezes por este lugar. Um
quarto do primeiro andar ao qual s se podia acessar por esta entrada. Possivelmente
gostava de ver o amanhecer sobre um lote vazio. Atravessei a borda do estacionamento.
Clay saiu de detrs do edifcio antes que pudesse procur-lo.
Suficiente Vamos disse.
V, carinho? Nunca ningum disse que os vira-latas tm crebro.
Joguei o recibo no meio dos arbustos e fomos para a porta principal. Ao ingressar na
recepo, Clay me segurou pela cintura e comeou a queixar-se de um jantar imaginrio
em um restaurante local. Enquanto ele tagarelava, eu vi as escadas esquerda do balco
e fiz que nos encaminhssemos para l, assentindo enquanto Clay se queixava de ter tido
que esperar a conta por vinte minutos. O show no era necessrio. O empregado nem
sequer elevou a vista quando passamos.
Vamos, o rastro chegava terceira porta da esquerda. Clay pegou o tric e o quebrou
com um rudo baixo. Enquanto eu vigiava para denunciar a possvel presena de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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ocupantes do hotel, Clay esperou para ver se algum dentro do quarto respondia ao som
da fechadura ao se quebrar. No escutou nada e abriu a porta suavemente. As cortinas
estavam corridas e o quarto s escuras. Uma porta mais frente se abriu ao corredor.
Empurrei Clay para frente e nos introduzimos no quarto antes que pudessem nos ver.
Clay olhou no banheiro para assegurar-se de que o vira-lata no estava ali, depois
tirou uma moeda do bolso.
Cara, ficamos esperando por ele, Coroa o procuramos.
Devemos ficar aqui disse . Investigar, procurar pistas enquanto esperamos.
Clay elevou a vista.
Tudo bem disse. Jogue a bendita moeda.
Quando saiu cara, estirei a lngua para ele. Tentou pegar minha lngua com os dedos,
mas a retirei a tempo.
A prxima vez serei mais rpido disse, depois olhou ao redor. Que esperas
encontrar?
Algo que explique por que tivemos dois novos licntropos em Bear Valley em uma
semana. Isso no o preocupa nem desperta sua curiosidade?
obvio, corao. Mas estou deixando a preocupao e a curiosidade para outro
momento. Haver bastante tempo para analis-lo quando este vira-lata morrer. No vou
esperar que este filho da puta ataque vocs enquanto tento averiguar o que faz aqui.
E voc acredita que estou fazendo voc perder seu tempo?
No, acredito que tenta usar o tempo de forma eficiente. Isso bom. S digo que no
espere que me mostre muito disposto a revistar as gavetas do armrio enquanto o vira-
lata anda por nossas ruas.
Ento v olhar pelo balco enquanto procuro.
obvio que Clay no fez isso. Ajudou-me a procurar, depois de deixar claro que no o
entusiasmava. A mim tampouco, mas sei que no poderia deixar passar uma
oportunidade. Alm disso, procurar entre as coisas do vira-lata mantinha minhas mos e
mente ocupadas, restando pouco tempo para pensar em por que rastrevamos a este
vira-lata.
Clay comeou pelo banheiro. Passaram-se uns dez minutos antes que dissesse:
Grande novidade. O tipo usa o xampu e o sabo do hotel. No quebrou o selo do
inodoro. H um barbeador eltrico descartvel, no h sinais de escova de dente, pasta
dental ou enxge. Assim procuramos um tipo com mau hlito. Isto serve de algo,
corao?
Neguei-me a responder. As paredes eram muito finas para andar gritando. Alm
disso, eu tampouco encontrei grande coisa. Encontrei dois pares de jeans, trs camisas e
vrios pares de meias e roupa ntima, todas usadas e deixadas em uma cadeira para
lavar. Tinha desenhado pentagramas e cruzes investidas na Bblia sobre a mesinha.
Maravilhoso. E muito pouco original. Quero dizer que se a pessoa quer desenhar
smbolos satnicos em uma Bblia o mnimo que se pode fazer no desenhar coisas que
se encontram em cada edio do World Weekly News. Um licntropo pouco criativo e
obviamente desinformado. Desiludiria-se ao saber que um licntropo provavelmente
conhece mais a receita para fazer carne ao forno que a um rito satnico. Em dez anos, o
diabo nunca entrou em contato comigo com instrues especiais ou sequer para me
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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saudar. Mas tampouco o tinha feito Deus. Possivelmente isso significa que no existem.
O mais provvel era que nenhum dos dois queira ser responsvel por mim.
Deus, tem que ver o que h aqui, corao disse Clay saindo do banheiro . Colnia
e desodorante. Se no soubssemos que o vira-lata era novo por seu aroma, saberamos
pela maneira que usa o olfato. Dito de outro modo, nenhum licntropo com experincia
usaria colnia, pelo menos no se seu sistema olfativo funcionar. O aroma de si mesmo
sufocaria todo rastro, fazendo que seu nariz fosse intil. Eu nem sequer uso sabonete
perfumado. E no to fcil encontrar produtos de toalete feminino sem perfume. As
indstrias dos cosmticos parecem obcecadas em fazerem que as mulheres cheirem
diferente do que so. E nos pomos essas coisas sem sequer tentar produzir um aroma
uniforme, mesclando o xampu com aroma de morangos com o desodorante com aroma
de talco de beb e sabonete de lils, agregado ltima fragrncia do Calvin Klein.
Quando tinha a desgraa de subir em um elevador cheio de manh cedo, a mistura de
aromas me deixava com dor de cabea at o meio-dia.
Logo depois de olhar pela janela alguns minutos, Clay se aproximou de aonde eu
revolvia a lata de lixo junto cama.
Ofereceria-lhe ajuda disse mas parece ter tudo sob controle.
Obrigado.
Olhaste debaixo da cama?
No posso. O marco chega ao piso. Usei o lpis do hotel para puxar um leno de
papel usado. No direi para que foi usado, mas os licntropos no se resfriam nem
sofrem de gripe.
Olharei debaixo do colcho disse Clay.
Tinha esquecido. Os licntropos muitas vezes usam identificao falsa e ocultam sua
documentao autntica em algum lugar sob o colcho.
Nada de identificao disse Clay . S este caderno de recortes. Suponho que no
interessa a voc.
Levantei-me to rpido que bati no brao extensvel do abajur. Clay sorriu e sustentou
um lbum azul longe de meu alcance.
Meu disse, com sorriso mais largo. Tendo-o fora de meu alcance, passou umas
pginas, logo parou de sorrir e fechou o livro. Pensando bem, todo teu. Que o
desfrute, corao. Eu ficarei junto janela. Depois me faa uma sntese.
Peguei o lbum e me sentei na beira da cama. Era um lbum de fotos, do tipo que tem
um filme transparente que se pode separar das pginas e colocar as fotos debaixo. Em
vez de fotos, o vira-lata encheu esse lbum com recortes de jornal. No recorte ao azar. A
no ser um que seguia um tema especfico: assassinos seriais. Passei pgina detrs de
pgina de artigos, vendo alguns rostos conhecidos Berkowitz, Dahmer; Bundy e
outros que nunca tinha visto. Todos os recortes eram sobre assassinos em srie, mas,
alm disso, continham um elemento chave; algo que o vira-lata destacava: a quantidade
de pessoas assassinadas. Inclusive utilizava cores diferentes, marca texto amarelo para a
quantidade de pessoas que o assassino dizia ter assassinado, azul para a quantidade de
corpos encontrados e rosa para a quantidade que as autoridades lhe atribuam. Nas
margens, o vira-lata escreveu notas, com os totais e comparaes entre as cifras, como
um fantico que recolhesse estatsticas de algum evento esportivo macabro.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Os artigos enchiam a metade do lbum. Estava para fech-lo, quando notei que havia
mais recorte perto do final. Passei as pginas vazias e encontrei outro artigo. Diferente
dos outros, este no tinha nada que ver com as estatsticas. Em realidade nem sequer
falava de um assassino. O artigo, datado de 18 de novembro de 1995, do Chicago
Tribune, simplesmente dizia que um corpo de uma jovem foi encontrado. O artigo
seguinte dava mais detalhes, dizendo que esteve desaparecida uma semana e que parecia
ter estado cativa, antes que a estrangulassem e a atirassem detrs de uma escola
primria. Passei rapidamente as seguintes pginas. Encontraram-se trs mulheres mais,
com o mesmo patro de crime. Logo escapou uma, que contou uma histria horrorosa de
uma semana de violaes e torturas enquanto estava cativa no poro de uma casa
abandonada. A polcia foi a casa e rastreou a um tal de Thomas Le Blanc, tcnico de
laboratrio mdico de trinta e trs anos. Entretanto, quando chegou o momento de que a
mulher identificasse a Le Blanc, no pde faz-lo. Seu atacante s esteve com ela s
escuras e nunca falou com ela. E mais, Le Blanc estava fora da cidade a trabalho na
semana que a terceira mulher desapareceu. Em uma foto de jornal Le Blanc poderia se
passar pelo irmo mais velho de Scott Brandon, no por nenhuma semelhana fsica, mas
sim pela total banalidade do rosto, bem arrumado, mais ou menos elegante e totalmente
insignificante, o branco anglo-saxo tpico da Wall Street, livre de todo os traos tnicos
ou de interesse. O rosto do amvel assassino em srie de seu bairro.
Em face de uma investigao extensa, a polcia no pde encontrar evidencias
suficientes para julgar Le Blanc. O ltimo artigo do Tribune falava que Le Blanc
empacotou suas coisas e saiu de Chicago. Embora o sistema judicial no pudesse
condenar Le Blanc, o povoado de Illinois sim o fez. Esse era o ltimo artigo de Chicago,
mas o lbum no terminava ali. Contei mais seis artigos nos ltimos anos, que seguiam o
rastro de mulheres desaparecidas atravs do meio oeste at a Califrnia, para voltar
depois para a costa leste. Thomas Le Blanc esteve movendo-se. O ltimo recorte datava
por volta de oito meses e era de Boston.
Merda disse Clay, me sobressaltando -. Caralho, no pode ser. Deixa o lbum,
carinho. Tem que ver isto.
Fui at a janela. Clay afastou a cortina o suficiente para que pudesse olhar. Perto da
porta da entrada estacionou um Acura. Saam trs homens dele. Quando vi o rosto do
homem que saa do lado do condutor no me sobressaltei ao ver a cara que aparecia nas
fotos do Tribune: o alto Thomas Le Blanc, de cabelo escuro, que no parecia bem como
nas fotos. obvio que Clay no o reconheceu e nem sequer sabia a essa distncia que era
um licntropo. Os outros dois homens foram quem chamaram sua ateno. Karl Marsten
e Zachary Cain, dois vira-latas que ambos conhecamos muito bem.
Marsten e Cain? Que demnios fazem juntos? - disse Clay.
Quem o outro tipo? Deve ser o que procuramos.
O assassino de Logan disse . Thomas Le Blanc. Temos que sair daqui.
Um momento disse Clay, mantendo-se firme quando tentei arrast-lo para a porta
. No vamos a nenhuma parte. Viemos para isto, carinho.
Devamos matar um vira-lata. Um vira-lata sem experincia. Trs contra dois j
ruim, mas...
Podemos domin-los.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Sem dormir nem comer em vinte e quatro horas?
Podemos...
Eu no posso.
Clay se deteve. Ficou calado um momento.
Se ficar eu fico adicionei . Mas no estou em condies de brigar. Estou exausta e
faminta e ainda me di o brao pelas mordidas do cachorro e de Brandon.
Estava jogando sujo, mas no me importava. A expresso de Clay mudou, primeiro foi
de incerteza e logo decidida.
Bem disse . Vamos. Resta algum tempo...?
O balco. Teremos que descer. Nada de saltar.
Seu brao? olhou a ferida cicatrizada. Curamos rpido e parecia bom, mas no ia
admitir isso para ele. No agora.
No vou morrer disse.
Clay foi at a porta do balco, afastou as cortinas para um lado e abriu a porta.
Eu deso primeiro e seguro voc se no poder se sustentar.
Ele j tinha descido antes que eu pudesse sair ao balco. Passei uma perna sobre a
borda, ento olhei para trs e vi o lbum sobre a cama. Devia t-lo pego. Haveria mais
pistas para me ajudar a entender ao Blanc e encontrar a maneira de mat-lo.
Vou em seguida disse ao Clay de acima.
No!
J tinha voltado para quarto. Peguei o lbum da cama justo quando senti que
colocavam um carto na fechadura eletrnica.
No funciona disse uma voz desconhecida do outro lado da porta . Teria que
acender a luz verde.
Lancei-me da cama ao balco, me enredando com um calo e saindo disparada pela
porta. Quando me lanava do balco, algum testou a porta, descobriu que estava aberta
e a empurrou. Eu me deixei cair. Clay no estava ali para me receber. Quando me virei o
vi correndo para a porta da recepo. Ia gritar seu nome, pensei melhor e em vez disso
corri e o empurrei. Camos ao cho justo diante da porta do primeiro quarto. O lbum
escapou de minhas mos e bateu sob o queixo dele com fora.
Opa disse. Sinto muito.
Quase soa como se o dissesse a srio grunhiu, com o lbum em uma mo . Voltou
por causa disso?
Necessito-o.
Murmurou algo. No pude escutar o que disse e provavelmente tampouco queria faz-
lo. Seguamos escancarados no caminho, eu em cima dele. Elevei a cabea para escutar.
Algum saiu ao balco no quarto de Blanc. Escutei o rangido do corrimo quando a
pessoa se inclinou, olhando o estacionamento. Mas ns estvamos ocultos a seu olhar.
Psiu sussurrei.
J sei moveu os lbios em silncio.
Moveu-se debaixo de mim, levando suas mos a meu traseiro. No era uma posio
incmoda no que quisesse estar ali mas dadas s circunstncias... Ai; no importa.
Assustou-me sussurrou.
Levou uma mo a minha cabea, empurrou-me para ele e me beijou. Fechei os olhos e
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o beijei. Afinal de contas, se tnhamos que estar deitados no caminho em frente a um
hotel, ao menos teramos que estar fazendo algo que pudesse explic-lo, verdade?
Passado um minuto vi que seus olhos se moviam para a direita e se fechavam um pouco.
Afastei-me, e ele saiu de abaixo de mim e centrou o olhar colrico em uma pessoa as
minhas costas. Olhei sobre o ombro e me encontrei com a mulher que nos viu discutir
antes. Estava de novo junto a sua porta, tomando uma lata de Coca Diet, olhando o
espetculo.
Quer carinhos tambm? disse Clay, ficando de p e sacudindo sua roupa.
um pas livre respondeu a mulher.
Clay tinha pouca pacincia com os humanos em geral, mas ainda menos com humanos
que invadiam sua privacidade e no sabiam como justificar-se. Apertou os dentes e
passou junto a mim. Deteve-se de costas para mim, olhando mulher. Levou um
segundo. Os olhos da dama em questo se arregalaram, retrocedeu e fechou a porta com
uma batida e com ferrolho. Clay no lhe disse nada. S lhe deu seu olhar de pura
malevolncia que nunca deixou de fazer fugir aos humanos. Tentei aperfeioar o olhar
uma vez. Quando acreditei que j o tinha obtido, provei-o com um idiota que me
incomodava sempre em um bar. Em vez de assust-lo, os motores aceleraram mais
ainda. Aprendi minha lio. As mulheres no podem com a malevolncia.
A esta altura o que saiu ao balco de Blanc j no estava ali. O passo seguinte poderia
ser que descesse para olhar ali fora, dado que Marsten e Cain poderiam cheirar que Clay
e eu estivemos no quarto de Blanc e provavelmente suporiam que no tnhamos sado h
muito tempo. Empurrei Clay para frente e fomos pelo caminho, grudados ao edifcio.
Cruzei os dedos com a esperana de que no sassem. No que no pudssemos
escapar. Podamos faz-lo. Mas Clay no o faria. Se viessem e o vissem, no ia correr.
Por sorte demos a volta ao edifcio e pudemos ir sem que nos vissem. A volta at o
automvel foi rpida. Em menos de vinte minutos retornvamos a Stonehaven em busca
de reforos.



SINCRNICO

De maneira nenhuma disse Jeremy, levantando-se de sua cadeira para ir para perto
da lareira.
Estvamos todos no escritrio. Os outros estavam nos esperando. Clay e eu estvamos
sentados no sof, Clay na borda, preparado para saltar imediatamente nem bem Jeremy
dissesse que podamos ir atrs dos vira-latas. Nick estava parado junto a Clay,
tamborilando com os dedos no respaldo do sof, igualmente ansioso, mas esperando que
Clay lhe desse a ordem. Peter e Antnio estavam sentados no outro lado da sala. Os dois
pareciam cheios de fria pelas novidades, mas se mantinham compostos, graas ao
maior controle que lhes davam a idade e a experincia-.
No posso acreditar que me perguntaram isso continuou Jeremy. Os dois foram
quando expressamente proibi Clayton de ir atrs desse vira-lata. Depois Elena me liga
para dizer que s esto tentado averiguar como seguiu o de ontem noite e de algum
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modo terminam...
No foi intencional disse . Mas encontramos o rastro. No podamos deixar a
oportunidade passar.
Jeremy me deu um olhar que me aconselhava a fechar a boca antes que me
complicasse mais. Fechei-a.
Jeremy voltou para junto de sua cadeira, mas no se sentou.
Ningum vai atrs destes trs esta noite. Estamos todos exaustos e nervosos pelo que
aconteceu ontem noite, especialmente vocs dois. Se no tivesse acreditado no que
Elena me disse quando ligou, teria ido para l esta tarde para traz-los de volta.
Mas no fizemos nada disse Clay, ficando de p.
S porque no tiveram oportunidade.
Mas...
Ontem tnhamos um vira-lata no povoado. Hoje est morto e apareceram mais trs.
No s isso, mas tambm dois dos quatro Karl Marsten e Zacary Cain, dois vira-latas
que j dariam bastantes problemas cada um de seu lado.
Esto totalmente seguros de que eram Marsten e Cain? perguntou Antnio . So os
dois vira-latas que dificilmente consigo imaginar juntos. O que teriam em comum?
Os dois so vira-latas disse Clay.
Eu suspeito que no estejam associados em equipe disse . Marsten deve ter
dominado Cain por algum motivo. claramente uma relao de lder e seguidor. Karl
quer o territrio. Faz anos que o quer.
Se quiser o territrio, tem que unir-se Matilha disse Jeremy.
Caralho cuspiu Clay . Karl Marsten um ladro, um trapaceiro filho da puta que
cravaria uma adaga nas costas de seu pai para conseguir o que quer.
E no se esqueam dos novos recrutas disse . Brandon e Le Blanc so assassinos.
Humanos assassinos. Algum provavelmente foi Marsten encontrou-os, mordeu-os e
os treinou. Est formando um exrcito de vira-latas. E no qualquer vira-lata, a no ser
pessoas que sabem espreitar e matar. Sabem faz-lo e gostam.
Antnio sacudiu a cabea.
Mesmo assim no imagino Marsten detrs disto. Que seja parte do assunto sim. Mas
isso de criar novos vira-latas, no ... fino. E recrutar Cain? Esse tipo um idiota.
Desequilibrado, mas idiota. So muitas as possibilidades de que faa desastres. Marsten
sabe disso.
O que importa, caralho! disse Clay, explodindo em seu assento . Temos trs vira-
latas no povoado. Um deles matou Logan. Como podem ficar a sentados discutindo as
motivaes dos caras e...?
Sente-se, Clayton disse Jeremy com voz contida.
Clay ia se sentar, depois se deteve. Por um instante ficou ali, com dois instintos
batalhando em seu interior. Ento apertou os punhos. Endireitou-se, virou-se, e foi para a
porta do escritrio.
Se for, no volte a voz de Jeremy era pouco mais que um sussurro, mas deteve Clay
. Se no puder controlar o impulso, Clayton, ento vai para baixo, jaula. Prenda-se at
que passe. Mas se o problema que no quer se controlar e for, ento no ser bem-
vindo aqui.
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Jeremy no queria dizer isso. Bom, sim, mas no como soou. Se Clay fosse e Jeremy o
tinha ameaado desterra-lo, teria que faz-lo. Mas no deixaria Clay ir sem lutar. A
ameaa era a melhor maneira de evit-lo. Clay ficou ali, com a mandbula movendo-se
como se mastigasse a fria e as mos apertadas aos flancos, prontas para golpear a
algum ou a algo. Mas no se moveu. No o faria. O desterro seria a morte para Clay,
no por foras exteriores, a no ser internas, a morte lenta de separar-se daquilo no que
mais acreditava. Nunca deixaria ao Jeremy ou Matilha. Eram sua vida. Era o mesmo
que Jeremy o ameaar de morte se fosse atrs dos vira-latas.
Lenta e deliberadamente, Clay se virou para Jeremy. Seus olhares se encontraram.
Depois Clay saiu pela porta, para a esquerda, no para a garagem ou a porta da frente
no ser para o fundo da casa. A porta de atrs se abriu e logo se fechou com uma batida.
Olhei para Jeremy e logo segui Clay.

Segui Clay para o bosque. Caminhou at que j no podiam nos ver nem nos escutar
da casa e ento golpeou a rvore mais prxima com seu punho, sacudiu-se e gemeu.
Voaram gotas de sangue.
No podemos deixar que Cain e Marsten saiam com a sua. disse. No podemos
deixar que acreditem que retrocedemos. Temos que agir. Agora.
No disse nada.
Virou-se para me olhar.
Est equivocado. Estou to seguro de que se equivoca.
Fechou os olhos e respirou fundo, com o rosto decomposto. Mesmo a idia de
questionar ao Jeremy o transpassava at a alma como a pior traio possvel.
Tem razo continuou Clay logo depois de um instante . No estamos preparados.
Mas no posso ficar quieto enquanto o assassino de Logan anda por a, sabendo que os
vira-latas poderiam atacar voc ou ao Jeremy. Ele tem que saber disso.
No disse nada, sabendo que no procurava uma resposta, que s tentava entender as
coisas por si mesmo.
Caralho! gritou ao bosque . Caralho, caralho, caralho!
Novamente golpeou com o punho a rvore mais prxima. Passou a mo por seus
cachos e pelculas vermelhas de sangue seco se esparramaram por seus cabelos
dourados. Fechou os olhos, seu peito subia e baixava convulsivamente. Depois soltou o
ar, tremendo, e me olhou. Em seus olhos brilhavam a ira frustrada, mesclada com o
medo.
Estou tentando, carinho. Sabe que tento. Tudo em mim grita para que v atrs deles,
que os cace, que destroce a garganta deles. Mas no posso desobedecer a ele. No posso.
Sei.
Aproximou-se de mim, abraou-me, sua boca sobre a minha. Seus lbios tocaram os
meus levemente, experimentando, esperando ser rechaado. Eu podia sentir o sabor de
seu pnico, sua luta por controlar os instintos que bramavam em seu interior com mais
fora que algo que eu pudesse imaginar. Abracei-o, subindo as mos at enred-las em
seus cabelos, aproximando-o de mi. Um gemido de alivio o sacudiu. Deixou cair o manto
de controle e me pegou, me empurrando contra uma rvore.
Rasgou minha roupa, arranhando minha pele com suas unhas ao me tirar a camisa e as
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calas. Eu no conseguia abrir seus jeans, os dedos torpes porque me contagiei com seu
desespero como fogo. Ele baixou seus jeans e os lanou longe.
Seus lbios voltaram para meus e me machucaram. Enredei a mo em seus cabelos,
atraindo-o para mim. Lanou um gemido rouco. Suas mos percorreram meu corpo nu,
amassando, agarrando, meus quadris, minha cintura, meus seios. A casca da rvore se
cravou em minhas costas. Quando seus dedos chegaram ao meu rosto, cheirei o sangue
em suas mos, senti que voltava a sangrar e seu sangue caa sobre minhas bochechas
quando me acariciou a face. O sangue gotejou sobre nossos lbios e eu o saboreei,
metlico e familiar.
Sem aviso, suas mos caram em cima de meu traseiro, me levantando do cho e me
colocando sobre sua cintura. Grunhiu ao deslizar-se dentro de mim. Meus ps
penduravam no ar e ele ficou no controle. Golpeou contra mim. Seus olhos, fixos nos
meus, pareciam me atravessar cada vez que empurrava. Do interior de seu peito saiu um
grunhido rtmico de desejo desesperado. Seus dentes apertados. Quando seus dedos se
afundaram em meus quadris, senti que a borda de sua aliana de casamento me cortava.
Ento seus olhos se nublaram. Vacilou e seu corpo se sacudiu convulsivamente. Lanou
um gemido baixo e sem flego e depois foi diminuindo o ritmo, afundando o rosto em
minha clavcula, e suas mos subiram para proteger minhas costas da rvore. Continuou
movendo-se lentamente dentro de mim, ainda duro. Ainda no tinha alcanado o clmax.
Era uma liberao de outro tipo, uma diminuio repentina da violncia que o tinha
atravessado.
Suas mos acariciaram minhas costas e me apertaram contra ele. Com seu rosto ainda
esmagado contra mim, sussurrou:
Amo voc, Elena. Amo tanto voc.
Abracei-o, colocando meu nariz em seu ouvido e murmurando sons sem palavras. Sem
deixar de mover-se dentro de mim, separou-me da rvore e deu um passo para trs e foi
se deixando cair ao cho comigo em cima dele. Envolvi-o com minhas pernas, depois me
elevei no ar e baixei, retomando o ritmo. Inclinei a cabea para trs, fechando os olhos e
sentindo o ar fresco da noite no rosto. Podia escutar a voz de Clay, como se viesse de
muito longe, repetindo meu nome. Escutei-me responder, dizendo seu nome ao bosque
silencioso. O clmax veio lento, quase lnguido, cada onda me atravessou com gloriosa
singularidade. Senti seu clmax, igualmente lento e descendente, e seu gemido de
liberao compassado com o meu.
Levantou os braos e me esmagou contra seu peito, afundando minha cabea sob seu
queixo. Por um longo tempo no nos movemos. Eu fiquei ali, escutando os batimentos de
seu corao e aguardando o temido momento que voltssemos realidade. Aconteceria.
Abriria-se a bruma do amor e ele diria algo, faria algo, exigiria algo que nos lanaria
rugindo um contra o outro. Senti-o engoli, sabia que sairiam as palavras e desejei poder
tampar os ouvidos para no as escutar.
Queria correr disse brandamente.
Fiquei silenciosa um momento. No estava segura de hav-lo escutado bem. Esperava
uma nova frase.
Correr? repeti.
Se no estiver muito cansada.
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Ainda precisa tirar a tenso?
No. S quero correr. Fazer algo. Algo contigo.
Vacilei e logo assenti. Ficamos mais alguns minutos antes de nos levantar para
procurar um lugar onde Trocar.

Fi-lo lentamente e a Mudana me resultou surpreendentemente fcil. Depois fiquei
parada na clareira e me alonguei, girando a cabea, movendo as orelhas, estirando
minhas patas traseiras e agitando a cauda. Sentia-me gloriosamente bem, como se no
tivesse Trocado por longas semanas. Pisquei para habituar a viso escurido. O ar
cheirava deliciosamente e o inalei vida, at encher meus pulmes, para exalar depois e
ver como saam apenas algumas brumas de condensao de meus orifcios nasais.
Estava para voltar clareira quando senti um golpe forte no flanco que me jogou no ar.
Vi um fulgor dourado, logo me encontrei de novo s com um leve vestgio do aroma de
Clay como nica companhia. Fiquei de p com desconfiana e dei alguns passos. Nada
aconteceu. Inclinei a cabea e farejei. Nada ainda. Dei mais trs passos e novamente me
golpeou, ca de flanco contra um arbusto, sem ver um cabelo sequer de meu atacante.
Esperei, recuperei o flego, depois fiquei de p e comecei a correr. Detrs de mim,
escutei Clay aparecer de novo na clareira e uivando ao no ver sua presa. Corri mais
rpido. O cho castigava minhas garras e a adrenalina percorria todo o meu corpo.
Detrs de mim senti que Clay atravessava os arbustos. Virando, lancei-me no meio de
umas plantas e me deixei cair. Uma mancha dourada passou. Fiquei de p de um salto e
comecei a voltar por onde tinha vindo. Clay levou alguns segundos para perceber, mas
logo pude escutar que voltava a me perseguir.
Na vez seguinte que saltei para um lado do caminho, devo ter demorado um milsimo
de segundo a mais, permitindo que ele visse por um instante minhas patas traseiras ou
minha cauda. Acabava de me agachar detrs de um arbusto, quando seus cem
quilogramas de msculos caram sobre mim. Lutamos alguns minutos, ladrando e
grunhindo, mordendo e chutando. Consegui colocar meu focinho sob a garganta dele e
lan-lo para trs e logo me pus de p. Dentes afiados prenderam minha pata traseira e a
retorceu, me fazendo rodar. Clay saltou e me apanhou. Ficou um minuto em cima de
mim, com seus olhos azuis triunfantes. Ento, sem aviso, saltou e se foi correndo para o
bosque. Agora eu devia persegui-lo.
Persegui Clay uns oitocentos metros. Saiu do caminho em um ponto e tentou me
perder no matagal do bosque. O truque lhe deu uma vantagem de dez metros, mas no
mais. Esperava outro ardil quando uma pequena sombra saiu correndo na clareira
adiante. A brisa me trouxe o aroma do coelho. Clay diminuiu sua velocidade e girou
para tentar cercar os dois coelhos que fugiam. Eu acelerei, estiquei-me e saltei sobre as
costas dele. Muito tarde. J no estava.
Ao recuperar o equilbrio, ouvi um chiado agudo que cortava o silncio, seguido de
uma forte crac
6
. Em segundos, Clay voltou atravs dos arbustos, o coelho morto
pendurando em suas mandbulas. Olhou-me e sacudiu o coelho, seus olhos transmitiam
a mensagem: Qu-lo? Ao sacudir o coelho, fez cair sangue no cho. O aroma me chegou

6
Crac= som que se faz ao quebrar algo.
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misturado com o da carne quente. Dei um passo adiante, farejando. Meu estmago
lanou um gemido. Ele fez um som no fundo de sua garganta, um meio grunhido que
quase soava como uma risada e afastou o coelho de mim. No faa brincadeiras, disse-
lhe com a fria de meu olhar. Fez de conta que me lanaria o coelho, mas no o soltou.
Rugindo, equilibrei-me sobre ele. Balanando para trs, com o coelho suficientemente
perto de mim para que seu aroma me alagasse o crebro e fizesse meu estmago retorcer.
Dirigi-lhe um olhar de desconsolo e logo olhei o bosque. Havia muito jantar por ali.
Quando ia, Clay jogou o coelho a meus ps. Olhei-o, e logo a ele, espera de outro
truque. Ele em troca se sentou e esperou. Olhei-o, depois mordi o coelho e engoli a carne
quente. Clay se aproximou e se esfregou contra mim, lambendo o sangue que manchava
meu focinho e meu pescoo. Parei de comer o suficiente para lhe agradecer com uma
carcia de meu focinho. Quando voltei a comer, ele correu de volta ao bosque em busca
de seu prprio jantar.

Quando despertei na manh seguinte, estava deitada sozinha na grama coberta de
orvalho. Levantei-me e olhei ao redor em busca de Clay. A ultima coisa da qual
recordava era ter Trocado novamente. Logo nos aconchegamos para dormirmos. Estendi
a mo e toquei ao meu lado o lugar seco onde ele esteve, para me convencer de que tinha
estado ali. Ao olhar ao redor da clareira vazia, atravessou-me um toque de ansiedade.
Clay no me deixava assim. O problema geralmente era me desfazer dele. Ao me
levantar senti gua fresca caindo em minha cabea. Vi Clay parado sobre mim,
sorridente. Caa gua de suas mos. Continuava nu; no nos incomodamos em procurar
nossa roupa na noite anterior; sem saber muito bem aonde a tnhamos deixado ou
mesmo se estavam em condies de serem usadas novamente.
Procurava-me? perguntou, deixando-se cair junto a mim.
Pensei que essa matilha de ces selvagens poderia ter encontrado voc.
Parecia preocupada.
Estava. Deus sabe a indigesto que poderia dar a essas pobres criaturas.
Riu e ficou em quatro patas, enquanto me empurrava ao cho e me beijava. Beijei-o,
enredando minhas pernas nas dele, e retirei em seguida os ps ao sentir os seus gelados e
molhados.
Fui ver o lago disse Clay antes que eu perguntasse . Pensei que podamos ir nadar.
Pela primeira vez nesta estao. Terminaramos de despertar.
H comida l?
Riu.
No bastou o coelho ontem noite?
Nem de longe.
Bom, ento este o trato. Se no puder esperar, comemos e depois nadamos. Se no,
vem nadar comigo agora e eu prepararei o caf da manh depois, algo, tudo o que voc
queira.
No vacilei muito antes de aceitar a segunda opo. No porque quisesse que algum
preparasse meu caf da manh, mas sim porque sabia que se fossemos primeiro para
casa, no iramos nadar. Aconteceria algo. O mundo real destruiria este mundo de
fantasia que construmos com tanto cuidado desde ontem noite. No queria que se
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acabasse. Algumas horas mais, um pouco mais de tempo para fazer de conta que
realmente podia ser assim, Clay e eu juntos como amantes e companheiros de
brincadeiras, sem passado nem futuro que interrompesse nossa utopia.
Quando disse que "sim" a nadar primeiro, Clay sorriu e me beijou ficando de p de um
salto.
Uma corrida? Quem chegar primeiro joga o outro na gua? Fiz de conta que pensava, e
ento me pus de p e fugi. Cinco segundos mais tarde, percebi que escolhi o caminho
errado ao ouvir Clay correndo no meio dos arbustos a minha esquerda. E embora girasse
para ali, foi muito tarde. Ao chegar correndo a clareira em torno do lago vi Clay parado
na borda alta do norte, sorridente.
Perdeu, carinho? Disse.
Fui para ele, arrastando o p direito.
Malditas trepadeiras murmurei . Acredito que torci o tornozelo.
Algum pensaria que passados tantos anos ele saberia que o enganava. Mas quando
cheguei borda, se aproximou cheio de preocupao. Esperei que se agachasse para
olhar meu tornozelo e o lancei lacuna.

Uma hora mais tarde amos tropeando para a casa, ainda nus, sem nos dar conta e
sem nos importar. Logo depois de nadar fizemos amor beira do lago, assim ficamos
como se tivssemos lutado no barro, o que era verdade em certo sentido. Lavamo-nos
rapidamente na lacuna, mas Clay ainda tinha barro em uma bochecha. Isso o fazia
parecer-se como um menino travesso, alm disso, havia o fulgor em seus olhos e o
sorriso perdurvel que se transformava em risada cada vez que tropevamos com algo
pelo caminho.
- Panquecas, no verdade? disse enquanto me ajudava a parar depois que tropecei
em uma raiz oculta.
Comeando pelo primeiro. Nada de atalhos.
E presunto, suponho. Que mais?
Um bife.
Riu e ps seu brao em minha cintura quando o caminho se fez suficientemente largo
para que caminhssemos ao mesmo tempo.
Bife? Para o caf da manh?
Disse que podia comer o que quisesse.
Um pouco de fruta para equilibrar a comida?
No, mas pode procurar bacon. Bacon e ovos.
Posso me atrever a pedir que me ajude com a comida?
Eu farei o caf.
Voltou a rir.
Muito obri...
Deteve-se. Tnhamos chegado ao limite do bosque e entramos no ptio traseiro. Ali, a
menos de quinze metros, estava Jeremy... rodeado de cinco ou seis rostos humanos
pouco conhecidos, todos os quais se deram viraram no instante em que samos do
bosque. Clay grunhiu e ficou diante de mim para cobrir minha nudez. Jeremy se virou
rapidamente e levou o grupo para um lado. Demoraram uns segundos para se moverem
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e alguns mais para deixar de olhar.
Quando os visitantes desapareceram pelo lado da garagem, peguei Clay pelo brao e
corremos para a porta de atrs, sem parar at chegar cima. Antes que ele pudesse dizer
algo, empurrei-o em seu quarto e entrei no meu. S tinha conseguido pr minha roupa
ntima e um suti quando escutei que a porta do Clay se abria. Pensando que iria descer
para enfrentar aos intrusos fui at minha porta e a abri. Mas ele estava ali.
Ei disse, sorridente. Se estiver to ansiosa para que entre em seu quarto,
oferecerei-me para fazer o caf da manh mais freqentemente.
Estava... no est... est bem?
Muito bem, carinho. Vim buscar voc para o caf da manh enquanto Jeremy se
desfaz de nossos visitantes no convidados. Inclinou-se para frente, ps uma mo em
minhas costas e me beijou. E no, no vou sair para ajud-lo. Estou com muito bom
humor para deixar que um monto de humanos me arrunem isso. Jeremy pode dirigi-
los.
Que bom disse, pondo os braos em volta de seu pescoo.
Alegro-me de que o passe. Assim vamos preparar o caf da manh, ento podemos
imaginar algumas maneiras de nos distrair at que Jeremy esteja disposto a nos revelar
seus planos para o Marsten e Cain.
Quando se inclinava para me beijar novamente, algum pigarreou na porta. Olhei por
sobre o ombro de Clay e vi Jeremy com os braos cruzados e um leve sorriso.
Lamento interromper disse mas necessito de Elena l embaixo. De preferncia
vestida se que queremos nos desfazer alguma vez destes homens.
Sim, senhor disse, me separando de Clay . Vou em seguida.
Um momento disse Clay quando Jeremy saa do quarto preciso falar com voc.
Saram. Pude escutar Clay que pedia desculpas por sua conduta na noite anterior, mas
rapidamente deixei de escuta; para no me intrometer. Terminei de me vestir, passei um
pente nos cabelos, olhei-me ao espelho e logo sa ao corredor. Jeremy e Clay
continuavam ali.
Vou fazer o caf da manh disse Clay, indo para as escadas . Divirta-se, carinho.
Estou segura que sim disse. Ao descer, olhei por sobre o ombro ao Jeremy.
Lamento que tenhamos andado pelo bosque nus. No espervamos visitas.
No tinham por que disse, enquanto me levava para a porta de atrs . No tem
que pedir desculpas. Aqui deveria poder ir e vir como quisesse. Estes malditos intrusos...
Sacudiu a cabea e no terminou.
O que aconteceu desta vez?
Outra pessoa desaparecida.
O moo do outro dia?
Jeremy sacudiu a cabea e abriu a porta para que eu passasse.
Esta vez se trata de um dos homens que encontramos em nossa propriedade na
quinta-feira. O homem amaduro. O lder.
Est desaparecido?
No s desaparecido, h mais, alm disso, acontece que ele deixou uma mensagem
para um amigo dizendo que vinha para c ontem noite para investigar outra vez. Algo
sobre o lugar lhe incomodava. Queria voltar a olhar.
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Ai, merda.
Falando sinteticamente.



DESCONFIANA

O grupo era conformado por seis pessoas, trs policiais locais e trs civis. Jeremy,
Peter, Nick e eu samos para ajud-los a investigar, enquanto Antnio voltava para casa
para vigiar Clay, em caso de que no mantivesse sua disposio de no interferir. Ns
quatro cumprimos o papel de bons cidados, sensveis, investigando no bosque e por sua
vez mantendo o nariz alerta por algo que no quisssemos que encontrassem os
humanos. Uma coisa que teria preferido que no encontrassem apareceu rapidamente.
Tenho algo! gritou um dos homens.
Mike gritou outro, afastando-se correndo.
Quando todos se dirigiram para a cena, a voz do Nick ressoou, abafada pela risada
apenas contida.
Esqueam. No... no nada importante.
Que caralho quer dizer? disse o primeiro homem. Possivelmente para voc isto
seja uma brincadeira, filho, mas...
O resto da orao se perdeu quando chegamos clareira para encontrar a um do
grupo olhando uma camisa rasgada. Havia roupas rasgadas pelo cho e penduradas nos
arbustos. Nick levantou uma calcinha branca e sorriu para mim.
Ces selvagens? Ou foi Clayton?
Ai, Deus murmurei.
Fui tirar a calcinha dele, mas a sustentou sobre sua cabea, Sorrindo como um menino.
Vejo Paris, vejo a Frana, vejo a calcinha da Elena cantarolou.
Todos viram muito mais que isso disse Jeremy . Acredito que podemos continuar
com a busca.
Peter tirou a camisa de Clay de um galho e a levantou para poder olhar atravs de um
buraco que tinha no meio.
Caralho; vocs sim sabem fazer um estrago. Onde est a cmara oculta quando
algum a necessita?
Assim, quem fez isto no foram os ces selvagens? perguntou um dos participantes
do grupo.
Peter sorriu e deixou a camisa cair.
No. S hormnios selvagens.
Os outros homens, que finalmente tinham deixado de me olhar de soslaio depois do
incidente em que me viram nua no ptio, agora me olhavam com renovado interesse.
Sorri, me esforando para no lhes grunhir e logo voltei rapidamente para o bosque.

Jeremy, dois participantes do grupo e eu estvamos revistando os arbustos no
quadrante nordeste do bosque quando escutamos um grito, esta vez to urgente que
corremos para lugar. Quando chegamos, Nick e dois do grupo estavam junto a um
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corpo. Nick elevou os olhos e me deu um olhar que dizia que tentou evitar que os
homens viessem a este lugar. Jeremy e eu fomos para junto do corpo e o olhamos. Era o
homem desaparecido. Sua camisa estava rasgada na gola e cheia de sangue. Tinha a
garganta aberta, com rasges na carne. As conchas vazias onde estavam seus olhos nos
olhavam. Os corvos o tinham encontrado ou os abutres antes que ns. Alm dos olhos,
tinham-lhe bicado o rosto e deixado buracos sangrentos atravs dos quais se via o osso
branco. Sua camisa e sua cabea estavam rodeadas de pedaos de carne, como se as
pessoas tivesse espantado as aves de rapina quando se davam seu festim.
Igual aos outros disse um homem e logo deixou de olhar.
H uma diferena disse outro . No o comeram. Pelo menos no os ces. Suponho
que o fizeram os pssaros; os filhos da puta no perderam tempo.
Um homem mais jovem de repente se virou e correu ao bosque. Segundos mais tarde o
ouvimos vomitar. Dois dos homens sacudiram a cabea em uma expresso de
comiserao, e os dois pareciam tambm um pouco verdes. Meu estmago tampouco
estava de tudo bem, embora isso no tivesse nada que ver com o cadver. Quando o
homem mais jovem terminou de vomitar, ficou calado um momento e depois saiu
correndo da mata.
Venham! Tm que ver isto!
Sabia o que tinha encontrado. Sabia e temia entrar na mata para confirmar minhas
suspeitas, mas Jeremy me empurrou para frente. Quando me coloquei entre as rvores, o
aroma do vmito me provocou mais nauseias. Logo olhei para o cho, seguindo a
direo que indicava o jovem com o dedo. No cho mido havia rastros de um animal.
Olhem o tamanho disse o jovem -. Deus, so grandes como pratos. Como disseram
esses meninos. Estes ces so imensos!
Ao observar as rvores, consegui ver algo em um espinheiro. Um pouco de cabelo
dourado que brilhava inclusive sombra. Enquanto todos os outros olhavam os rastros,
fui at o arbusto, parei diante dele, estendi a mo para trs e coloquei o cabelo em meu
bolso. Logo procurei a ver se havia mais. Como no encontrei, olhei os rastros, to
reconhecveis como os rastros de um par de sapatos familiares. Ao olh-los me senti mal.
Depois a desiluso se converteu em outra coisa. Fria.
Tenho que ir murmurei enquanto comeava a me afastar.
Ningum tentou me deter. Os humanos supuseram que era uma reao demorada por
causa do cadver e a Matilha no queria fazer escndalo.

Clayton! gritei ao deixar que a porta se fechasse detrs de mim.
Clay apareceu na porta da cozinha, com uma colher de madeira na mo.
No demoraram muito. Vem e faz o caf.
No me movi.
No vai perguntar se encontraram o homem desaparecido?
Isso implicaria que me importa.
Encontraram-no.
Alegro-me, assim iro embora. Muito melhor. Agora vem e...
Encontrei isto junto ao corpo disse, tirando os cabelos de meu bolso.
Parecem que so meus.
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So teus. E seus rastros tambm estavam ali.
Clay se apoiou no marco da porta.
Meus cabelos e meus rastros no bosque. Que curioso. Espero que no esteja
insinuando o que acredito, carinho, porque se o recorda, eu estive contigo toda a noite,
que quando Tnio diz que desapareceu este tipo.
No estava comigo esta manh quando despertei.
Clay quase deixou a colher cair.
Sai cinco minutos! Cinco minutos para rastrear a um tipo e mat-lo? Sou bom, mas
nem tanto.
No tenho idia de quanto tempo foi.
Sim sabe, porque estou dizendo isso a voc. Os vestgios de bom humor
desapareceram do rosto de Clay ao se aproximar de mim.
No o fiz. Usa a cabea, Elena. Se tivesse perdido o controle e matado a esse tipo
diria isso a voc. Teria pedido a voc que me ajudasse a me desfazer do corpo e a decidir
o que dizer ao Jeremy. No estaria pulando no lago enquanto houvesse um humano em
nosso bosque, espera que o encontrasse outro grupo de caadores.
Acreditou que tinha mais tempo. Pensava em ocultar o corpo mais tarde, logo depois
de me tirar dali.
Isso mentira; sabe. No oculto nada de voc. No minto para voc. No engano
voc. Nunca.
Adiantei-me com o rosto para cima.
Srio? No sei por que esqueo a discusso que tivemos antes que me mordesse,
quando me disse o que pretendia fazer. Suponho que uma amnsia conveniente.
No o planejei disse Clay, erguido diante de mim. A colher de madeira se quebrou
em duas quando apertou o punho. J falamos disso. Senti pnico...
No quero ouvir suas desculpas.
Nunca as quis ouvir, no verdade? Ou melhor, quer falar de coisas que no fiz, e
depois coloca isso no meio quando aparece a oportunidade. Por que me incomodo em
me defender? Voc j sabe tudo o que fao e no fao e os motivos. Nada que eu diga
pode mudar isso.
Virou-se e voltou para a cozinha. Eu girei em sentido contrrio, caminhei at o
escritrio e fechei a porta com um golpe.

Sentada no escritrio, notei surpresa que no tinha o impulso de fugir. Minha briga
com Clay no me deixou com o impulso irresistvel de escapar de Stonehaven. O que
aconteceu ontem noite foi um engano, do qual aprendi algo. Baixei a guarda, cedendo a
meu desejo inconsciente de voltar a ficar com Clay. E o que aconteceu? Em poucas horas
estava mentindo. No mesmo momento em que estvamos no bosque, enquanto eu
dormia, ele dava rdea solta a seu lado mais escuro. No mudaria. No podia mud-lo.
Era violento, egosta e no se podia confiar nele. Foi necessria uma noite para voltar a
me dar conta disso, e valeu a pena.

Uns vinte minutos mais tarde, abriu-se a porta do escritrio e Nick olhou ao interior;
Eu estava encolhida na poltrona. Quando abriu a porta me endireitei.
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Posso entra? perguntou.
Cheiro comida. Se a compartilha mais que bem-vindo.
Entrou no escritrio e ps um prato de panquecas e presunto no banquinho. As
panquecas no tinham nem manteiga nem xarope de arce.
Peguei uma e a engoli muito rpido para lhe sentir o gosto, para no recordar quem as
tinha feito e por que.
Acabou-se? perguntei.
Nick se deixou cair no sof e se estirou.
Quase. Chamaram mais policiais do povoado. Esto l agora. Jeremy e Peter me
enviaram.
Antnio atravessou a porta.
Esto investigando? perguntou enquanto tirava as pernas de seu filho de cima do
sof para sentar-se.
Nick deu de ombros.
Suponho que sim. Trouxeram cmaras e uma bolsa de coisas. Vem algum do
necrotrio procurar o corpo.
Cr que encontraro algo? perguntou-me Antnio.
Com sorte, nada que no vincule o assassinato a um co selvagem disse . Se
parecer claro, provavelmente fechem a investigao rapidamente e dediquem seus
esforos a encontrar os ces. No tem sentido procurar evidncias quando os
pressupostos assassinos nunca iro a julgamento.
To somente um disparo de escopeta disse Antonio . Se virem o mnimo sinal de
uma pelagem no bosque, vo atirar. Quando precisarmos correr, vamos ter que
encontrar algum lugar longe daqui e de Bear Valley.
-Caralho disse Nick, sacudindo a cabea -. Quando soubermos quem o
responsvel, vai pagar por isso.
- Eu tenho idia de quem o responsvel.
Tirei o cabelo de meu bolso e o atirei a seus ps. Nick o olhou um momento, confuso.
Logo seus olhos grandes se abriram e me olhou. Evitei seu olhar, para no ver a
incredulidade que se desenhariam neles. Antnio olhou uma vez o cabelo, depois se
recostou no respaldo e no disse nada.

Uma hora mais tarde me encontrava outra vez no escritrio, enquanto os outros foram
cumprir obrigaes menos sedentrias ou em busca de uma companhia mais amvel.
Sentada ali, meu olhar foi at a escrivaninha ao outro lado da sala. Estava coberta com as
habituais pilhas de papis e revistas de antropologia. Fez-me recordar de como conheci
Clay, de como me meti nesta confuso. Quando eu era estudante da Universidade de
Toronto, tinha um interesse menor na antropologia. Em meu primeiro ano fiz um
trabalho sobre religies antropomorfas, que era a especialidade de Clay, e eu estudei
suficientes trabalhos dele para reconhecer seu nome ao ver um aviso de sua srie de
conferncias. Suas aparies pblicas eram to escassas que j estava coberta a quota de
inscrio e eu entrei de penetra. O maior erro de minha vida.
No sei o que Clay viu em mim que o fez deixar de lado seu desprezo pelos humanos.
Diz que viu em mim algo que reconhecia em si mesmo. Isso lixo, obvio. Eu no era
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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parecida com ele em nada ou, se era, foi a partir de quando me mordeu. Se tivesse me
deixado em paz, eu cresceria, assimilaria o mundo humano e seria uma pessoa feliz, bem
adaptada, que teria deixado para trs toda a carga e a fria da infncia. Estou segura.
Sangue disse Clay, abrindo com tanta fora a porta do escritrio que a bateu contra
a parede e adicionou mais uma s marcas acumuladas ao longo das dcadas. Onde est o
sangue?
Que sangue?
Se matei ao tipo, haveria sangue em mim.
Lavou-se no lago. Por isso inventou isso de que foi ver a temperatura da gua, para
explicar por que estava molhado.
Eu inventei? Caralho... Estive, tomou ar e comeou de novo . Bom, caso tenha me
lavado no lago e decidido que seria mais fcil inventar uma desculpa do por que estava
molhado em vez de me secar, mesmo assim cheiraria a sangue. O aroma no sai to fcil.
J teria diminudo. Teria que estar procurando-o para perceb-lo.
Bom, faz isso agora. Vamos. Olhou-me nos olhos. desafio voc.
Teve muito tempo para se lavar.
Ento v ver minha ducha. Verifique se estar molhada. Olhe minhas toalhas.
Verifique se esto midas.
J teria ocultado o rastro. No to estpido.
No, s suficientemente estpido para deixar um corpo no bosque com meus rastros
e cabelos por toda parte. Para que me incomodo? Nada que diga far voc mudar de
idia. Sabe por qu? Porque quer acreditar. Assim pode se trancar aqui e pensar em quo
estpida foi por me procurar ontem noite, se amaldioar por ter cedido ante mim, por
ter esquecido que monstro eu sou.
Isso no o que...
No? Deu um passo para frente. olhe-me nos olhos e me diga que no o que
esteve fazendo na ltima hora.
Olhei-o com dio e no disse nada. Clay ficou ali ao menos um minuto, logo elevou as
mos e se foi furioso.
No mesmo instante Jeremy entrou. Sem dizer nada, foi at onde estavam os cabelos de
Clay, pegou, logo o deixou e se sentou em sua cadeira.
No acredita que ele fez isso, no verdade? eu disse.
Se disser que no, tentar me convencer de que sim. Se disser que sim, us-lo-
contra ele. No importa no que eu acredite. O que importa o que voc acredita.
Uma vez me consultei com um terapeuta que falava assim. Abandonei-o depois de
duas sesses.
No tenho dvida.
No sabia como responder, assim no o fiz. Em troca fiz de conta que estava
enormemente interessada nos desenhos do tapete turco. Jeremy se recostou em sua
cadeira e me olhou um momento antes de continuar.
Ligou para ele?
A quem? disse, embora soubesse a quem se referia.
Ao homem de Toronto.
Tem nome, estou segura de que sabe.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Ligou para ele?
Liguei anteontem. Ontem foi um dia um pouco terrvel, como recorda, e eu estava
preocupada esta manh com outras coisas.
Tem que ligar para ele todos os dias, Elena. Para que saiba que est bem. No lhe d
nenhuma desculpa para ligar para c ou aparecer aqui.
S tem o nmero de meu celular.
No me importa. No pode correr esse risco. Clay sabe que existe, embora tente
esquecer-se disso. No lhe d motivo para record-lo. E no me acuse de proteger os
sentimentos de Clay. Estou protegendo Matilha. No podemos nos dar o luxo de que
Clay se distraia pela presena desse homem aqui. E no podemos nos dar o luxo de que
esse homem aparea. J tivemos visitas suficientes.
Vou ligar.
Ainda no. Enviei Nick a convocar uma reunio.
Pode-me informar logo.
Uma reunio implica uma reunio do grupo disse Jeremy . Uma reunio do grupo
implica que se espera que todos os membros do grupo estejam pressentes.
O que acontece se no for membro do grupo?
enquanto esteja aqui.
Poderia remedi-lo.
Jeremy levantou os ps e recostou a cabea contra o respaldo.
Lindo clima verdade?
Alguma vez discute algo que no quer?
o privilgio da idade.
Soprei.
o privilgio do poder.
Isso tambm.
Jeremy deu um leve sorriso e seus olhos negros cintilaram. Reconheci o olhar, mas
demorei alguns minutos para entend-lo. Um desafiou. Esperava que eu reiniciasse um
debate que temos desde que me integrei matilha. Como pessoa que por um tempo foi
humana em uma sociedade democrtica, a idia de um lder todo-poderoso e
inquestionvel me incomodava. Quantas noites Jeremy e eu passamos neste escritrio
debatendo isto, tomando brandy at que eu estava muito cansada e bbada para subir
para meu quarto e ficava dormindo aqui, mas despertava mais tarde em minha cama?
Tinha sentido saudades. Inclusive agora, vivendo na mesma casa que ele durante
quase cinco dias, sentia saudades. Todos os outros me deram boas-vindas sem fazer
perguntas e sem ressentimentos. Mas Jeremy no. No se mostrou inamistoso, mas no
agiu como sempre. Mantinha distncia, como se no estivesse disposto a comprometer-se
na relao at ter certeza de que eu no ia fugir de novo. O problema que eu tampouco
estava segura.
Tentei pensar em uma resposta, com o crebro enferrujado, me esforando para
recordar os argumentos. Enquanto pensava, os olhos do Jeremy se fecharam e seu sorriso
desapareceu. Vi que minha oportunidade passava e me lancei para peg-la. Quando
abria a boca, pronta para dizer o que me viesse mente, a porta se abriu. Os outros
entraram e meu momento a ss com o Jeremy se evaporou.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
117

A primeira questo abordada na reunio foi que Jeremy nos proibiu de correr na
propriedade at que se arrumasse a confuso com a polcia. Quando chegasse o
momento de correr, iramos todos aos bosques do norte. No tenho nada contra correr
em grupo e, em circunstncias normais, eu adoro correr com a Matilha, mas nisso de
converter uma corrida da Matilha em um evento organizado com prazo fixo havia algo
que lhe subtraa o prazer. S faltava que alugssemos um nibus de excurso,
levssemos sanduches e fssemos cantando canes de acampamento.
O segundo tema tinha haver com o plano de ao de Jeremy. Novamente Clay no
gostava dos planos de Jeremy. Eu tampouco, mas no fui eu quem se levantou para
responder antes que Jeremy terminasse.
No pode me deixar aqui gritou Clay.
Jeremy elevou as sobrancelhas um milmetro.
No?
No deve. estp... No tem sentido.
Tem perfeito sentido. E voc no o nico que resta.
Queixei-me, mas com calma, em silncio e para mim mesma, embora os olhos de
Jeremy efetivamente espiassem em minha direo quando o fiz.
Jeremy continuou.
No admito que voc e Elena venham, quando esto to confrontados.
Mas eu no fiz nada! disse Clay. Nem sequer me acusaram de matar a esse tipo.
No sabem se o fiz. Por que me castigar...
No um castigo. No importa se o fez ou no. Enquanto brigarem entre si, quero-os
aqui, onde s podem causar-se dana um ao outro... e ao mobilirio.
Por que deixar aos dois? perguntei.
Porque no necessito de nenhum dos dois. No penso em rastrear nem brigar contra
ningum. S se trata de reunir informaes. Embora no estivessem brigados,
provavelmente no os levaria. um risco desnecessrio. Quero saber mais desses ces.
No quero me apoiar em informaes de segunda mo, assim eu vou e levo Antnio e
Peter como respaldo. Nick tampouco vir e no o ouo queixar-se.
No soa muito divertido - disse Nick.
Jeremy sorriu.
Exatamente.
Mas... disse eu.
J passou da hora do almoo disse Jeremy, ficando de p . Devemos comer antes
de ir.
Saiu antes que pudssemos discutir nada. Essa era provavelmente sua inteno.
Quando ele saiu, Fiquei de p.
Acredito que vou preparar algo de comer.
Nick se ofereceu a me ajudar. Pela primeira vez, Clay no o fez. Nem sequer nos
seguiu cozinha.

Depois do almoo, Jeremy, Antnio e Peter se foram em misso de reconhecimento.
Essa era a maneira que Jeremy tinha de conduzir-se ante a bola, com efeito, que os vira-
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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latas jogaram. No tinha experincia em enfrentar um ataque de vrios vira-latas de uma
s vez, ento tomava seu tempo, para reunir informaes antes de fazer planos de como
amos agir. No sentido lgico, tinha razo. Mas isso resultava insatisfatrio para as
emoes. Eu preferia planejar uma ao direta contra os vira-latas e ao caralho com os
riscos. Por isso Jeremy era o Alfa e eu apenas um soldado.
Quando se foram, voltei a me retirar, esta vez a meu quarto, de onde liguei para Philip.
Disse-lhe que demoraria alguns dias a mais.
Aspirou.
Bom. Um momento de silncio. Tenho saudades de voc.
Eu
No que queira fazer voc se sentir culpada, carinho. s que sinto saudades. Sei
que faz o correto e no pediria a voc que abandone seus primos. S que no pensei que
demoraria tanto Fez uma pausa e ento deu um estalo com a lngua. J sei. Irei para
ai. Que tal manh? Estou livre.
Vou fazer meu trabalho no avio.
Apertei o fone enquanto meu crebro gritava: merda!" Apertei os dentes e me
obriguei a me controlar.
E perder suas frias? disse no tom mais leve que pude. Prometeu-me uma semana
no Caribe. Em unas frias com tudo includo. Recorda? Eu adoraria ver voc, mas se isso
significa renunciar a uma semana de tomar tudo o que possa de lcool e de sol
Rio.
Um dia ajudando voc a cuidar de trs crianas um mau substituto, no verdade?
Entendo isso. Possivelmente possa arrumar algo com James, trabalhar no sbado que
vem em vez de... Embora parea que de todos os modos vou ter que trabalhar no sbado
e provavelmente tambm no domingo.
Sim. No continue fazendo acordos ou talvez no possa ver voc por vrias semanas
inclusive depois de voltar para casa.
Entendido. Vou sobreviver a alguns dias de solido. Mas se for mais que isso...
No ser.
Falamos mais alguns minutos e depois desligamos. Uns dias mais. E no mais que isso.
Esta vez no tinha alternativa. Se no voltasse para Toronto em alguns dias, Philip
encontraria uma maneira de que lhe dessem um dia de folga e apareceria em Nova
Iorque. Isso seria... bom, era mais do que me atrevia a pensar.

Quando finalmente cortei a comunicao com Philip, estirei-me na cama e descansei.
Cochilei um pouco para recuperar o sono perdido de duas noites. Mas no funcionou.
Preocupei-me com a possibilidade de que Philip aparecesse em Stonehaven e meu nvel
de estresse subiu meia dzia de pontos. Ento lembrei por que continuava em
Stonehaven e pensei no Logan. Senti que a dor voltava e me alagava a mente e no pude
pensar em nada mais, especialmente em dormir. Finalmente Nick veio me resgatar;
entrou no quarto sem bater.
Alguma vez bate? disse, me endireitando na cama.
Nunca. Perderia tudo. Saltou sobre a cama, olhou atravs das cortinas e sorriu com
malcia. Perdi algo?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Tudo.
Suponho que ento eu mesmo terei que iniciar algo disse enquanto abria as
cortinas e se deixava cair ao meu lado na cama . Est-se bem aqui. H silncio e muito
privado.
Perfeito para dormir.
muito cedo para dormir. Tenho em mente algo melhor.
Estou segura que sim.
Sorriu e se inclinou para me beijar, logo evitou minha bofetada.
Na realidade pensava em outra coisa. Dado que no podemos correr aqui, pensei que
possivelmente ns trs poderamos ir para algum lugar correr esta noite.
Corri ontem noite.
Mas eu no e vou precisar Trocar logo. Comeo a senti-lo.
Ento vai com Clay. No h motivo para irmos os trs.
J falei com ele. S vai se voc for. No quer que ningum fique sozinho aqui, pelas
dvidas de que os vira-latas ataquem de surpresa.
Estou segura de que no o fariam... detive-me ao me dar conta de que no estava
to segura. S a idia me deu calafrios. Tem que ser esta noite? Foi um dia longo e...
Pensava em caar.
No estou segura de que...
Caar um cervo.
Um cervo?
Ele riu.
Agora suas orelhas se levantaram. Quanto tempo faz que no caa nada maior que
um coelho? Pelo menos por sua conta.
Tem razo a voz de Clay veio do outro lado das cortinas e nos sobressaltou. Ao me
virar, vi sua silhueta, mas ele no abriu as cortinas.
Seria uma boa idia irmos caar continuou Clay . Para nos mantermos ocupados
enquanto esperamos Jeremy. Nick precisa Trocar e no pode faz-lo aqui. E eu no vou
deixar voc sozinha, Elena. Estou seguro de que pode suportar nossa companhia uma ou
duas horas.
Abri a boca para responder, mas virou-se e saiu do quarto. Vacilei um momento, logo
me virei para Nick e assenti. Sorriu e saiu trotando do quarto, sabendo que o seguiria.



ESPREITA

Levamos meu automvel. Nick dirigia. Clay se sentou na frente com ele. Eu me sentei
atrs e cochilei pelo caminho, principalmente para no ter que participar da conversa.
No precisava me preocupar. Clay no queria falar comigo inutilmente e Nick encheu o
vazio tagarelando para quem quisesse escutar.
Nick falava de seu ltimo negcio, algo que tinha haver com o comrcio eletrnico e
uma nova empresa que estava financiando. A questo no era se a nova empresa teria
xito, a no ser quanto perderia. As cifras exatas em dlares no eram importantes, j
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120
que os Sorrentino eram suficientemente ricos para que Jeremy parecesse ser classe mdia.
Antnio tinha trs empresas multinacionais. Nick no herdou o toque de Midas de seu
pai. De fato, estava excludo de todos os negcios de Antnio. Nick era um playboy,
simplesmente. Metia-se em uma interminvel srie de negcios, nos quais no ganhava
mais que amigos e amantes, que era tudo o que queria da vida na realidade. Como reagia
Antnio frente a isso? Apoiava-o. Antnio percebeu que esse estilo de vida era o nico
ao que seu filho podia adaptar-se, e se o fazia feliz e podiam dar-se esse luxo, por que
no? Eu, que tinha economizado cada centavos a maior parte de minha vida, no podia
entender realmente essa filosofia. Invejava, nem tanto a quantidade de dinheiro, mas
sim que Nick tivesse algum no mundo que o quisesse tanto e se interessasse tanto por
sua felicidade e to pouco pelo que obtivesse na vida.

Nick nos levou a um bosque que j tnhamos utilizado; passamos uma entrada e
percorremos o caminho abandonado de uma madeireira, raspando a base do piso do
automvel contra o cho muitas vezes. Meu automvel no estava em bom estado, e eu
suspeita que embaixo tivesse mais ferrugens que chapa, embora nunca me decidi a pr a
prova minha teoria. Jeremy se oferecia para restaur-lo ou comprar outra coisa. Fiz
escndalo suficiente para que nunca se sentisse tentado a "me surpreender" com um
automvel novo ou restaurado. No que me incomodasse arrumar meu Camaro,
embora no fosse mais que para prolongar a vida til do carro, mas me aterrorizada a
idia de que se eu permitisse que Jeremy colocasse a mo, ele o mandaria pintar de rosa.
No interior do bosque, Nick parou o automvel e o deixou com o cambio posto. O
motor se desligou com um som pouco so. Tentei no pensar no assunto, porque podia
implicar que no voltaria a funcionar e isso seria realmente ruim. Estar presa em um
bosque do estado de Nova Iorque, fora do alcance do celular, com um automvel
quebrado e dois tipos que no distinguiam o leo do anticongelante.
Enquanto entravamos no bosque, Nick continuou falando.
Logo depois de arrumar este assunto, Devamos fazer algo. Ir a algum lugar. Tirar
umas frias. Possivelmente na Europa. Clayton tinha que ir esquiar comigo na Sua este
inverno mais no foi.
No dei pra atrs respondeu Clay. Caminhava na frente, abrindo caminho no meio
da mata, possivelmente tentando ajudar, mas o mais provvel que no quisesse
caminhar comigo . Nunca disse que iria.
Sim disse. No Natal. Tive que perseguir voc para perguntar isso Nick se virou para
mim Mal apareceu durante toda a semana que a Matilha ficou em Stonehaven. Estava
to enfiado em seus estpidos livros e papis. Esperava que voc aparecesse e como no
foi assim. Clay lhe dirigiu um olhar e Nick se deteve. Como , disse que deveramos
esquiar. Perguntei a voc e gritou algo que soava como sim.
Hmmm.
Exato. Isso. Bom, no foi realmente um sim, mas tampouco foi um no. Assim me
deve uma viagem. Iremos os trs. Aonde quer ir quando acabar tudo isto, Elena?
Ia dizer "a Toronto", mas no o fiz. Rechaar os planos de Nick quando tentava
suavizar as coisas era como dizer a um filho que Papai Noel no existe porque a gente
teve um dia ruim. No era justo e ele no merecia.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
121
Veremos disse.
Clay me olhou nos olhos por sobre o ombro. Sabia exatamente o que queria dizer. Com
uma careta de desgosto, voltou a olhar para frente, tirou um galho do caminho e foi em
busca de um lugar para Trocar.
No estou segura de que esta seja uma boa idia disse ao Nick logo depois que
Clay se foi . Talvez fosse melhor que eu esperasse no automvel.
Vamos. No faa isso. Pode se descarregar um pouco. Ignora-o.
Concordei com ele. Bom, na realidade no consegui concordar, pois Nick se foi antes
que pudesse discutir isso com ele e ele continuava com as chaves de meu automvel.

Ignora-o. Bom conselho. Um conselho muito bom. Mas em termos prticos tinha tanto
valor como dizer a algum que tem medo de altura que no olhe para baixo.
Quando sa do campo logo depois de Trocar. Clay estava ali. Deu um passo para trs,
farejando. Logo abriu a boca com a lngua pendurada e com um sorriso de lobo como se
no tivssemos brigado. Por mais que quisesse, no pude sentir ira, como se a tivesse
deixado no mato junto com a minha roupa.
Vigiei-o por um momento, e logo com cautela comecei a me esquivar dele. Tinha quase
passado por ele quando, virou-se e me atacou o flanco, pegando minha pata traseira para
me fazer cair. Saltou sobre mim. Rolamos pelo mato at bater contra uma arvorezinha e
fazer fugir a um esquilo para outro lugar mais seguro, enquanto nos resmungava suas
queixa correndo. Quando finalmente consegui escapar, fiquei de p e comecei a correr.
Detrs de mim, Clay vinha trotando no meio do bosque. Corri uns dez metros e ento
ouvi um chiado e logo senti o cho tremer com a queda de Clay. Olhei sobre o ombro
para v-lo mordendo e puxando uma trepadeira enganchada em sua pata dianteira.
Detive-me para me virar e ir busc-lo, mas ento vi que se liberava e voltava a correr.
Percebendo que se aproximava, girei para continuar e me choquei contra algo slido, dei
uma cambalhota e fui cair sobre umas urtigas.
Elevei o olhar e vi Nick parado sobre mim. Com um grunhido e toda dignidade que
pude reunir, fiquei de p. Nick deu um passo para trs ou olhou, rindo com os olhos
enquanto me desenganchava das urtigas. Pela extremidade do olho, vi que Clay se
aproximava de Nick sigilosamente por detrs. Agachou-se, com a cauda no ar, e saltou
contra Nick, que foi cair sobre as urtigas. Quando Nick lutava para ficar de p, fui para
junto dele e lhe lancei um bufo: Merece isso. Puxou-me pela pata dianteira e me fez
cair. Lutamos um minuto antes que eu conseguisse me liberar e me colocar junto a Clay.
Enquanto Nick tirava as urtigas dele, Clay esfregou seu focinho contra o meu e seu
flego quente agitou a pele de meu pescoo. Enquanto o esfregava com meu focinho,
uma parte aturdida de meu crebro me recordou que estava zangada com ele, mas no
podia recordar por que e no me importava. Nick caminhou em volta de ns,
esfregando-se e farejando a modo de saudao. Quando passou um pouco mais de
tempo farejando perto de minha cauda. Clay grunhiu e Nick retrocedeu.
Depois de alguns minutos, separamo-nos e comeamos a correr. Clay e eu brigvamos
por ir primeiro. Nick ia ficando para trs contente. O bosque estava cheio de aromas,
inclusive de rastros de cervos, mas eram rastros velhos principalmente. Tivemos que
correr uns mil metros antes de perceber o aroma que procurvamos. Um cervo vivo.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
122
Senti uma exploso de energia e corri para frente. Detrs. Nick e Clay me seguiam no
meio do bosque quase em silncio. S os delatava o sussurro das plantas mortas sob seus
ps. Ento o vento mudou e nos lanou o aroma do cervo cara. Nick lanou um ganido
de excitao e ficou a meu lado, tentando tomar a dianteira. Atirei-lhe uma dentada, que
conseguiu apanhar um pedao de sua pele escura enquanto ele se afastava de meu
caminho.
Ao me ocupar de Nick, notei que Clay no vinha atrs. Detive-me, depois me virei e
caminhei para trs. Estava parado a uns cinco metros, farejando o ar. Quando cheguei
junto a ele. Olhou-me nos olhos e soube por que se deteve. J estvamos suficientemente
perto. Era o momento de fazer um plano. Pode parecer bobagem pensar que um cervo
perigoso, mas no somos caadores humanos que nunca se aproximam mais de trinta
metros de sua presa. Os chifres podem cortar a um lobo. Um casco que bater no alvo
pode destroar um crnio. Clay tem uma cicatriz de trinta centmetros onde o casco de
um cervo bateu nele. At os lobos selvagens sabem que caar um cervo requer cautela e
planejamento.
Planejar no quer dizer discutir o assunto, j que a comunicao a to alto nvel
impossvel em nossas formas de lobos. Diferente dos humanos, entretanto, tnhamos algo
melhor: o instinto e um crebro com padres de condutas incorporados que davam bons
resultados a milhares de geraes. Podamos avaliar a situao, recordar um plano e
comunic-lo com o olhar. Ou, ao menos, Clay e eu podamos faz-lo. Igual ao que
acontecia com muitos licntropos, Nick no sintonizava as mensagens que lhe enviava
seu crebro de lobo, ou seu crebro humano no confiava neles. No importava. Clay e
eu ramos os Alfas ali, de modo que Nick seguiria nossas ordens sem necessidade de
explicaes.
Fui para o leste, farejei o ar e voltei a pescar o aroma do cervo. Era um macho
solitrio. Isso era bom porque no teramos que afastar um cervo de uma manada. Mas
um macho era mais perigoso, especialmente na primavera, quando tm os chifres
plenamente crescidos. Clay se aproximou e farejei o cervo, logo me dirigiu um olhar que
dizia: Que diabos, s se vive uma vez. Soprei concordando e fui para junto de Nick.
Clay no me seguiu. Em troca, voltou a enfia-se no bosque e desapareceu. O plano estava
decidido.
Nick e eu demos uma volta pelo bosque, para nos colocar contra o vento antes de
voltar a seguir o rastro. Encontramos o macho pastando em um bosquezinho. Enquanto
Nick esperava o sinal, esfregou-se contra mim, gemendo muito baixo como para que o
cervo pudesse ouvir. Grunhi no profundo de minha garganta e se deteve. O cervo
levantou a cabea e olhou ao redor. Quando voltou a pastar, agachei-me e me equilibrei.
O cervo s demorou um milisegundo para saltar alguns arbustos e lanar-se a galopar.
Nick e eu o perseguimos, mas a distncia entre ns e o cervo aumentava. Os lobos so
corredores de resistncia, no velocistas, e a nica possibilidade que tnhamos de
alcanar um cervo correndo era indo atrs, era ca-lo.
Como acontece freqentemente, o cervo cometeu o engano fatal de pr toda sua
energia no primeiro esforo. No tnhamos ido muito longe quando comeou a perder
velocidade, ouvia-o resfolegar; tentando aspirar mais ar e muito assustado para regular
sua marcha. Eu tambm estava um pouco cansada, depois de j ter gasto toda uma
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
123
quantidade de energia para encontrar e perseguir o macho, o que me fazia continuar era
seu aroma, esse perfume denso que fazia meu estmago grunhir.
Encontrei o rastro de Clay no ar e tangi o cervo nessa direo, abrindo para um lado
com um breve impulso, o que o fez ir na direo oposta. Na corrida, o temor do cervo se
converteu em pnico. Ia a pleno galope, saltando rvores cadas e atravessando a toda
carreira a mata. As rvores e os arbustos o machucavam e no ar comeou a haver aroma
de sangue. Quando dvamos uma volta, Clay saltou dos arbustos e pegou o cervo pelo
focinho.
O macho se deteve escorregando e comeou a sacudir a cabea enlouquecido, tentando
livrar-se de Clay. Ento ns chegamos. Coloquei-me debaixo do cervo e afundei os
dentes em seu estmago. Provei o sangue quente sob a capa de gordura e isso comeou a
me d gua na boca. Nick atacou o cervo pelo flanco, investindo, mordendo e saindo do
alcance dos cascos e dos chifres do animal. Clay era sacudido de um lado a outro, mas
no soltou. Esse era um estratagema surgido da memria subconsciente: se morder a
cara da presa, ela ficar muito ocupada tentando livra-se do perigo mais evidente para
incomodar-se com os outros atacantes.
Agarrada ao cervo, abriu-lhe a barriga batendo com os dentes, balanando todo o
tempo para me esquivar dos cascos. Quando consegui abrir um buraco, soltei e coloquei
o focinho mais acima. Comearam a sair as vsceras pelo primeiro buraco e o aroma
quase me deixou louca. O sangue tambm jorrava por onde Nick atacou, o que fazia o
couro do animal ficar escorregadio e difcil de agarrar. Mordi mais forte e senti que meus
dentes atravessavam a pele, alcanando para os rgos vitais. Por fim as pernas
dianteiras do cervo cederam. Clay soltou o focinho e lhe abriu a garganta. Ento o cervo
caiu ao cho.
Quando o cervo caiu, Nick retrocedeu e se deitou em um lugar prximo. Clay baixou a
cabea e se virou para me olhar. Tinha o focinho coberto de sangue. Lambi-o e me
esfreguei nele, sentindo o tremor que provocava a adrenalina. As patas do cervo ainda
tremiam, mas seus olhos olhavam fixos para frente, sem vida. Quando o abrimos pelo
lado, formou-se um vapor no ar fresco da noite. Ns comeamos a devor-lo,
arrancando pedaos de carne e engolindo-os sem mastigar.
Quando acabamos e nos afastamos, Nick se aproximou e comeou a comer. Clay foi
at uma clareira e me olhou por sobre o ombro, segui-o e me deixei cair junto a ele. Clay
se aproximou, ps uma pata em meu pescoo e comeou a lamber meu focinho. Fechei os
olhos enquanto ele trabalhava. Quando acabou de tirar o sangue do meu pescoo dos
meus ombros, eu comecei a limp-lo. Nick terminou de comer e logo se aproximou,
aconchegando-se conosco. Terminamos de nos higienizamos e logo dormimos em um
enredo de patas e pele de lobo.

No tnhamos dormido muito quando Clay se levantou e comeou sacudir ao Nick e a
mim. Despertei de repente quando minha cabea bateu contra uma pedra; fiquei de p,
tensa e alerta ao perigo. Estvamos sozinhos na clareira. A noite tinha cado, e ouvi
somente os sons normais da noite, os chamados dos caadores e os chiados das presas.
Grunhi para Clay e j estava para voltar a me acomodar, quando ele bateu em minhas
costelas com o focinho e me indicou que farejasse. Olhei-o com ira, mas fiz o que me
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
124
pedia. No princpio no percebi nada. Ento o vento mudou e soube o que o fez saltar
to rapidamente. Havia algum ali. Outro licntropo: Zachary Cain.
Assim que comprovou que eu lhe entendi, Clay se foi. Detrs de mim, Nick continuava
sacudindo a bruma do sono interrompido. Olhei-o, depois comecei a correr, sabendo que
me seguiria embora no soubesse por qu. No limite da clareira, o aroma de Cain ficou
mais forte, segui o rastro at um bosquezinho prximo. Esteve ali, suficientemente perto
para poder colocar o focinho entre as saras
7
e nos observar dormir. Havia algo estranho,
mas no estava segura do que podia ser. A parte humana de meu crebro queria ficar e
analisar o problema, mas o instinto do lobo dominou e pus meus ps em movimento.
Havia um intruso e tnhamos que nos ocupar dele.
Apesar de que eu vacilei perto do bosquezinho, Nick no. Colocou o focinho, inalou
profundo, retrocedeu e comeou a correr atrs de Clay. Desta vez fiquei na retaguarda
Os outros dois se adiantaram tanto que no podia v-los nem ouvi-los e tive que seguir o
rastro de Clay. Enfiava-se no bosque, atravessando arvoredos to densos que ocultavam
a luz da Lua e das estrelas. Por boa que fosse minha viso noturna, necessitava de luz,
embora no fosse luz refletida. Aqui no havia nada. S podia discernir as formas dos
troncos de rvores e os arbustos, sombras escuras sobre um fundo ainda mais escuro
Ao atravessar a mata, notei que no era to capaz de me desfazer de meus sentidos
humanos como eu gostava de acreditar. Ainda dependia muito da viso. Desacelerei e
pus o nariz no cho para seguir o rastro de Clay.
Do outro lado da vegetao, as rvores se abriam e deixavam entrar um pouco de luz
da lua. Comecei a aumentar a velocidade, logo escutei arbustos que se abriam indo para
o norte a passagem de algo grande. No era Clay nem Nick. At o Nick se movia no
bosque com mais fineza. Abandonei o rastro de Clay e virei para o norte. Tinha
deslocado uns quinhentos metros quando senti a vibrao de patas que batiam na terra
detrs de mim. Eram Clay e Nick. Sabia sem olhar, assim no reduzi a marcha, mas como
era eu quem abria a passagem, no corria to rpido como eles e em pouco tempo escutei
a respirao rtmica de Clay detrs de mim. Demos a volta a umas rochas grandes e
ento escutamos os galhos que se quebravam detrs de ns. Girei para ver uma sombra
marrom avermelhada imensa que saltou atrs da rocha e correu na direo oposta.
Cravei as garras na terra mole para me deter, girei e fui atrs de Cain. S me seguiram
as pisadas de Nick. Clay tomou outro caminho, com a esperana de emboscar Cain como
fez com o cervo. Cain seguiu o atalho que eu tinha aberto, em direo ao lugar de onde
veio. Depois de uns quatrocentos metros virou para o leste. Ia para a estrada, com a
esperana de fugir. Adiantei-me at me aproximar o suficiente para que sua cauda me
roasse a cara. Ento minha pata bateu em um acidente do terreno. No era um buraco
nem nada suficientemente grande para me fazer tropear, simplesmente uma mnima
mudana da altura do terreno que me fez andar mais lento. O suficiente para que Cain
conseguisse se afastar um pouco de mim. Nick me alcanou. Ento avancei mais devagar
para conservar energia. Adiante o bosque se abria medida que nos aproximvamos da
estrada. Girei esquerda, esperando ganhar uns metros ao me antecipar rota de Cain.
Mas ele no virou. Em troca, seguiu correndo, de volta ao bosque.

7
Sara = Silva, planta roscea medicinal.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
125
Vendo o que parou Cain, olhei adiante e vi uma zona menos densa do bosque ao
noroeste. Cain no foi para l, mas eu sim. Nick seguiu ao Cain, nem tanto para alcan-
lo mais para cans-lo. Meu caminho me levou a uma colina rochosa. Ao subir senti o
aroma de Clay. Esteve aqui, embora no soubesse quanto tempo antes. O terreno se fazia
mais difcil medida que avanava, o que me fazia andar mais devagar e amaldioar por
ter escolhido esse atalho. Na metade da subida, uma de minhas patas dianteiras
escorregou em umas pedras, uma delas suficientemente afiada para cortar a planta
acolchoada de minha pata. Grunhi de dor, mas segui adiante. No topo da colina, meu
esforo parecia dar seus frutos. Daqui podia olhar para baixo e ver todo o terreno. Para o
leste divisei um reflexo dourado, que era Clay movendo-se entre as rvores. Por ser um
lobo negro, Nick no era to fcil de ver a noite; mas, passado um instante, vi sacudir
umas rvores abaixo. Segui com o olhar o caminho de rvores e arbustos que se
moviam. Vinham em minha direo. Fui at o lugar onde pensei que sairia. Meu esforo
se viu premiado com uma movimentao na vegetao diretamente adiante. Uns
segundos mais tarde uma forma imensa saiu do mato.
Ao me ver em seu caminho, Cain parou. Grunhiu e agachou a cabea. Seus olhos
verdes refulgiram e seu plo avermelhado ficou arrepiado, aumentando dez centmetros
de tamanho, o que era suprfluo; Cain no necessitava disso para parecer imponente. Em
sua forma humana media dois metros, com os ombros e o fsico de um marechal de
campo de futebol americano. Em sua forma de lobo, media o dobro que eu. Retire os
lbios e grunhi, mas me senti to ameaadora como um cozinho enfrentando a um
touro. Uma parte de meu crebro, cheio de adrenalina, insistia que eu podia dominar ao
Cain, por mais diferena de tamanho que houvesse. Outra parte se perguntava onde
caralho estavam Nick e Clay. Mas o grito mais forte dizia: Corre, idiota, corre!.
Enquanto pensava, Cain de repente se virou e... correu. Por um momento no pude me
mover, sem poder acreditar no que via, Cain fugia? De mim? Por mais que meu ego
desfrutasse da idia de que me temesse, o sentido comum me dizia que no era assim.
Ento por que fugiu? Novamente meu instinto de lobo no deixou que meu crebro
pensasse no assunto. Justo quando Cain desaparecia colina abaixo, dominou-me o
instinto e o segui.
No tinha avanado mais que dois ou trs metros quando algo aterrissou em minhas
costas, me lanando ao cho. Girei para ver Clay parado sobre mim. Tentei me pr de p,
mas ele me impediu disso. Estava louco? Cain escapava dei-lhe uma dentada, pegando
sua pata dianteira, grunhindo. Pegou-me por debaixo da garganta e me imobilizou. A
cada segundo via que Cain fugia para mais e mais longe. Debati-me, mas Clay me
conteve. Finalmente soube que j era muito tarde. Cain tinha ido. Ao percebe isso, Clay
fez um som dentro de sua garganta. No era um grunhido, mas tampouco um som
amigvel. Ento correu, no seguindo ao Cain, a no ser em direo oposta. Quando me
pus de p o segui. Segui seu rastro vinte metros at uma clareira onde podia cheirar sua
roupa. Aqui tinha Trocado. Coloquei o focinho no meio do mato e vi Clay Trocando, as
costas arqueadas, a pele pulsando, muito imerso na transformao para notar minha
presena. Vacilei um segundo. Logo procurei minha roupa e Troquei.
Quando sa da clareira, Clay me esperava.
Onde est Nick? disse Clay antes que pudesse articular uma palavra . Caralho!
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
126
Est com as chaves. No estava detrs de voc?
De que falas?
Clay se meteu entre os arbustos, procurando.
No entende? Estava nos distraindo, tinha-nos ocupados.
Nick?
Cain. Ela j no via Clay, s escutava sua voz no bosque. Estvamos dormidos e
no nos atacou. Perseguimo-lo e no lutou nem tentou escapar. Andou em crculos.
Nicholas!
Mas por que...?
Jeremy. Foram atrs do Jeremy. Caralho! Provavelmente estavam vigiando a casa e ns
nem sequer... Ali est!
Um momento a voz de Nick saiu da escurido . D-me um segundo para pr as
calas?
Clay saiu de entre os arbustos, arrastando Nick pelo brao.
Para o carro. Os dois. Movam-se!
Movemo-nos.


EMBOSCADA

A caminho de Bear Valley, Clay conduziu, Nick foi atrs e eu me sentei na frente onde
os cintos de segurana eram melhores. Tal como temi, o Camaro no estava
entusiasmado por voltar a andar. Quando resistiu, Clay apertou o acelerador at o
fundo, levou as revolues do motor at a zona vermelha, e logo empurrou o cmbio at
a posio de marcha r, ignorando os rudos que vinham de baixo do motor. O carro se
rendeu e amavelmente se deixou tirar da imundcie durante todo o caminho ao Bear
Valley.
No, pegue a sada seguinte disse quando Clay ia pegar o primeiro caminho para
Bear Valley . V para o leste. Ao hotel.
O hotel?
No tem sentido nos perseguir o rabo por todo Bear Valley se os vira-latas nem
sequer deixaram seu quarto de hotel. Mas se saram, talvez possa seguir a pista deles.
Clay apertou as mos. Sabia que estava convencido de que os vira-latas queriam
apanhar ao Jeremy e ir ao hotel significava perder um tempo precioso. Mas fazia sentido.
Em vez de me responder, saiu de novo estrada, diante de um caminho carregado de
troncos. Fechei os olhos o resto do caminho.
Quando chegamos ao motel, Clay estacionou o automvel no lugar para deficientes
junto entrada e j saltava de seu assento antes de desligar o motor. Eu peguei as chaves
e o segui. Esta vez no se esforou por enganar ao empregado do balco. Por sorte no
estava ali. Clay subiu os degraus de dois em dois. No quarto de Blanc, quebrou a
fechadura recm arrumada e entrou sem esperar para ver se havia algum. Eu subia os
ltimos degraus quando saiu.
No esto disse, me empurrando para um lado para descer. Quando estava no
meio da escada notou que eu continuava subindo e se virou. disse que no esto.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
127
No o nico quarto disse . No poderiam convencer Marsten a dormir no cho.
Clay grunhiu algo, mas eu j ia pelo corredor, parando em cada porta e tentando sentir
o aroma de Cain ou o de Marsten. Clay voltou a subir as escadas e me seguiu pelo
Corredor.
- No temos tempo.
- Ento v - disse . Vai.
No o fez. Detive-me trs quartos depois do de Blanc.
- Cain disse - pegando o trinco.
- Bem. Segue adiante e encontra o de Marsten.
Marsten tinha o quarto seguinte. Clay estava revistando o quarto de Cain quando
arrombei a porta do de Marsten e entrei. O quarto parecia desabitado. S vi uma valise
de couro italiana em um canto. A cama estava feita, as mesas limpas e as toalhas estavam
penduradas. Claramente era o quarto de Karl Marsten. Se tinha que rebaixar-se a aceitar
um quarto no Motel Big Bear, no ia ficar ali nem um minuto mais do necessrio. Estava
para sair do quarto, quando uma brisa me trouxe ar fresco e um aroma familiar.
Jeremy disse Clay detrs de mim ao entrar no quarto.
Foi at a janela e correu as cortinas. A porta estava um pouco aberta, como se algum a
tivesse fechado de fora onde no havia trinco.
- foi - disse . Deve ter vindo investigar.
Clay assentiu e me passou indo rumo porta. Voltamos para o automvel. A seguir
Clay percorreu os estacionamentos em busca do Mercedes ou o Acura. Na realidade no
os percorreu, enfiou-se neles a toda velocidade, deu voltas e saiu disparado. No
estacionamento atrs da loja de roupa Drake's Family Wear, encontramos o Acura de
Marsten.
S estava supondo que o Acura era de Marsten, mas era uma boa aposta. O Blanc teve
um salrio fixo enquanto vivia uma vida normal em Chicago, mas pelo que se via em seu
quarto de hotel, nestes tempos no tinha dinheiro para automveis de luxo. Marsten, em
troca, era muito bem-sucedido... em sua carreira de ladro. Na realidade o roubo a
principal ocupao dos vira-latas. Seu estilo de vida no os inspira a ficar em um
povoado tempo suficiente para ter um emprego fixo. E embora tivessem a inclinao a
criar razes, no podiam demorar. Pelo menos nos Estados Unidos, a Matilha
rotineiramente perseguia aos ingratos que pareciam acomodar-se a uma vida sedentria.
Formar um lar significava apropriar-se de um territrio e isso s podia fazer a Matilha
Por isso a maioria dos vira-latas ia de cidade em cidade, roubando o suficiente para
manterem-se vivos. Para os ingratos era melhor. Marsten se especializou em jias, quer
dizer, jias dos pescoos e dos quartos de mulheres amaduras e solitrias. Tinha dinheiro
e se considerava melhor que os outros vira-latas. Para a Matilha no importava que
falasse cinco idiomas e no tocasse em um usque que tivesse menos anos que ele. Um
vira-lata era um vira-lata.
Clay desacelerou atrs do Acura, logo apertou o acelerador e saiu do estacionamento.
No estamos procurando por eles? perguntou Nick, inclinando-se sobre o assento.
No me importa onde eles esto. Importa-me onde est Jeremy.
Encontramos o Mercedes de Antnio a um par de quadras no estacionamento da
fbrica de papis. Este rastro me resultava mais fcil de seguir, porque os aromas eram
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
128
to familiares que podia deixar que meu crebro os processasse em piloto automtico
enquanto eu me concentrava em procurar pistas.
O rastro dava a volta no escritrio do jornal local, o depsito onde havia sido a
festinha, o Donut Hole e um bar onde passavam msica country e western perto da rua
principal. Podia entender a lgica de Jeremy em passar por cada ponto: o jornal para as
ltimas notcias, o caf em busca de intrigas e o depsito em busca de pistas. O do
botequim era um pouco mais complicado, at que senti o aroma cido de urina no lugar
onde Cain havia urinado contra a parede traseira, presumivelmente na noite anterior
depois de beber. Da, o rastro levava para a fbrica de papel onde estava o automvel de
Antnio.
Esto voltando disse Nick . Aposto que nos cruzamos.
Caminhamos cinco passos quando um gato fez um som sibilante detrs de uma lata de
lixo. Nick lhe respondeu de igual modo. O gato entrecerrou os olhos, levantando a cauda
como um sinal de exclamao ante a afronta.
Deixa o bichano disse . Muito fraco, seria apenas uma mordida.
Ao girar, vi algo que saa de debaixo das bolsas de lixo. No princpio parecia uma fila
de quatro pedregulhos plidos e redondos que saam de duas bolsas. Isso parecia to
fora do lugar que me aproximei, ignorando o fedor do lixo. Ao me aproximar entendi o
que via: dedos.
- Merda murmurei -. Olhem isto. Esses vira-latas esto ficando descuidados ou
deixam as coisas vista de propsito.
- Aposto vinte dlares que o segundo - disse Clay.
Deu um passo adiante e levantou a bolsa que o cobria para ver melhor. Os dedos
estavam unidos a uma mo, unida a um brao.
Quando Clay levantou mais a bolsa, o corpo caiu no cho de costas. A cabea do
homem ficou em um ngulo impossvel, com o pescoo quebrado. Seus cabelos
avermelhados e indmitos brilhavam ainda na escurido.
- Peter sussurrei.
- No disse Clay -. Jeremy. No!
Clay saiu correndo e seus passos ressoaram na escurido do beco. Os olhos de Nick se
abriram e encontraram os meus. Ento algo lhe recordou que Jeremy no era o nico que
estava com Peter. Correu atrs de Clay. Segui-os, com o corao bombeando to forte
que no me deixava respirar. A cinco metros vi brilhar um atoleiro de um lquido
vermelho e espesso sob uma luz meio apagada. Dali saam tentculos de sangue, que
convergiam logo em um fio para o longe. Segui o rastro. Adiante, a camisa branca de
Nick se movia na escurido. Escutava as pisadas de Clay, mas no o via. O rastro de
sangue dava a volta em duas esquinas. Ao dobrar a segunda, vi Clay e Nick adiante,
detidos e logo retrocedendo. Tinham passado o rastro, que terminava em um atoleiro de
sangue junto esquina.
Inclinei-me, pus o dedo no sangue e o levei a meu nariz.
dele? - perguntou Clay.
de Jeremy - sussurrei.
E h muito mais aqui acima se quiserem olhar de perto disse uma voz grave.
A cabea de Clay se virou para trs. Olhamos ao redor e logo vimos um muro situado
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
129
direita. Clay chegou primeiro. Subiu de um salto e desapareceu em uma abertura
escura. Nick e eu o seguimos. Jeremy estava sentado no fundo com sua perna direita
elevada sobre uma caixa de madeira e Antnio rasgava sua camisa em tiras. Quando nos
aproximamos, Jeremy levantou o brao esquerdo para tirar os cabelos do rosto, mas
lanou um gemido e mudou mo direita, deixando cair esquerda.
- Esto bem? - perguntei.
- Peter est morto - disse Jeremy -. Emboscaram-nos.
- Voltvamos para automvel disse Antnio, adicionando outra atadura perna de
Jeremy . Eu fui procurar um banheiro. Cinco minutos. Mal dobrei a esquina e... -
concentrou-se em sua tarefa, mas em cada palavra era evidente a culpa que sentia. -
menos de cinco minutos. Enquanto foi urinar...
- Esperavam uma oportunidade - disse Jeremy -. Qualquer um de ns poderia ter
ido atrs um momento e teriam atacado aos outros dois.
Antonio olhou sobre o ombro.
O novo, o vira-lata que matou Logan, atacou Jeremy com uma faca.
Uma faca? - Clay procurou confirmao de Jeremy, com tanta incredulidade como
se Antnio tivesse dito que atacaram Jeremy com um Howitzer antigo -. Uma faca?
Jeremy assentiu.
Antnio continuou.
Atacaram ao Peter e ao Jeremy. No houve tempo de reagir. Teria os seguido, mas
Jeremy sangrava muito.
Eu no teria deixado voc persegui-los de todo modo disse Jeremy -. No temos
tempo de analisar as coisas agora. Temos que limpar e ir.
Tentou ergue-se. Clay saltou uma caixa e o ajudou a ficar de p.
Deixamos Peter no lugar disse Jeremy.
Sei disse . Encontramo-lo.
No lixo disse Antnio, passando uma mo pelo rosto . Isso no foi correto. Sinto
muito, mas Jeremy estava sangrando e eu...
- Tinha que encontrar um lugar para que nos esconder rpido terminou Jeremy por
ele . Ningum culpa voc. Iremos procur-lo e o levaremos para casa.
Clay ajudou Jeremy a descer do muro. Eu me coloquei esquerda para pegar o outro
brao, logo recordei que estava ferido e me conformei caminhando a seu lado, pronta
para sustent-lo se sua perna cedesse. Dei as chaves de meu carro ao Nick e ele foi levar
o Camaro at o beco para poder carregar os corpos. Quando chegamos pilha de lixo,
Antnio descobriu Peter e o limpou.
Marsten vai pagar por isso disse Clay, olhando o corpo de Peter, apertando os
punhos -. Vai pagar, de verdade.
Marsten no matou Peter. Foi Daniel.
Do... Clay se sufocou . Merda.

Voltei para Stonehaven no Mercedes de Antnio, sentada no assento traseiro com o
Jeremy para o caso de ele comear a sangrar mais. Antnio dirigia em silncio. Jeremy
olhava pela janela, sustentando as ataduras. Tentei me concentrar em outra coisa que no
fosse olhar meu automvel atravs do pra-brisa e pensar no corpo de Peter na mala. Em
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
130
vez disso, pensei nos vira-latas.

Assim era Daniel. O que significava um problema srio. Daniel sabia como operava a
Matilha, como operava cada um de ns. Daniel foi da Matilha. Fala-se que foi criado com
o Nick e com o Clay..., ou melhor, cresceu em seu entorno. "Com eles soa como se
fossem amigos, coisa falsa. Antes que Clay chegasse, falam que Nick e Daniel brincavam
juntos s vezes, aproximados por sua idade, como dois primos que brincam juntos nas
reunies familiares porque no h ningum mais com quem entreter-se. Ento Clay
chegou. Eu no conhecia bem os detalhes, mas haviam me dito que Clay e Daniel se
odiaram a primeira vista. O fato desencadeante parece ter ocorrido na primeira vez que
se encontraram, quando Daniel obsequiou Matilha com a histria de como tinham
expulsado Clay do jardim da infncia, que tinha que haver com uma dessecao de um
porquinho da ndia da classe para ver como era por dentro, mas, como foi, eu no
conhecia os detalhes. Quando perguntei ao Clay a respeito disso, a nica coisa que disse
foi j estava morto", o que supostamente explicava tudo. Qualquer que tenha sido a
histria, envergonhou ao Jeremy, quem fala oculta os detalhes quando explicou aos
outros por que Clay s passou um ms na escola. Ao incomodar Jeremy, Daniel ganhou
o rancor eterno de Clay.
Nos anos que seguiram, a relao entre os dois se tornou mais difcil, porque Daniel e
Clay lutavam pela posio suprema na gerao jovem. Ou deveria dizer que Daniel lutou
por isso. Clay simplesmente deu por certa que lhe correspondia e esmagou as aspiraes
de Daniel com o desprezo aborrecido de algum que espanta um mosquito. Quando os
trs tinham pouco mais de vinte anos, Jeremy se converteu em Alfa. Nem uma vez dei a
impresso de que foi uma ascenso sem sangue. No foi. Sete membros da Matilha
respaldaram Jeremy e quatro no, incluindo o Daniel e seu irmo Stephen. A dissenso
se tornou mais violenta e Stephen tentou assassinar Jeremy, mas Clay o matou. Daniel
insistiu em que seu irmo era inocente e que Clay o assassinou para esmagar a oposio
ao governo de Jeremy. Quando Jeremy foi nomeado Alfa, Daniel decidiu que no havia
lugar para ele na nova Matilha.
Desgraadamente esse no foi o fim da histria. Levando em conta que j no eram
irmos de matilha, Daniel e Clay tiveram muitos embates aps isso. Depois que eu
apareci, a coisa ficou pior. Daniel decidiu que devia me possuir, embora fosse mais
porque eu pertencia" a seu arquiinimigo. Quando Daniel se aproximou de mim pela
primeira vez, cheguei a pensar que era um tipo decente. Minha opinio mudou no dia
em que foi visit-lo e o encontrei escondendo a uma mulher no guarda-roupa. No teria
sido to mau se a mulher estivesse viva. Aparentemente estava justo at o momento em
que toquei a campanhia, momento em que Daniel quebrou o pescoo dela e tentou
coloc-la em um guarda-roupa para que no o encontrasse com algum. A partir dali,
comecei a acreditar mais nas advertncias de Clay a respeito de Daniel. A mulher no
guarda-roupa no era a primeira que Daniel matava. Quando deixou a Matilha,
abandonou seus ensinos e leis e se converteu em um assassino. Como todos os vira-latas
assassinos bem-sucedidos e de vida prolongada, Daniel aprendeu como convinha matar
a humanos, o mesmo truque que usa um lobo quando enfrenta uma grande manada:
separar aos que esto nas bordas. Se algum se limita aos marginais drogados,
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
131
adolescentes em fuga, prostitutas, pessoas sem lar, havia muitas probabilidades de que
no o apanhassem. Por qu? Porque no importam a ningum. obvio que dizem que
sim, os polticos, a polcia e todos os que se supe que defendem a lei, mas na realidade
no. Essas pessoas podem desaparecer e, enquanto no apaream, no importam a
ningum. No falo de ditaduras do terceiro mundo nem de metrpoles dos Estados
Unidos famosas por suas taxas de criminalidade. Em Vancouver desapareceram trinta
prostitutas de um s bairro antes que as autoridades suspeitassem que havia um
problema. Acreditem em mim, se essas mulheres fossem estudantes da universidade da
Columbia Britnica, as pessoas teriam se preocupado muito antes. Nisso foi que se
equivocou Thomas Le Blanc, ao escolher como presas a filhas e esposas de classe mdia.
Se tivesse se limitado s prostitutas e crianas abandonadas, ainda estaria fazendo
grandes negcios em Chicago. Em todas minhas discusses com Jeremy em relao ao
sistema hierrquico da matilha sempre defendi o modelo democrtico, onde todos
supostamente so igualmente importantes. obvio que no assim. Embora a matilha
tenha uma hierarquia estrita, no permitiria que ficasse sem vingana a morte inclusive
do ltimo de seus membros.
De volta a casa, Jeremy me pediu que o ajudasse com suas feridas. Possivelmente
sups que seria uma enfermeira mais suave, mais tolervel que os homens. Correto.
Jeremy pode no saber muito de mulheres, mas aprendeu o suficiente desta em
particular para no me confundir com a me Teresa. O mais provvel que pensou que,
ante a opo de me fazer de enfermeira ou cavar uma tumba, seria muito mais feliz
pondo touca e uniforme. Meu ltimo episdio junto a uma tumba no era um dos que
queria repetir to cedo. Ao menos, se cuidasse de Jeremy, podia esquecer um pouco o
que acontecia em outros lugares.
Normalmente, Jeremy sria o encarregado das tarefas de enfermaria. Era o mdico da
Matilha. No, esse no era um papel que se herdeira atravs das geraes de licntropos,
Foi algo que Jeremy se encarregou quando Clay, quando criana, saltou cinco andares
pelo poo do elevador de um centro comercial (no perguntem) E fraturou o brao em
vrias partes. Para no pr em risco a mobilidade futura de Clay com um
entalamento
8
improvisado, Jeremy o levou a um mdico. Embora tivesse o cuidado de
aduzir motivos religiosos para impedir que fizessem anlises de sangue e outros testes
de laboratrio, o mdico os fez de qualquer forma. Os resultados poderiam ter passado
sem que ningum se surpreendesse, dado que no tinham muito que ver com um brao
quebrado, mas um tcnico de laboratrio noturno que estava aborrecido descobriu algo
estranho e chamou Jeremy s duas da manh. O sangue de licntropo tem algo estranho.
No me peam mais explicaes, apenas passei em biologia no segundo grau. O que sei
que no devemos permitir que nos tirem sangue e o analisem. O que o tcnico de
laboratrio viu no sangue de Clay lhe fez pensar que tinha algum problema grave e
ordenou ao Jeremy que o levasse imediatamente ao hospital. O resultado de toda essa
confuso foi que tanto o tcnico como os resultados da anlise estavam desaparecidos
pela manh. A partir dali, Jeremy comprou e estudou um carregamento de livros de
medicina. H alguns anos cometi o engano de lhe dar de presente uma cpia de um guia

8
Entalar = apertar com talas fixando.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
132
de primeiros socorros, gostou tanto que me fez comprar exemplares para todos para que
os tivssemos mo e pudssemos curar nossas prprias amputaes. Podem dizer que
sou maricas, mas se alguma vez perder um membro e no tiver ningum perto, darei-me
por morta, embora a guia tenha maravilhosas instrues (com ilustraes muito teis) a
respeito de como se deve amarrar a ferida com um pau e uma bolsa de plstico para os
restos.
A perna primeiro? perguntei a Jeremy quando tirou sua caixa de provises mdicas
do armrio do banheiro.
O brao. Eu recoloco o osso. Voc o entala.
Isso no soava muito ruim. Jeremy se sentou na privada e eu me agachei ao seu lado
enquanto trabalhava. Como tinha sido um golpe limpo, sem fraturas, s tinha que retirar
o lixo da pele e do osso antes de o realinhar sustentando-o justo debaixo do pulso
Depois enrolei uma atadura seguindo as instrues do Jeremy, coloquei-a debaixo de seu
cotovelo e ainda por cima da boneca - Ento fiz um tipia para manter o brao alto. O
entalamento demorou um pouco mas foi fcil... ao menos comparado com o que quis que
fizesse a seguir.
Ter que costurar minha perna disse.
Costurar...?
No posso faz-lo com uma mo. Ficou de p e, apoiado no lavabo, desabotoou os
jeans com sua mo boa e os tirou com esforo. Necessitaria de sua ajuda para tirar isso de
mim se no for pedir muito.
Com certeza disse . Sou boa em despir homens. Em troca no sei se sou boa em
costurar pessoas. Talvez o corte no seja to mau. Retirei a camisa empapada de sangue
da coxa de Jeremy. A pele e o msculo se abriram como o Mar Vermelho, analogia muito
adequada tendo em conta o jorro de sangue que saiu dali. No tinha nenhum problema
por ver Jeremy sem calas, mas essa viso interna era mais do que queria ver.
Pegue a toalha de mo disse sentando-se rapidamente e apertando uma toalha
grande contra o corte.
Molhei a toalha de mo, lavei a ferida e depois pus anti-sptico. No trabalhei rpido o
suficiente e quando terminei tinha sangue derramando-se por meus dedos.
Pegue uma atadura disse Jeremy . No, essa fita no. A outra. Bom.
Utilizando a atadura e fazendo umas manobras complicadas, conseguimos deter a
hemorragia antes que Jeremy desmaiasse. Pegou algo claramente parecido com uma
agulha e um fio de seu kit e me entregou.
Deixa de dar voltas, Elena. No vai te morder. Pegue a agulha e comece de uma vez.
No pense no assunto. Simplesmente tente fazer uma linha o mais reta possvel.
Parece fcil, mas voc nunca viu minha letra.
No, mas tive o prazer de sofrer seus dotes de cabeleireira. Como disse, tenta
costurar em linha reta.
Sempre cortei seus cabelos direito.

Se puser a cabea em certo ngulo, ficava perfeitamente direito.
Cuidado. Tenho uma agulha.
E possivelmente a fao se zangar o suficiente, para decidisse a me cravar isso e
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
133
comear a costurar antes que perca todo meu sangue.
Dava-me por manobrada. Face ao que Jeremy disse, no foi como costurar tecido e
tampouco pude fazer de conta que era. Tecido no sangra. Concentrei-me em fazer a
coisa bem feita, sabendo que se no fizesse, Zombariam de mim pelo resto de minha vida
pela cicatriz do Jeremy. Estava terminando quando senti um ataque de ira pelo fato do
vira-lata se atrever a fazer isto ao Jeremy, o que me fez pensar em como aconteceu, o que
me fez recordar que Peter estava morto. Minhas mos comearam a retesar-se. A velha
serpente da ira comeou a mover-se em meu interior. Detive-me, tomei ar e comecei de
novo, mas no pude evitar que meus dedos tremessem.
De modo que enfrentamos trs vira-latas experientes disse Jeremy, interrompendo
meus pensamentos.
Engoli o n em minha garganta e me rendi ao seu intento de me distrair.
E ao menos um novo.
No o esqueci, mas me preocupa mais os experientes. So bons como demonstram
meu brao e minha perna mas no esto ao nvel de Daniel.
Cortei o fio.
Diz isso porque conhece Daniel. E embora no conhea tanto ao Marsten e ao Cain,
sabe o que esperar deles porque so como voc. Pensam como voc, reagem como voc,
matam como voc. Os novos no. Os licntropos no enforcam as pessoas. Assim matou
Blanc ao Logan e o obteve porque era a ltima coisa que Logan esperaria. E depois
atacou voc com uma faca. Voc esperaria isso tanto como um samurai estaria atento a
um pontap nos testculos. Por isso Le Blanc continua vivo. Surpreendeu voc. Se...
J cavamos a tumba disse Antnio, entrando no banheiro . Sinto muito.
Interrompo algo?
Nada que no possa concluir-se mais tarde disse Jeremy, ficando de p testando os
pontos. Como no abriram nem sangraram, assentiu. Perfeito. Vestirei-me e verei a
tumba.



CONDENAO

Fui com Jeremy ao lugar onde Peter foi enterrado. No era algo que queria fazer;
depois de ter passado por mim ltima crise junto a uma tumba fazia menos de trinta e
seis horas. E Jeremy no necessitava de minha ajuda para assegurar-se de que a tumba
estava bem escondida. Mas necessitava de minha ajuda em outro sentido, embora no
admitisse nem pedisse. Com sua perna recm costurada, no estava em condies de
caminhar sem algum que o sustentasse. Assim o ajudei a sair para o ptio traseiro,
embora qualquer um que visse a cena acharia que Jeremy era quem me ajudava. Isso era
intencional. O Alfa da matilha no podia mostrar-se dbil, embora acabasse de sair de
uma batalha em que esteve em risco de vida. No que Antnio, Nick ou Clay fossem se
aproveitar da oportunidade para disputar com o Jeremy a liderana. Mas como a Matilha
dava ao Alfa o controle total, a idia de que no estivesse altura da tarefa, embora fosse
de forma temporria, poderia desequilibrar toda a Matilha.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
134
Jeremy devia estar sofrendo uma dor tremenda, mas no demonstrou. Aceitou apoiar-
se em meu brao para ir e voltar da tumba, mas nunca se apoiou mais que um mnimo
imprescindvel. S se deteve um segundo ao voltar para casa, presumivelmente para
recuperar o flego, embora parecesse estar olhando para um tijolo descascado no muro
do jardim.
Suponho que agora iremos dormir disse, fingindo que bocejava. Eu o necessito.
V voc disse Jeremy-, teve um par de dias duros. Reunirei-me com os outros e
informo a voc amanh.
Todos devem estar exaustos. Podemos nos reunir pela manh, no certo? No
queria perder nada.
Quero resolver isto esta noite. Se quer estar ali, pode se apropriar do sof e cochilar
enquanto falamos.
Bom, esqueamos a sutileza. Hora de um ataque pleno e frontal.
voc quem precisa dormir sua perna deve estar te matando e seu brao tambm.
Ningum vai pensar que algo errado estar acontecendo se retardas a reunio at manh.
Posso fazer isto. No aperte os dentes assim, Elena; no sou dentista para arrumar
seus dentes que quebrem. Se quer ajudar, rena os outros e os leve para o escritrio, se
que j no esto l.
Se quiser que o ajude de verdade, posso desmaiar voc com um golpe at a manh.
Dirigiu-me um sorriso forado que dizia que minha sugesto soava mais tentadora do
que queria admitir.
Negociemos. Pode reunir os outros e me preparar uma bebida, de preferncia duplo.
Antes da emboscada, Jeremy pode confirmar o que Clay e eu j sabamos. Que havia
trs vira-latas em Bear Valley. Tambm descobriu algumas coisas mais. Marsten foi o
primeiro a chegar; antes de Cain e Le Blanc. Alojou-se no Big Bear h trs dias, o que
significava que estava no povo antes da morte de Brandon. Logo depois que algumas
notas de vinte ajudaram o empregado da recepo a recordar reportou que um jovem
cuja descrio coincidia com a de Brandon visitado Marsten no hotel vrias vezes. J no
restava dvida de que Brandon esteve envolvido com os outros. Perguntei-me se
Marsten esteve na festa aquela noite, desfrutando de um usque com soda enquanto
observava ao Brandon e a mim, seu aroma e forma ocultos em um canto escuro e cheio
de fumaa. Sim, estava segura de que esteve ali. Viu Brandon iniciar sua Mudana,
percebeu o que ia acontecer e partiu antes que o caos se instalasse, abandonando seu
protegido a prpria sorte. Os vira-latas podiam estabelecer relaes entre si, mas s
enquanto eram proveitosas para ambas as partes. Uma vez que Marsten viu que Brandon
estava com problemas, sua nica preocupao foi sair da antes de ver-se metido na
confuso.
Cain e Le Blanc chegaram ao Big Bear na noite que Brandon morreu. Presumivelmente
seguiram Logan desde Los Angeles ou o encontraram no aeroporto. Apanh-lo em Bear
Valley teria sido quase impossvel. Enquanto perseguamos Brandon, Logan j estava
morto, na mala de um automvel alugado a caminho de Bear Valley. Em algum ponto
devem ter sabido pelo Marsten que Clay e eu estvamos no povoado, e ali surgiu a idia
de deixar o corpo de Logan perto de nosso automvel. Supus que era idia de Blanc.
Cain no tinha crebro para tanto e Marsten consideraria isto algo degradante para ele.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
135

No eram sete horas ainda quando soou a campainha da porta. Todos ns levantamos
a vista, sobressaltados. A campainha de Stonehaven raramente soava, porque a casa
ficava muito na contramo para os vendedores e as Testemunhas de Jeov. As
correspondncias iam para uma caixinha do correio em Bear Valley. A Matilha tampouco
usava a campainha, exceto Peter. Acredito que todos ns lembramos dele ao escut-la.
Ningum se moveu at o segundo toque, ento Jeremy ficou de p e saiu do escritrio.
Eu o segui. Da janela da sala de janta podamos ver uma viatura da polcia estacionada
na entrada.
No necessitamos disto disse . Realmente no necessitamos.
Jeremy tirou o leno que usava como tipia e o deixou no cabide do corredor, depois
pegou a camiseta de Clay que estava ali. Ajudei-lhe a vestir a camiseta de mangas longas
e grandes que ocultava as talas do brao e as calas cobriam as bandagens da perna. Sua
roupa estava limpa e sem rugas, dado que a havia trocado fazia poucas horas. Mas ns
estvamos maus. Um olhar no espelho do vestbulo bastou para ver que minha roupa
estava coberta de terra e sangue, rosto sujo e o cabelo feito um po-doce.
Leve os outros para cima para que se troquem disse Jeremy . Diga a Clay, Tnio e
Nick que fiquem l, Pode se reunir comigo no alpendre de trs.
Deve convid-los a entrar. Vai parecer suspeito se os levar l para trs pela segunda
vez
Sei.
Convide-os a entrar e oferea caf para eles. No h nada aqui que possa chamar a
ateno deles.
Sei.
Bem, ento nos encontramos no escritrio.
Jeremy vacilou. Saber que devia convidar polcia a entrar era diferente de faz-lo. Os
nicos humanos que chegavam a Stonehaven eram os que deviam arrumar coisas, e isso
s quando era absolutamente necessrio, e os tirava dali o mais rpido possvel.
No havia nada em Stonehaven que pudesse provocar suspeitas, nem pedaos de
gente no freezer nem pentagramas no piso de madeira. O impressionante em Stonehaven
era meu quarto e no tinha inteno de convidar nenhum policial ali, por melhor que se
visse em um uniforme.
O living disse finalmente quando a campainha soou pela terceira vez . Estaremos
no living.
Vou fazer caf disse e fui antes que pudesse mudar de idia.
Quando cheguei ao living, dois agentes falavam com Jeremy. O mais velho era o chefe,
um homem gordo e careca chamado Morgan. Reconheci-o da manh anterior, quando a
polcia veio em busca do corpo de Mike o caador. No reconheci ao outro. Era jovem e
de rosto suave, o tipo de cara que algum teria que ver vinte vezes antes de record-lo.
Em seu crach estava escrito que se chamava OuNeil. Nem o rosto nem o nome me
recordaram nada do dia anterior, mas provavelmente esteve ali. O olhar que me dirigiu
indicava que se lembrava de mim, embora parecesse desiludido de me encontrar vestida.
Pelo menos cheguei com caf.
Quando entrei, Jeremy e Morgan discutiam uma reclamao de terras dos aldeos.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Jeremy estava sentado na cadeira apoiado contra o respaldo, com os ps no div, o brao
quebrado descansando contra sua perna. Seu rosto estava relaxado, os olhos alertas e
interessados, como se a polcia viesse a sua casa todos os dias e no s soubesse da
reclamao de terras, mas tambm se interessasse, alm de concordar com as opinies do
chefe de polcia com a tranqilidade de um artista consumado. O agente mais jovem,
Ou'Neil, olhava o escritrio sem se incomodar em dissimular, como se tentasse gravar
todos os detalhes para contar mais tarde aos amigos curiosos.
A conversa se interrompeu quando eu entrei. Coloquei o caf em uma mesa e comecei
a servir como uma anfitri perfeita.
No tomo ch disse Morgan, olhando a cafeteira chapeada como se ela pudesse
mord-lo.
caf disse Jeremy, com um sorriso de desculpa . 'Tero que nos perdoar. No
recebemos muitas visitas, assim Elena tem que usar o bule.
Ou'Neil se inclinou para frente para receber sua xcara de caf.
Elena. um lindo nome.
russo, no verdade? perguntou Morgan, entrecerrando os olhos.
Pode ser disse, sorrindo amplamente. Nata e acar?
Trs colheres de acar. No vi seu marido por aqui Est dormindo?
Derrubei caf quente na mo e contive um uivo. De modo que o invento marital de
Clay percorreu toda rede at que o rumor chegou ao chefe de polcia. Maravilhoso.
Maravilhoso. O sentido comum me indicava que devia seguir seu jogo. Afinal de contas,
Bear Valley no o tipo de lugar que tolera mulheres que andam nuas pelo bosque com
um homem que no seja seu marido. Na realidade provavelmente no tolera andar nua
pelo bosque e ponto, mas essa no era a questo. A questo era que isso de tranqilizar
as pessoas do lugar era bom, mas at certo ponto. Uma coisa era lhes permitir entrar na
casa, tolerar sua bisbilhotice e os deixar acreditarem que no podemos diferenciar um
bule de uma cafeteira, mas confirmar oficialmente o rumor de que era casada com Clay,
isso no. Uma garota tem que pr limites.
Sim, est dormindo disse Jeremy quando me virava para lhe dizer como eram as
coisas Elena sempre se levanta cedo para lhe preparar o caf da manh.
Dirigi-lhe um olhar de dio para que soubesse que me pagaria Fez de conta que no o
adverti, mas pude ver o brilho risonho em seus olhos. Coloquei cinco colheradas de
acar em seu caf. obvio que ele perceberia, mas teria que tom-lo. Afinal de contas,
seria uma falta de amabilidade no tomar uma bebida social com suas visitas.
Como disse comeou Morgan. Peo-lhes desculpas por vim v-los em um
domingo to cedo, mas acreditei que quisessem saber. Mike Braxton no foi assassinado
em sua propriedade. O forense est seguro. Algum o matou em outro lugar e o jogou
em sua propriedade.
Algum? disse Jeremy . Quer dizer uma pessoa e no um animal?
Bom, diria que foi um animal, mas da variedade humana. No tem muito sentido. As
outras duas decididamente foram matanas de animais, mas o forense diz que abriram a
garganta de Mike com uma faca, no com dentes.
E os rastros que vimos? No queria perguntar; mas tnhamos que saber o que a
polcia pensava.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Acreditam que so falsas. Quem ps o corpo ali s marcou na terra para que
parecesse que foi outra vez um co. Mas o tipo se equivocou. Eram muito grandes. Foi
isso que nos alertou. Os rastros de co no so to grandes. Bom, um de meus homens
diz que h um tipo de co, o mastim ou algo assim, que poderia deixar rastros como
aqueles, mas no h ces dessa raa por aqui. Nossos ces de caa e pastores no crescem
tanto, por mais que lhes demos de comer. Recordaro que antes de sair Mike deixou uma
mensagem para algum dizendo que vinha para c. Resulta que o disse esposa do
moo, que agora diz que achou que Mike parecia estranho, diferente, mas pensou que
havia um problema na linha telefnica. O mais provvel que no foi Mike quem deixou
a mensagem. Quem ligou deve ter feito para se assegurar que vissemos aqui e
encontrssemos o cadver. E juntando todo isso estou seguro de que temos um assassino
humano.
Assim no h ces selvagens no bosque disse Jeremy . Isso um alvio. Embora
no possa dizer que prefiro a idia de um assassino humano que anda solto. Tem alguma
pista?
Estamos trabalhando nisso. Provavelmente foi algum a quem Mke conhecia. Mike
era um grande tipo, mas... Morgan fez uma pausa, como se no quisesse falar mal de
um morto. Todos tm problemas, no verdade? Inimigos e coisas desse estilo. Outra
pausa. Um lento sorvo de caf. E o que voc diz? Tm alguma idia do por que algum
queria deixar o cadver de Mike em suas terras?
No disse Jeremy, com a voz firme. Eu mesmo me perguntava isso.
No tem inimigos no povoado? Teve algum desentendimento com algum?
Jeremy sorriu levemente. Estou seguro de que voc consciente de que no somos as
pessoas mais sociveis do condado de Granton. No temos contato suficiente com nossos
vizinhos para que haja problemas. Diria que h duas solues possveis ao mistrio.
Talvez o assassino pensasse que culpar aos estranhos" afastaria as suspeitas dele, ou no
tinha a inteno de nos envolver e pensou simplesmente que este era um bom lugar para
jogar o corpo.
Est seguro de que no h ningum a quem vocs possam ter incomodado? disse
Morgan inclinando-se para frente . Possivelmente algum que pensa que voc lhe deve
dinheiro? Possivelmente um marido ciumento Morgan me olhou ou uma esposa?
No e no. No jogamos nem temos dvidas. Quanto outra pergunta, estou seguro
de que ningum me viu percorrendo os bares de solteiros de noite e Elena e Clayton no
tm nem a inclinao nem a energia para procurar aventuras. Bear Valley um
povoado pequeno, delegado. Se houvesse rumores a respeito de ns, voc faria
perguntas mais precisas.
Morgan no respondeu. Em troca olhou fixamente para Jeremy durante dois minutos
corridos. Possivelmente essa ttica funcionava com suspeitos de vandalismo de dezesseis
anos de idade, mas no ia quebrar a um Alfa da Matilha de cinqenta e um anos
Jeremy simplesmente lhe devolveu o olhar, com expresso calma e aberta.
Logo depois de alguns minutos, Jeremy disse:
Lamento que tenham tido que vir dois dias seguidos, mas lhe agradeo que tenha
vindo nos informar esta manh.
Jeremy deixou de lado sua xcara e se deslizou at a borda do assento, Como Morgan e
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
138
Ou'Neil se mantiveram em seus assentos, ficou de p e disse:
Se for tudo...
Queremos voltar a investigar em suas terras um pouco mais disse Morgan por fim.
obvio.
Possivelmente queiramos interrogar a seus convidados. Sugiro que no partam
rpido.
No o faro.
Morgan manteve o olhar outro minuto. Como Jeremy nem sequer piscava, grunhiu e
ficou de p.
Um assassino jogou um corpo em sua propriedade disse . Se eu fosse voc,
tentaria pensar em quem poderia hav-lo feito, e se lhe ocorrer algo nos ligue.
No duvidarei em faz-lo disse Jeremy . Espero que quem quer que tenha jogado
o corpo do senhor Braxton aqui no tenha nada contra ns, mas se for assim, no quero
ignor-lo e ficar esperando seu movimento seguinte. Aqui ningum tem desejos de
meter-se com um assassino. Estamos mais que dispostos a deixar que a polcia faa isso.
Morgan grunhiu e bebeu o que restava de seu caf.
Algo mais? perguntou Jeremy
Eu no andaria por esse bosque durante um tempo.
J deixamos de faz-lo disse Jeremy . Mas obrigado por sua advertncia. Elena,
quer acompanh-los at a porta?
Fi-lo. Nenhum dos dois policiais me disse nada, mais que o "adeus" pouco corts de
Morgan. Obviamente, sendo mulher, no valia a pena me interrogar.

Quando os policiais se foram notei que Clay, Nick e Antnio tambm o tinham feito.
Se s tivessem sido Clay e Nick, teramos nos preocupado. Como Antnio foi com eles,
Sabamos que no estavam planejando nenhuma vingana improvisada em Bear Valley
Tinham passado dez minutos desde que se foram os policiais quando apareceu o
Mercedes na entrada. Nick saltou do assento do acompanhante. No percebi quem
dirigia, porque minha ateno estava posta em sua totalidade na grande bolsa de papel
que Nick trazia na mo. Caf da manh. No exatamente quente e fumegando, porque
demoraram alguns minutos na volta, mas eu tinha muita fome para que me importasse.
Quinze minutos mais tarde, a bolsa estava vazia, seu contedo reduzido a fantasmas
de miolos e marcas de gordura nos pratos repartidos sobre a mesa do solrio. Logo
depois de comermos, Jeremy explicou o que disse o policial. Esperava que Clay dissesse
algo, que proclamasse sua inocncia e esperasse que lhe pedisse desculpas. No o fez.
Escutou Jeremy, depois ajudou Antnio a limpar a mesa enquanto eu fugia para o
escritrio, ostensivamente para ler o jornal que trouxeram do povoado.
Clay levou trs minutos para me encontrar. Entrou no escritrio, fechou a porta e ficou
ali, me olhando ler durante dois minutos. Quando j no podia suportar, dobrei o jornal
ruidosamente e o joguei para um lado.
Bom, no matou ao homem disse Dessa vez inocente. Mas se espera que eu pea
desculpas por pensar que voc capaz de faz-lo...
No o espero.
Lancei-lhe um olhar.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Clay continuou:
No espero que me pea desculpas por pensar que poderia hav-lo feito. obvio que
poderia faz-lo. Se o tipo nos tivesse visto correndo ou Trocando ou se nos tivesse
ameaado de algum modo, o teria matado. Mas lhe diria isso. Isso foi o que me zangou.
Que pensasse que o faria a suas costas, ocultando as evidncias e mentindo a respeito.
No, suponho que no lhe ocorreria que eu no ia querer que me dissesse isso. A
idia de me poupar disso no entraria na sua cabea.
Poupa-la disso Clay deu uma risada spera. Voc sabe o que sou, Elena. Se
tentasse neg-lo, acusaria-me de enganar voc. No quero que venha para mim
acreditando que mudei. Quero que venha para mim aceitando o que sou. No cr que j
teria mudado por sua causa se pudesse? Quero que volte para mim. No por uma noite
ou por algumas semanas ou sequer por um par de meses. Quero voc definitivamente
comigo. Sinto-me muito mal quando no est aqui...
Sente-se mal porque no tem o que quer. No porque me queira.
Caralho Clay estendeu o brao e seu punho virou um porta-lpis de bronze que
estava sobre a escrivaninha. No escuta! No escuta e no quer ver. Sei que amo voc,
que quero voc. Caralho, Elena, Se s quisesse uma companheira, qualquer companheira,
cr que teria passado dez anos tentando recuperar voc? Por que no me dei por vencido
e procurei outra pessoa?
Porque cabea dura.
No. Eu no sou cabea dura. Voc a que no pode superar o que fiz por mais que...
No quero falar disso.
obvio que no. Deus no queira que a verdade complique sua existncia.
Clay se virou e saiu do escritrio batendo a porta.
Depois de que Clay se foi, decidi ficar no escritrio... ou me esconder ali, segundo a
interpretao que cada um queira dar coisa. Estudei a coleo de livros nas prateleiras.
No haviam mudado. Na realidade no mudavam j h uma dcada As prateleiras
suportavam uma coleo variada de literatura e livros de consulta. Poucos livros de
consulta eram de Clay. Comprava todos os livros e revistas relacionados com sua
carreira e os jogava assim que terminava de ler. No tinha memria fotogrfica,
simplesmente uma capacidade incrvel de absorver tudo o que lia, de modo que era
intil guardar algo escrito. Quase todos os livros eram de Jeremy. Mais da metade no
estava em ingls, o que tinha que ver com a carreira inicial do Jeremy como tradutor.
Jeremy nem sempre teve dinheiro para dar de presente automveis esportivos e camas a
sua famlia adotiva. Quando Clay chegou a Stonehaven, Jeremy no tinha para pagar o
gs, situao derivada inteiramente do costume de seu pai de gastar muito e negar-se a
fazer qualquer tipo de negcio que pudesse gerar lucros A partir dos vinte anos,
Jeremy trabalhou como tradutor, ocupao ideal para algum com um dom para os
idiomas e a tendncia a se isolar. Mais tarde a situao financeira de Stonehaven
melhorou consideravelmente devido a duas circunstncias: a morte de Malcolm Danven
e o lanamento da carreira de Jeremy como pintor. Atualmente Jeremy vendia poucos
quadros, mas quando o fazia, entrava dinheiro suficiente para manter Stonehaven por
alguns anos.
Enquanto procurava algo para ler, Jeremy veio me lembra de ligar para Philip. No
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
140
tinha me esquecido, Minha inteno era faz-lo antes do jantar, e eu no gostei que me
lembrasse disso, era como se Jeremy pensasse que era necessrio. No sabia quanto
conhecia Jeremy do Philip e no queria sab-lo. Preferia a idia de que quando sa de
Stonehaven, tinha fugido para um lugar longnquo do qual a Matilha no sabia nada.
Bom, era uma iluso, mas era uma linda fantasia. Suspeitava que Jeremy tinha
investigado ao Philip, mas no me incomodei em lhe perguntar. Se perguntasse,
provavelmente ia dizer que estava me protegendo para evitar que me envolvesse com
um tipo que tinha trs esposas ou que batia em suas namoradas. obvio que Jeremy no
interferiria com minha vida. Esquece-o.
Alm de quanto soubesse Jeremy sobre o Philip, no sabia o que eu sentia por ele. E eu
no pensava em lhe dizer. Sabia o que poderia me dizer. Recostaria-se no respaldo do
assento, me olhando um minuto, depois comearia a falar de quo difceis eram minhas
circunstncias, por causa de Clay e por ser a nica mulher loba, e que no me condenava
por estar confusa e querer explorar minhas opes na vida. Embora no dissesse
abertamente, insinuaria que estava seguro de que se desse suficiente rdea para que
aprendesse com meus erros, eventualmente entenderia que meu lugar estava junto
Matilha. Ao longo da conversa se mostraria completamente calmo e pormenorizado,
sem elevar a voz nem ofender-se por nada que eu dissesse. s vezes penso que prefiro as
exploses de ira de Clay.

Na realidade gostava de Philip mais do que Jeremy podia imaginar. Queria voltar para
ele. No esqueci dele. Pensava em ligar para ele... mais tarde.

Parecia o momento mais indicado para que Jeremy nos pusesse a par de seus planos.
No o fez, mas ningum mais pareceu not-lo. O mais provvel era que no se
importassem. Os licntropos da Matilha se criavam com um conjunto de expectativas.
Uma das quais era que seu Alfa se ocuparia deles. Perguntar ao Jeremy quais eram seus
planos implicaria que pensavam que ele no tinha nenhum. Inclusive Clay, por mais
ansioso para agir que estivesse, daria a Jeremy muito tempo antes de insinuar algo em
relao a seus planos. Essa atitude de confiana me deixava louca. No que pensasse
que Jeremy no estava fazendo planos. Sabia que era assim. Mas fica sem conhec-los.
Queria ajud-lo. Quando finalmente me ocorreu uma maneira sutil de lhe perguntar,
encontrei-o fora com um par de revlveres. No que pensasse em ir atrs dos vira-latas
armado como Billy the Kid. Tampouco estava pensando em se suicidar. Estava atirando
no alvo, algo que fazia freqentemente quando refletia. No exatamente o mtodo mais
seguro de obter a concentrao, mas quem sou eu para julg-lo? Os revlveres eram um
par de peas antigas e bonitas que Antnio lhe deu fazia muitos anos. Junto com as
armas entregou uma bala de prata com as iniciais de Malcolm Danvers, uma sugesto
meio de brincadeira que, obvio, Jeremy no ps em prtica. Antnio lhe deu de
presente as armas precisamente para que praticasse tiro ao alvo.

Nesta poca Jeremy j dominava o arco e a mola de suspenso e queria um novo
desafiou. No me perguntem por que escolheu como passatempo o tiro. Certamente
nunca usava os arcos nem as armas de fogo fora do campo de prtica. Seria o mesmo que
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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se me perguntassem por que pintava. Isso tampouco um passatempo tpico dos
licntropos. Mas ningum acusou Jeremy de ser um licntropo tpico tampouco. Como
seja, quando sa e o encontrei praticando, decidi que no era um bom momento para
importun-lo em relao a seus planos. Regra vinte e dois de sobrevivncia urbana: no
incomodar jamais a um homem armado.

Deixei Jeremy e fui me recolher um momento em minha cama. Um par de horas mais
tarde despertei e desci para o almoo. A casa estava em silncio, com todas as portas dos
dormitrios fechadas, como se os outros tambm estivessem recuperando o sono.
Quando me dirigia cozinha, Clay saiu do escritrio. Tinha os olhos avermelhados e
escuros. Embora estivesse exausto, no podia dormir. Dois irmos da Matilha tinham
morrido, seu Alfa estava ferido e nenhum deles foi vingado. Uma vez Jeremy
comunicasse seus planos, Clay poderia descansar, embora fosse mais para preparar-se.
Parou diante de mim, Quando tentei passar por ele, apoiou as mos em cada lado do
corredor.
Trgua? disse.
Como queira.
Eu adoro essas respostas categricas. Eu vou tomar por um sim. No que nossa
conversa tenha acabado, mas por agora deixarei correr. Diga-me quando quizer retorn-
la
Avise-me quando o diabo for brincar na neve.
Farei-o. Quer almoar?
Quando assenti, deu um passo para trs e me indicou que fosse cozinha. Sentia que
estava muito zangado, mas colocou uma mscara de felicidade, assim decidi ignor-lo.
Em uma crise ns dois fomos capazes de ser suficientemente maduros para saber que
no podamos nos dar ao luxo de desestabilizar a Matilha com nossas brigas. Ou, ao
menos, podamos fingir por um tempo.
Juntamos a comida fria da cozinha, com pratos cheios de carnes, po e fruta, sabendo
que os outros despertariam famintos. Ento me sentei no alpendre e abarrotei um prato.
Clay fez o mesmo. No falamos. Embora no fosse incomum, o silncio tinha uma
qualidade morta que me fez comer um pouco mais rpido, ansiosa por acabar e sair da
sala. Quando olhei para Clay, estava digerindo seu alimento igualmente rpido e sem
prazer. Por sorte, a sala onde se toma o caf da manh em uma casa de licntropos no
um lugar muito isolado pela manh. Estvamos na metade do caf quando Jeremy e
Antnio entraram.
Necessitamos de provises disse . Estou segura de que isto a ultima coisa que
preocupa a todos, mas no o ser se ficamos sem elas. Irei busc-las no povoado esta
manh.
Vou fazer um pedido por telefone disse Jeremy . Suponho que o envolvimento
com a polcia no tenha mudado a relao com o comrcio. Melhor vo procurar
dinheiro para o caso de j no aceitarem meus cheques. Algum ter que ir contigo,
obvio. Ningum sai sozinho ou fica sozinho nesta casa.
Eu vou disse Clay, com a boca cheia de melo. Tenho um pacote no correio.
Com certeza sim disse.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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assim disse Jeremy . O carteiro deixou um aviso outro dia.
Livros que encomendei na Inglaterra disse Clay.
Coisa que necessita agora mesmo disse para ler algo leve entre um assassinato e
outro.
No devessem ficar no correio disse Clay . Algum poderia suspeitar
De textos de antropologia?
Antnio se inclinou sobre a mesa para pegar um cacho de uvas. Tenho que mandar
alguns faxes. Irei com os dois para fazer uma neutralizao.
Retirei a cadeira da mesa.
Bom, ento no necessrio que eu v, no mesmo? Estou segura que vocs podem
se encarregar do pedido que Jeremy far por telefone.
Mas voc quem queria ir disse Clay.
Mudei de idia.
Vo os trs disse Jeremy . Vir-lhes bem como distrao.
Antnio sorriu.
E no lhe viriam mal algumas de paz e tranqilidade.
Quando levantei o olhar, juraria que vi Jeremy elevar os olhos, exasperado, mas o
movimento foi to rpido que no o posso assegurar. Antnio riu e se sentou para tomar
o caf da manh. Justo quando eu ia discutir, comeou a contar uma anedota a respeito
de um encontro dele com um vira-lata em So Francisco a ltima vez que esteve ali por
motivos de negcios. Para quando ele terminou, j tinha esquecido do que ia dizer, o que
provavelmente foi o motivo para contar a histria.
Uma hora mais tarde, enquanto Antnio e Clay me chamavam do automvel, recordei
que no queria ir e tentava encontrar a maneira de evit-lo quando Antnio me
interrompeu. Ento j era tarde. No encontrava Jeremy, Antnio esperava no Mercedes
e Nick assaltava a cozinha, liquidando a pouca comida que restava. Algum tinha que ir
procurar as provises, e se no o fazia eu, passaria hora do almoo amaldioando
minha teima, de modo que fui.

O Banco fica em frente ao correio, Como Antnio encontrou um lugar onde estacionar;
convenci-os de que era seguro para eu ir sozinha ao Banco enquanto Clay ia sozinho ao
correio. De seu lugar, Antnio veria ambos em todo momento. E assim reduzia um
pouco o tempo que passaria com Clay
A conta bancria de Jeremy tambm estava no meu nome no de Clay, o que nos
permitia retirar dinheiro. Eu tinha um carto para o caixa eletrnico, mas me desfiz dele
no ano anterior ao sair de Stonehaven. Agora desejava no hav-lo feito. Bear Valley era
o tipo de povoado onde as pessoas continuavam indo ao balco; assim as mquinas
sempre estavam livres. Fiquei na fila durante quinze minutos, enquanto um ancio
contava caixa a respeito de seus netos, olhei com tristeza o caixa eletrnico. Quando
comeou a mostrar suas fotografias, perguntei-me quanto demoraria a tirar um novo
carto para a mquina. Suspirando, abandonei a idia. Provavelmente teria que
preencher dois formulrios triplos e esperar que o gerente voltasse de seu descanso do
meio da amanh de uma hora de durao. Fosse como fosse, no pensava ficar em
Stonehaven o suficiente para necessit-lo.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
143
Finalmente cheguei at ao balco e tive que mostrar trs identificaes assinadas e com
fotografia antes que me deixassem retirar algumas centenas de dlares da conta. Pus o
dinheiro no bolso, fui para a porta e vi uma pick up marrom no lugar onde estava
estacionada a Mercedes. Pensando que devia estar confusa a respeito de onde Antonio
tinha estacionado, sa e olhei em redor. O lugar detrs da pick up estava vazio. Havia um
Buick na frente. Olhei em uma e outra direo. No havia sinal do Mercedes.



PRISIONEIRA

Havia tantas Mercedes em Bear Valley como porches, assim no tive que passar muito
tempo estudando a rua para saber que o automvel de Antnio no estava ali. S podia
imaginar dois motivos para que me abandonassem. Um, a mulher que controla os
parqumetros andava fazendo suas rondas e nenhum dos dois tinha uma moeda para o
parqumetro. Dois, no pode me ver no Banco to bem como eu acreditava e, como
demorei muito, acreditaram que eu tinha fugido. Havia uma terceira possibilidade:
Clay estava realmente zangado comigo, desacordou Antnio com um golpe e se foi,
me deixando entregue a minha sorte. Um lindo final dramtico, mas no muito provvel.
Havia atrs do Banco um pequeno estacionamento sem pavimentao para os
empregados e os clientes que no queriam gastar os dez centavos por hora nos
parqumetros da frente. Olhei ali e s havia uma minivan e outra Pick up. Esforcei-me
para escutar. A to poucos metros da rua tudo estava silencioso, como se os edifcios da
rua principal fossem construdos para bloquear qualquer som e circunscrev-lo ao
distrito comercial. distncia escutei um motor diesel bem potente. Definitivamente
no era uma Pick up. Fechei os olhos e eliminei todos outros rudos. A Mercedes estava a
poucas quadras de distncia. O som de seu motor se desvanecia, logo voltava e se
desvanecia parecia mover-se lentamente em crculos. Onde? Logicamente em outro
estacionamento, onde Antnio dava voltas, me esperando. No tinha entendido alguma
instruo? Devia encontr-lo em outro lugar? Isso no tinha sentido, j que Clay nem
sequer queria que eu entrasse sozinha no Banco. Bom, qualquer que fosse o motivo, no
tinha sentido que ficasse parada ali pensando.
Havia uns rastros estreitos de automvel que iam por um beco em direo ao
automvel que dava voltas. A passagem era barrenta e era apenas da largura suficiente
para que a Mercedes compacta pudesse atravess-lo sem temor de arranhar os
retrovisores, mas sabia que Antnio no se preocuparia com a terra ou com os arranhes.
Tanto Clay como Antnio gostavam de seus automveis caros, mas eram elementos
puramente utilitrios, que lhes serviam para chegar do ponto A ao ponto B rpido e
comodamente. No lhes interessava vangloriassem.
Fui pelo beco, esquivando os atoleiros e os profundos rastros barrentos. A certa altura,
o beco tinha uma bifurcao para a direita. No era necessrio seguir os rastros do
automvel para saber que tinha que contnua em linha reta. Tentar uma curva com to
pouco espao teria significado perder algo mais que umas capas de pintura. Ao adentra
cada vez mais no caminho principal, o beco se alargou e se inclinou para cima levemente,
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
144
passando do barro ao cascalho. direita da passagem se alinhavam depsitos de lixo,
mas deixando espao suficiente para que passasse a Mercedes. O cho mais seco
simplesmente servia para que notasse mais a quantidade de gua barrenta que havia
entrado em meus sapatos. A cada novo passo, meu calado soava e meu nimo piorava.
Estava pronta para dar volta, voltar para Banco e ligar para Jeremy, pedindo que me
buscasse; quando vi um brilho prateado adiante. Detive-me. A uns trinta metros o beco
desembocava em um lote vazio e cheio de mato. Enquanto olhava, a Mercedes passou
pela entrada do beco. Agitei os braos, mas o automvel desapareceu.
-Vamos, rapazes -murmurei-, muito cedo para brincar de esconde-esconde.
Segui adiante com meus sapatos molhados, agitando os braos em direo Mercedes
cada vez que cruzava o beco repetindo eptetos malvolos cada vez que seguia sua rota.
Ao passar por outra bifurcao do beco, escutei um rudo suave, mas o ignorei porque
no estava com humor para bisbilhotar. Uns trs metros mais adiante, senti pisadas no
cascalho e vi uma grande sombra esquerda de meu campo de viso. Clay Estava
contra vento, mas no precisava cheir-lo para reconhecer seu tipo de brincadeiras.
Quando virei para enfrent-lo, uma mo me pegou pela camisa e me lanou de cara ao
cho. Bom. No era Clay.
Levante-se disse uma voz uma vez que uma figura enorme passava sobre mim.
Elevei a cabea, cuspindo cascalho e sangue.
- O qu? Nenhuma frase engenhosa?
- Levante-se.
Cain voltou a me pegar pela gola e me elevou, para depois me deixar cair com tanta
fora que torceu meu tornozelo. Recuperei-me rapidamente, limpei a terra do rosto e
passei os dedos pelo cabelo.
Essa no maneira de saudar uma garota, Zack - disse -. Por isso sempre tem que
pagar para ter relaes sexuais.
Cain ficou parado ali de braos cruzados, sem dizer nada. Media ao menos dois metros
e seus ombros ocupavam a metade da largura da passagem. Tinha cabelo loiro escuro
sobre um rosto com traos que correspondiam mais com os de um buldogue que com os
de um lobo.
-Esperas que corra? - perguntei -. Ou continua pensando em sua resposta?
Lanou-se para frente. Eu girei e corri para o final do beco. Um vira-lata sempre fica
parado e briga. Um membro da Matilha sempre sabe quando correr. Eu no podia vencer
ao Zachary Cain nem em meu melhor dia e hoje no era ele. Media a metade que ele, mas
era mais rpida o dobro. Se pudesse chegar ao final do beco, estaria a salvo. Havia dois
tipos ali, cada um dos quais podia enfrentar Cain sozinho e eu no era suficientemente
teimosa ou estpida para me negar a pedir ajuda. No meio do caminho, a Mercedes
voltou a passar lentamente pela sada do beco. Elevei os dois braos para cham-los e
meu p esquerdo torceu. Quando caa vi desaparecer lentamente o automvel prateado.
Fiquei de p, mas era muito tarde. Novamente Cain estendeu a mo e me puxou pela
parte de atrs da camisa. Esta vez me levantou e me sustentou no ar. Meu p esquerdo
bateu contra uma lata de metal e eu contive um uivo de dor. Com sua mo livre, Cain me
segurou por debaixo do queixo e me jogou contra a parede. Minha cabea bateu nos
tijolos e meu crnio se encheu de relmpagos. Sustentou-me ali um momento, com os ps
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
145
no ar. Logo elevou a outra mo e arrancou minha camisa
- No h muito para ver, no? - disse, me esforando para falar com a garganta
apertada -. J sei, nestes tempos essas coisas se arrumam. Pode me chamar de feminista,
mas eu acredito firmemente que o valor de uma mulher no deve definir-se pelo
tamanho de seu busto, a no ser
Golpeei seu Pomo-de-ado com meu punho. Grunhiu e deu uns passos cambaleantes
para trs.
-... pela fora de seu gancho de direita - disse, me lanando contra ele antes que
recuperasse o equilbrio.
Cain caiu. Quando caiu, fiquei em cima dele e lhe apertei a garganta contra o cho.
- Sim, posso falar e pensar ao mesmo tempo - disse -. A maioria das pessoas podem
faz-lo, embora suponho que no sabia...
Rugindo, Cain tentou levantar um brao. Ele estava no ar quando um sapato empurrou a
mo de volta ao cho.
No, senhor disse Clay parado detrs de mim. - J brincou bastante com Elena.
Bate em mim.
Esperei que Clay pusesse seu p na garganta de Cain e ento o soltei. Antnio estava
parado ao lado.
- Uma armadilha? - perguntei.
Antnio assentiu.
Clay o viu rondando o beco. Supusemos que viria nos procurar.
De modo que deixaram um rastro e deram voltas nesse lote vazio, esperando que eu
mordesse o anzol e que Cain me pegasse como isca Ns~od0.
Algo assim.
Clay levantou Cain. Tinham desaparecido a cor avermelhada e as bolsas sob os olhos
do Clay Agora estava totalmente acordado. Isto era o que ele esteve esperando.
Cain media seus bons quinze centmetros a mais que ele e o superava em peso por uns
trinta quilogramas. Era uma briga entre pares.
Os dois deram um passo atrs e se olharam. Ento Cain deu um passo para esquerda
em direo ao Clay. Clay se adiantou para a direita. Repetiram o movimento, olhando-se
fixo aos olhos, cada um vigiando ao outro. O patro desse ritual estava incorporado em
nossos crebros. Dar um passo, girar, observar. Para ganhar, teria que lanar-se sem que
o outro pudesse prev-lo ou notar que o outro estava por faz-lo e correr. A coisa seguiu
vrios minutos. Ento Cain perdeu a pacincia e se equilibrou. Clay correu, pegou-o pela
cintura e o lanou contra o muro. Cain se recuperou em um instante e golpeou Clay no
peito, lanando-o ao cho.
No vou contar os detalhes, em parte porque sria uma aborrecida narrao de golpes,
cotovelada, grunhido, tropeo, recuperao, e tambm em parte porque no olhei to
atentamente. No que no me interessasse, ao contrrio, no olhava porque estava
muito interessada. Ficar sem fazer nada enquanto golpeavam, chutavam e lanavam
Clay contra a parede era mais do que podia suportar. E no que de vez em quando eu
mesma no quisesse faz-lo, mas isto era diferente. Sentiria-me do mesmo modo vendo
qualquer de meus irmos de Matilha metido em uma briga. No era s pelo Clay. De
verdade.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
146
Embora no olhasse a briga, isso no me impedia de cheir-la. Cheirei o sangue
primeiro de Cain, mas em seguida o de Clay. Ao levantar o olhar, saia sangue do nariz e
da boca de Clay, o que o fazia tossir.
Antnio e eu tentamos ficar olhando. Assim lutamos. Um contra outro, sem armas
nem truques. Era o lobo em cada um de ns quem ditava as regras do combate: o lado
humano nos levaria a ganhar a qualquer custo. Isso no quer dizer que fssemos
permitir que Clay fosse morto. Se tal possibilidade chegasse a parecer certa, a lealdade
com o irmo de Matilha estava acima de todos outros cdigos de conduta. Mas h muito
sangue e ossos quebrados entre a vida e a morte, e at que se cruzasse essa linha no
podamos intervir.
Terminou finalmente com Cain jogado no cascalho. Como no se levantava, pensei que
estava morto. Ento vi que suas costas se moviam com um ritmo de respirao regular.
Inconsciente - disse Clay esgotado, passando-a manga da camisa pelo nariz
ensangentado -. Agora pode olhar.
- Estava olhando - disse -, virei-me porque pensei que tinha ouvido algo no fundo
do beco.
Clay sorriu e um novo jorro de sangue saltou de seu lbio superior partido.
- No comecem - disse Antonio -. Temos que levar este vira-lata a Stonehaven para
que Jeremy possa interrog-lo. Elena, pode ir at o automvel? Assegure-se que no haja
ningum vista. Clay, voc pega as chaves e abre a mala. Eu o carrego
O beco terminava em um lote vazio, tal como pensei. H algum tempo se podia acessar
ao caminho para o norte, mas agora havia uma barricada de esgotos de dejetos, de modo
que a nica sada era para o sul pelo beco. As latas que fechavam a passagem no
impediam de passar caminhando, assim fui vigiar dali. Detrs de mim, Antnio e Clay
carregaram Cain para a mala. Depois Clay veio para meu lado.
Est bem? perguntou
Fora minha bochecha arranhada, o tornozelo torcido, uma possvel concusso
cerebral, os tnis enlameados e a camisa rasgada, estou muito bem. Usem-me como isca
quando quiserem.
- Alegro-me que o veja assim
- Tome cuidado ou ter algo mais que seu nariz ensangentado e o lbio partido. -
Dirigi-lhe um olhar fugaz. - tudo?
- Talvez algumas costelas machucadas. Nada permanente.
Ele rasgou sua camisa e usou o tecido para conter o sangue.
Quando chegamos ao automvel, Antnio estava fechando a mala. O corpo
inconsciente de Cain ocupava at o ltimo milmetro.
- Suponho que no procuraremos as provises- disse.
Parece que no - disse Antnio - teremos que comprar algo para comer a caminho
de casa.
Acreditei que estava brincando. No era assim. Antes de sair do povoado, Antnio
parou no centro comercial e foi em busca de sanduches e saladas, deixando Clay e eu
meio nus e sangrando no automvel e ao Cain inconsciente na mala. No para
surpreender-se por eu est to ansiosa para voltar a Toronto. Se uma pessoa passar
muito tempo com esta gente, comeam a no se importar com roupa ensopada de sangue
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
147
e os tipos presos na mala do automvel.

Em Stonehaven, Antnio e Nick levaram Cain, ainda inconsciente, para jaula,
enquanto Jeremy inspecionava nossas feridas. Deu-me duas aspirinas para a dor de
cabea, e desinfetante e comiserao por meus arranhes e golpes. Clay recebeu uns
pontos em seu lbio cortado, um espartilho de ataduras para as costelas e uma chamada
de ateno por me usar como isca face ao que eu disse a Clay, isso no me incomodava.
Caar Cain valia uma camisa rasgada e uma dor de cabea. Clay sabia que eu podia
suportar e eu estava contente por isso. Sentiria-me mais zangada se ele pensasse que no
posso me arrumar com os moos. obvio que no o perdoei nem o defendi. Ao menos
em voz alta. Se o fizesse, Jeremy se preocuparia muito mais pelo golpe em minha cabea.
Uma vez que Cain ficou enjaulado e Jeremy terminou com suas tarefas curativas,
pudemos almoar. Depois, Nick e Antnio foram de novo ao povoado para buscarem as
provises, enquanto Jeremy, Clay e eu falvamos da informao que queramos obter de
Cain. Ao redor do meio da tarde, gritos e rudos que chegavam do poro nos disseram
que o prisioneiro estava acordado. Lavamos os pratos e logo Jeremy e Clay desceram
jaula para iniciar a tarefa
Eu fiquei em cima. Podia descer se quisesse, mas sabia o que ia acontecer; assim fiquei
no escritrio, onde podia ouvir o que Cain dissesse sem necessidade de ver o que o
obrigava a falar. A tortura me incomoda. Talvez soe tolo, considerando a quantidade de
violncia que fui testemunha e em que participei na minha vida. Mas havia algo a
respeito de se maltratar a algum que no podia se defender que me dava calafrios e
pesadelos ao dormir. Possivelmente fossem vestgios de minha patologia de vtima na
infncia, enterrada no profundo de minha psique. Faz anos fui ver um filme de terror
com Clay. Quando chegou uma cena em que queimavam pessoas com gasolina, eu
tampei os olhos e Clay olhou sem replicar. Embora eu no pense que ele fez isso a
algum, ele j fez coisas igualmente terrveis. E eu sabia por que havia estado ali. Tinha-o
visto as fazer e o que mais me assustava era seu olhar. No ardiam de excitao seus
olhos como quando perseguia a sua presa. Pareciam azul, frios e impenetrveis. Quando
torturava a um vira-lata, era completamente metdico e no mostrava nenhuma emoo.
obvio que me preocuparia muito mais se isso o fizesse feliz, mas h algo igualmente
terrvel em algum que pode fazer coisas assim to concentrado. A maioria das pessoas
tortura em busca de informao. Clay a usa por outro motivo: para dar um exemplo. Por
cada vira-lata que mutilava e deixava vivo, havia cinco mais que viam o vira-lata e
aprendiam uma lio: no se metam com a Matilha". Por cada um que matava, havia
uma dzia que se inteirava. Quem pensasse em atacar a um membro da Matilha s tinha
que recordar essas histrias para mudar de idia. A maioria dos licntropos no temia
morrer, mas havia coisas piores que a morte e Clay se assegurava de que soubessem.
Sentada no escritrio escutando o que acontecia l embaixo, tive que reconhecer que os
mtodos de Clay tinham outra vantagem. Quanto mais se conhecia sua reputao, menos
tinha que fazer para mant-la. No havia chiados que gelassem o sangue enquanto Clay
interrogava ao Cain. Nas quatro longas horas de interrogatrio, escutei trs grunhidos de
dor quando Clay presumivelmente bateu em Cain por no responder. Que Clay estivesse
ali parado e saber o que ele podia fazer bastava para fazer Cain falar.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
148
Dos trs vira-latas com experincia em Bear Valley, Zachary Cain era a pior opo
como informante. Os planos que Daniel e Marsten se dignaram a comentar com ele se
perderam no deserto de seu crebro. Segundo Cain, Jimmy Koenig tambm era parte da
"Insurreio revolucionria", mas ainda no tinha aparecido.
Cain tinha se juntado a eles porque queria liberar-se da tirania, frase sem dvida
assimilada por ter visto Corao valente muitas vezes. Como disse Cain de modo to
eloqente, estava "cansado de ter que olhar para trs cada vez que urinava do lado
equivocado". Como a Matilha nunca se interessava pelos hbitos urinrios dos vira-latas
supus que aludia que lutava por seu direito de matar seres humanos sem temor de
represlias. Coisa que estou segura de que est coberta pelas subclusulas para
licntropos da Constituio dos Estados Unidos Segundo Cain, Koenig queria o
mesmo: exterminar Matilha, do mesmo modo que os assassinos sonham eliminando
polcia. Por algum motivo, estavam convencidos de que se a Matilha acabassem teriam
mais liberdade para exercer o canibalismo sem temor de represlia. Daniel, como
sempre, tinha planos mais grandiosos. Queria liquidar a Matilha e criar a sua prpria.
Provavelmente pensando em alguma forma de mfia de licntropos. Cain no tinha
claros os detalhes e no lhe interessava. Quanto a Marsten, Cain no sabia por que tinha
se unido. E tampouco lhe importava.
Quanto aos novos recrutas, Daniel arquitetou o plano. Fez investigaes, encontrou
aos sujeitos e cumpriu com o papel psicopata Padrinho: Fez-lhes uma oferta que no
puderam rechaar. Se o ajudassem a eliminar alguns velhos inimigos, garantiria-lhes o
corpo do assassino perfeito. Nenhum se negou. A partir de ali, Daniel atribuiu um
recruta a cada um de seus camaradas. Daniel se encarregou de dois, mordendo e
treinando Thomas Le Blanc e ao vira-lata que Jeremy matou na emboscada. Marsten se
encarregou de Scott Brandon. Ainda no conhecamos o protegido de Cain.
Aparentemente era um homem chamado Victor Olson, que ficou esperando no
automvel no dia que Cain nos fez persegui-lo pelo bosque. Jeremy perguntou a Cain o
que havia feito Olson em sua vida humana. Essa era a pergunta que eu teria feito eu, e
acredito que Jeremy s a fez para me satisfazer... e porque sabia que estava escutando.
Cain no sabia dos detalhes com clareza, porque lhe interessava to pouco o passado do
Olson como qualquer outra coisa que no lhe concernisse diretamente. S sabia que
Olson esteve preso por "meter-se com algumas garotas e matar a uma delas. Isso soava
a violador em ascenso para o tipo de assassino que era Thomas Le Blanc. No era
exatamente um assassino experiente, mas Daniel devia ter visto um potencial nele, j que
enviou Cain at o Arizona para tirar Olson do crcere.
Como Cain j estava fora de circulao, restavam dois vira-latas experientes e dois
novos. No verdade? Oxal. Como disse, Koenig ainda no chegou. Seu recruta se
recuperava de ter sido mordido, mas logo estariam em Bear Valley. Lutar contra esses
tipos era como enfrentar a uma Hidra. Cada vez que cortvamos uma cabea, apareciam
algumas mais. Clay tentou tirar mais coisas de Cain, mas no insistiu muito. At ento
Cain no tinha tentando guarda nada, assim no era provvel que comeasse a faz-lo
agora. Sua vida estava em jogo. Diria absolutamente tudo para salvar-se da tortura,
embora isso significasse condenar a morte seus companheiros de conspirao. A lealdade
de um vira-lata era algo que elevava o esprito.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
149
J passavam das dez quando Jeremy subiu. Veio ao escritrio onde eu estava
aconchegada em sua cadeira.
Algo mais? perguntou.
Sacudi a cabea ele voltou para baixo. Houve um grito, um som baixo, metade fria,
metade rogo. Logo o silncio. Segundos mais tarde, a porta do poro se abriu e escutei os
passos de Jeremy indo para o ptio traseiro. Sabia que devia deix-lo s por um
momento. Quando a porta se abriu pela segunda vez, coloquei a cabea para fora do
escritrio. Clay esfregava o rosto com uma mo. Tinha a camisa cheia de gotas de
sangue. Parecia exausto, como se tivesse passado as ltimas quatro horas esmurrando
Cain em vez de ficar calado e ameaador. Ao me ver, mal conseguiu sorrir.
Oi.
Pronto? perguntei.
Sim. Est morto. Tiraremo-lo amanh. Agora est na jaula. esfregou a nuca.
Comeu?
Sacudi a cabea.
Tnio fez um guisado. Quer? perguntei.
Neste momento quero me banhar, mas se esquentar o jantar, descerei antes que esteja
pronta. Jeremy no vai ter fome por um momento, assim ter que comer comigo. Est
bem?
Assenti e ele subiu as escadas.
Uma hora mais tarde, Clay e eu entramos no escritrio e encontramos Jeremy ali,
recostado em sua cadeira com os olhos fechados. Abriu-os pela metade quando
entramos.
Sinto muito disse . Quer que saiamos?
Com sua mo s nos indicou que entrssemos, logo voltou a fechar os olhos. Eu me
sentei no sof enquanto Clay preparava uns drinques. Deixou um junto a Jeremy, mas
ele no se moveu.
Assim temos quatro no povoado disse ao Clay quando se sentou a meu lado .
Mais outros dois a caminho. A coisa o que faremos.
Matar a todos.
Bom plano murmurou Jeremy, sem abrir os olhos-, muito sucinto.
Oua, se no quiser ouvir o que penso, no escute.
Eu cheguei aqui primeiro.
Acreditvamos que estava dormindo disse.
Jeremy levantou uma coxa, logo voltou a ficar em silncio, com os olhos ainda
fechados. Clay passou a mo detrs de mim em busca de sua taa, tomou um sorvo, logo
voltou a pr um brao detrs de minha cabea, com seus dedos me tocando o ombro.
Devemos liquidar ao primeiro Daniel disse . o chefe. Ningum mais sabe como
organizar uma Matilha. Se arrancarmos o centro, tudo cai em pedaos.
Certo disse . Ser fcil. to fcil. O nico motivo pelo que no matou Daniel at
agora que no superou o profundo carinho que sente por seu companheiro de
brincadeiras de infncia, no certo?
Clay bufou.
Exatamente disse . Est vivo porque sabe como opera e no vai cair em uma
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
150
armadilha como Cain. Eu acho que devamos ir atrs dos dois novos primeiro. So dois
imponderveis. Se nos desfizermos deles, saberemos exatamente com o que nos
enfrentamos.
No vou perder meu tempo com um par de vira-latas novos.
Ento o farei eu. Sem voc.
Merda. Bateu a cabea contra o respaldo do sof. Jer, est escutando isto?
Agora estou dormido disse Jeremy.
Ficou em silncio um momento. Como no retomamos a conversa, suspirou e abriu os
olhos.
Clay tem razo ter que centrar-se em Daniel disse Jeremy . Mas mat-lo no to
fcil. Conformarei-me falando com ele,
Ralhar com ele? disse Clay . Por qu?
Porque sei como e possivelmente possa ser mais fcil apazigu-lo que pr em risco
mais vidas ao lutar contra ele. Se Daniel sair do quadro, os outros se separaro, tal como
disse. Ento os atacamos individualmente e destrumos qualquer ameaa futura. Quanto
ao Daniel mesmo, ser mais fcil encarregar-se dele quando estiver sozinho. Tolerei
muitas coisas dele porque era da Matilha e seu pai era um bom homem. J no. Damo-
lhe o que quer esta vez, depois o vigiamos. Se matar a um ser humano, embora seja na
Austrlia, morrer.
O que faz voc pensar que Daniel vai negociar? disse . Cain parecia pensar que
quer eliminar Matilha
Possivelmente, mas mais que isso quer vingana disse Jeremy . Quer-nos de
joelhos. Se lhe oferecemos negociar, ver que teve xito. Quando perceber que Zachary
Cain est morto, comear a se preocupar. Jimmy Koenig ainda no aparece. Tudo o que
tem ao Karl Marsten.
E os dois novos vira-latas?
Eles no tm nada a ganhar nesta batalha. Os recrutou para uma guerra que no lhes
concerne. S brigam porque fizeram um trato com o Daniel. J tm o que queriam dele.
Quando virem que as coisas ficaram contra eles, ir-se-o. Que motivao os retm aqui?
No se relacionaram o suficiente com a Matilha para desejar vingana. No so
licntropos a tempo suficiente para que lhes nasa necessidade de ter um territrio. Por
que brigariam?
Por diverso. Virei-me para Clay Voc viu Brandon no bar, como matou aquele
homem, o prazer que lhe deu. Alguma vez viu um licntropo agir assim?
No estamos lhes subtraindo importncia, carinho disse Clay . Le Blanc morrer
pelo que fez ao Logan e ao Jeremy. No o esquecerei.
A mo de Clay caiu do sof a meu ombro e brincou com minha camisa. Reclinei-me
contra ele, sentindo o efeito de um drinque com muito lcool e as noites sem dormir.
Quando Jeremy fechou os olhos novamente, eu fiz o mesmo, enquanto deixava cair
minha cabea sobre o ombro de Clay. Ele se inclinou para mim e apoiou sua outra mo
em minha perna. Senti o calor atravs de meus jeans. Seu flego cheirava a usque.
Estava a ponto de dormir quando a porta se abriu de repente.
O que isto? disse Nick hora de dormir?
Ningum respondeu. Mantive os olhos fechados.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
151
Parece contente, Clayton continuou Nick, deixando-se cair no cho . No ter
nada que ver com o fato de que Elena est aconchegada contra voc, verdade?
Faz frio aqui murmurei.
No sinto frio.
Faz muito frio grunhiu Clay.
Poderia queimar um obstculo.
Eu tambm poderia faz-lo disse Clay, com sua roupa. E sem tir-la de voc.
Est sugerindo algo, Nick disse Antnio da porta . Sugiro que entenda o que ele
est dizendo a voc. No desejo passar minha velhice sem um filho que cuide de mim.
Escutei Antnio atravessar o escritrio. Soaram copos quando serviu dois drinques.
Logo se acomodou na outra cadeira. Nick ficou no cho, estirado e apoiado em nossas
pernas. Passados alguns minutos, houve silncio novamente, interrompido s por
ocasionais murmrios de conversao. Logo a sonolncia que me afetava estendeu seus
suaves tentculos aos outros. As vozes se tornaram murmrios, a conversa se fez escassa,
e logo se evaporou no silncio. Estirei meus dedos sobre o peito de Clay, para sentir o
batimento de seu corao e deixar que ele me arrulhassem at que dormisse.



APRESENTAO

Quando despertei, recordei vagamente de haver dormido no sof e comecei a me
acomodar em concordncia, com os braos para fora e as pernas para baixo para evitar
me deslizar ao cho. Ento notei que meus membros no estavam onde eu esperava.
Meus braos estavam dobrados debaixo de um travesseiro e minhas pernas enredadas
em lenis. Sentia o aroma de amaciante de roupa. Abri um olho para ver a silhueta de
um galho de rvore danando sobre as cortinas de minha cama. Surpresa e mais
surpresa. No s estava em uma cama, mas tambm era a minha. Geralmente, se
adormecesse l embaixo com Clay, ele me levava ao seu quarto como um caverncola que
arrasta a sua companheira at sua guarida. Despertar em meu quarto foi uma surpresa
prxima a uma comoo... at que despertei o suficiente para sentir o brao em minha
cintura e os suaves roncos sobre minhas costas. Ao me mover, os roncos cessaram e Clay
se aproximou.
bom que recorde como se acomodar em minha cama disse.
Estava contigo quando dormiu murmurou sonolento. No me pareceu que fizesse
muita diferena que ficasse contigo.
Olhei meu corpo nu.
Lembro que estava vestida quando adormeci contigo.
Quis que estivesse cmoda
E voc tambm, conforme vejo disse, movendo as pernas e sentindo sua pele nua
contra a minha.
Se quer ver, ter que se virar.
Soprei:
No provvel que o faa
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
152
Apertou-se contra minhas costas. Sua mo passou de meu quadril a meu estmago.
Voltei a fechar os olhos, meu crebro ainda deriva na nvoa, semi-adormecida. Sentia
Clay quente contra mim, o calor de seu corpo me defendia da frieza da madrugada. As
cortinas mantinham a cama s escuras e convidavam a ficar. Fora do quarto, a casa
estava em silncio. No havia motivo para nos levantar ainda e nenhuma necessidade de
inventar um motivo. Estava cmoda. Precisvamos descansar. A idia e a sensao do
corpo nu de Clay junto ao meu gerou algumas imagens e idias involuntrias, mas ele
no fazia nada que provocasse a necessidade de resistir. Respirava lenta e
profundamente, como se estivesse dormindo. Suas pernas estavam enredadas com as
minhas, mas quietas, igual a suas mos. Passados alguns minutos, comeou a me beijar a
nuca. No havia motivo de alarme ainda. Minha nuca dificilmente era uma zona
ergena, embora o que ele fazia me resultava agradvel. Muito agradvel, na realidade.
Especialmente quando moveu sua mo para tirar meu cabelo do ombro e levou a ponta
de seus dedos por minha mandbula at meus lbios.
Abri um pouco a boca e tirei a lngua para sentir o gosto de seu dedo, logo passei a
lngua pela aspereza de sua unha. Quando abri os lbios, colocou a ponta de seu dedo
entre meus dentes. Mordisquei-o, sentindo as rugas de sua pele com os dentes. Baixou
com seus lbios por meu pescoo. Seu flego fez ccegas nos plos que havia ali e me
produziu um calafrio. Enquanto lhe mordiscava o dedo, seus lbios e sua outra mo me
percorreram as costas e me arrepiou a pele. Sua mo deslizou para acariciar o terreno
baixo entre minhas costelas e meu quadril. Quando sua mo baixou ao meu estmago,
soltei seu dedo e me virei para ele. P-me de lado, de cara a ele e comeou a me beijar. Os
beijos eram suaves e lentos, compassados com o ritmo de suas mos que exploravam
meu corpo, que se deslizavam por meus flancos, minhas costas, meus braos, meus
ombros, minhas coxas e meus quadris. Mantive os olhos fechado, flutuando em algum
ponto entre o dormir e o despertar. Apertei-me a ele, desfrutei do calor de sua pele, dos
planos suaves e da pele de seu corpo. Quando senti sua dureza contra meu estmago,
no tive dvidas do que fazer a seguir. Meu corpo respondeu sem instrues: ficou de
costas, separei as pernas e...

Ligou para ele ontem? perguntou-me Jeremy.
Hem? Estava esvaziando a mquina de lavar pratos. Minha mente ainda
continuava na cama com Clay
Seu amigo ligou antes que despertasse. Deixou seu celular no corredor da frente.
Minha mente saiu do dormitrio de um salto.
Atendeu?
Preferia que esperasse que Clay atendesse? No ligou para ele, no verdade? No
esperou resposta No se preocupe, no disse nada, assim qualquer que seja a histria
que inventou, est a salvo. Parece que espera que volte hoje
Eu o arrumo.
Elena.
Eu o arrumo.
Deixei o ltimo prato e me dirigi a porta.
No liguei para Philip porque me esqueci dele. Soava horrvel, mas era a verdade.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
153
Amava a esse homem, sabia, e isso fazia que a coisa fosse ainda pior. Se ao menos
pudesse dizer que no estava apaixonada por ele... apaixonada? Sentia amor pelo Philip?
Caralho, era uma expresso to tola e gasta. Sentir amor. No existe isso de "sentir
amor... Existe sentir desejo, sentir uma fixao e sentir uma quentura, trs
sentimentos normalmente destrutivos que no tm nada que ver com o amor real e
duradouro. Esqueci de Philip porque assim era como enfrentava esta confuso,
dividindo minha vida em dois compartimentos, o humano e o da Matilha. Philip
pertencia ao mundo humano, e sequer pensar nele enquanto estava no mundo da
Matilha de algum modo degradava o que havia entre ele e eu. Ao menos essa foi a
explicao que me dei.
Estava para procurar meu celular no corredor da frente quando Clay apareceu.
Naturalmente no podia me acusar e correr para cima com o telefone. Assim deixei o
telefone onde estava e sa a caminhar com o Clay. Pensava em ligar para Philip quando
voltssemos, mas ao negar porta, Jeremy nos recordou que tnhamos que nos desfazer
do corpo de Cain. A partir dali as coisas ficaram complicadas e luz do que aconteceu
nesse dia, acredito que possa me perdoar por ter esquecido de ligar para Philip...
novamente.

Nos bons velhos tempos quando no imperava a lei e havia juizes de distrito, a
Matilha podia jogar os corpos onde quisesse. Quando os humanos comearam a
preocupar-se mais com as pessoas mortas e desaparecidas, a Matilha teve que comear a
enterrar aos vira-latas que matava Hoje, com as anlises post mortem e as unidades de
detetives vinculadas atravs de computadores e os testes de DNA, desfazer-se de um
corpo um trabalho importante que exige meio-dia de preparao e de trabalho. Todos
os membros da Matilha foram instrudos na matria e podamos nos desfazer de um
corpo melhor que o assassino humano perito nas tcnicas forenses.
Fomos com o Explorer uma hora para o norte, evitando todas as zonas que tivssemos
utilizado para coisas similares nas ltimas dcadas. Passamos outra hora percorrendo
um caminho de serraria e entrando com a 4x4 profundamente no bosque. Logo tiramos o
corpo da Caixa e o arrastamos a um lugar apropriado onde o despimos, lavamos e
examinamos para ver as feridas. A nica marca no corpo eram duas manchas sob a
garganta, deixadas pelos polegares de Clay quando lhe quebrou o pescoo. Por
segurana, Clay tirou as contuses. No queiram saber como. Prefiro no contar os
detalhes. Finalmente enterramos Cain a dois metros de profundidade. Eu repus
cuidadosamente a terra enquanto Clay trazia duas rochas muito pesadas para que as
elevasse um ser humano e as colocou sobre a tumba. Fomos at o Explorer, cobrindo
nossos rastros, e logo fomos at um segundo lugar.
O segundo lugar se escolhia com a mesma cautela que o primeiro, mas a mais de uma
hora de distncia. Ali cavamos um poo, jogamos a roupa, a identificao e as bolsas e
tecidos que usamos para transportar e limpar o corpo. Empapamo-las em querosene e as
incineramos, tentando que houvesse a menor quantidade de fumaa possvel. Reduzido
tudo a cinzas, Clay enterrou os restos e declaramos a tarefa cumprida. Provavelmente
no era perfeito, mas ningum procur Zachary Cain. Os vira-latas no deixam parentes.

Matilha Mulheres de outro mundo - 01
154

Estvamos a menos de vinte minutos de Stonehaven quando vi o reflexo de luzes azuis
no espelho retrovisor. Olhei caminho acima e caminho abaixo, segura de que as luzes
eram para outro. Sabia que no havia infligido nenhuma lei. A coisa mais idiota que se
podia fazer depois de enterrar um corpo era cometer uma infrao de trnsito, motivo
pelo que dirigia eu em vez de Clay. O velocmetro estava h trs quilmetros por hora
acima do limite de velocidade: dirigir exatamente no limite sempre me pareceu to
suspeito como correr: Vinha viajando por um caminho reto nos ltimos cinqenta
quilmetros e no havia nenhuma possibilidade de fazer uma volta ilegal, no ver um
sinal vermelho. Olhei para ver se havia automveis na frente e detrs, porm estvamos
sozinhos. Clay olhou por sobre o ombro ao patrulheiro.
O limite de velocidade mudou aqui? perguntei.
Limite de velocidade?
No importa. Vou parar.
No h problema. Est tudo limpo.
Detive-me na banqueta e cruzei os dedos, com a esperana que os policiais passassem
ao lado, convocados para alguma emergncia. Em troca, o patrulheiro parou no cascalho
detrs de ns. Amaldioei em voz baixa.
Est tudo limpo disse Clay. Deixa de se preocupar.
Um dos agentes foi para o lado do acompanhante e bateu na janela. Clay esperou o
suficiente para expressar seu descontentamento, mas no o suficiente para ser
desrespeitoso, logo apertou o boto para baixar a janela.
Clayton Danvers? perguntou o agente.
Clay olhou ao homem, mas no disse nada.
O jovem agente continuou.
Meu companheiro reconheceu o veculo. Espervamos que estivesse nele.
Economizanos uma viagem at sua casa.
Clay continuou olhando ao homem.
Poderia descer do automvel, por favor; senhor Danvers?
Novamente Clay vacilou o maior tempo que podia ser aceitvel antes de abrir a porta.
Tirei o cinto de segurana e desci tambm, mas fiquei de meu lado. O pnico pedia
resposta a minha memria. O compartimento de trs estava limpo, no verdade?
Tnhamos limpado, no verdade? Desfizemos de tudo, no verdade? Sim, sim, sim.
Ao menos at onde eu sabia. O que aconteceria se tivesse passado algo por alto? Havia
um farrapo de tecido que no vimos na parte de atrs do Explorer? Nossa roupa cheirava
to forte a fumaa para os narizes humanos como para o meu?
O outro agente, um homem robusto, perto dos quarenta, deu uma volta ao redor do
Explorer, olhando pelo pra-brisa traseiro, logo ps o rosto grudado ao vidro escuro,
com a mo por cima dos olhos para ver para o interior.
H muito lugar para carga Quanto pode colocar aqui?
Quanto o que? pisquei . Ah, valises? O suficiente para umas frias, calculo.
Riu.
Se empacotar como minha esposa, isso muito. Olhou ao interior forando a vista
Bem limpo. No tm filhos verdade? Riu novamente e ficou de ccoras para verificar as
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
155
borrachas e a base do automvel. um desses novos veculos para todos os terrenos,
no verdade? 4x4 que no serve como 4x4.
Pode andar fora da estrada disse me esforando para manter a calma enquanto
olhava debaixo do Explorer . Mas muito grandinho. Embora sirva para o inverno de
Nova Iorque.
Suponho que sim. Olhou para Clay. Que capacidade de arrasto tem um destes?
No tenho idia disse Clay, que se mantinha de lado, deixando que eu dirigisse as
coisas. Era um de seus truques para controlar-se. Evitar a confrontao.
Nunca rebocamos nada disse.
O policial mais velho continuava olhando sob o Explorem. Possivelmente olhasse a
suspenso, possivelmente procurava outra coisa. Esperei tudo o que pude e logo
perguntei:
Vinha muito rpido?
Tivemos um chamado disse o agente mais jovem, voltando-se para Clay . Uma
ligao annima na qual nos disseram que voc sabia algo sobre o assassinato de Mike
Braxton. Necessitamos que venha delegacia de polcia para responder algumas
pergunta.
Clay apertou os dentes.
Esperam que deixe o que seja que esteja fazendo...?
Deteve-se. No disse nada, mas se deu conta do que eu estava pensando. Enfrentar aos
policiais no ia servir de nada. Embora ficar na defensiva poderia faz-los retroceder se
no tivessem motivos para prend-lo, era igualmente possvel que enfrentassem a
agresso com agresso e que reagissem revistando o Explorer e mesmo ao Clay de modo
exaustivo. Os policiais dos povoados pequenos nem sempre tm a reputao de cumprir
com os procedimentos. Legalmente no podiam obrigar Clay a falar com eles, porm ao
menos no iam descobrir evidncias de nossas atividades matutinas mediante uma
simples conversa.
Clay aceitou lhes dedicar uma hora. Foi at a delegacia de polcia no assento traseiro
da viatura. Eu os segui no Explorer. O autor da ligao annima" tinha que ser um dos
vira-latas, assim isto poderia ser uma armadilha. Se eu o seguia em outro automvel, os
vira-latas no iriam se atrever a tentar uma emboscada Uma vez dentro da delegacia de
polcia, estaramos resguardados, j que no atacariam em um edifcio cheio de humanos
armados.

A sala de espera da delegacia de polcia era menor que meu dormitrio em Stonehaven
e provavelmente a haviam mobiliado a um custo menor do que valia meu espelho com
moldura de prata. Tinha mais ou menos trs metros quadrados, com uma porta e duas
janelas. A janela que dava ao sul era de vidro espelhado e dava para um quarto ainda
menor. O vidro espelhado no tinha muito sentido se as pessoas no levavam em conta
que toda a delegacia de polcia era em sua origem um centro de deteno da poca da
depresso. A maioria das salas tinha que servir para uma funo dupla. No caso pouco
provvel de que a polcia precisasse observar a um suspeito ou manter uma interrogao
importante, provavelmente usasse a rea de espera como sala de observao. Com Clay
no a utilizaram; levaram-no a uma sala privada para interrog-lo assim que chegamos.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
156
A segunda janela, que tinha grades, dava a uma cela onde uma recepcionista de vinte
anos atendia ao telefone, a recepo e a sala de espera, enquanto respondia
ininterruptamente aos agentes que lhe pediam que datilografasse, arquivasse e lhes
levasse caf. No me perguntem por que a janela tinha grades. Talvez por medo de que
ela escapasse. As trs cadeiras da sala de espera estavam estofadas com um tecido
dourado carcomido pelas traas e emendado com fita isolante. Escolhi a melhor e me
sentei com cuidado, evitando que o tecido tocasse alguma parte de minha pele e me
lembrando de que devia lavar minha roupa assim que chegasse a casa. Olhei as revistas
que havia em uma mesa de aglomerado. Chamou minha ateno a palavra o Canad
em um exemplar de Times. Peguei, percebi que o artigo aludia ao referendo de Quebec e
deixei a revista. No s era um tema que curava a insnia de noventa por cento dos
canadenses, mas tambm, a menos que algo um pouco drstico tivesse acontecido na
ltima semana, significava que a revista era de cinco anos atrs. Muito atual.
Elevei o olhar e vi que a recepcionista me observava com gesto desconfiado que as
pessoas reservam habitualmente para os mendigos e aos ces raivosos. Atravs da janela
podia ver o jovem agente que foi a Stonehaven, que estava apoiado no balco e falava
com a recepcionista. Como os dois me olhavam, supus que eu era o tema da conversa.
Algo me disse que no falavam do lamentvel estado de meus Reebok sujos. Sem
dvida ele estava lhe contando a histria de minhas aventuras pelo bosque. Justo o que
eu necessitava. Dez anos dedicados a criar uma reputao decente em Bear Valley e ia
tudo ao diabo em um dia, porque me viram brincando de correr nua pelo bosque em
uma fria manh de primavera e logo encontraram minhas roupas feitas farrapos,
produto de algum estranho ritual sadomasoquista. Os povoados como Bear Valley
tinham um lugar especial para as mulheres como eu: convidadas de honra no
piquenique e fogueira anual de vero.
Enquanto passava as folhas das revistas, a porta da sala de espera se abriu. Elevei a
vista para me encontrar com Karl Marsten, seguido de Thomas Le Blanc. Marsten vestia
calas de tecido de algodo, sapatos de couro que custavam mil dlares e uma camiseta
cara. No notei o que vestia Le Blanc. Junto a Marsten, ningum se fixaria nele. Marsten
entrou com ar descuidado, no fingido, de algum que passou anos estudando como agir
assim. 'Tinha as mos nos bolsos, o suficiente para parecer relaxado, no o suficiente
para que suas calas se deformassem de um modo pouco elegante. O meio sorriso em
seus lbios era a mistura perfeita de interesse, aborrecimento e diverso. Quando sorriu
para recepcionista, ela se endireitou e suas mos instintivamente acomodaram sua blusa.
Ele murmurou umas palavras. Ela se ruborizou e se acomodou na cadeira com os olhos
brilhantes. Marsten se aproximou da grade e disse algo mais. Ento se virou para mim e
levantou os olhos. Sacudi a cabea. O nico trao positivo de Karl Marsten que sabia
exatamente o quanto era falso.
Elena disse, sentando-se ao meu lado. Manteve a voz baixa, embora no
sussurrasse - Parece bem.
No pratique comigo, Karl.
Riu.
Quero dizer que estar surpreendentemente bem logo depois de ter topado com
Zachary Cain. Suponho que por isso tem um arranho na bochecha. Tambm suponho
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
157
que ele j no esteja no jogo.
Algo assim.
Marsten se inclinou para trs e cruzou os tornozelos, obviamente muito preocupado
pelo falecimento de seu scio.
No vi voc por um tempo. Quanto passou, dois anos? Muito. No me olhe assim.
No estou praticando contigo e no ataco voc. Deus me deu uns gramas de crebro.
Simplesmente quis dizer que raro falar contigo. No obstante, sua companhia sempre
intrigante.
Le Blanc se sentou do meu outro lado. O ignorei. Dada a opo, preferia falar com
Marsten antes que com o homem que matou Logan.
Li alguns de seus artigos na revista continuou Marsten . Muito bem escritos.
Parece que tem uma carreira bem-sucedida.
No tanto como outros disse, olhando seu Rolex . Comprou-o ou roubado?
Seus olhos brilharam.
Adivinha.
Pensei.
Comprou-o. Seria mais fcil e mais barato roub-lo, mas voc no usaria o relgio
de outra pessoa. Embora no se incomode de compr-lo com o dinheiro que obteve
roubando as jias de algum.
Como sempre, acertou.
Os negcios devem andar bem.
Marsten voltou a rir.
Vai bastante bem, obrigado, considerando que sou um intil para qualquer outra
coisa E falando disso, encontrei-me com algo faz uns meses que me fez pensar em voc.
Um colar de platina com um pingente com a forma de uma cabea de lobo. Um
artesanato maravilhoso. A cabea feita de filigrana de platina com olhos de esmeralda.
Muito elegante. Pensei em lhe enviar isso mais calculei que terminaria na lata de lixo
mais prxima.
Excelente predio.
Mas no me desfiz dele. Se o quiser, seu. Sem condies. Ficaria bem, um gesto
irnico que saberia apreciar.
Sabe, surpreende-me que esteja envolvido nisto disse. Acreditei que voc no
gostava de Daniel.
Marsten suspirou teatralmente.
Temos que falar de negcios?
Nunca o imaginei anarquista
Anarquista? riu . Difcil. Os outros tm suas motivaes para querer liquidar a
Matilha, a maioria das quais tem a ver com poder praticar alguns hbitos sociais bem
malvolos. Para mim a Matilha nunca trouxe problemas. obvio que tampouco fizeram
algo por mim. Assim, como gesto de reciprocidade, no me importa o que acontea a
Matilha. S quero meu territrio.
Se tivesse isso se retiraria da briga?
E abandonar meus companheiros anarquistas? Isso me converteria em um ser
desprezvel e inconsciente. Algum que s se interessa pelo seu bem-estar, a custa de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
158
outros. Para voc soa como algo que eu faria?
Le Blanc fez um rudo de impacincia ao meu lado. Antes que pudesse retomar o tema
com Marsten, agitou a mo para chamar a ateno do outro.
Este queria conhecer voc esse Marsten . Quando vimos que seguia polcia at o
povoado, decidiu que queria falar contigo. Vim para lhe apresentar a ele. Se comear a
aborrecer voc, grita Eu lerei uma revista. Marsten pegou uma da pilha Revista de
caa, hummm. Possivelmente encontre bons conselhos.
Marsten se acomodou em sua cadeira e abriu a revista Le Blanc lhe dirigiu um olhar de
desprezo. Obviamente j tinha decidido que Marsten era um licntropo de terceira, que
mal merecia o ttulo. Equivocava-se. Karl Marsten era o segundo vira-lata mais perigoso
do mundo, depois de Daniel. De onde tirou a reputao? Matando mais humanos que
qualquer outro? Atormentando a Matilha ou nos causando problemas? No e no.
Marsten era um dos poucos vira-latas que no matava humanos. Como tantas coisas, isso
no era digno dele. Quanto Matilha, quando se encontrava conosco era to corts e
amvel como tinha sido agora comigo. Mas o seguamos mais de perto que a qualquer
outro vira-lata fora Daniel. Por qu? Porque possua um poder de concentrao e uma
fora de vontade comparveis com as de Clay. Quando Marsten se mudava para um
povo novo, fazia contato com os licntropos que houvesse na rea, levava-os para jantar
em lugares caros, conversava com eles, avisava-lhes que deviam sair do povoado, e logo
os matava se no se fossem a meia-noite. O que Marsten queria, Marsten tomava... sem
sentir-se compungido e sem rancor. Eu tinha uma idia do por que Marsten se uniu ao
Daniel. Queria territrio. Por vrios anos esteve dizendo que queria estabelecer-se em
um lugar, brincando que estava chegando idade de aposentar-se. A Matilha o tinha
ignorado. Agora Marsten estava cansado de esperar. Hoje se sentara a meu lado e falara
do trabalho e me oferecera jias. Amanh, se me pusesse em seu caminho me "tiraria do
jogo. Nada pessoal. Era sua maneira de trabalhar.



IMPRESSES

Durante ao menos dez minutos Le Blanc me estudou como se estivesse examinando
alguma nova espcie de inseto. Queria ir. Talvez esse fosse o plano. Deixar que este lixo
ficasse olhando tempo suficiente para que eu corresse ao banheiro para lavar as mos,
onde ele e Marsten pudessem me abandonar. Tentei recordar unicamente que Le Blanc
matou Logan, mas no pude. No deixava de pensar nas mulheres que ele tinha matado,
os detalhes que li em seu caderno de recortes. Pelo Logan queria mat-lo. Pelas outras o
queria morto, mas no queria faz-lo eu mesma, dado que isso exigiria ter contato fsico.
Obriguei-me a esquecer estas coisas e a me concentrar em analis-lo. A vida no tinha
sido boa com Thomas Le Blanc nos ltimos anos. Tinha cado muito abaixo, comparado
com o homem polido que se via na foto de sua deteno. Isso no quer dizer que
estivesse sujo ou sem barbear ou que tivesse mau hlito, qualquer das coisas que a
pessoa meio espera em um psicopata assassino serial. Em vez disso, parecia com um
trabalhador de trinta e tantos com jeans sem marca, uma camiseta desbotada e tnis do
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
159
Wall-Mart. Tinha aumentado de peso. Desgraadamente em msculos, no em gordura.
Quer falar comigo? disse finalmente.
Perguntava-me por que tanta confuso. Disse, com um olhar que indicava que
ainda continuava perguntando-se isso.
Voltou a ficar na posio de olhar silencioso tive que fazer um grande esforo para
permanecer junto a ele. Esforcei-me para manter uma viso ampla das coisas: era um
licntropo novo; eu era uma mulher loba experiente. No tinha por que me preocupar.
Mas a cada momento mudava o ponto de referncia. Ele atacava as mulheres; eu era
mulher. Por mais que racionalizasse, por mais que tentasse me mostrar dura, esse
homem me assustava. Assustava-me no fundo das vsceras, ali aonde no chegavam a
lgica nem a razo.
Passados alguns minutos, vi uma sombra se mover ao outro lado do vidro espelhado.
Com vontade de uma distrao, levantei-me e fui at ali. Clay estava na outra sala.
Sozinho. Estava sentado em frente mesa e inclinava sua cadeira para trs com as pernas
estiradas para frente. No estava algemado nem vigiado nem machucado. At a, tudo
bem.
ele? disse Le Blanc detrs de mim . O infame Clayton Danvers. Diga que no.
Segui observando Clay.
Maldito Deus murmurou Le Blanc . Onde a Matilha encontrou vocs dois? Em um
campeonato de voleibol? Lindo bronzeado, eu adoro esses cachos loiros Le Blanc
sacudiu a cabea . Nem sequer to alto como eu. O que mede, um metro oitenta? Cem
quilogramas com botas com ponteira de ferro? Caralho. Esperava um monstro horrvel,
maior que Cain, e com o que me encontro? A prxima estrela de Baywatch. Sua
inteligncia poderia ser suficientemente escassa. Pode mascar chiclete e amarrar o sapato
ao mesmo tempo?
Clay deixou de brincar com sua cadeira e lentamente se virou para o espelho.
Levantou-se, olhou a sala e parou diante de mim. Eu estava inclinada para frente, com
uma mo contra o vidro. Clay ps seus dedos altura dos meus e sorriu. Le Blanc deu
um salto para trs.
Caralho disse . Acreditei que era vidro espelhado.
.
Clay virou a cabea para Le Blanc e disse trs palavras. Ento a porta detrs se abriu e
um dos agentes o chamou. Clay deu de ombros, dirigiu-me um ltimo sorriso e se foi
com o agente. Quando saiu senti uma confiana renovada.
O que disse? perguntou Le Blanc.
Espere-me.
O qu?
um desafio disse Marsten do outro lado do quarto. No levantou os olhos da
revista. Convida voc a ficar para conhec-lo.
Voc vai ficar? disse Le Blanc.
Os lbios de Marsten formaram um sorriso.
No convidou a mim.
Le Blanc bufou.
Para ser um monto de monstros assassinos, todos vocs no so mais que uma
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
160
brincadeira, com suas regras e desafios por trs. Agitou uma mo para mim. Como
voc. Parada ai to tranqila, fazendo de conta que no est preocupada no mais mnimo
por ter a ns dois na sala.
No estou.
Deveria. Sabe o rpido que podia matar voc? Est parada a menos de um metro de
mim. Se tivesse uma pistola ou uma faca no bolso, estaria morta antes que tivesse tempo
de gritar.
Srio? Tudo bem.
Le Blanc tinha um tic na mandbula No acredita em mim, no verdade? Como
sabe que no tenho uma arma? No h detector de metais na porta. Poderia sac-la
agora, matar voc e escapar em trinta segundos.
Ento faa isso. Sei que voc no gosta de nossos joguinhos, mas me d o prazer. Se
tiver uma pistola ou uma faca, tira-o. Se no, faa de conta Demonstre que pode.
No preciso demonstrar nada. Por certo no a uma charlat...
Tirou a mo na metade da orao. A agarrei e lhe quebrei o pulso. O som ressoou na
sala. A recepcionista olhou, mas Le Blanc estava de costas a ela. Sorri-lhe e ela desviou o
olhar.
Maldita puta disse Le Blanc, pegando o brao . Quebrou meu pulso.
Ento eu ganhei.
Seu rosto ficou violeta.
Pedao de...
Ningum gosta de um mal perdedor disse . Aperte os dentes e agente. No h
chores nos jogos dos licntropos. Daniel no ensinou isso a voc?
J que no bem-vindo disse Marsten, ficando de p e lanando a revista pilha.
Como Le Blanc no se movia, Marsten se aproximou dele e tentou peg-lo pelo brao.
Le Blanc se afastou para um lado, olhou-me com dio e depois saiu da sala.
Os prazeres de cuidar das crianas disse Marsten . Vou ento. Sada o Clayton.
Marsten se foi.
Fiquei ali com o corao golpeando meu peito. Tinha-o obtido. Ocultei meu temor me
fazendo de m e Le Blanc nem sequer notou a diferena. Que fcil. Podia ganhar desse
vira-lata sem problemas. Ento por que meu corao continuava saltando como um
coelho em uma jaula?

Vinte minutos mais tarde eu continuava na sala de espera, tentando encontrar algo
para ler. Um artigo da revista Cosmo me chamou a ateno. O ttulo era: Discusses
construtivas; Est fortalecendo sua relao com seu amante ou afastando-o. Interessante
especialmente na parte a respeito de afast-lo, mas me obriguei a deixar a revista. Cosmo
nunca diz nada que tenha a ver comigo. Seus artigos sempre fazem perguntas tais como
"Como reagiria se seu amante lhe anunciasse que vai trabalhar no Alaska? E saltar de
alegria no jamais uma das eleies. Mudar para Alaska? Caralho, meu amante tinha
trinta e sete e no fala em sair de casa. Onde estavam as perguntas relevantes para minha
vida? Tudo bem: Como reagiria se encontrasse cabelo e rastros de seu amante junto a
um ombro morto? mostrem-me isso no Cosmo e tero uma assinante a mais.
Ainda procurava algo para ler quando Clay entrou. A recepcionista voltou a
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
161
despertar. Sorriu e murmurou algo que no escutei. Clay lhe respondeu com um olhar e
uma careta de desinteresse. Quando ela quase murchou e voltou para suas tarefas quase
me deu tristeza. Clay podia ser encantador.
Pena de morte? perguntei quando se aproximou.
Em seus sonhos. Eram tolices, carinho. Pura estupidez e eu fiquei sem almoo.
Deveria process-los.
Talvez o faa. Foi at a porta e a abriu para mim.
Assim teve visitas?
Marsten e Le Blanc.
Quem? Ah, o tipo novo. O que queria Marsten?
Ofereceu-me um colar.
Em troca de?
Nada. Karl agindo como Karl. Amvel como sempre, sem preocupar-se com a
pequena questo que estamos em uma batalha sangrenta e de morte. Falando de morte,
Le Blanc alardeou de que podia me matar na sala de espera. Quebrei-lhe o pulso. No
se mostrou impressionado.
Bem. Para que veio?
Para me ver, acredito. Parece-me que tampouco ficou muito impressionado com
voc.
Clay bufou e fomos para o estacionamento.

Estacionamos na entrada ao chegar a Stonehaven. Jeremy nos esperava na porta da
frente.
No chegaram para o almoo disse. Aconteceu algo ruim?
No disse Clay . Levaram-me a delegacia de polcia para me interrogar.
Depois que levamos ao Cain disse, antes que Jeremy tivesse um ataque do corao
. A polcia nos deteve no caminho quando vnhamos de voltando. Parece que Daniel
lhes disse que Clay sabia de algo a respeito da morte de Mike Braxton. Certamente tinha
a esperana de que nos encontrassem com o corpo de Cain a caminho de nos desfazer
dele. Mas no teve sorte.
Quanto polcia parecia saber?
No muito disse Clay . As perguntas eram bastante gerais. Saram para pescar?
Revistaram o automvel?
Difcil de saber disse . Um deles olhou bastante pelas janelas e por debaixo. Agiu
como se s lhe interessasse o Explorer em geral, quanta carga, como anda fora da
estrada, coisas assim. Por outro lado, pode ser sua maneira de revistar a plena vista de
modo sutil.
Maravilhoso disse Jeremy, sacudindo a cabea . Venham para dentro. Teremos
que sair logo.
Pensou em como enviar uma mensagem ao Daniel? perguntei.
Jeremy agitou a mo.
Isso no foi problema. J lhe transmiti minha mensagem.
Respondeu?
Sim, mas no tem nada a ver com o que vamos fazer. Apressem-se. No temos muito
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
162
tempo.
Aonde vamos? perguntou Clay, mas Jeremy j estava na casa.

Menos de uma hora depois, os cinco estavam no Explorer. Era a primeira vez que os
integrantes da Matilha no precisavam usar vrios veculos para viajarem juntos. S
restaram cinco. obvio que j havia notado, mas no compreendi realmente at que
pudemos sair um pouco em um s automvel. Cabiam os cinco. Quatro homens e uma
mulher que no estava segura de contar-se como parte do grupo. Se fosse embora,
haveria Matilha? Podiam-se considerar dois pais e a dois parentes uma Matilha? Deixei
de lado a idia. Com ou sem mim, a Matilha sobreviveria. Sempre o tinha feito. Alm
disso, no havia nenhuma necessidade urgente de que eu declarasse minha
independncia agora e nem sequer no futuro prximo. Ainda pensava em voltar para
Toronto quando isto se acabasse, mas como Jeremy disse, no havia necessidade de
tomar uma deciso apressada em relao a meu status na Matilha.

amos ao aeroporto para nos encontrar com Jimmy Koening. Chamemos isso de um
comit de recepo surpresa. Jeremy soube que Koenig chegava hoje cidade de Nova
Iorque no vo das seis provenientes de Seattle. No me perguntem como soube.
Suponho que obter a informao foi resultado de vrias chamadas telefnicas, algumas
mentiras e muitas boas maneiras. Esse era o mtodo habitual de Jeremy Era assombroso
o que se podia obter dos empregados das Aerolinhas, o pessoal das reservas em hotis,
os representantes telefnicos de cartes de crdito e outros empregados de servios ao
cliente, simplesmente armando uma boa histria e sendo muito amvel ao cont-la.
Como dizia, supus que isso era o que Jeremy fazia. No se incomodou em comentar
como" quando transmitiu a informao. Nunca o fazia. Se fosse outro, suspeitaria que
estivesse alardeando, como um mgico que tiram um coelho da cartola sem revelar o
truque. Eu sabia que Jeremy no tinha tal motivo. Em todo caso ele pensava que dar uma
explicao seria alardear, como se esperasse que o aplaudissem por sua inteligncia.
O plano era esperar Koenig na sada, ajud-lo com sua bagagem e escolt-lo para Bear
Valley em grande estilo, logo depois de reatar as relaes tomando uns drinques no
21. De verdade.
Bom. Esse no era o plano.
O plano era acabar com o pobre vira-lata antes que pudesse ver o Empire State.
Terminou o perodo de explorar cuidadosamente o problema. Por fim, entrvamos em
ao.



VINGANA

O vo de Seattle chegou quarenta minutos mais tarde, o que era bom, uma vez que ns
no chegamos at vinte minutos depois do que tinha que pousar o avio. Um trator
virado na pista nos atrasou quase uma hora. Antnio entrou no estacionamento do
aeroporto s seis e meia fazendo chiar as rodas, esquivando-se do trfico como um
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taxista de Nova Iorque e nos deixou na entrada alguns minutos mais tarde. Quando
encontrou um lugar onde estacionar se uniu a ns no terminal, o vo de Koenig estava
aterrissando. Chegamos apenas a tempo. No sabia se interpretava isso como um bom
ou mau pressgio.
Mantivemo-nos longe da multido de amigos, parentes e choferes e vimos os
passageiros desembarcarem. Jimmy Koenig era fcil de divisar. Era alto e magro, com
um rosto que podia confundir-se com a de Keith Richards em um dia ruim. Aparentava
os sessenta e dois anos que tinha, a vingana de seu corpo por estar submetido a todo
tipo de estresse conhecido pelo homem por quinze anos. Muito lcool, muitas drogas e
muitas manhs de despertar em um quarto de hotel estranho junto a mulheres ainda
mais estranhas. As pessoas que fazem os panfletos dos avisos da campanha Digam no
droga" teria que contratar a tipos como Jimmy Koening. Se passassem seu rosna na
televiso, qualquer menino com um grama de vaidade abandonaria a bebida e a droga
por toda vida. Acreditem em mim.
Koenig no viajava sozinho. Desceu do avio com um tipo que parecia sua escolta do
FBI: de trinta e tantos, bem barbeado e higienizado, com um traje escuro e culos de sol.
Embora seus olhos estivessem ocultos atrs das lentes, sua cabea girava de um lado a
outro como se vigiasse constantemente. Quase esperava ver Koenig algemado a ele.
Quando chegaram ao p da rampa de sada, detiveram-se. Trocaram algumas palavras.
O tipo do FBI parecia zangado, mas Koenig no renunciava a suas opinies. Logo depois
de alguns minutos, o tipo do FBI foi procurar suas malas. Koening foi para a sala de
espera e se deixou cair na cadeira mais prxima.
Clay, Elena, encarreguem-se de Koenig disse Jeremy . Tnio e eu iremos atrs de
seu amigo, Nick?
Fico com Clay disse Nick.
Jeremy assentiu e ele e Antnio se dirigiram para a rea das bagagens. Clay e eu
analisamos por um minuto a ttica, logo Clay e Nick se meteram entre as pessoas.
Esperei que estivessem fora de meu campo de viso, logo dava a volta a uma ruidosa
reunio familiar e me coloquei detrs de Koenig. Quando estive detrs de seu assento,
fiquei esperando. Demorou um par de minutos para elevar a cabea de repente. Farejou
o ar e girou lentamente.
Bu! disse.
Reagiu igual a todos os vira-latas quando os enfrento. Saltou da cadeira e correu para a
sada mais prxima, tremendo de terror. Em meus sonhos. Olhou-me e comeou a
procurar Clay com o olhar. Nunca falhava. No importa quo slida fosse minha
reputao como lutadora, os vira-latas s tremiam quando eu aparecia porque
geralmente significava que Clayton andava por perto. Eu no era mais que o arauto da
morte.
Onde est? perguntou Koenig, entrecerrando os olhos e olhando a multido.
Estou sozinha disse.

Sim, claro.
Dei a volta nas cadeiras e sentei a seu lado. Tinha pouco cheiro de usque, significava
que havia bebido um s copo no avio. Tampouco estava segura de se isso era bom ou
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ruim. Estando sbrio era como um leo sem dentes, malvolo, mas no mordia. Tambm
significava, entretanto, que seu crebro e seus reflexos funcionavam bem.
Clay foi encarregar de seu amigo, o dos culos disse.
Amig... Koenig se deteve e grunhiu.
Imaginou que eu podia me encarregar de voc.
Os olhos de Koenig se moveram abruptamente, obviamente se considerava insultado.
Murmurou algo. Estava para lhe pedir que repetisse quando vi que Nick se aproximava
pelo outro lado. Observei-o e amaldioei. Koenig girou a cabea para olhar. Quando viu
Nick, sua primeira reao foi de alvio. Comeou a relaxar, mas voltou a se retesar. Nick
podia no ser to mau como Clay, mas para Koenig era decididamente mais motivo de
preocupao que eu.
Filho da puta queixei-me. No devia interferir
Nick sorriu, no amigvel, a no ser com o sorriso predador de um caador que cheira
a presa. Seus passos se alargaram enquanto se aproximava. Seu olhar fixo em Koenig.
Nicholas... adverti-lhe ao me pr de p.
Koenig acreditou. Pensando que estava ocupada em me preparar para fazer frente
Nick, fugiu. Nick me dirigiu um sorriso de vitria e o perseguimos. Apesar de que
Koenig corria, no tinha ido muito longe. Era como correr atravs de um bosque denso.
Via-se obrigado a se esquivar de pessoas e cadeiras e s conseguia evitar uma para se
chocar com a seguinte. Nick e eu o seguimos caminhando a passos rpidos. No s era
mais fcil esquivar obstculos, mas tambm no parecia que estivssemos seguindo a
Koenig. Considerando o aspecto de Koenig, a ningum parecia estranho que
atravessasse correndo a sala do aeroporto, escapando de perseguidores invisveis.
Provavelmente acreditavam que estava bbado, drogado ou que estava rememorando os
sessenta. Amaldioavam-no quando atropelava algum, mas ningum se meteu com ele.
Nick e eu o seguamos, um a cada lado. Era a mesma tcnica que usamos com o cervo
uns dias antes. Fazer que corresse e lev-lo para a linha de chegada. E adivinhem quem
esperava ali? Quase me surpreendo por Koenig cair na armadilha. Digo "quase", porque
sabia que no tinha que me admirar. Os vira-latas no caam cervos. Koenig podia ter a
habilidade no subconsciente, mas nunca a usou, assim no reconhecia quando a usavam
com ele.
Segui o rastro de Clay e tangemos Koenig para fora da sala lotada, por um corredor
deserto detrs de uma escada estreita. Clay saltou dali, pegou Koenig pela garganta e lhe
quebrou o pescoo. Um anticlmax na realidade, mas no podamos nos dar ao luxo de
interrog-lo no aeroporto cheio de gente. Jeremy disse que teria que mat-lo, assim foi
isso que fez Clay, com absoluta eficincia. Antes que o corpo de Koenig casse, Clay j o
estava metendo nas sombras sob as escadas.
Deixaremo-lo aqui? perguntei.
No. H uma porta de sada ali. Vi latas grandes de lixo. Se vocs montarem guarda,
eu o levo.
Necessita de ambos? perguntei. Talvez Tnio e Jeremy necessitem de ajuda.
Boa idia. Vai. Nick pode vigiar.
Fui.

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Quando cheguei rea de coleta das bagagens, a maioria das pessoas do vo de
Koenig j tinha sado. S restavam os inevitveis atrasados junto esteira
transportadora, olhando com tristeza. Com cada turno de bagagens que passavam,
despertavam, olhavam, com poucas esperanas de que aparecesse a sua, mas negando-se
ainda a acreditar que haviam sido devoradas pelo deus demonaco das malas. O tipo do
FBI no estava entre eles. E tampouco Jeremy e Antnio. Olhei pela ltima vez e voltei
sobre meus passos.
Junto aos banheiros, conseguir ver o tipo do FBI. Tentei sentir seu rastro de licntropo,
mas se perdia no meio do fedor dos estranhos. Tampouco vi Jeremy nem Antnio, mas
isso no me Surpreendeu. Primeiro, com todo o trfico humano que ia e vinha por ali,
tinha sorte de ter percebido um rastro. Segundo, Jeremy provavelmente tinha escolhido
outro caminho, dado que se sentia menos inclinado a fazer tolices infantis como chegar
junto a seu alvo e dizer BU".
Segui o rastro do novo licntropo, Tomando cuidado de no me chocar com ele e foder
os planos de Jeremy. Pensava que o rastro do vira-lata levaria ao hall central onde
Kornih esteve esperando. No foi assim. Em vez disso, dirigiu-se para uma sada de
emergncia. Olhei ao redor, logo testei a porta. Como no soaram alarmes, sa e me
encontrei em um caminho que parecia uma zona de carga. O rastro do vira-lata levava
ao estacionamento.
Novamente me surpreendeu seu rodeio. Em vez de ir ao estacionamento, dobrou por
outro caminho. Quando ia dobrar, o silncio se viu sacudido por uma buzina aguda e eu
me virei para me encontrar com um guindaste para cargas que vinha para cima de mim.
Quando a mquina passou ao nem lado, o condutor mostrou o estacionamento com o
dedo, porm no diminuiu a velocidade, obviamente muito atarefado para preocupar-se
com turistas que se metiam no que provavelmente era uma rea restrita. A partir dali
avancei grudada ao muro, pronta para me esconder se aparecesse outra pessoa.
Corri at o fim do beco, porm o vira-lata tinha desaparecido. Procurei seu rastro.
Perdeu-se em meio dos aromas de mquinas e canos de escapamento. Comecei a
suspeitar que Jeremy e Antnio no andassem por ali. O ar estava denso, com aroma de
nafta
9
e diesel. Eles provavelmente se deram por vencidos. Estava para retornar quando,
virando em uma esquina, vi o vira-lata a cinco metros. Rapidamente me escondi, detive-
me, escutei e avaliei minhas opes. Se estivesse segura que Jeremy e Antnio no
estavam por perto, devia me retirar. Jeremy me arrancaria a pele viva se atacasse sozinha
ao vira-lata, embora tivesse xito. Sabia, porm a tentao era muito grande. Dizendo-me
que s queria olhar melhor, adiantei-me sigilosamente.
Quando voltei a dobrar a esquina, o vira-lata j no estava Avancei pela rua, me
mantendo perto do edifcio que estava a minha esquerda. Caminhou outros quatro ou
cinco metros. Ento se deteve e olhou ao redor, como se tentasse se localizar. Eu me
esmaguei contra a parede e esperei. Quando comeou a caminhar novamente, eu fiquei
em meu lugar e deixei que se afastasse. Estava to ocupada me concentrando em minha
presa que no escutei passos detrs de mim. Muito tarde. Girei. Uma mo me segurou

9
NAFTA = mistura de hidrocarbonetos de ponto de ebulio baixo, obtida por destilao do petrleo.
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pela garganta e me empurrou contra a parede.
Elena disse Le Blanc . Que surpresa! Voc por aqui?
Girei a cabea para olhar pelo beco, esperando ver o tipo do FBI voltando. Foi-se.
seu amigo? perguntou Le Blanc.
Seu, meu no.
Le Blanc elevou as sobrancelhas e ento riu.
Ah, j vejo. Voc o seguiu porque o viu falando com Koenig. Assim pensou que era
um dos nossos. Mas se equivocou. E quanto. O protegido de Koenig no sobreviveu. No
pde suportar a Mudana. Morreu ontem. Que lstima. Daniel me enviou para procurar
o velho. Vi vocs por a, assim me escondi e vi o espetculo. Ento vi voc se afastar e
pensei que talvez fosse cumprir esta misso.
Enquanto falava, preparei-me para um ataque, mas antes que pudesse golpe-lo, tirou
algo de seu bolso. Uma arma. Le Blanc levantou a pistola e a ps no meio de minha testa.
Senti que o cho se movia, parecia que meus joelhos no poderiam me sustentar. Basta,
disse-me. um jogo. No o tipo de jogo ao que est acostumada, Mas um jogo. Sim,
apontava para mim com uma arma, mas j encontrarei a maneira de sair disto. Os vira-
latas bestas previsveis. Le Blanc no me mataria porque eu era uma presa muito valiosa
para esbanjar em uns poucos segundos de prazer assassino. Eu era a nica mulher loba.
Poderia tentar me violar ou me seqestrar ou me bater um pouco, mas no me matar.
Engoli o medo e a fanfarrice serviu na vez passada. Us-la-ia novamente.
Os licntropos no usam armas disse. As armas so para os maricas. Voc sabe,
no verdade?
Cale-se disse Le Blanc, inclinando a pistola para cima.
Acredito que tem razo quanto a que no somos muito inteligentes disse Se fosse
inteligente teria quebrado seu pulso direito. E como anda o esquerdo? Incomoda voc?
Cale-se.
para passar o tempo.
Se quer falar disse Le Blanc, sugiro que comece por me pedir desculpas.
Por qu?
Seu rosto ficou avermelhado, os olhos cheios de um sentimento que demorei um
pouco para reconhecer. dio. dio puro, dez vezes mais forte do que vi na delegacia de
polcia essa manh. Zangou-se tanto por eu ter quebrado seu pulso? Emocionou-me.
obvio que a maioria das pessoas se zangava por coisas assim, mas os vira-latas
normalmente no se preocupavam muito, especialmente se fosse eu quem os
machucava. Na realidade habitualmente riam, como se em algum sentido perverso
gostassem que eu tivesse a coragem de faz-lo. Faz anos arranquei uma orelha de Daniel.
No ficou ressentido. Em todo caso se sentia orgulhoso de que lhe faltasse essa orelha e
respondia a qualquer vira-lata que lhe perguntasse como foi que a perdeu, como se
demonstrasse que tnhamos uma relao estreita e pessoal. Nada maior ndice de amor
que a mutilao permanente.
pelo pulso? perguntei-lhe . Voc foi quem quis demonstrar que podia me cravar
uma faca. Eu s demonstrei que podia me defender.
No diga tolices. Pareceu engraado para voc humilhar ao tipo novo. O que acha
que fez Marsten quando voltamos para casa? Contou ao Daniel e ao Olson. E os dois
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riram bastante. Martelou a arma. Quero que se desculpe.
Pensei um segundo. Pedir desculpas no era grande coisa. obvio que no lamentava
o que fiz, mas ele no tinha por que saber disso. Contudo, as palavras ficaram presas no
gog. Por que teria que me desculpar? Bom, estpida, porque o tipo apontava minha
cabea com uma arma. Porm se estivesse segura de que no ia us-la... No importava.
No tinha sentido agravar a coisa
Sinto muito disse . No queria envergonhar voc.
De joelhos.
O qu?
Pede desculpas de joelhos.
No vou merda...
Le Blanc colocou a arma fora em minha boca. Eu a mordi involuntariamente. Senti
aguilhes de dor na mandbula quando meus dentes se chocaram contra o metal. Tentei
me mover, mas ele me sustentava contra a parede. Quando me enterrou o canho da
arma no fundo da boca, deu-me nusea. O gosto do metal era forte e repugnante. Tentei
retirar a lngua, porm o canho estava enfiado muito dentro. Meu corao dava saltos,
mas no sentia pnico. Independente do que Le Blanc dissesse, eu sabia que no ia me
matar. Sua expectativa era que a ameaa de morte bastasse para me forar a fazer o que
ele queria. Ia dar-se conta de seu engano muito em breve. Assim que me ocorresse como
tirar a arma da minha boca. No momento em que o pensei, dava-me conta de que a
resposta era simples. Odiava faz-lo, mas era a maneira mais simples.
Elevei uma perna, fazendo o gesto de que estava disposta a me ajoelhar. Le Blanc deu
um sorriso retorcido e tirou a arma da minha boca.
Boa garota disse Le Blanc . Loba ou no, mulher. Quando as coisas ficam difceis,
sabe qual seu lugar.
Eu apertei os dentes e mantive o olhar baixo, o que parecia ser para ele a demonstrao
de que estava adequadamente acovardada.
Est bom? Disse.
Inclinei a cabea para frente, deixando que meu cabelo ocultasse meu rosto. Ento
comecei a choramingar.
J no to valente, no verdade? riu Blanc.
Podia perceber o tom de triunfo na voz de Blanc. Choraminguei um pouco mais e
elevei a mo para secar meus olhos. Atravs do cabelo s podia ver a metade inferior de
Blanc. Bastava. Passados alguns segundos de pranto, baixou a mo com a pistola a seu
flanco. Elevei ambas as mos para cobrir meu rosto. Depois as baixei de novo, envolvi
com a mo esquerda o punho direito e golpeei forte ao Blanc na entreperna. Quando
cambaleou para trs, Joguei em cima dele. Lancei-o ao cho e comecei a correr. Na
metade do beco escutei o primeiro disparo. Instintivamente, lancei-me ao cho. Algo
bateu em meu ombro esquerdo. Cai no pavimento com uma meia cambalhota. Consegui
me pr de p e continuei correndo. Seguiram dois disparos, mas j tinha dobrado a
esquina.
Ao correr, comeou a descer sangue por, meu ombro, mas a dor era mnima, no era
mais que um arranho. Ombro esquerdo, pensei. E uns quinze centmetros debaixo de
meu ombro esquerdo, meu corao. Apontava para meu corao, Controlei-me para no
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deixar que o pnico me dominasse. Conseguia escutar que me perseguia. Dei a volta na
primeira esquina, na seguinte e na seguinte, correndo s trechos curtos em linha reta
para que no pudesse voltar a atirar. Funcionou uns cinco minutos, mas ento me lancei
por um comprido beco sem outra sada que a do outro extremo. Inclinei-me para frente e
corri o mais rpido que pude. Mas no o suficiente. Le Blanc dobrou a esquina antes que
eu chegasse ao final do beco. Outro disparo. Outra vez ao cho. Esta vez o disparo no
foi preciso ou eu tinha me movido mais rpido. A bala atingiu o lado de uma lata de lixo.
Havia um automvel justo na frente e outro a seu lado e outro e outro. Era um
estacionamento. Senti um lampejo de felicidade. Um lugar pblico. Salva.
Dei a volta na esquina, j fora de seu alcance. Ao correr; olhei ao redor procurando a
maior concentrao de atividade humana. Essa era a chave. Aproxima-me o suficiente de
um grupo de pessoas chamando a ateno com gritos: um recurso feminino quase to
efetivo como chorar. A primeira vista no vi ningum, mas era difcil olhar enquanto
corria a toda velocidade. Virei e me lancei no meio de uma fila de automveis, reduzindo
a velocidade detrs de uma minivan. Olhei ao redor. No havia ningum no lado leste do
estacionamento. Olhei atravs da janela do lado do condutor para observar o lado oeste.
No havia ningum. Absolutamente ningum. Estava em um estacionamento para
empregados ou para estadias prolongadas
Senti o aroma de Blanc comprovando a brisa.
Coloquei-me de mos e joelhos no cho. Tomei ar, dominei o pnico que me envolvia e
baixei a cabea para estudar o terreno ao nvel do cho. Uns quinze metros a minha
direita, havia um par de tnis Le Blanc. Girei. Rodei debaixo da minivan e movi o
pescoo para poder ver melhor. As filas de borrachas pareciam chegar at o infinito em
todas as direes. Finalmente decidi que a fila de borrachas a minha direita parecia a
mais curta. Arrastei-me de barriga para baixo at o frente da minivan, mostrei a cabea e
olhei direita. Mais frente do estacionamento no se via nada. Ento vi passar um
automvel no final da fila. Logo outro. Um caminho. Possivelmente s uma rota de
servio, mas onde havia automveis tinha que haver gente. Sa de baixo da minivan e me
lancei para frente, agachada detrs dos automveis.
Sai, sai da cantarolava Le Blanc. Uma breve pausa e logo: Eu no gosto de
brincar, Elena. Se me forar a lhe buscar lamentar. Posso fazer que lamente. Viu meu
lbum de recortes. Sabe o que posso fazer.
Deslizei-me por detrs de um automvel grande e olhei ao outro lado antes de cruzar
um lugar vazio. Consegui ver um movimento e retirei a cabea Por abaixo do
automvel, vi os tnis de Blanc. Fiquei paralisada e verifiquei o vento. Sudeste. O vento
levaria meu aroma para ele por mais quieta que ficasse. Os tnis passaram pelo outro
lado do automvel e seguiram. Le Blanc nem sequer se deteve. Fechei os olhos e soltei
lentamente o ar. No estava usando o olfato. Uma preocupao a menos. Esperei at que
seus tnis desaparecessem, logo segui avanando pela estreita passagem entre as duas
filas de automveis. Cada vez que chegava a um espao vazio, olhava antes de cruzar.
Mais de uma vez no houve espao para passar entre dois automveis. Isto era mais
complicado que cruzar espaos vazios. Podia passar por cima ou por debaixo. A
primeira vez tentei passar por cima e sacudi o automvel. Passei alguns minutos sem
respirar parada ali para estar segura de que Le Blanc no tinha percebido. A partir de
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ento, quando no havia espao no meio, ia por debaixo. Mais lento mais tambm mais
seguro.
J tinha passado quinze automveis e estimava que restassem outros dez quando
escutei passos a minha esquerda. Deixei-me cair, no me movi e escutei. Sabia que Le
Blanc estava a minha esquerda, porm a ltima vez que verifiquei, estava atrs. Estes
passos vinham da esquerda e adiante. No soavam como tnis. Sapatos de sola dura no
pavimento. Quem fosse que estivesse a minha esquerda com seus sapatos de sola se
movia rpido e vinha quase direto para mim. Atirei-me de barriga para baixo e olhei sob
os automveis. Sapatos marrons pela fila imediatamente a minha esquerda. Uma mulher
que ia para seu automvel. Pensei em parar, agitar os braos, chamar a ateno. Uma
testemunha bastaria para evitar que Le Blanc atirasse?
Merda gritou Le Blanc.
Elevei de repente a cabea e bati fortemente na base do automvel. Le Blanc
amaldioou e comeou a correr. Olhei em todas as direes, tentando ver seus ps ou
descobrir para onde corriam. A mulher: tinha que correr o risco e ir at ela. Mas no
podia ouvir seus passos. J havia subido em seu automvel?
Puta que o pariu! Gritou Blanc. No posso acreditar. Elena!
Deixei de me mover. Por que me chamava? Ele sabia onde eu estava, no certo?
Embora no estivesse me chamando, tinha que ter ouvido a batida de minha cabea
contra o automvel. A batida foi to forte que ressoou por todo o estacionamento. Le
Blanc continuava amaldioando. Segui o som e vi as sapatilhas de Blanc a uns cinco
metros. E junto aos sapatos de Blanc, o corpo de uma mulher; jogado no pavimento, com
seus olhos abertos me olhando sob uma cratera sangrenta no meio da testa. Quando Le
Blanc gritou no me viu. O rudo que escutei no era de minha cabea batendo no
automvel. Tinha visto um movimento, uma mulher movendo-se rpido, conseguiu ver
seus cabelos claros e disparou. Ao ver a mulher morta comecei a tremer. Disse-me que o
horror que sentia era por ela, morta inocentemente em um estacionamento. No era
certo. O n em minha garganta e os fortes batimentos do corao em meu peito no eram
por ela, mas sim por mim. Observei seu corpo que olhava a eternidade sem ver, e me
imaginei jazendo ali. Supunha-se que era eu. Morta em um segundo. Um segundo breve.
Viva e correndo. Ento morta. Terminado. Tudo. Teria ouvido o disparo? Haveria
sentido? Poderia ter morrido hoje neste estacionamento. Ainda podia morrer. Esta
manh poderia ter sido a ltima vez que despertei. O almoo minha ltima refeio.
Uma hora no aeroporto, a ltima vez que vi Antnio, Nick, Jeremy... Clay. Comecei a
tremer mais. Podia morrer. Realmente. Em que pese todas minhas batalhas, nunca o
tinha pensado. Nunca pensei realmente o que significava. O fim podia chegar a um
segundo impossivelmente curto. Agora tinha medo. Mais medo que nunca em minha
vida.
Senti dor em meus punhos apertados. Abri-os e a dor diminuiu, senti um puxo, uma
pulsao como se algo se movesse sob minha pele. Ignorei-o. Tinha coisas mais
importantes nas que pensar. Mas a sensao no ia embora. Ficou pior. Olhei meus
dedos que se retraam para o interior de minhas mos, os plos que saiam do dorso.
Pareciam estar trocando, mas eu no fiz nada para precipitar a Mudana, nem sequer o
tinha pensado. Sacudi minhas mos e as flexionei, desejando deter a transformao. Ao
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mover os dedos, senti novas dores em meus braos. Ento meus ps comearam a fazer
ccegas. Fechei os olhos e ordenei a meu corpo que se detivesse. Minhas costas se
arquearam. Minha camisa comeou a se rasgar. "No!, gritou meu crebro. "Agora no!
Pare! Mas no parou. Minhas pernas tiveram espasmos, querendo meter-se debaixo de
meu corpo, mas no havia espao suficiente. Estava sob o automvel com apenas
centmetros de espao. No podia ficar em quatro patas. No podia pr minhas pernas e
braos em posio. Apertei os olhos e me concentrei. Nada aconteceu. Senti o primeiro
alarme. E a Mudana se acelerou, minha roupa se rasgou e meu corpo tentou contores
impossveis. Era o medo. O temor de estar presa neste estacionamento com um assassino
era o que tinha provocado a Mudana e agora o temor de ficar presa sob o automvel o
fazia pior. Sabia o que tinha que fazer. Tinha que sair. Uma nova fasca de temor fez que
meu torso se elevasse, golpeando minhas costas contra a base do automvel. Esta vez
soube que o rudo era real. Escutei apenas as sapatilhas de Blanc chiando contra o
pavimento. Ouvi-o dizer algo. Ouvi-o rir....
Lancei-me para frente, ao lado do automvel. Minhas unhas rasparam o pavimento.
No meio do caminho minhas pernas se travaram e ca de cara ao cho, Todos os
msculos de meus braos e pernas tiveram espasmos simultneos. Saiu um uivo de
agonia de minha garganta. Apertei os dentes. Meus cotovelos saam das rbitas pela dor.
Muito tarde para reverter a Mudana. J tinha passado o ponto mdio, ir para frente
levaria menos tempo que voltar atrs. Concentrei minha energia em terminar, me
alimentando do medo. Por fim, a ltima fase produziu uma quebra de onda de agonia
to terrvel que desmaiei. Avivei-me assim que meu focinho bateu no pavimento, logo
fiquei de barriga para baixo, ofegando e tentando respirar. No queria me mover. Podia
escutar seus passos que se aproximavam. Tinha me ouvido. Sabia aproximadamente
onde estava e reduzia a rea de busca. Por um tempo me senti muito exausta para que
me importasse. Ento girei a cabea e vi a mulher morta. Com grande esforo me pus de
p e comecei a correr.
Abandonei toda idia de escapar com cautela e sigilo, dominada pela necessidade de
me afastar o mais rpido possvel. Sa de entre os automveis ao caminho aberto e corri a
toda velocidade. No me pus a escutar rudos de perseguio. No podia gastar energia
nisso. Pus tudo o que tinha em correr. Escutei vagamente um grito. E logo um disparo.
Logo outro. Os dois passaram sobre minha cabea No andei mais lento nem mudei de
direo. Fechei-me a tudo e segui adiante. Finalmente a fila de automveis terminou.
Estava em um caminho. Algum tocou uma buzina. Passou uma ventania de um
caminho que agitou minha pele. Entretanto, no reduzi a marcha. Do outro lado do
caminho havia dois edifcios. Corri entre eles, sem saber aonde ia, s que tinha que fugir.
Ao emergir entre os dois edifcios, escutei um grito. Meu nome. Algum me chamava.
O som vinha de perto. Corri mais rpido. De repente um muro de tijolos. Tentei me
deter, mas muito tarde. Deslizei e bati contra o muro. Detrs de mim, Le Blanc
continuava correndo, gritando meu nome. Fiquei de p e me virei a tempo de ver a
figura de meu perseguidor. No havia tempo de escapar. No tinha terminado de girar e
j me lancei contra ele. Enquanto eu estava no ar, levou o brao garganta para cobrir-se.
Bati em seu peito e camos. Levantei a cabea e lhe mostrei os dentes. Ao tentar morder, a
nvoa vermelha de pnico que me cegava se desvaneceu e vi quem tinha debaixo. No
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era Le Blanc. Era Clay
Contive-me bem a tempo. A mudana de direo me jogou de lado. Quando tentei
parar, Clay me agarrou e me sustentou. Sussurrou algo, mas no entendi. Ao ver que no
compreendia, esperou um segundo e voltou a falar, lentamente.
Foi-se disse No se preocupe. Foi-se.
Vacilei e olhei entre os dois edifcios, segura de que Le Blanc apareceria em qualquer
momento, pistola na mo. Clay sacudiu a cabea
Foi, carinho. Quando cruzou o caminho se foi. Muito pblico.
Segui esperando e tremendo. Clay afundou suas mos em minha pele e tentou me
aproximar dele, mas resisti. Tnhamos que estar preparados para correr. Comeou a
dizer algo quando escutei passos ecoando. Fiquei de p de um salto, mas Clay me reteve.
Jeremy, Antnio e Nick deram a volta ao edifcio. Fiquei um momento parada, com as
pernas tremendo, farejando para me assegurar de que os olhos no me enganavam. Sim,
estavam ali. Todos. Estava a salvo. Esperei um segundo e me deixei cair ao cho.



PROMESSA

Clay se sentou ao meu lado no caminho de volta a Stonehaven. Eu continuava trmula,
talvez desequilibrada, mas ele no tentou se aproximar ou me consolar. Sabia que no
devia faz-lo. Em troca, pegou minha mo e me olhava de tanto em tanto, vendo se
queria falar. Eu no queria faz-lo.
Quase tnhamos chegado a casa quando Clay quebrou o silncio, se inclinado para
chamar a ateno de Jeremy que ia frente.
No nos disse o que Daniel exigiu disse . Quer a Elena, no verdade?
Sim disse Jeremy brandamente, sem vira-se.
Antnio saiu da estrada.
como um seqestrador de avies que pede dez milhes de dlares. Sabia que nem
sequer amos pensar, assim uma maneira de dizer que no negocia.
No s isso disse Clay . Est nos alertando. Sabe que no entregaremos Elena.
Est nos avisando de seu prximo movimento. Quer apanh-la.
Jeremy assentiu.
Se tivesse me dado conta h algumas horas nos salvaramos de correr um risco muito
srio. Pensei, igual Tnio, que s estava dizendo que no ia negociar.
Nick se inclinou sobre o respaldo de nosso assento de seu lugar na parte de atrs.
Ento esse vira-lata no aeroporto tentava seqestrar Elena?
No disse . Tentava me matar.
Um vira-lata no faria isso, Elena comeou a dizer Jeremy . muito valiosa viva.
Pode ter parecido...
No estava ali. Havia uma mulher caminhando apressada pelo estacionamento. Ele
acreditou que era eu e lhe fez um buraco na cabea. No foi um tiro para domin-la Foi
uma execuo.
A mo de Clay apertou a minha. Jeremy se recostou no assento, Ningum falou ao
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
172
menos por cinco minutos.
Por que faria isso? perguntou . Se Daniel quer voc viva, por que tentaria matar
voc?
Porque Blanc no se importa um caralho com o que quer Daniel disse .
Possivelmente seja porque novo ou porque matou por sua conta tanto tempo, a coisa
que no parece que tenha o instinto de obedecer a um lobo mais forte.
Mas por que matar voc? disse Nick . Como diz Jeremy, a esses vira-latas novos
no interessam esta briga, fora do que lhes prometeu Daniel. Se Daniel no quiser voc
morta, por que teria o trabalho de tentar matar voc?
Thomas Le Blanc persegue as mulheres. Tortura elas e as viola e as mata. Os homens
assim odeiam s mulheres e se sentem ameaados facilmente. Eu esqueci disso. Depois
de tudo o que disse de que no lidaria com homens assim iguais a outros vira-latas, fiz
exatamente isso. Humilhei-o na delegacia de polcia, zombei dele, insultei-o e lhe quebrei
o pulso diante de Marsten. Agora quer me dominar. Tem que faz-lo.
Clay esfregou seu polegar em meu pulso, mas no disse nada. E ningum abriu a
boca.

Quando chegamos a Stenehaven, fui para meu quarto. Ningum tentou me deter.
Enquanto subia as escadas, escutei Clay detrs, mas no disse nada. Cheguei ao meu
quarto e deixei a porta aberta. Fechou-a ele ao entrar. Cheguei metade do caminho a
cama e me detive. Fiquei ali com Clay parado detrs de mim em silncio. Senti um verme
frio percorrendo meu corpo e comecei a tremer. Aspirei o ar e fechei os olhos, tentando
controlar o medo. Estava bem, Estava em casa e a salvo. E quase tinham me matado. O
medo percorreu todo meu corpo, misturado com ira e dio, tudo se fundiu em algo
vermelho fogo. Queria me jogar na cama e me esconder sob as mantas, Queria jogar algo
contra a parede e v-lo quebra-se. Queria voltar para junto desse vira-lata e lhe gritar:
Como se atreve!.
Quando olhei para Clay, vi minhas emoes refletidas em seu rosto, a ira e o dio e
algo to estranho que apenas o reconheci, um fantasma meio escondido detrs de seus
olhos. Medo. Estendeu a mo e me esmaguei contra ele. Virei meu rosto para o seu,
encontrei seus lbios e o beijei. Seus lbios se abriram. Beijei-o mais forte, fechando os
olhos e me apertando contra ele. Ao beij-lo, uma fasca de vida penetrou em meu
crebro morto. Persegui-o, beijando-o mais forte, mais profundo, esmagando meu corpo
contra o seu. A fasca se converteu em chama e todos meus sentidos voltaram para a
vida. O mundo se afastou e tudo o que podia sentir, tudo o que queria sentir, era ele.
Provei-o, cheirei-o, vi-o, escutei-o, senti-o e gozei dessas sensaes como quem sai de um
coma.
Fomos para a cama. Nossos ps se enredaram e camos no tapete. Uma vez no cho,
peguei a camisa de Clay e a puxei para cima, mas tinha seus braos ao meu redor e no
podia suportar que me soltasse, como se no segundo que se rompesse o contato pudesse
me fazer cair de volta no medo e na comoo. Peguei sua camisa por detrs e a rasguei.
Quando o material se rasgava, deixei de puxar. Era muita molstia, tempo perdido. Levei
minhas mos a seus jeans, abri sua braguilha e deslizei as mos sobre seus quadris. Sem
deixar de me beijar, se torceu e a tirou as patadas, logo tentou tirar os meus. Tirei suas
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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mos e tirei eu mesma as calas. Quando estava empurrando isso para baixo, Clay me
arrancou a roupa ntima e a jogou para um lado. Sua mo passou de meu traseiro ao
interior de minhas coxas. Colocou os dedos dentro de mim.
No disse, tirando a mo dele.
Peguei e o fiz me penetrar. Seus olhos se abriram. Comecei a me mover contra ele.
Quando se retirou para tomar impulso e voltar, agarrei-o pelos quadris e o fiz ficar
quieto.
No ofeguei . Deixe que eu faa isso.
Sustentou-se quieto sobre mim. Arqueei os quadris e me esfreguei contra ele. Senti
quebras de onda de pura sensao. Atirei a cabea para trs e o puxei para baixo, Depois
para cima. Em cima de mim, Clay tomou ar. Senti-o tremer e o afastei para poder v-lo.
Enquanto eu me movia, ele tinha seus olhos fixos nos meus, com a ponta da lngua entre
os dentes, lutando para manter-se quieto. Lancei-me contra ele e me sustentei ali,
gozando do controle, a sensao de tomar o controle logo depois de hav-lo perdido to
completamente fazia poucas horas. Levei uma mo a seu peito e a sustentei contra seu
corao. Podia sentir vida pulsando sob meus dedos.
Bom sussurrei.
Clay se enterrou em mim e deu um gemido. Eu me arqueei para encontrar seu corpo.
Movemo-nos juntos alguns minutos. Quando senti que vinha o clmax, retirei-me. No
queria ced-lo ainda.
Espera disse agitada . S espera.
Fechei os olhos e tomei ar. Seu aroma era angustiante, quase bastava para que eu
chegasse a meu ponto mais alto. Apertei meu rosto contra seu ombro e inalei com
avareza. Quando o aspirava, o mundo pareceu deter-se e a mescla de sensaes se desfez
at me permitir as experimentar uma por uma. Podia sentir tudo, o movimento dos
bceps de Clay debaixo de minhas mos enquanto se sustentava sobre mim, o suor que
caa de seu peito no meu. A presso spera de suas meias contra minha panturrilha, a
leve pulsao dele dentro de mim. Queria manter tudo assim at que o tivesse gravado
na memria. Isso o que sentir-se viva significa.
Apertei-me mais, escutei seu gemido e minha prpria resposta. A perfeio do
momento se desvaneceu em uma repentina necessidade de alcanar outro tipo de
perfeio, outra imagem perfeita da vida.
Agora disse . Por favor.
Clay inclinou seu rosto para o meu e me beijou com fora enquanto se movia dentro de
mim. Senti as ondas do orgasmo que cresciam, saboreei-as em seu beijo. Enredei-me nele,
minhas pernas com as suas, os braos atraindo-o para mim. Justo quando me perdia nele,
saiu do beijo e estendeu as mos para enred-las em meus cabelos. Mas no retirou sua
cabea. Manteve seu rosto sobre o meu, os olhos to perto que no via mais que azul.
No volte a me assustar assim disse rouco . Se perdesse voc... No posso perder
voc.
Levei minhas mos aos seus cabelos e o beijei. Voltou a me deter na metade do beijo.
Prometa disse . Prometa-me que nunca correr um risco assim.
Prometi e ele inclinou seu rosto para o meu para me beijar, enquanto deixvamos que
todo vestgio de controle desaparecesse.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
174


Jeremy bateu na porta antes que a luz do amanhecer tivesse penetrado atravs das
rvores fora de minha janela. Clay abriu os olhos, mas no tentou mover-se nem
responder.
Necessito de ambos l embaixo disse Jeremy atravs da porta fechada.
Olhei para Clay e esperei que respondesse. No o fez.
Agora disse Jeremy.
Clay ficou calado outros trinta segundos e logo grunhiu:
Por qu?
Disse isso com um tom que nunca ouvi usar com Jeremy. Tambm desconcertou ao
Jeremy e durante vrios longos segundos no respondeu.
Desam disse finalmente . Agora.
Os passos de Jeremy se afastaram pelo corredor.
Estou cansado disto disse Clay, tirando as mantas e as colocando a um lado . No
estamos chegando a nada. A nica coisa que fizemos foi perseguirmos nossa cauda.
Perseguir, fugir, perseguir, fugir. E o que obtivemos? Logan morreu, mataram Peter e
quase matam voc. Agora est em perigo, e melhor que ele esteja pensando no que fazer.
Pensei chegou-nos a voz do Jeremy da escada-. Por isso lhes peo que desam.
As bochechas do Clay se tingiram de vermelho. Esqueceu que Jeremy podia escut-lo
to bem do p da escada como da porta do quarto. Murmurou algo que soou a desculpa
e saiu da cama.

Antnio e Nick j estavam no escritrio, comendo de um prato de frios e queijos.
Quando entramos, Jeremy ps caf junto ao sof para ns.
Sei que est preocupado pela Elena, Clayton disse Jeremy quando nos
acomodamos. Todos ns estamos. Por isso vou mand-la para outro lugar.
O qu? endireitei-me . Um momento. S porque ontem noite me assustei no
significa...
No foi a nica que se assustou ontem noite, Elena, Daniel tem voc em vista e
agora parece que Le Blanc tambm. Um quer capturar voc. O outro quer matar.
Realmente acredita que vou esperar para ver qual dos dois tem xito? Perdi Logan e
Peter. No quero perder a ningum mais. No vou correr nem o risco mais remoto de
perder algum mais. Cometi um erro ontem ao deixar que fosse conosco sabendo que
Daniel quer apanhar voc. No vou cometer outro engano permitindo que fique um dia
mais.
Olhei para Clay, esperando que ele tambm protestasse, mas sustentava o caf a meio
caminho de seus lbios, olhando a xcara como um adivinho que procurasse respostas no
fundo. Passado um tempo, deixou a xcara, sem provar o caf. Inclusive Jeremy o olhou e
esperou uma discusso, mas no a houve.
Extraordinrio disse . Um ataque de pnico e j sou uma carga que tm que pr
resguardada. Saberei aonde vais me esconder? Ou no pode me confiar essa informao?
Jeremy seguiu com o mesmo tom.
Vai ao ltimo lugar que ocorreria aos vira-latas. De volta a Toronto.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
175
E que caralho vou fazer ali? Esconde-me enquanto os homens batalham?
No estar s. Clay ir contigo.
Um momento! Fiquei de p de um salto. uma brincadeira, no verdade? Virei-
me para Clay. Ele no se moveu. No o escutou? Diga algo, caralho.
Clay ficou calado.
O que temos que fazer em Toronto? perguntei . Esconder-nos em um quarto de
hotel?
No far nem mais nem menos que o que habitualmente faz. Voltar para seu
apartamento, retornar ao seu trabalho se quiser, voltar para a velha rotina. Isso o que
deixar voc a salvo. O conhecido. Conhece seu edifcio, as ruas pelas quais caminha, os
restaurantes e os comrcios que freqenta. Estar em melhores condicione de detectar
perigos potenciais. E estar cmoda
Cmoda? escapou saliva entre meus lbios. No posso levar Clay para meu
apartamento. Sabe.
Clay elevou a cabea como se sasse de um sonho.
Por qu?
Ao olhar para os dois, percebi que no sabia que estava vivendo com Philip. Abri a
boca para dizer algo, mas o olhar em seu rosto me impediu de falar.
Ter que se desfazer dele disse Jeremy liga para ele e diga que v embora.
Desfazer-se de quem? Ligar...? Clay se deteve. Um gesto decomposto passou por
seu rosto. Olhou-me durante um longo tempo. Depois ficou de p e saiu do escritrio.

Jeremy tem mais talentos que nenhuma outra pessoa que eu conhea e em maior
medida que ningum. Podia falar e traduzir mais de uma dzia de idiomas, podia pr
um osso em tipia e faz-lo sarar como novo, podia pintar cenas que eu nem sequer
poderia imaginar. E podia deter um lobo de cem quilogramas com um olhar, mas no
sabia uma merda das relaes afetivas.
Obrigado disse quando Nicholas e Antnio se foram . Muito obrigado
Acreditei que ele sabia. disse Jeremy
E se no fosse assim? Decidiu humilh-lo diante de Nick e tnio?
Disse que acreditei que ele sabia.
Bom, agora sabe, e ter que consertar as coisas com ele.
No ir a Toronto comigo, se que vou.
Ir e ele tambm. Quanto a esse homem, ele se mudou para sua casa, no verdade?
O apartamento seu.
No perguntei como Jeremy sabia. E tampouco respondi.
Ento pode lhe pedir que se v disse Jeremy
Pego o telefone ligo para ele e lhe digo que voltarei amanh e que quero que ento j
no esteja l?
No vejo por que no.
Respondi com uma risada spera e disse:
No se termina por telefone com algum com quem se est vivendo. No se corta
toda relao de um momento para outro. No se do vinte e quatro horas para que ele
saia de um apartamento, ao menos no sem uma maldita boa razo.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
176
Voc tem uma boa razo.
Isso no ... detive-me e neguei com a cabea . Deixe-me p-lo em termos que
possa entender. Se eu ligar para ele e disser que acabou, ele no vai embora. Vai querer
uma explicao, e ficar at receber uma que o satisfaa. Em outras palavras, ele vai
causar problemas. Essa uma razo suficientemente boa?
Ento no termine com ele. Volte.
Com Clay tambm? Jamais em minha vida Se tiver que me enviar com uma bab,
envie Nick. Ele se comportar adequadamente.
Clay conhece Toronto. E nada o distrair de sua proteo. Jeremy caminhou para a
porta Reservei uma passagem no vo da tarde.
No vou a...
Jeremy j tinha sado.

Clay foi o seguinte com quem Jeremy discutiu. No os espiei, mas tive que sair da casa
para no escut-los. E uma vez que a conversao tinha que ver com meu futuro, no via
motivo para no escutar. Clay no gostava do acerto mais que eu. Seu instinto mais forte
era proteger a seu Alfa e no podia faz-lo h algumas centenas de quilmetros de
distncia. Desgraadamente, o instinto de obedecer Jeremy era quase igualmente forte.
Enquanto os escutava discutir com Clay protestando em voz suficientemente elevada
para abafar a tranqila insistncia de Jeremy eu rezava para que Clay ganhasse e me
permitisse ficar com os outros. Jeremy se manteve firme. Eu ia e, e uma vez que Clay era
o responsvel por me haver introduzido nesta vida, era o responsvel por assegurar
minha sobrevivncia.

Fiquei no escritrio matando o tempo. Ento me decidi. No voltaria para Toronto e
no levaria Clay comigo a nenhuma parte. Ningum podia me obrigar a isso.
Sa ao corredor, peguei minhas chaves e minha carteira da mesa e sa pela porta da
garagem. Ia dar a volta a meu automvel, mas me detive. Aonde iria? Aonde podia ir? Se
fosse, no poderia voltar para Toronto nem para Stonehaven. Em vez de escolher entre
duas vidas, abandonaria ambas. Apertei as chaves e machuquei as palmas das mos com
o metal. Tomei ar e fechei os olhos. Mas se ficasse, teria que obedecer Jeremy. Ningum
podia ter semelhante poder sobre mim. No ia permitir.
Ao dar a volta ao automvel, escutei o esfregue da sola de borracha de um sapato
sobre o cimento e levantei os olhos para me encontrar com Jeremy parado junto porta
do acompanhante, que j tinha aberto.
Aonde vamos? perguntou com calma
Eu vou.
Estou vendo. E tal como perguntei, aonde vamos?
No vamos... Parei e olhei ao redor da garagem.
O automvel de Clay est ali disse Jeremy, com a voz ainda tranqila e controlada .
Tem as chaves, mas no o controle remoto do alarme. O Explorer est fora. No tem que
passar o alarme, mas est a quinze metros, A Mercedes est mais perto, mas no tem as
chaves. Corremos at o Explorer? Ou prefere correr pela sada e ver se pode me deixar
para trs?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
177
No pode...
Sim, posso. No vai. A jaula continua a embaixo. E no vacilarei em us-la.
Isto no ...
Sim, terrivelmente injusto. Sei. Ningum faria isto no mundo humano, no
verdade? Entenderiam que tem direito a se matar.
No vou me...
Se sair sozinha daqui, estar se suicidando. No deixarei voc fazer isso. Vai para
Toronto com Clay ou lhe prenderei aqui at que aceite.
Atirei as chaves no cho e dei as costas a Jeremy. Passado alguns minutos, disse:
No me obrigue a lev-lo. Sabe como tive que me esforar para criar uma vida l,
Sempre disse que o apoiaria, embora no esteja de acordo. Envie-me para outro lugar ou
envia outro comigo. No me faa ir para l com Clay. Ele vai destruir tudo.
No o farei.
A voz de Clay era to suave como a de Jeremy, tanto que duvidei, pensando que
confundi Jeremy com Clay. Quando me virei lentamente, Jeremy j no estava e Clay se
encontrava parado junto ao automvel. A porta da casa se fechou.
Proteger voc o mais importante para mim agora disse Clay . No importa o
quanto esteja zangado, isso no muda as coisas. Posso encaixar nesse mundo, Elena. Que
no o faa no quer dizer que no possa. Estudei e pratiquei para encaixar desde os oito
anos. Durante quinze anos no fiz mais que estudar a conduta humana. Quando a
entendi e soube que podia encaixar, deixei de tentar. Por qu? Porque no era necessrio.
Desde que possa modificar minha conduta em pblico o suficiente para no ter que me
preocupar de que me ataquem multides com balas de prata, ser suficiente para Jeremy
e o resto da Matilha. Se fizesse mais, estaria me traindo. E no vou fazer isso sem alguma
razo. Mas proteger voc razo suficiente. Esse homem poder considerar que no sou
a pessoa mais agradvel do mundo, mas no ter motivos para pensar nada pior. No
destruirei nada.
No quero voc ali.
E eu no quero estar ali. Mas nenhum dos dois pode decidir a respeito, no
verdade?
Novamente a porta se fechou. Quando me virei, Clay j no estava. Jeremy havia
retornado e sustentava a porta aberta. Olhei-o com dio, logo desviei o olhar e voltei
para casa sem dizer mais uma palavra.
tarde, Clay e eu nos encontrvamos em um avio rumo a Toronto.



DESCIDA

Isto ia ser uma catstrofe.
Ao ganhar altura o avio, meu nimo diminuiu a rivalidade. Por que permiti que
Jeremy me fizesse isto? Sabia que ia arruinar minha vida? Importava-se? Como poderia
levar Clay ao apartamento que eu compartilhava com Philip? Como podia fazer isso a
Philip? Ia levar um homem com quem me deitei ao lar do homem com quem me
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
178
comprometi. Quando escutava que pessoas fizeram algo assim, colocar um amante
clandestinamente em seus lares como governanta, bab, jardineiro, sempre me provocou
repulso e desprezo. Que fizesse isso era um lixo em bancarrota moral... o que era uma
boa descrio de como via a mim mesma nesse momento.
Leguei para Philip essa manh e lhe disse que levava um convidado. Expliquei-lhe que
Clay era meu primo, irmo do que sofreu o acidente, e que queria mudar-se para
Toronto, assim aceitei aloj-lo uma semana enquanto ele procurava trabalho. obvio que
Philip aceitou maravilhosamente bem, embora quando disse que gostaria de conhecer
meus primos suspeitei que quisesse dizer convid-los para jantar; no para compartilhar
nosso diminuto apartamento.
E Clay, por que aceitava isto? Jeremy devia saber o quanto isto machucaria Clay.
Tampouco se importava? Como devamos nos comportar, Clay e eu, nestas
circunstncias? Tnhamos que conviver em um apartamento muito pequeno sem
ningum da Matilha que agisse como intermedirio. No tnhamos falado uma palavra
desde que Clay saiu da garagem essa manh. Estvamos a trinta minutos de Toronto e
seguamos sentados cotovelo com cotovelo como completos estranhos.
Onde vive? perguntou Clay.
Sobressaltei-me. Olhei-o, mas ele olhava para frente, como se falasse com o encosto do
assento da frente.
Onde vive? -repetiu.
Eh... perto do lago disse . Entre o lago e a estao de trem.
E onde trabalha?
Em Bay-Bloor.
Soava como uma conversa ociosa, mas eu sabia que no era assim. Detrs dos olhos de
Clay, seu crebro estava em pleno funcionamento, fazendo clculos da geografia e das
distncias.
Segurana? perguntou.
Bastante boa. O edifcio onde moro tem uma entrada com chave e porteiro eletrnico.
Tenho ferrolho e corrente em minha porta.
Clay bufou. Se um vira-lata quisesse entrar no edifcio, nem todas as fechaduras do
mundo poderiam det-lo. Sabia, mas pr um sistema de segurana parecia excessivo.
Uma vez mencionei isso ao Philip, mas a idia dele era que o nico bom sistema de
segurana consistia em uma aplice de seguro. No podia lhe dizer que temia que me
atacassem. Isso dificilmente correspondia com a personalidade de uma mulher que se ia
caminhar s duas da madrugada.
No trabalho h um guarda de segurana no trreo disse . E necessrio um carto
de identificao para entrar em minha empresa. Alm disso, um lugar concorrido. Se
me mover no horrio de trabalho, ningum vai me atacar ali. Na realidade nem sequer
preciso voltar a trabalhar, realmente...
Sim, melhor que o faa. Jeremy tem razo. Mantenha sua rotina normal. Clay
olhou pela janela. Quem se supe que sou?
Meu segundo primo. Que est na cidade em busca de trabalho.
necessrio?
Soou bem. Se for meu primo, ento estou obrigada a dar alojamento a voc...
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
179
Referia-me parte de procurar trabalho. No vou procurar trabalho, Elena, e no
quero ter que andar me justificando com nada complicado. Quero o mais parecido
realidade que seja possvel. Estou na cidade trabalhando na universidade, meu trabalho
normal. Farei contato com algumas pessoas que conheo ali, irei ao departamento de
antropologia, possivelmente faa um pouco de pesquisa.
Certo, mas seria mais fcil dizer...
No. No estou atuando, Elena. S o que seja imprescindvel.
Virou-se para a janela e no disse mais nada pelo resto do vo.
Por mais que ruminasse durante o vo a respeito do que amos fazer, s terminei de
receber o impacto quando chegamos ao aeroporto. Procuramos a bagagem e amos em
busca de um txi quando me dei conta de que estava por levar Clay ao apartamento que
eu compartilhava com Philip. Meu peito se fechava, o corao retumbava, e quando
chegamos porta, j me encontrava em meio a um ataque de pnico.
Clay estava um passo adiante. Estendi a mo e o puxei pelo brao
No tem que fazer isto disse.
No me olhou.
Sim tenho que fazer, o que Jeremy quer.
Mas isso no significa que tem que faz-lo. Ele me quer protegida, no verdade?
Tem que haver outra maneira de faz-lo,
Clay seguiu sem dar-se volta.
Disse que ficaria contigo. E isso o que vou fazer.
Pode faz-lo sem ir para meu apartamento.
Deteve-se e virou-se o suficiente para que pudesse ver um quarto do perfil de seu
rosto.
E como vou fazer isso? Dormir no beco do lado de fora do seu edifcio?
No, quero dizer que nenhum dos dois tem que ir para meu apartamento. Eu no
tenho que ir. Iremos para outro lugar. A um hotel.
E voc ir comigo?
obvio.
E ficar comigo?
Exato. O que voc quiser.
Podia sentir o desespero em minha voz e me produziu repugnncia, mas no podia me
conter. Minhas mos tremiam tanto que as pessoas comearam a me olhar.
O que quiser repeti . Jeremy no saber. Disse que no nos contataria por telefone,
assim no vai saber se estamos no apartamento. Estarei a salvo e voc estar comigo. Isso
o que importa, no verdade?
Por quase um minuto, Clay no se moveu. Ento lentamente se virou para mim.
Quando o fazia, consegui ver um brilho de algo que parecia esperana em seu olhar, mas
desapareceu assim que viu minha expresso. Apertou os dentes e me olhou nos olhos.
Bem disse o que eu quisesse? Caminhou para alguns telefones pblicos e pegou o
fone do mais prximo. Ligue para ele.
Disse que no podamos ligar para ele. Nada de contato telefnico.
Ao Jeremy no. A esse homem. Liga para ele e lhe diga que acabou. Que pode ficar
com o apartamento. Que ir procurar suas coisas depois.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Isso no ...
No o que quis dizer, no verdade? Pareceu-me que no. Ento qual o plano? Ir
e voltar entre os dois at que tenha decidido?
J me decidi. Tudo o que aconteceu em Stonehaven foi um engano, como sempre.
Nunca enganei voc. Voc sabia que tinha uma parelha nunca o ocultei. a mesma
maldita coisa que acontece cada vez que vou a esse lugar. Fico presa. Perco-me.
O que que prende voc? A casa? Um monto de tijolos?
Esse lugar disse, apertando os dentes. Esse mundo e tudo o que h ali, incluindo
voc. No o que quero, mas quando chegou ali, no posso resistir. Domina-me.
Soltei uma gargalhada spera.
No diga tolices. No h nada neste mundo ou naquele mundo ou qualquer outro
mundo que no possa enfrentar, Elena. Sabe no que consiste o encantamento mgico
desse lugar? E que faz voc feliz. Mas no admite porque no o tipo de felicidade que
quer se permitir. Para voc a nica felicidade aceitvel a do mundo "normal", com
amigos normais e um homem normal. Est decidida a ser feliz nesse tipo de vida,
embora morra no intento.
As pessoas nos olhavam, deixando de lado toda dissimulao. Teria que ter escutado
sinos de alarme em minha cabea, que me advertissem que estvamos agindo de maneira
inapropriada para o mundo humano. Mas no era assim. No me importava. Virei-me e
olhei com raiva duas mulheres mais velhas que faziam comentrios a minhas costas.
Retrocederam, com os olhos abertos. Comecei a me afastar.
Quando foi a ltima vez que ligou para ele? perguntou-me Clay.
Detive-me. Clay se aproximou e baixou a voz para que ningum mais pudesse ouvir.
Sem contar esta manh quando ligou para lhe dizer que vamos disse . Quando
ligou para ele?
No respondi.
No domingo disse . Faz trs dias.
Estive ocupada disse.
No diga tolices. Esqueceu-se dele. Acredita que ele faz voc feliz? Cr que esta vida
faz voc feliz? Bem, ento aqui tem sua oportunidade. Leve-me para l. Mostre-me o
quanto ele faz voc feliz. Demonstra-o.
Vai pra merda grunhi-lhe e fui at a porta.
Clay me seguiu, mas chegou tarde. Sa do aeroporto e subi em um txi antes que
pudesse me alcanar. Fechei a porta e quase lhe esmaguei os dedos. Dei ao chofer um
endereo. Ao nos afastar, tive a pequena satisfao de olhar pelo espelho do lado e ver
Clay parado no caminho.
Pena que no disse com maior preciso onde vivia. Perto do lago era uma zona
muito grande... com um monto de edifcios de apartamentos.
Quando cheguei a meu edifcio, toquei no porteiro eletrnico. Philip atendeu. Soou um
pouco surpreso quando me anunciei. No perdi a chave. No me perguntem por que
toquei a campanhia para que me deixasse passar. Esperava que Philip tampouco me
perguntasse isso.
Quando cheguei cima, Philip me esperava perto do elevador.
Devia ter ligado do aeroporto disse . Esperava ir busc-la. Onde est nosso
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
181
convidado? perguntou.
Demorar. Possivelmente para sempre.
No vir?
Encolhi meus ombros e dei um bocejo.
Vo complicado. Muita turbulncia. S pensava em chegar aqui e descansar. No
sabe o quanto estou feliz por ter chegado a casa.
No to feliz como eu estou de ter voc em casa, doura. Philip me acompanhou ao
interior do departamento.
V se sentar, doura. Comprei frango assado. Vou esquent-lo.
Obrigado.
Nem sequer tinha tirado os sapatos quando algum bateu na porta. Pensei em no lhe
dar ateno, mas no serviria de nada. Embora Philip no escutasse to bem como eu,
surdo no era.
Abri a porta com um puxo. Clay estava ali com nossa bagagem.
Como encontrou... comecei a lhe dizer.
Levantou minha bolsa. Da ala pendurava uma etiqueta com meu nome e endereo.
Um rapaz que veio entregar pizza abriu a porta para mim. Uma segurana muito
boa.
Entrou e deixou as bolsas junto ao cabide.
A porta da cozinha se abriu a minhas costas. Fiquei tensa e escutei os passos de Philip.
A apresentao ficou engasgada na garganta. O que aconteceria se Clay no seguisse o
jogo? O que aconteceria se tivesse se decidido a no apresentar-se como meu primo? Era
muito tarde para mudar minha histria? Era muito tarde para expuls-lo?
Chegou disse Philip, aproximando-se e estendendo sua mo . Deve ser o primo de
Elena.
Clay consegui dizer . Clayton.
Philip sorriu.
um prazer. Qual prefere? Clayton ou Clay?
Clay no respondeu. Nem sequer olhou para Philip desde que entrou na sala. Em
troca, seguiu com seus olhos fixos nos meus. Vi a fria que brilhava ali com a ira e a
humilhao. Preparei-me para a exploso. No aconteceu. Em vez disso, conformou-se
sendo incrivelmente mal educado, ignorando Philip, sua saudao, sua pergunta e sua
mo estendida, e passando diretamente ao living.
O sorriso de Philip se alterou s um segundo, logo se virou para onde estava parado
Clay em frente janela, de costas a ns.
O sof cama est aqui disse, mostrando onde tinha deixado uma pilha de roupa de
cama recm lavada . Espero que no seja muito incmoda. Alguma vez o usamos,
verdade, doura?
Clay apertou os dentes, porm continuou olhando pela janela.
No disse. Tentei pensar em algo para dizer, mudar de tema, mas no me ocorreu
nada.
Supe-se que temos vista para o lago disse Philip, com um pequeno sorriso .
Acredito que se voc se localizar a trs passos esquerda da janela, conseguir ver uma
diminuta faixa do Lago Ontrio. Ao menos em teoria.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Clay continuou sem dizer nada. Eu tampouco. O silncio ps a sala em surdina, como
se Philip falasse com o vazio. Suas palavras no deixavam eco nem impresso.
Philip continuou.
O outro lado do edifcio tem uma vista melhor de Toronto. uma cidade
maravilhosa, realmente. Posso tirar umas horas livres amanh a tarde se quiser que leve
voc para conhec-la antes que Elena volte para casa.
No necessrio disse Clay. As palavras saram to tensas que seu sotaque se
perdeu. Soava como um estranho.
Clay viveu em Toronto disse . Um tempo. Faz alguns anos.
Srio? disse Philip Como Clay no respondeu, forou-se a rir. Voltou, assim
suponho que no foi uma experincia to ruim.
Clay se virou e me olhou.
Tenho boas lembranas disse.
Continuou me olhando um tempo, depois rompeu o contato visual e foi para o
banheiro. Em poucos segundos escutei a ducha.
Pode usar a ducha murmurei, dirigindo um olhar de exasperao a Philip . O
campeo da amabilidade, no verdade?
Philip sorriu.
Ento no cansao pelo vo?
Por desgraa, no. Devia ter alertado voc. No tome como algo pessoal. Acredito
que uma desordem anti-social de personalidade sem diagnostico. No tem que
suport-lo. Ignora-o ou lhe diga que v a merda. Isso o que eu fao.
Philip elevou as sobrancelhas. No princpio pensei que era devido a minha descrio
de Clay, mas enquanto Philip me olhava, pensei no que acabei de dizer e escutei o
sarcasmo e a acidez. No era a Elena a quem Philip estava acostumado. Maldito Clay.
S estava brincando disse . Foi um longo vo. Quando chegamos ao aeroporto
perdi o controle e brigamos.
Perdeu o controle? disse Philip com um leve sorriso . No pensei que isso fosse
possvel.
Clayton me provoca. Se tivermos sorte, no ficar muito tempo aqui. Mas da
famlia, assim tenho que suport-lo virei-me para a cozinha e fiz como se farejasse .
Parece que o frango est pronto.
No devemos esperar seu primo?
Ele no nos esperaria . Disse e me dirigi cozinha.

A nica coisa boa que posso dizer dessa noite que foi curta. Clay saiu da ducha (por
sorte vestido), veio ao living e tirou um livro da estante. Ns estvamos comendo assim
fui ao living e o disse. Grunhiu que comeria mais tarde e eu no insisti.
Quando terminamos de comer e limpar a cozinha, j era suficientemente tarde para
dizer que estava cansada e ir para cama. Philip me seguiu e rapidamente percebi que
tinha esquecido um pequeno detalhe sobre o acordo. Sexo.
Estava vestindo a camisola quando Philip entrou. No me interesso pela moda
noturna, sempre dormi com roupa ntima at os dezoito, mas quando Philip se mudou
para morar comigo, vi que vestia a cala do pijama para dormir e supus que eu tambm
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
183
devia vestir algo. Provei todas essas coisas sensuais que se vem nas revistas femininas.
Mas as condenadas das rendas me picavam em lugares onde nunca antes tive coceira e
os elsticos me furavam e os entremeios se retorciam, e decidi que tais coisas s se
usavam quando uma pessoa tinha relaes sexuais. Como Philip no se excitava com
rendas e cetim vermelho, joguei tudo e me acostumei a usar camisetas grandes. No
Natal, Philip me comprou uma camisola branca, bonita e comprida at os joelhos. Era
muito feminina e antiquada e muito virginal para meu gosto. Mas a ele parecia gostar
dela assim a usava
Philip esperou que eu comeasse a escovar meus cabelos, ento se aproximou, se
insinuando e me beijou no pescoo.
Senti saudades murmurou contra minha pele . No queria me queixar, mas foi
uma separao mais longa do que esperava. Se demorasse mais alguns dias, teria uma
visita inesperada.
Ocultei um ataque de tosse com uma risada. Philip em Bear Valley. Esse era um
quadro ainda pior que o que estava suportando agora.
Os lbios de Philip foram para minha nuca. Apertou-se contra mim. Enfiou uma mo
debaixo de minha camisola e chegou at meu quadril. Fiquei rgida Sem pensar, olhei a
porta do quarto o olhar de Philip seguiu o meu.
Ah disse, rindo esqueci de nosso hspede. Poderamos no fazer rudos, mas se
prefere esperar um momento mais privado...
Assenti. Philip voltou a me beijar o pescoo, suspirou, brincando, e se dirigiu cama.
Eu sabia que tinha que me reunir a ele na cama, acarici-lo, falar. Mas no podia.
Isto ia ser uma catstrofe.

ACOMODAR-SE

Na manh seguinte despertei sentindo aroma de panquecas e bacon. Olhei o relgio.
Quase nove horas. Philip normalmente sai s sete. Devia ter decidido chegar tarde desta
vez e preparar o caf da manh. Sempre to doce.
Sa do quarto e fui cozinha. Clay estava em frente ao fogo, colocando uma esptula
sob uma montanha de bacon. Virou-se quando entrei. Seus olhos percorreram minha
camisola.
Que caralho isso? perguntou.
Uma camisola.
Dorme com isso?
Se no dormisse seria um vestido, no verdade? ladrei-lhe, inexplicavelmente
zangada por haver me equivocado a respeito de quem preparava meu caf da manh.
Os lbios de Clay tremeram, como se contivesse a risada.
muito... doce, carinho. Parece algo que Jeremy compraria para voc. Ah, disse
passando ao meu lado . Mandou flores para voc.
Jeremy?
Clay negou com a cabea.
Esto junto porta de entrada
Fui at a entrada e encontrei uma dzia de rosas vermelhas em um vaso prateado. O
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
184
carto dizia: Deixei voc dormir. Bem-vinda a casa. Senti saudades. Philip.
Vem? Nada mudou. Philip continuava to atento como sempre. Peguei o vaso com
um sorriso e pensei em onde p-lo. A mesa do living? No, as flores eram muito altas.
Na mesinha do saguo? Muitas coisas. A cozinha? Abri a porta. No havia lugar.
O dormitrio murmurei e retrocedi.
gua disse-me Clay.
O qu?
Necessitam de gua.
Sei.
E sol adicionou.
No respondi. Teria recordado que necessitavam de gua e sol... eventualmente. Devo
reconhecer que nunca entendi muito o costume de enviar flores. Com certeza, so lindas,
mas no fazem nada. No que eu no gostasse. Eu gosto. Jeremy sempre cortava flores
do jardim e as punha em meu quarto e eu desfrutava delas. Claro que se ele no as
pusesse em um lugar ensolarado e no colocasse gua, eu no desfrutaria delas por
muito tempo. Sou muito mais apta a matar coisas que as ter vivas. Que bom que nunca
pensei em ter filhos.
Logo depois de lhes pr gua e colocar as rosas no quarto, voltei para a cozinha. Clay
ps duas panquecas em meu prato e estava para me servir a terceira.
J est bom disse, retirando meu prato.
Arqueou ambas as sobrancelhas.
Por agora obvio que comerei mais depois de terminar estas.
tudo o que come quando ele est aqui? Surpreende-me que possa chegar ao
trabalho sem desmaiar. No pode comer assim, Elena. Seu metabolismo necessita...
Retirei minha cadeira. Clay se deteve e serviu bacon, depois serviu seu prato e se
sentou.
A que hora vai ao trabalho? perguntou.
Liguei ontem noite e disse que estaria l s dez.
Ento melhor nos pomos em marcha. Quanto demora a caminhar at l? Trinta,
quarenta minutos?
Vou de metro.
De metro? Odeia o metro. Toda essa gente metida em um vago, com estranhos que
lhe empurram e o aroma...
Acostumei-me.
Para que se incomodar? uma linda caminhada pela Bloor.
As pessoas no vo ao trabalho caminhando disse . Vai de bicicleta, de patins,
corre. No tenho uma bicicleta nem patins e no posso correr com uma saia.
Vai trabalhar de saia? Odeia as saias.
Afastei meu prato e me levantei da mesa.

Tentei convencer Clay de que ele podia caminhar at meu trabalho e que eu pegaria o
metro sozinha. Mas no aceitou. Por minha segurana e de acordo com a vontade
expressa de seu lder, suportaria a tortura do metro. Devo reconhecer que me deu muito
prazer v-lo sofrer os sete minutos que durou a viagem. No que se retorcesse.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
185
Qualquer que o observasse veria um homem parado em um vago lotado, vigiando com
impacincia o pster onde se via o avano do trem. S o delatava seu olhar, e para isso
teria que conhec-lo o suficiente. No fundo de seu olhar se via um animal enjaulado,
claustrofobia com partes iguais de indignao e pnico iminente. Cada vez que algum o
roava, agarrava um pouco mais forte a barra. Respirava pela boca e mantinha os olhos
cravados no mapa; s desviava os olhos para verificar o nome de cada estao quando o
trem parava. Uma vez me olhou. Sorri para ele e lhe mostrei que estava relaxada. Com
ira, voltou a olhar o pster e me ignorou o resto da viagem.

Fui almoar com minhas colegas de trabalho. Ao voltar, vi uma figura familiar sentada
em um banco em frente ao edifcio onde ficava meu escritrio. Inventei uma desculpa
para no voltar e fui at onde estava Clay.
O que aconteceu? perguntei ao me aproximar por detrs. Virou-se e sorriu.
Ol, carinho. Foi um bom almoo?
O que faz aqui?
Estou cuidando de voc, lembra?
Detive-me.
Por favor, no me diga que ficou sentado aqui toda a manh.
obvio. Pensei que no me deixariam ficar em seu escritrio.
No pode ficar sentado aqui.
Por que no? Deixe-me adivinhar. As pessoas normais no ficam sentadas em bancos
da rua o dia todo. No se preocupe, carinho. Se vierem me prender, mudarei de banco,
ao outro lado da rua.
Olhei para o edifcio, para me assegurar de que no saa ningum.
No trabalho em meu escritrio o dia todo, sabe. Tenho uma entrevista com um
vereador esta tarde, depois tenho que cobrir um evento em...
Irei contigo. A prudente distancia, para me assegurar de que no tenha que suportar
o horror de se associar em pblico comigo.
Quer dizer que vai me vigiar
Clay sorriu.
Uma habilidade que sempre bom praticar para melhor-la.
No pode ficar aqui.
E voltamos para o mesmo...
Pelo menos faz algo. L um livro, um jornal, uma revista.
Claro, e deixar que algum vira-lata passe por mim enquanto fao palavras cruzadas.
Elevei as mos e voltei para o edifcio. Cinco minutos mais tarde, sa at seu banco.
J estava sentindo saudades de mim? Perguntou sem se virar.
Deixei cair uma revista por sobre seu ombro em seu colo. Pegou, olhou a capa e
franziu o sobrecenho.
Automveis esportivos?
uma revista para tipos bons disse , ao menos faz de conta que a l.
Olhou algumas pginas at deter-se na foto de uma ruiva de biquni, jogada sobre a
capota de um Corvefle Stingray. Olhou o texto e examinou a foto.
O que faz a mulher ali? perguntou.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Est tampando um raspo na capota. Era mais barato que arrum-lo.
Passou mais algumas pginas de mulheres com pouca roupa e automveis clssicos.
Nick tinha revistas como estas quando ramos crianas. Mas sem automveis.
Girou uma foto de lado. E sem trajes de banho.
Faz de conta que a l. Est bem? disse, voltando para a porta . Nunca se sabe.
Possivelmente eu tenha sorte e encontre algo que voc goste.
Acreditei que voc gostava de meu automvel.
Comecei a me afastar.
No referia aos automveis.

Depois do jantar, Clay e eu ficamos no apartamento jogando cartas. Quando Philip
chegou a casa, eu ia ganhando trinta dlares e cinqenta centavos. Acabava de ganhar
meu quarto jogo seguido e estava me gabando disso do modo mais imaturo quando
Philip chegou. Assim que Philip pediu jogar Clay decidiu que era hora de ir se banhar
novamente. Nesse ritmo, ia ser o cara mais limpo de Toronto. Philip e eu jogamos
algumas rodadas, mas no era o mesmo. Philip no jogava por dinheiro. O que pior,
queria que eu jogasse de acordo com as regras.

Essa noite Jeremy se contatou comigo para ver se estvamos bem. Embora tivesse
proibido as ligaes telefnicas, no significava que no estivssemos comunicados.
Como j disse, Jeremy tinha seu prprio modo de contatar-se conosco, atravs de uma
espcie de conexo psquica noturna. Todos os licntropos tinham certo grau de poder
psquico. A maioria o ignorava. Porque era algo muito mstico para criaturas mais
acostumadas a comunicar-se com os dentes e os punhos que com suas mentes.
Clay e eu compartilhvamos uma espcie de vinculo mental, possivelmente porque foi
ele quem me mordeu. No era que pudssemos ler nossas mentes nem nada to
impactante, Era algo mais parecido a esse maior entendimento de que falam os gmeos,
coisas pequenas como sentir um belisco quando ele se fere ou saber quando est perto
embora no possa v-lo nem ouvi-lo nem cheir-lo. Todo isso me deixava incmoda,
assim no era algo que cultivasse ou nem sequer aceitasse.
A capacidade de Jeremy era diferente. Podia comunicar-se conosco enquanto
dormamos. No era como escutar vozes em meu crebro nem nada assim to dramtico.
Ao dormir sonhava que falava com ele, mas subconscientemente percebia que era mais
que um sonho e podia escutar e responder racionalmente. Era bastante bom, embora
nunca fosse dizer isso ao Jeremy.

Despertei com o aroma das panquecas. Esta vez soube exatamente quem estava
preparando o caf da manh e no me incomodei. Comida era comida. Para mim no h
nada melhor que um caf da manh preparado para comer. Eu era incapaz de cozinhar
pela manh. Quando me levanto, estou muito faminta para preparar algo. s vezes at o
fogo me parece muito lento. E melhor ainda que isso de que algum me prepare o caf
da manh era poder sair da cama e ir direto mesa, sem me preocupar com a ducha, a
roupa, o cabelo e a escova de dente, as coisas necessrias para ser uma companhia
agradvel na mesa. Clay no se importa. Tinha visto coisas piores. Enterrei-me sob as
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
187
mantas. Quando o caf da manh estivesse pronto, Clay me traria um caf. S tinha que
esperar.
Isto maravilhoso. No comemos panquecas todos os dias. Elena no se interessa
muito pelo caf da manh. Geralmente se conforma com cereal frio e torradas. No sei se
ela vai comer isto, Mas eu sim.
Sentei-me de repente. No era a voz de Clay.
Como chamam a isto no sul? continuou Philip . Flapjacks? Johnny cakes? Nunca
me lembro. Vem de l, no verdade? Quero dizer, nasceu l. Com esse sotaque.
Suponho que da Gergia ou possivelmente do Tennessee.
Clay grunhiu. Saltei da cama e corri at a porta Ento vi que estava de camisola no
espelho. Um robe. Necessitava de um robe.
Seu irmo Jeremy no tem sotaque disse Philip . Ao menos no o notei quando
falei com ele por telefone.
Merda! Procurei no guarda-roupa. Onde estava o robe? Tinha um robe?
Meu meio-irmo disse Clay.
Ah ? Ah, claro, faz sentido.
Procurei roupa e me vesti a toda velocidade. Sa quase correndo do quarto e me detive
entre Clay e Philip.
Estar com fome? perguntou Clay, ainda olhando para o fogo.
Philip se inclinou para me beijar na bochecha e tentou alisar meus cabelos enredados.
No deixe de ligar para mame esta manh, doce. No queria planejar a despedida
de Betsy sem voc. Olhou para Clay. Minha famlia adora Elena. Se no me casar com
ela logo, querero adot-la.
Seu olhar fixou-se em Clay. Clay ps trs panquecas em uma grande pilha, virou-se e
as trouxe para a mesa, sem nenhuma expresso no rosto. Philip franziu o sobrecenho.
Provavelmente cansado de falar sem que lhe respondesse
A manteiga est na... disse Philip, mas Clay j tinha aberto a porta da geladeira .
Ah, e o xarope de arce est sobre o fogo no arma...
Clay tirou da geladeira um frasco de vidro de xarope de arce, do tipo que se compra
nas lojas para turistas a preo de ouro.
Isso novo disse, sorrindo para Philip Quando o comprou?
No, no fui eu.
Olhei para Clay.
Comprei-o ontem disse.
No estou seguro de que Elena goste... Philip se deteve e seu olhar foi de mim ao
Clay e vice-versa . Sim, bom, muito amvel de sua parte.
O toque do telefone me resgatou do esforo intil por encontrar algo que dizer.
Eu atendo disse Philip e foi ao living.
Obrigado disse ao Clay entre dentes. Tinha que faz-lo, no verdade? Primeiro o
caf da manh, agora o xarope. Demonstra-lhe que sabe o que eu gosto e o faz ficar mau.
Mas eu no disse nada. Voc mencionou o xarope.
E no haveria dito nada?
obvio que no. Para que ia fazer isso? Eu no estou competindo, Elena. Vi quando
fiz o caf da manh ontem que no tinha xarope do bom. Sei como se queixa nesses
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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casos, e ento pensei que tinha acabado e comprei.
E o caf da manh? Diga-me que no significa nada que me prepare o caf da
manh?
Com certeza sim. Significa que estou preocupado porque no come bem e quis me
assegurar de que ao menos tivesse uma refeio decente. Com certeza ele pensa que
estou tentando ajudar. Fiz o suficiente para que houvesse para ele tambm.
Fez suficiente para todo o Edif. ... Detive-me notando que s havia comida
suficiente para alimentar trs pessoas normais.
O resto est no forno disse Clay . Escondi-as quando ouvi que ele despertava.
Farei um pacote para que as leve ao trabalho. Se algum perguntar, pode dizer que no
conseguiu tomar o caf da manh em casa.
Tentei pensar o que dizer e me salvou outra interrupo. Era Philip que voltava para a
cozinha
Do trabalho disse, fazendo uma careta . Que outra coisa podia ser? Se uma manh
for mais tarde, ligam. No se preocupe, doce. Disse que estou tomando o caf da manh
contigo e chegarei mais tarde. Pegou uma cadeira se sentou e se virou para Clay.
E como vai sua busca por trabalho?

Esse dia combinei de me encontrar com Clay para almoar na esquina. Trouxe um
almoo de um restaurante de refeies para viagem prximo e fomos ao terreno da
universidade para comer. O lugar no foi minha escolha. Eu nem sequer notei que amos
para l at que chegamos. Embora trabalhasse a poucas quadras da Universidade de
Toronto, no visitei o lugar nos nove meses que estive trabalhando na revista. Tampouco
fui ali em nenhuma das minhas visitas a Toronto durante os ltimos dez anos. Foi na
universidade onde conheci Clay onde me apaixonei por ele, onde passei o ano mais feliz
de minha vida. Tambm foi o lugar onde ele me enganou, mentiu para mim e me traiu.
Quando percebi para aonde amos, deu-me medo. Pensei em uma dzia de desculpas e
em uma dzia de lugares para ir comer que no fosse esse. Mas nenhum chegou a minha
boca. Com a lembrana fresca do que ele disse a respeito de Stonehaven, dava-me muita
vergonha reconhecer que no queria ir universidade. Era s um lugar, um monto de
tijolos e cimento. Talvez fosse algo mais que vergonha. Talvez no quisesse admitir
quanta ressonncia emocional tinha essa pilha de tijolos e cimento para mim. Talvez no
quisesse que ele soubesse o quanto recordava isso e quanto me importava. Assim no
disse nada. Sentamo-nos em um banco perto da entrada principal. Era poca de provas e
s um punhado de estudantes davam voltas por a; a pressa de chegar s salas de aula
era uma lembrana que se desvanecia. Um grupo de jovens estava jogando futebol, suas
jaquetas da primavera e suas bolsas abandonadas em uma pilha ao lado. Enquanto
comamos, Clay falou do trabalho que escreveu sobre o culto do jaguar no Sudamrica.
Quanto mais falava, mais retrocedia minha mente, recordando conversas do passado
nesse lugar e apagando os anos transcorridos. Podia ver Clay tantos anos atrs, sentado
no banco, comendo o almoo e falando, to centrado em ns que sobre sua cabea
voavam discos e ele nem sequer os notava. Sempre se sentava na mesma posio, com as
pernas estiradas e seus ps enganchados nos meus, os braos sobre a mesa, as mos em
contnuo movimento, pondo nfase, como se alguma parte dele tivesse que estar sempre
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
189
em movimento. Sua voz soava igual, to familiar agora que eu podia seguir suas
inflexes, predizer cada mudana de tom, cada acentuao.
Inclusive naquele tempo, ele queria saber o que pensava e minha opinio a respeito de
cada coisa. Nenhum pensamento de minha mente jovem em muito corriqueiro ou
aborrecido para ele. Com o tempo lhe contei tudo, de meu passado, de minhas
aspiraes, meus temores, minhas esperanas e minha insegurana, coisas que nunca
pensei que poderia compartilhar com outra pessoa. Toda minha vida tinha temido me
abrir a algum. Queria ser uma mulher forte e independente, no uma daminha
danificada com antecedentes dignos de um melodrama dickensiano. Tinha medo de dar
pena de modo que mantinha aos amigos e aos namorados a distncia. Tudo isso mudou
com Clay. Quis que soubesse tudo de mim, para que estivesse seguro de saber quem eu
era e que ainda assim me amava. Escutou e ficou. O que mais, foi recproco. Falou-me
de sua infncia, de que perdeu seus pais em circunstncias traumticas que no
recordava, que foi adotado, que no se adaptou no colgio, que fazia continuamente o
ridculo e ficava marginalizado, metido em problemas, e o expulsaram tantas vezes que
parecia passar pelos colgios como eu trocava de famlias adotivas. Contou-me tanto que
estava segura de que o conhecia, conhecia-o por completo. Ento descobri o quanto
estava equivocada. s vezes a decepo di muito mais que uma mordida.



TURBULNCIA

Quando Philip chegou a casa passava da meia-noite, Clay e eu estvamos assistindo a
um filme. Eu, estirada no sof. Clay estava na poltrona, monopolizando a pipoca. Philip
entrou, parou atrs do sof e olhou a tela alguns minutos.
Um filme de terror? disse . No vi um filme de terror desde que estava na
universidade. Deu a volta na poltrona e se sentou ao meu lado. Qual esse?
Os mortos vivos II disse, estendendo a mo para pegar o controle remoto . Estou
segura de que haver outra coisa.
No, deixa-o olhou para Clay . Voc gosta dos filmes de terror?
Clay ficou em silncio um tempo, depois grunhiu algo pouco claro.
Clay no gosta de terror disse . Muita violncia. Incomoda-lhe. Tenho que mudar
de canal se a coisa ficar sanguinria.
Clay bufou.
Este bobo disse a Philip. o segundo de uma srie. E como todos os segundos de
terror, ruim.
O grito 2 disse Clay.
uma exceo e s porque os roteiristas sabiam que as segundas partes sempre so
ruins lhe adicionaram coisas.
Sim disse Clay . A idia... deteve-se e olhou para Philip que seguia a conversa
como um torneio de ping-pong e encheu a boca de pipocas.
D para mim disse.
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Fui eu que comprei.
E a preparou em meu microondas. D-me.
H mais duas bolsas na cozinha.
Eu quero essa, me d.
Atirou o recipiente sobre a mesa e a aproximou com o p.
Est vazio! disse.
Philip riu.
Vejo que se conheciam desde a infncia.
Fez-se silncio. Ento Clay ficou de p.
Vou tomar banho disse.

O dia seguinte era sbado. Pela manh Philip foi jogar golfe antes que eu despertasse.
O golfe um esporte que no me interessa. Exige-me muito pouco fisicamente e muito
quanto a comportamento. No outono passado aceitei tent-lo, ento Philip me deu duas
listas de regras de seu clube. Uma era de regras para jogar. A outra tinha sobre a
vestimenta e o comportamento enquanto se joga. Sou consciente de que certos esportes
requerem determinada vestimenta para proteger-se, porm no entendo por que uma
blusa sem mangas causa problemas de segurana. Deus no queira que ao ver meus
ombros nus os golfistas fiquem nervosos e lancem as bolas por toda parte. E tenho
preocupaes suficientes na vida sem ter que medir se o comprimento de minha
bermuda adequado s normas da quadra de esportes. Alm disso, logo depois de um
par de voltas com Philip, conclu que o golfe realmente no me interessa. Bater forte na
bola servia para descarregar tenses, mas aparentemente no era o objetivo do jogo. De
modo que Philip jogava golfe. Eu no.

Depois do golfe, fomos os trs almoar e resultou ser a primeira vez em dez anos que
no desfrutei de uma refeio. Durante vinte minutos Philip tentou fazer Clay falar.
Teria mais sorte se tentasse falar com sua salada. Para salv-lo, comecei a monologar, e
tive que continuar at que chegou a conta, depois de trinta e oito minutos e vinte
segundos. Nesse momento, Clay recuperou milagrosamente a voz, e sugeriu que
caminhssemos de retorno ao departamento, sabendo que tnhamos vindo no automvel
de Philip e que este se veria obrigado a voltar sozinho. Antes que pudesse discutir, Philip
de repente recordou que tinha algo para fazer no escritrio e se no nos importvamos
de voltar caminhando se fosse com o automvel. Depois de concordar, os dois homens
correram para porta como se tivessem fugindo do crcere, com isso fui eu que tive que
deixar a gorjeta.
No domingo de manh, enquanto Philip jogava golfe, Clay e eu fizemos as tarefas
aborrecidas da semana, como limpar a casa, lavar a roupa e comprar mantimentos.
Quando voltamos das compras, havia uma mensagem de Philip na secretria eletrnica.
Liguei para ele.
Que tal sua partida? perguntei quando atendeu.
No foi muito boa. Liguei por causa do jantar.
No vai poder vir?
Na realidade queria convidar voc para jantar fora. Em algum lugar lindo. Fez uma
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191
pausa Somente ns dois.
Que bom!
No tem problema?
Que nada. Clay pode se arrumar sozinho. No gosta de comer em lugares finos.
Alm disso, no trouxe roupa para vestir.
E o que veste quando procura trabalho?
Bom, bom.
trabalho acadmico disse . No h problema com a roupa
Bom outra pausa . Depois do jantar pensei que poderamos ir ver algo. Talvez
possamos encontrar entradas pela metade do preo para algo.
Possivelmente no seja to fcil em um fim de semana prolongado com feriado, mas
podemos procurar algo.
Ocorreu-me que podamos pigarreou ir sozinhos. Somente n dois.
o que pensei. Quer que consiga as entradas?
No, eu me arrumo. Estarei ai as seis. Diga a Clayton que chegaremos tarde. Iremos
jantar e ver algo e depois tomar algo.
Parece-me bom!
Philip ficou em silncio um momento, como se esperasse que dissesse algo mais. Como
no o fiz, saudou-me e cortamos a comunicao.

O jantar foi outro pesadelo. E no que tenha acontecido nada ruim. Quase desejei que
fosse assim. Se no tivssemos reservado a mesa ou a comida tivesse chegado fria, ao
menos assim teria havido algo do que falar. Mas em vez disso passamos uma hora
agindo como duas pessoas que se encontrassem pela primeira vez e tivessem claro que
no iriam voltar a sair. Parecia que no sabamos do que falar. E no que no
falssemos. Philip me contou da campanha na qual trabalhava, para um condomnio
junto ao lago. Eu contei uma pequena anedota engraada a respeito de um lapso do
primeiro-ministro na ltima conferncia de imprensa. Falamos dos planos que havia
para renovar o porto de Toronto. Queixamo-nos do anncio de aumento das tarifas de
transporte. Falamos da possibilidade de que a equipe local de beisebol pudesse ganhar o
campeonato. Em sntese, falamos de tudo o que dois perfeitos estranhos poderiam falar
no jantar. E, pior ainda, falamos desses temas com o desespero de dois estranhos
aterrorizados pelo silncio. Na sobremesa j tnhamos ficado sem tema. Detrs de ns
trs jovens apenas mais que adolescentes, festejavam seu xito com aes de empresas
ponto.com com vozes suficientemente estridentes para que as pessoas que passavam
pela rua se inteirassem. Estive por fazer algum comentrio crtico ao Philip, mas me
contive. No estava segura de qual seria sua reao. Soaria muito negativa? Cnica? Era o
tipo de comentrio que Clay faria. E Philip? No estava segura, assim que fiquei calada.
Quando o moo voltou a encher nossas xcaras de caf, Philip pigarreou.
Bom disse . Quanto tempo mais seu primo vai ficar conosco?
Provavelmente fique mais alguns dias. muito? Sei que um incmodo...
No, no. No isso. conseguiu sorrir debilmente. Devo dizer que no muito
agradvel, mas vou sobreviver. Mas foi... estranho.
Estranho?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
192
Philip deu de ombros.
Suponho que se deve ao fato de vocs se conhecem h tanto tempo. como se... no
sei. Sinto... Sacudiu a cabea.
Sou eu, doura. Sinto-me deslocado. No uma atitude amadura. No sei. Tocou a
xcara de caf com um dedo e logo me olhou.
Houve algo...? Interrompeu-se.
O qu?
No importa. Um sorvo de caf. teve sorte com a busca de emprego?
Conseguiu algo na Universidade de Toronto. Assim que se concretize, mudar-se.
Assim vai fica em Toronto?
Por um tempo.
Philip abriu a boca, vacilou, logo tomou outro sorvo de caf.
Bem disse. Escutou o ltimo discurso do Major Mel?

No pudemos conseguir entradas para nada bom, assim fomos ver um filme e depois
tomamos alguns drinques em um bar onde tocavam jazz. Eram quase duas horas quando
chegamos ao departamento. Clay no estava ali. Quando Philip ia ao quarto em busca
de seu telefone celular para ver se tinha mensagens, Clay entrou pela porta, agitado.
Oi disse, procurando Philip com o olhar.
Est no quarto foi correr?
Sem voc?
Clay foi cozinha. Voltou com uma garrafa de gua, destampou-a, engoliu a metade e
me ofereceu o resto. Sacudi a cabea.
Por favor, me diga que esteve fazendo exerccio no ginsio.
Clay tomou outro gole de gua.
Caralho murmurei, me deixando cair no sof . Prometeu no me seguir esta noite.
No, voc me disse que no a seguisse. Eu no respondi. Meu trabalho proteger
voc. E o que vou fazer carinho.
No necessito...
Philip reapareceu.
Ms notcias. Olhou para Clay e depois para mim. Interrompo algo?
O que acontece? perguntei.
H uma reunio de emergncia amanh suspirou . Sim, o dia da Rainha Vitria.
Sei. Sinto muito, doura. Mas liguei para Blake e combinamos de jogar golfe as oito,
assim terei tempo de jogar e levar voc para almoar antes da reunio. Realmente
esperava poder passar mais tempo contigo este fim de semana.
Dei de ombros,
No importa. Clay e eu procuraremos algo para fazer.
Philip vacilou, parecia disposto a dizer algo, logo olhou para a cozinha e fechou a
boca.

Na segunda-feira ao meio dia, quando esperava que Philip viesse me buscar, ligou
para dizer que houve um problema no clube de golfe e comeou a jogar uma hora mais
tarde. Acabavam de terminar. Assim no poderamos almoar juntos.
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Depois que Philip ligou, Clay e eu caminhamos at o bairro chins para comer ali.
Passamos o resto do dia descansando, descobrindo novos bairros, descendo por ruas
residenciais, logo correndo pela praia antes de voltar para o apartamento com bifes para
o jantar. Ao redor das sete horas algum tocou na campanhia. Eu estava no banheiro,
assim que gritei ao Clay que atendesse. Quando sa, tinha outra floreira, esta de argila,
com faixas de cores diferentes.
Lamenta no ter podido levar voc para almoar disse Clay . Qu-las no quarto
com as outras?
Fiquei quieta, olhando-o com as flores. Fiquei esperando.
Diga.
Dizer o qu?
Peguei as flores de suas mos.
Sei o que est pensando. Se realmente se importasse comigo, teria deixado o golfe.
No ia dizer isso.
Estava-o pensando.
No, voc o estava pensando. Voc o disse.
Fui rumo a meu quarto.
gua disse-me.
Grunhi e me desviei para o banheiro. Coloquei gua na floreira e ao faz-lo caram
umas bolinhas verdes no lavabo e outras no cho. Peguei as que caram no lavabo, olhei
as que tinham cado no cho e decidi que as recolheria quando fizesse limpeza.
Diferente de algumas pessoas disse, voltando para a sala Philip no acha que um
casal tenha que estar grudado todo o tempo. E eu no tenho problemas com isso. Ao
menos manda flores.
Silncio do living. Deixei a floreira em minha mesinha do abajur, junto s rosas e voltei
para perto de Clay. Estava sentado no sof, lendo o rascunho que eu trouxe para casa do
trabalho na sexta-feira.
Diga.
Levantou os olhos.
O que quer que eu diga?
Esperou toda a semana para me dizer o que pensa de Philip. Vamos. Diga.
Quer conhecer minha opinio verdadeira? Apertei os dentes.
Sim.
Est segura? Apertei-os mais.
Sim.
Acredito que um cara decente.
Meus dentes comeavam a doer.
E isso o que quer dizer?
Exatamente o que disse, carinho. Acredito que um cara decente. No perfeito, mas
quem o ? Obviamente ama voc. Tenta ser considerado. muito paciente. Se eu fosse
ele, teria me expulsado daqui faz tempo. No fez outra coisa que mostrar-se amvel. Um
cara bom.
Mas no vai funcionar elevou a mo quando eu ia protestar . Vamos Elena. Voc
sabe por que escolheu a este cara, no verdade? E no me refiro ao fato de que quer
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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uma casa e uma famlia e tudo isso. Cr que no sei que isso o que quer? Sim sei. E
diria que o tem debaixo de seu nariz, mas no quer escutar. A pergunta : por que
escolheu a este cara em particular para realizar essas fantasias? Sabe, no verdade
carinho?
Porque um cara bom. ...
Bom, paciente e carinhoso. No faz voc recordar de algum?
No de voc.
Clay saiu do sof, rindo.
Decididamente no se parece comigo. Deixou minha pasta na mesa e estudou meu
rosto. Realmente no entende, no verdade carinho? Bom, quando entender, saber
por que no vai d certo. Pode gostar deste cara, mas nunca ser como o que h entre
voc e eu. No pode ser. Por mais decente que seja, escolheu-o por razes totalmente
equivocadas.
Est equivocado.
Deu de ombros.
- Sempre h uma primeira vez. O que acha de fazermos os bifes? Passe-me eles e voc
pode preparar as verduras.

Depois de comermos, fomos caminhar por um bom tempo. Quando voltamos para o
apartamento, Philip j tinha passado por ali e deixado um bilhete na mesa avisando que
os scios o convidaram para uma reunio em Montreal na manh seguinte. Tinha vindo
pegar um pouco de roupa em uma bolsa e j estava viajando para Qubec.
Assim no vir esta noite? perguntou Clay, lendo o bilhete por sobre meu ombro.
Assim parece.
Que lstima. Suponho que teremos que encontrar algo com que nos entreter. Foi
at o calendrio. Vejamos. Cinco dias desde que voc Trocou. Toda uma semana em
meu caso. Sabe o que isso significa.
Sabia. Era hora de sair a correr.



FOGUETES

Discutimos se era melhor ir de carro ou a p at os barrancos Embora fosse uma
longa caminhada, nenhum dos dois se incomodava de caminhar. Era a caminhada de
volta logo depois de uma corrida exaustiva o que no parecia to atraente. Quase
tnhamos combinado de ir de carro quando mencionei que o automvel era de Philip e
Clay decidiu que era uma noite to bela que seria um crime no caminhar. No discuti. O
automvel de Philip geralmente era um estorvo. Encontrar um lugar no estacionamento
perto dos barrancos no era fcil e sempre me preocupava com a possibilidade de me
multarem ou se roubassem o automvel e tivesse que explicar a Philip o que estava
fazendo nesse lugar no meio da noite.
Era meia-noite quando chegamos aos barrancos. Separamo-nos. Eu encontrei um
bosquezinho e me despi. Ao comear minha Mudana, de repente senti uma sensao
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que nunca havia sentido antes, ao menos em Toronto. Estava me aprontando para minha
Mudana com toda a preparao mental que necessitaria para escovar meus dentes,
Enquanto meu crebro estava ocupado com outras idias, meu corpo ficava em posio,
como se o que fazia fosse coisa mais natural do mundo. Agora, passados dez anos, a
rotina devia torna-se bastante automtica e assim era... quando estava com a Matilha ou
em Stonehaven. No que doesse menos, mas mentalmente a transio era mais
tranqila. Eu era humana e imediatamente em seguida loba. Nada importante. A final
de contas sou uma mulher loba. Mas Trocar em Toronto era algo diferente. Em noventa
e cinco por cento do tempo vivia como qualquer ser humano normal. Levantava-me, ia
para o trabalho, voltava de metro para casa, comia, passava a noite com meu namorado e
ia para cama. Uma rotina perfeitamente normal interrompida pela necessidade ocasional
de me converter em loba, correr pelo bosque, caar um coelho e uivar Lua. A
justaposio era to impactante que freqentemente chegava aos barrancos, tirava a
roupa e ficava parada ali nua pensando:
O que o que se supe que estou fazendo? Quase pensava que ficaria de joelhos,
tentaria me concentrar em Trocar e no acontecia nada... exceto possivelmente que
despertaria dentro de uma camisa de fora com um lindo doutor me dizendo pela
milionsima vez que gente no pode se converter em lobo.
Quando comecei a me preparar essa noite, parecia perfeitamente natural. O que
provavelmente tinha muito que ver com que Clay estivesse ali. Ele era como uma ponte
entre dois mundos. Se ele estava ali, eu no podia esquecer o que era. No que fosse
uma grande surpresa. O chocante que no me importava, inclusive eu gostava. Tentei
reprimir esse aspecto de minha natureza por tanto tempo, convencida de que tinha que
me converter em outra coisa para caber no mundo humano. Agora comeava a ver a
possibilidade de outra opo. Possivelmente Clay tivesse razo. Possivelmente estava
complicando a vida mais do que o necessrio. Clay estando perto, era quase impossvel
manter a personalidade humana da Elena. Comportava-me como de costume: agressiva,
cheia de vontades e argumentos. Inclusive no trabalho e com Philip, parte disso saiu
superfcie essa semana. E ningum parecia notar a diferena ou, se o notavam, no se
importavam. Possivelmente no tivesse que ser a boa Elena, amvel, recatada e
silenciosa. No que devesse explodir de ira quando Philip deixasse o assento da
privada levantado ou golpear aos estranhos que me pisassem no metro, mas
possivelmente no tivesse que retroceder cada vez que Philip se zangasse ou sorrir
docemente quando algum bbado me pisasse pela dcima vez. Se permitisse que mais
aspectos de minha personalidade normal se mesclassem em minha personalidade
humana", possivelmente viver no mundo humano seria mais simples, at poderia
parecer mais natural. Talvez essa fosse chave.
Os arbustos se moveram, me trazendo de volta a realidade. Vi uma parte da pele de
Clay. Fez um grunhido impaciente. Ri e voltei a me pr em posio para iniciar minha
Mudana, pensando no quanto era estranho que a pessoa que mais odiava o mundo
humano pudesse ser a que mais me ajudava a viver dentro dele. No era exatamente o
que Clay queria. Mas ento por que me ofereceu seu conselho? Duvidei, pensando nisso
um tempo. Ento Clay voltou a grunhir e colocou o focinho por entre os arbustos.
Um momento disse . Espere um pouco.
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Sacudi a cabea para me avivar, logo me preparei para a Mudana.

Depois de correr, voltamos a Trocar e ficamos em uma clareira sobre o pasto,
descansando e falando. Era a parte mais escura e silenciosa da noite, j passado um longo
tempo do anoitecer e ainda com muito pela frente at a madrugada. Apesar do afresco,
no nos vestimos. A corrida nos esquentou tanto o sangue que provavelmente
poderamos ficar em uma montanha de neve at o amanhecer sem nos dar conta. Deitei-
me de costas, desfrutando da sensao do vento frio contra minha pele. As rvores nos
ocultavam as estrelas e a Lua. Passava s a luz suficiente para que a escurido no fosse
total.
Tenho algo para voc disse Clay, quando j havamos descansado um tempo.
Procurou algo na escurido, pegou dois arames longos de seu bluso e os agitou sobre
sua cabea.
Levantei-me.
Trouxe estrelinhas?
um fim de semana de foguetes, verdade? Acreditou que me esqueceria de suas
estrelinhas?
Eu adorava as estrelinhas. Bom, provavelmente fosse nica mulher no mundo de
trinta anos que ficava feliz com arames cobertos de sulfureto, mas no me importava. Ao
menos no me importava quando estava com Clay. Ele no sabia que as pessoas adultas
no brincavam normalmente com estrelinhas e eu no pensava em lhe explicar. Uma de
minhas poucas lembranas com meus pais era de uma festa no dia nacional do Canad.
Sabia que era essa festividade porque recordava uma torta com a forma da bandeira.
Tambm vi foguetes, muitos. Escutava msica e risadas. Cheirava a sulfureto e mantas
de acampamento. Recordo de meu pai me entregando uma estrelinha, a primeira de
minha vida. Recordo de minha me danando comigo com os ps nus sobre a grama
molhada, agitando as estrelinhas como varinhas mgicas, rindo e girando, olhando a
faixa de luz de fadas que deixvamos para trs.
Clay pegou fsforos de seu bluso e acendeu a primeira estrelinha. Fiquei de p e
peguei. Saltavam fascas alaranjadas. Elevei-a e risquei uma linha no ar. Muito devagar.
Fi-lo mais rpido e a imagem se manteve uns segundos, uma linha de fogo na escurido.
Girei e olhei o brilho das fascas. Escrevi meu nome no cu, e o primeiro Edesapareceu
antes que terminasse tentei novamente, mais rpido. Esta vez meu nome ficou ali um
instante.
Est acabando-se disse Clay . Jogue-a e pea um desejo.
Isso com as velas de aniversrio disse . Mas no as joga, apaga-as com sopros.
Uma vez as jogou. Com torta e tudo.
Joguei-a em voc. E o desejo que pedi no pode repetir-se.
Clay riu.
Bom, sempre se desfaz das estrelinhas, assim pea um desejo. Uma nova superstio
de mulher loba. A estrelinha se apagou quando movi o brao para trs. Clay acendeu
outra e a entregou. Elevei-a sobre minha cabea e desenhei um oito, Jogo baixei o brao e
dava voltas to rpido que quase tropeo com Clay. Riu e ps uma mo na parte de atrs
de minha panturrilha para me sustentar. Quando recuperei o equilbrio no retirou sua
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mo. Olhei-o, deitado de costas.
Amo-te. disse
Pisquei e fiquei rgida.
Mau momento? disse com um sorriso. Tirou a mo de minha perna. Melhor
assim?
Eu... ia dizer algo e me contive. No sabia o que ia dizer, o que queria dizer.
No estou tentando seduzir voc, Elena a corrida, as estrelinhas, no conduzem a
nada. Nos ltimos dias tentei fazer as coisas fceis para voc. Nada de truques. Nada de
presso. Quero que possa ver as coisas claramente. Quando o fizer, poder escolher.
Escolher o correto.
E isso seria voc.
Mostrou minha estrelinha.
Melhor se apressar j est quase se apagando. a ltima at no prximo dia de
foguetes.
Olhei e vi que quase se extinguia. Olhei as rvores, movi o brao para trs e a joguei
para cima. Saltou ao cu, fez um arco, e logo caiu como uma estrelinha fugaz, Olhei para
Clay. Ele olhava a estrelinha e sorria com tanta felicidade infantil como eu senti enquanto
danava na clareira com minha varinha mgica. Voltei a olhar a luz, fechei os olhos e
pedi um desejo.
Meu desejo foi saber o que queria.



POSSIBILIDADES

Dormimos no bosque at o amanhecer, depois nos vestimos e fomos antes que os
caminhantes e corredores da manh se metessem em nossos domnios. Encontramos um
caf aberto e tomamos o caf da manh no ptio dianteiro. Havia bastante clientela, mas
todos levavam seu caf da manh. Eram pessoas de passagem que queria um caf com
leite e uma bolacha antes de ir trabalhar. Era um dia de trabalho. Ningum tem tempo de
parar ou se sentar. Tnhamos o ptio para ns e o pessoal no nos incomodou ainda
quando j tinha passado uma hora. Estava inclinada para trs em minha cadeira, com os
olhos fechados, tocando minha xcara de caf quente com os dentes, escutando o
contnuo comentrio de Clay sobre o trfico matutino e as pessoas que passavam
correndo.
Parece feliz disse de repente.
Estou disse sem abrir os olhos. Inclinei a cabea para trs e senti o calor do sol em
meu rosto. Sabe, no imagino viver em um lugar sem mudana de estaes.
No?
Estaes de verdade. Sinto saudades da mudana, da variedade. Esquiar no inverno,
caminhar no outono, nadar no vero. E especialmente a primavera. No poderia viver
sem a primavera. Os dias como hoje valem por todas as tormentas de neve e os atoleiros
de barro. Em maro j parece que o inverno no se acabar nunca. Essa neve e esse gelo
que pareciam to maravilhosos em dezembro, deixam-me louca. Mas sabe que vem a
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198
primavera. Cada ano espero esse primeiro dia quente, logo o seguinte e o seguinte, cada
um melhor que o anterior No posso deixar de ser feliz. Se esquecer do inverno e tem a
oportunidade de comear de novo. O mundo est cheio de novas possibilidades.
Um novo comeo.
Exatamente.
Clay duvidou, logo se inclinou para frente, mas se deteve e voltou a recostar-se na
cadeira.

Chegamos ao apartamento depois das nove. J era tarde para ir ao trabalho, mas
estava de muito bom humor para que me importasse. Podia passar trabalhando hora
do almoo ou ficar at mais tarde. No era importante.
Quando amos rumo ao elevador, Clay me falava de um par de valentes que tinham
tentado lhe roubar o automvel quando foi para Nova Iorque no inverno passado.
Quando chegamos ao apartamento, ria to forte que quase caio ao abrir a porta.
Srio? disse ao fechar a porta.
Clay no respondeu. Quando o olhei, no ria. Nem sequer me olhava. Olhava por cima
de meu ombro. Girei e me encontrei com Philip na poltrona, de braos cruzados, com o
aspecto de um pai que ficou acordado toda a noite espera de um menino travesso. Abri
a boca, mas no saiu nada dali. Meu crebro andava a toda velocidade, me perguntando
desde quando havia voltado e que desculpa seria apropriada. Havia voltado pela
manh? Se fosse assim, podia lhe dizer que sai para tomar o caf da manh logo cedo.
Quando entramos, parou.
Quero falar com Elena.
Clay foi para o banheiro. Philip se interps em seu caminho. Clay parou, seus ombros
se retesaram de modo instintivo. Comeou a olhar para Philip, logo se deteve, olhando
mais frente. Tentou esquiv-lo, como se no visse ningum.
Disse que quero falar com Elena disse Philip, com a voz baixa, mas firme . Quero
que saia.
Clay se virou e foi para o sof. Novamente Philip parou diante dele e novamente Clay
se retesou. Fechou os punhos uma vez e depois se relaxou. Philip estava desafiando-o e
lhe custava um enorme esforo ignor-lo. Estava por intervir quando Clay se virou e me
olhou pedindo uma resposta.
Por favor disse.
Assentiu e foi para a porta murmurando estarei l embaixo ao passar junto a mi.
Quando a porta se fechou, virei-me para Philip.
Quando voltou? perguntei.
No fui.
Assim...
Estive aqui toda a noite.
Tentei ganhar tempo, enquanto pensava em uma desculpa.
Ento cancelaram a reunio,
Levantei os olhos.
Menti para voc, Elena disse . Mas queria comprovar se minhas suspeitas eram
equivocadas.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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Voc acredita que Clay e eu...
No. Perguntei-me isso, mas se vocs estavam... fazendo algo, no precisariam deixar
o apartamento ontem noite. Isso no me faz sentir muito melhor. Algo est
acontecendo, mas no o bvio. Philip se deteve. Sabe que est apaixonado por voc,
no verdade?
Quando abri a boca, elevou sua mo.
No continuei . No importa se sabe ou se estar de acordo ou no. assim.
Qualquer um se daria conta, cada vez que lhe olha, como fala com voc. No sei o que
sente por ele. No posso me dar conta. Quando entro em uma sala os dois esto rindo ou
discutindo ou ambas as coisas de uma vez. No o entendo. No entendo muitas coisas
que fez desde que voltou.
Ir embora logo.
Logo no. Hoje
Virou-se e foi para o quarto. Enquanto pensava se devia segui-lo voltou com um
monto de papis. Entregou-me eles. Olhei o primeiro. Era uma folha de uma imobiliria
que apresentava as caractersticas de uma casa em Mississauga. Folheei os papis e
encontrei trs avisos mais de casas nos subrbios.
No fui jogar golfe no domingo, Elena. Estive procurando uma casa para ns.
Quer que mudemos para uma casa?
No, eu... Sim, quero que mudemos para uma casa, mas... Fez uma pausa, cruzou
os braos e os descruzou. Quero dizer que desejo que nos casemos. Isso o que quer
dizer uma casa para mim. Um compromisso, nos casar, ter filhos. Tudo. Isso o que
quero.
Olhei-o fixamente. Philip deu um passo para mim, depois se deteve, cruzando e
descruzando os braos outra vez, como se no pudesse decidir o que fazer com eles.
Surpreende-te tanto? disse brandamente.
Sacudi a cabea.
... to de repente. Clay e eu bebemos e estou um pouco... No estou segura de que
possa
No responda, ento. D-me tempo de comprar um anel e fazer as coisas certas.
Colocou as mos nos bolsos e ficou ali, apesar do que disse, como se esperasse
resposta. Eu no disse nada.
V trabalhar disse , pensa-o.
Ficamos ali, incmodos, ento me afastei. Fui para a porta, vacilei, voltei e abracei
Philip. Abraou-me e me reteve um ou dois segundos depois que o soltei. Beijei-o,
murmurei algo a respeito de que voltaria as sete e fugi.

Fui para trabalho to enjoada que estava surpresa de poder descer na parada correta.
Estava sentada em meu escritrio quando me lembrei de Clay. No estava na entrada do
edifcio quando sa e no o procurei. No demoraria a descobrir que tinha ido ao
trabalho e me segui-la. O que fazer quando ele aparecesse? O que podia lhe dizer? Tirei
as perguntas da cabea. No queria pensar em Clay agora.
Philip me props casamento.
A idia ressuscitou esperanas e sonhos que pensei que tivessem morrido dez anos
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antes. Sabia que no podia me casar, mas a questo se manteve to longe de minhas
possibilidades por tanto tempo que esqueci o quanto desejei isso. Ainda o desejava? A
dor em meu peito respondia minha pergunta. Disse-me que estava sendo tola, antiquada,
dbil. O casamento era para as mulheres que queriam que algum cuidasse delas. No
necessitava disso. No queria. Mas havia coisas que sim queria. Estabilidade.
Normalidade. Um lugar permanente no mundo humano. O casamento me daria isso.
Philip podia me dar isso. Mas eu no posso me casar. Ou posso? Vivemos juntos bastante
tempo. Podia-se manter isso para sempre? Uma voz em minha cabea me perguntou se
queria estar com Philip para sempre, mas a fiz calar. Neste momento a pergunta no era
se queria me casar com Philip, mas sim se era possvel.
Era?
Possivelmente.
Poderia me adaptar melhor se tivssemos uma casa. Poderia me assegurar de que
comprssemos algo perto de um bosque. Podia comear a trabalhar em casa e Trocar no
bosque durante o dia para no ter que desaparecer da cama no meio da noite.
Reapareceu a voz, perguntando esta vez se podia me imaginar Trocando luz do dia,
escapando e fazendo isso precisamente, sem me atrever a correr ou a caar nem
nenhuma outra coisa que pudesse ser muito perigoso de dia. Novamente fiz calar essa
voz. Estava avaliando as opes, no tomando decises.
Talvez pudesse continuar ocultando meu segredo de Philip, mas queria faz-lo?
Embora nunca tivesse sentido a necessidade de lhe dizer a verdade, isso podia mudar
com o tempo. Talvez algum dia me pesasse tanto engan-lo que j no pudesse suportar.
Lembrei de Clay quando ramos noivos e era bvio que havia se sentido terrivelmente
incmodo. Como eu reagiria se Clay tivesse me dito a verdade? Teria aceito ele. Amava-
o tanto que no me importaria. Philip dizia que me queria, mas me amava tanto? Por
mais que me quisesse, talvez no conseguisse dirigir o assunto. Embora aceitasse o que
sou, Sentiria-se ressentido por tantas mentiras? Defendi-me, insistindo em que no
houve alternativa. Por mais que quisesse ao Philip, teria sido impossvel lhe dizer a
verdade. Ento por que continuava zangada com Clay por ter mentido para mim? Deixei
de lado essa pergunta. Tratava-se de Philip, no de Clay. No era o mesmo. Eu no
morderia Philip. A idia era impensvel. E o que aconteceria se ele quisesse, se quisesse
unir-se a mim? Senti um calafrio. No. Nunca. Nem que ele quisesse. Essa era uma parte
de minha vida da qual no queria que Philip fosse parte.
O telefone soou em meu escritrio. Antes de atender, j sabia em estava ligando. Sabia
e atendi.
Onde est? Disse Clay a modo de saudao.
No trabalho.
Ficou calado um momento.
uma pergunta estpida Se ligo para seu trabalho e atende, deveria estar claro onde
est. Surpreende-me que no zombe de mim por isso.
No disse nada.
O que aconteceu? perguntou.
Nada.
Carinho, cada vez que deixou passar a oportunidade de zombar de mim foi porque
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aconteceu algo ruim.
No nada.
Outra pausa.
por esses papis. Os das casas. Vi-os na mesa quando fui procurar voc.
Esperava isso verdade?
No respondi. Clay afastou o telefone da boca e amaldioou. A linha chiou e fez rudos
como se ele sacudisse o fone. Escutei uma batida e chiados. Depois silncio. Ia desligar
quando voltou a voz de Clay, abafada e depois clara.
Bem disse . Bem. Aspirei profundamente e o som chegou at mim pela linha.
Temos que conversar. Em para ai em seguida e falaremos.
Outra vez no respondi.
Temos que conversar repetiu . Nada de truques. Prometo e vou manter isso, Elena.
Nada de truques. J no quero ganhar dessa maneira. Vamos para um lugar pblico,
onde se sinta cmoda, e conversaremos. Escute-me e depois pode ir quando quiser.
Bem.
Quero dizer eu sei... deteve-se . Est bem?
o que disse.
Vacilou, depois continuou.
Bom. D-me dez minutos, quinze no mximo. Pegarei o metro e vejo voc na porta
do edifcio.
Desligou sem esperar resposta.

Nem bem desliguei, desci as escadas. Ao sair me perguntei o que fazia ali. Por que
aceitei me encontrar com Clay? O que esperava que me dissesse? Philip props
matrimnio? Que bom querida, me alegro tanto por voc. Mas no voltei a entrar. No
serviria de nada. No podia me esconder. No queria me esconder. No tinha que ter
necessidade de me esconder.
O estmago comeou a me incomodar. Ansiedade. Fechei os olhos e tentei me
tranqilizar, mas senti mais nauseias. O cho comeou a mover-se. Tropecei para um
lado, logo me endireitei rapidamente, tentando ver se algum o tinha notado. Meu corpo
se endireitou de repente, tenso, alarmado. Olhei em redor; mas no vi nada fora do
comum. Quando estava me virando para olhar para trs, senti um enjo. Tudo se
obscureceu.
Um homem maduro me sustentou quando caa. o que suponho. Estava parada no
caminho, enjoada, e imediatamente estava reclinada para trs, olhando o rosto
preocupado de um estranho. Meu salvador e sua esposa me levaram a um banco e me
fizeram sentar. Disse algo sobre no ter tomado o caf da manh. Asseguraram-se de que
estava bem, conseguiram que lhes prometesse que ia comer algo e que sairia do sol e
depois se foram.
Fui ao vestbulo do edifcio, fiquei parada e olhei o relgio. Tinham passado quinze
minutos desde que Clay me ligou. Tinha que estar por ligar em qualquer momento. O
estmago ainda me incomodava. Evidentemente era angstia, mas no podia encontrar a
causa. Com certeza, minha cabea dava voltas desde que Philip me props casamento e
no queria falar com Clay, mas por algum motivo a angstia no parecia vinculada com
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
202
nenhum desses fatores. Flutuava ali, estranhamente desconectada e distante,
Voltei a pensar em Clay. Prometeu-me que no ia vir com truques. Esse compromisso
ia durar enquanto ele obtivesse o que queria. Se eu decidisse me casar com Philip ou
quisesse ficar com ele, Clay ficaria louco e se esqueceria de todas suas promessas. Sabia
mas, para minha surpresa, no tinha medo. Depois de tantos anos, conhecia to bem suas
manobras que j no resultavam efetivas. Algo que ele tentasse, eu poderia antecipar.
Estaria preparada. Ele me disse ontem noite que eu tinha que escolher. Era certo. Tinha
que tomar uma deciso e no ia lhe permitir que a tomasse por mim.
Em algum lugar um relgio bateu as onze. Olhei meu relgio. Eram as onze. Clay
havia ligado as dez e trinta e cinco. A angstia saiu superfcie. Vinte e cinco minutos
era razovel. Possivelmente no pde suportar o metro e decidiu caminhar. Aconteceu
algo ruim, sussurrou-me a voz interior de antes. No. respondi-lhe. No. No
aconteceu nada.
Esperei mais dez minutos. Pensei em voltar para o escritrio e esperar, mas no pude.
A angstia aumentava e o meu estmago dava voltas. 'Tinha que ir ao apartamento.



DESCOBRIMENTO

Quanto tentei abrir a porta do apartamento, bati em algo e ricocheteei. Voltei a
empurrar a porta. Abriu-se alguns centmetros e se travou. Empurrei mais forte. O que
estava ali era pesado, mas se movia, esfregando-se contra o tapete. Olhando para baixo,
vi uma perna estirada no cho. Coloquei-me pela abertura estreita, quase tropeando
com a perna.
Era Philip. Estava atirado ao cho. Ao olh-lo, meu crebro se negou a registrar o que
via. Fiquei ali, olhando estupidamente, pensando perversamente, no "ai Deus... a no
ser como chegou ali". Inclusive ao ver o sangue que caa de sua boca, e a longa marca no
tapete, meu crebro s aceitava explicaes simples e ridculas. Desmaiou? Teve um
ataque do corao? Um enfarte? Um ataque de outra coisa? Ainda confusa, ajoelhei a seu
lado e comecei a fazer o bsico em primeiros socorros. Estava consciente? No.
Respirava? Sim. Pulso? Nem forte nem fraco. Elevei seus braos, mas no sabia o que
queria verificar. Ao subir a camisa, meus dedos roaram seu flanco e se afundaram em
uma grande ferida. Retirei a mo e olhei meus dedos ensangentados.
Clay.
Arqueei-me; separei-me de Philip como se temesse manch-lo e vomitei blis no tapete.
A comoo passou em um segundo e comecei a tremer, alternando entre o temor e a ira.
Clay fez isto. No, no pode ter feito. Sim, pode, mas no o fez. No? Por que no? O que
o deteria? Eu no estava aqui para impedi-lhe. Mas no faria algo assim. No a mim. Por
que no? Porque se comportou bem alguns dias? Tinha me esquecido do que ele era
capaz? No disto. Isto no. Clay no atacava aos humanos. A menos que representassem
uma ameaa. Mas Philip no sabia o que ns ramos, assim no era perigoso para a
Matilha nem para nosso modo de vida. Possivelmente no para o modo de vida da
Matilha, mas sim para o de Clay...?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
203
Philip se moveu. Fiquei de p de um salto, recordando de repente que tinha esquecido
o principal dos primeiros socorros. Corri ao telefone, peguei-o e disquei o nmero de
emergncias, 911. Demorei alguns segundos para notar que no escutava nada. Apertei o
boto vrias vezes e voltei a discar. Nada. Silncio. Olhei para baixo. O fio estava
enroscado na pena da mesa, cortado, e os cabos coloridos do extremo soltos. Algum
cortou o fio. Soube ento que no foi Clay quem fez isto a Philip. No que no fosse
capaz de fazer isto a Philip, mas sim que no o deixaria sangrar lentamente. Esse
sadismo no correspondia com a natureza de Clay.
Corri ao guarda-roupa do corredor e o abri. A pasta de Philip estava no lugar habitual
e seu celular dentro dela. Disquei o 911 no celular. Disse a operadora que meu namorado
estava ferido e inconsciente, que voltei para casa e o encontrei assim e no tinha idia se
estava muito ferido ou como tinha acontecido. No soube se acreditou em mim e no me
importava. Anotou o endereo e prometeu uma ambulncia. Isso bastava
Fui at o guarda-roupa, peguei um lenol e o rasguei em tiras. Enquanto enfaixava o
flanco de Philip, aproximei-me o suficiente para cheirar quem lhe fez isto. O aroma que
me chegou de sua roupa no foi o de Clay, mas sim o de algum que conhecia. E seu
aroma me surpreendeu. Thomas Le Blanc. Perguntei-me como me encontrou, onde
estava, se voltaria, mas no passei muito tempo com perguntas nem com respostas. A
primeira prioridade era Philip. Ento teria que encontrar Clay para dizer-lhe.
Verifiquei a respirao e o pulso de Philip novamente. Continuava igual. Inclinei-me
sobre ele, embalei seu pescoo em uma mo e comecei a elev-lo para ver se tinha mais
feridas nas costas. Ao me acocorar, vi algo sob a mesa do corredor. Uma seringa. Senti
alarme novamente. Le Blanc tinha injetado algo em Philip? Tinha o envenenado? Corri
at a mesa. Estava por me inclinar para pegar a agulha quando vi o anel sobre a mesa.
Um anel de ouro to familiar que soube o que era sem me aproximar mais. A aliana de
casamento de Clay. Debaixo dela havia um pedao de papel com uma nota escrita mo.
Por um instante, pensei que Clay tinha tirado a aliana, que chegou antes que Le Blanc,
tirou a aliana, escreveu a nota, depois me deixou. Alguma emoo comeou a brotar em
mim, mas antes que pudesse analis-la, percebi que essa no era a caligrafia de Clay.
Minhas mos comearam a tremer. Peguei a nota. A aliana rodou. Consegui pega-la
antes que casse no tapete e a senti fria. Li a nota.

Elena.
Motel Big Bean Citano 211. Quarteiro - A as 10h00min.
D.

Senti-me desfalecer. Ao me inclinar para pegar a seringa, j sabia o que ia cheirar. O
aroma de Daniel no mbolo. E o de Clay na agulha
No sussurrei.
Tirei o mbolo e farejei. Um forte aroma de remdio, mas no soube de qu . Veneno,
no, disse-me. Daniel no usaria veneno. Le Blanc talvez sim, mas Daniel no. Se fosse
veneno, deixaria Clay e no s sua aliana. A aliana e a nota era um sinal. Clay
continuava com vida. Continuava vivo? A idia me atravessou como uma faca gelada,
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
204
no que estivesse vivo, mas sim tivesse que pensar sequer nessa alternativa, que tivesse
jamais que pensar nessa alternativa.
Ai Deus sussurrei e vacilei, pegando na mesa para no cair.
Acalme-se, disse-me. Clay est bem. Daniel lhe deu algo para desacord-lo. Por isso
me senti enjoada mais cedo, uma manifestao do vnculo emptico entre ns. Daniel
drogou Clay e o levou, mas est bem. Se no, eu saberia. Ai Deus, como desejava saber
que estava bem. Voltei a olhar a nota. Um encontro. Daniel tinha Clay e queria que me
encontrasse com ele as dez no Bear Valley. E se no aparecesse...
Deixei o papel cair e corri para a porta. O corpo de Philip continuava bloqueando a
passagem.
Sinto sussurrei . Sinto muito.
Inclinei-me para pux-lo. Quando o toquei, seus olhos se abriram e sua mo segurou
meu pulso.
Elena? Disse, olhando confuso, sem poder me focalizar com os olhos.
Ficar bom disse . Chamei uma ambulncia.
Havia um homem... Dois homens...
Sei. Feriram-lhe, mas ficar bom. Uma ambulncia est vindo.
Perguntavam por voc... No disse a eles. Depois Clayton... Lutou com eles...
Sei comeava a haver pnico em minha voz. Tinha que ir. J. Vou descer para
esperar a ambulncia.
No... Podem estar aqui ainda... procurando voc...
Tomarei cuidado. Tentei tirar os dedos de Philip de meu pulso, mas ele apertou.
Usando a menor fora possvel me liberei, depois fiquei de p. Ele se levantou alguns
centmetros e voltou a cair; bloqueando a porta. Ps uma mo em mim perna
No disse novamente No pode ir.
Tenho que faz-lo,
No!
Seus olhos ardiam de febre e dor. Senti angstia, Eu tinha feito isto a ele. Tinha que
ficar e ajud-lo. Se ficasse zangado comigo, a coisa ia ficar pior. Alguns minutos no
mudariam nada. Apertei as mos. Com a aliana apertada na palma direita me endireitei.
s dez. Tinha que chegar s dez. Tinha que ir agora, Philip disse algo, mas no o escutei.
Dominei meu pnico.
Tinha que ir. Tinha que ir j.
Tentei raciocinar, me acalmar, mas era muito tarde. Meu corpo j respondia ao medo.
Uma sacudida de dor me dobrou ao meio. Fui consciente de que a aliana de Clay caa ao
piso, de que Philip se inclinava sobre mim, dizendo algo. Minha cabea se afundou em
meu peito. Fiz um alarido que me machucou a garganta. Sufoquei-me. Tentava respirar
enquanto caia para frente, meus braos se estenderam para amortecer a queda. Philip me
puxou pelos ombros. Tentei me afastar, com a cabea encurvada, mas minhas pernas
tiveram um espasmo e minha cabea se derrubou para trs. Atravs da bruma da dor vi
o rosto de Philip diante de mim, vi seus olhos, vi a repulso e o horror. Soltou-me e
cambaleei para trs. Fique de quatro, me afundando em mim mesma. Minhas costas se
elevaram. Minha camisa rasgou. Voltei a uivar, um uivo de outro mundo. A Mudana
acontecia to rpida e com tanta fora que no podia sequer pensar em det-la. Meu
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
205
crebro deixou de funcionar. Ficou em branco, cheio de temor e agonia, Meu corpo se
convulsionou uma e outra vez, com ataques to fortes que temia me romper em duas e
no me importei, consciente de que terminaria com a dor. Ento terminou.
Levantei a cabea e soube que era loba. Houve um momento de cansao total que
desapareceu rapidamente. Em seu lugar senti pnico e terror. Levantei os olhos. Philip
jazia a alguns passos. S podia ver seus olhos me olhando com horror impotente.
Girei, atravessei correndo a sala, fechei os olhos e me lancei atravs das portas que
davam ao balco. O vidro explodiu. Pedaos de vidro quebrado atravessaram minha
pele, mas apenas os senti. Sem pensar nem me deter, saltei o corrimo do balco. Por um
tempo estive no ar. Depois bati na grama trs pisos mais abaixo. Torci a pata esquerda.
Senti dor na perna. Algum gritou. Eu corri.
Dei a volta no edifcio e entrei na garagem subterrnea. Escondida atrs do primeiro
automvel, detive-me para escutar se me seguiam. No vinha ningum. Sacudi-me e
tentei me tranqilizar e me concentrar. Embora ningum me perseguisse, estava presa.
Enquanto estivesse ansiosa e cheia de pnico, no estava segura de poder Trocar. E se
conseguisse estaria nua em uma garagem. Possivelmente pudesse conseguir roupas. E
ento? Minha carteira com dinheiro, os cartes e a identificao estavam no apartamento.
Sem essas coisas no poderia sair de 'Toronto. No s necessitaria de roupa, mas tambm
de voltar ao apartamento. Mas no podia faz-lo. Philip tinha me visto e a ambulncia
chegaria a qualquer momento. Possivelmente se esperasse... Quanto tempo? Quando
poderia voltar? Quanto demoraria a encontrar roupa? A nota de Daniel. 10 da manh. A
hora limite. A ansiedade voltou a surgir, desalojando todo pensamento racional.
Vai.
Vai agora.
Vacilei s um momento e logo obedeci.

Andei pelos becos de Toronto quando podia e por caminhos laterais quando no
podia. Viram-me. Sabia, mas no importava. Continuei correndo. Quando sa de
Toronto, corri por campos e bosques. obvio que minha corrida no tinha sentido.
Melhor que tivesse ficado na garagem, para voltar ao apartamento logo depois de uma
hora ou algo assim e pegar um avio a Nova Iorque. Mas isso no me ocorreu. Cada fibra
de meu ser se rebelou ante a idia de esperar. O instinto me dizia que devia agir e o fiz.
Meu crebro se apagou enquanto corria, os instintos dominavam meus msculos.
Horas mais tarde cheguei a um obstculo que no podia dirigir s por instinto: o
cruzamento fronteirio das cataratas do Nigara. Passei quase uma hora dando voltas
atrs de um depsito, com as idias escorregando em minha mente como um automvel
com rodas gasta que giram em vo sobre o gelo. Finalmente me controlei o suficiente
para analisar o problema e encontrar uma soluo. Havia uma imensa fila de caminhes
sobre a ponte, cumprindo alguma nova norma de ingresso nos Estados Unidos. Graas
burocracia, tive tempo de escolher um caminho com uma carroceria coberta por uma
lona e me escondi ali. Por sorte no verificaram a carga na fronteira e o caminho
continuou sua viagem de Nigara em Ontrio a Nigara em Nova Iorque. Fiquei no
caminho at que saiu da cidade e se dirigiu ao sudeste. Minhas vsceras me gritavam
que era a direo errada e me encontrei saltando do caminho antes que meu crebro
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
206
tivesse tempo de protestar. Bati forte contra a corda e ca do lado da rua. Quando fiquei
de p, a pata que machuquei ao saltar do balco cedeu. O estmago me avisou com um
grunhido que era noite e que tinha pulado duas refeies. Pensei em ir um pouco mais
lento, procurar um bosque e caar meu jantar, mas o pnico seguia me dominando e me
impedia toda forma de raciocnio superior. Corre, dizia o pnico. E assim o fiz.
A noite s me empurravam o temor e a inrcia. Por mais fome que tivesse, estava
segura de que se parasse, no voltaria a correr. As dez", gritavam minhas vsceras cada
vez que pensava em parar para descansar ou comer As dez. Se parar um segundo,
no chegar. E se no chegar...", neguei-me a pens-lo. Era mais fcil continuar correndo.
Devia ser perto da meia-noite quando senti um terremoto em minha cabea e ca na
grama. Ao me levantar voltei a sentir o rugido. Choraminguei, baixei a cabea e a sacudi
para me arranhar a orelha direita com a pata dianteira. Tenho que correr. No posso
parar. Lancei-me para frente.
"Elena!", o rudo em minha cabea se converteu em uma voz e em uma palavra.
Jeremy. Sua voz rugiu outra vez e me partiu o crnio com sua intensidade. "Elena! Onde
est?
Baixei a cabea e choraminguei. Vai Jeremy. Vai. Faa com que eu pare, No posso me
deter.
Onde est Elena? No pude me conectar com Clay. Onde demnios est?
Tentei responder, ao menos para que se calasse, mas meu crebro no podia formar
palavras, s imagens. Jeremy ficou calado e eu fiquei ali, aturdida e me perguntando se o
tinha escutado. Estava alucinando? Estava acordada, no verdade? Jeremy no podia
contatar-se conosco quando estvamos acordados. Estava dormindo ou estava ficando
louca? No importava as dez, as dez, as dez. No chegar. Corre.
Cambaleei e voltei a correm. Logo comecei a deixar de pensar. Continuava em
movimento, mas tudo se desvanecia. Tinha as pernas intumescidas. Podia cheirar o
sangue que emanava de minhas patas. Um instante o cho era como uma cama de pregos
sob minhas patas, no seguinte era como algodo e eu flutuava, correndo mais rpido que
o vento. De repente era de dia e logo depois de noite novamente. Corria por uma cidade.
No, corria por Toronto, com a torre da CNN distncia. Escutei vozes. Um grito. Uma
risada. A risada de Clay. Tentei ver na escurido. A bruma vinha do lago Ontrio, mas
podia ouvi-lo rir. O cimento se tornou pasto. A bruma no vinha do lago, mas sim da
lagoa. Nossa lagoa. Estava em Stonehaven, correndo pelos campos. Clay corria diante de
mim. Podia ver sua pele dourada saltando entre as rvores. Esforcei-me e corri mais
rpido. De repente se acabou a terra. Estava correndo no ar. Logo caa. Continuei caindo.
Tentei me afirmar em algo, mas no havia nada mais que uma escurido total. E logo
nada.


ENJAULADA

Despertei com uma sensao de frio. Tremendo, senti a grama molhada sob minha
pele nua. rvores. Pastos altos. Um prado. Tentei levantar a cabea, mas no pude. Clay.
Foi meu primeiro pensamento, mas no sabia por que. Estive correndo com ele? No
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
207
podia cheir-lo. Por que no podia levantar a cabea? No havia nada que me impedisse
isso. Meus msculos se negavam a responder. Estava morta? Morte. Clay. Recordei e
minha cabea se levantou de repente. Senti uma dor cegadora em todo o crnio.
Algo quente e suave caiu de meus ombros. Levantei-me, gemendo de dor ao me
mover. Tinha um bluso sobre meu torso nu, com um aroma to familiar, mas to
impossvel. Sonhava? Alucinava? Senti mos que me puxavam de abaixo para me
levantar, e eram to familiares como o aroma do bluso.
Elena?
Um rosto inclinado sobre o meu. Jeremy, com o cabelo escuro caindo sobre o rosto
molhado os jogou para trs com mo impaciente. No era possvel. No aqui. Fechei os
olhos.
Elena? voz mais forte agora, preocupada.
Tentei me mover, mas doa muito. Decidi me abandonar alucinao e abri um olho.
C... tentando lhe perguntar como ele chegou at aqui C... No saa nada mais.
No tente falar disse E no tente se mover. Vou carregar voc at o automvel.
Est ali.
C.. Cl...
Tm-no, no verdade? Senti que seus braos me apertavam.
D... dez..., s... consegui dizer e perdi os sentidos novamente.

Esta vez despertei sentindo um calor artificial que soprava sobre meu rosto. Escutei o
zumbido de um motor, senti as vibraes e os pequenos saltos de um automvel
andando sobre um caminho plano. Cheirei couro velho e me acomodei sob o bluso que
me cobria. Estirei as pernas, mas a dor me fez soluar e as contrair.
Muito calor? a voz de Nick. Senti que seu brao passava sobre mim e sua mo
acomodou o ralo de ventilao para que no batesse em meu rosto.
Est acordada? Jeremy perto. Na frente. No assento dianteiro.
No estou seguro disse Nick . Provavelmente pode diminuir o calor para que
recupere as cores.
O clique de um dial
10
. O sopro se reduziu a um zumbido grave. Abri um olho e logo o
outro. Estava reclinada em um dos assentos do meio do Explorer, com a janela a
centmetros de meu rosto. A paisagem e os automveis passavam a toda velocidade. Se
movesse os olhos, podia ver a cabea de Antnio que conduzia Seus olhos me
procuraram pelo espelho retrovisor.
Est acordada disse.
Soltou-se um cinto de segurana. O roar de tecido jeans na capa de tecido dos
assentos. Nick se inclinou sobre mim.
O calor est bom? perguntou . Necessita algo?
Ho Ho
No fale Elena disse Jeremy . Pegue a garrafa de gua da geladeira, Nick, Est
desidratada. Deixa-a sorver um pouco, mas no muito.
Nick procurou na geladeira. Ento senti uma fibra de plstico nos lbios. Recuei e

10
Dial = mostrador de um instrumento
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
208
apenas neguei com a cabea que se encheu de relmpagos.
Ho... ..... ......... ra Qu... ho... ra.
Que hora? Nick aproximou seu rosto do meu, confuso.
Que horas so? isso o que perguntas?
Assenti e houve uma chuva de fascas ardentes em meu crnio. Nick continuou
confuso, mas olhou seu relgio.
Onze e vinte... quase onze e trinta.
No! levantei-me de repente . No!
Nick se virou de repente. O Explorer se cruzou e Antnio amaldioou, logo voltou a
endireitar o volante. Lutei por sair de baixo do bluso de Jeremy.
Elena a voz de Jeremy e vinha do assento dianteiro, calma e firme . Est bem,
Elena. Acalma-a Nick, antes que d a seu pai um ataque de corao.
Surpreendeu-me disse Antonio . Nick se assegure...
No escutei o resto, Liberei-me do bluso e o joguei para um lado, depois abri com
estupidez o cinto de segurana, cada movimento produzia uma dor insuportvel, mas
no me importava. Chegava tarde. Tinha que ir. Tinha que chegar. Agora.
Nick pegou o cinto de segurana, mas eu j o tinha aberto e o tirava de mim. Nick me
puxou pelos ombros.
No! gritei e tirei suas mos de cima de mim.
Pegou novamente, mais forte desta vez. Lutei, lhe mostrando os dentes e arranhando-o
onde pudesse.
Parem o automvel Parem agora.
O Explorer desacelerou, como se Antnio tentasse decidir o que fazer.
No pare disse Jeremy Est delirando. Continue. Nick lutava por me manter no
assento, com rosto decidido. Senti um rudo adiante. Por cima do ombro de Nick vi
Jeremy descer de seu assento. Juntei fora e controle e golpeei Jeremy no estmago.
Abriu os cotovelos e se dobrou. Horrorizei-me de mim mesma, mas no me importava, a
febre em meu crebro incinerava qualquer sentimento consciente. Tinha que escapar.
Chegava tarde. Nada mais importava.
Afastei Nick e me lancei para a porta do outro lado. Peguei o trinco, abri-a e olhei para
baixo. Via passar o asfalto como um borro cinza. Nick gritou. Os freios chiaram. O
Explorer virou direita. Eu ia saltar. Dois pares de mos me pegaram, um pelas costas, o
outro pelos ombros, e me arrastaram ao interior. Senti as mos de Jeremy que foram a
meu pescoo, logo a presso no lado de minha garganta e novamente a escurido.

Despertei com uma lembrana. Doa-me cada parte de meu corpo. Tinha Trocado
ontem noite. A lembrana era vaga, um monto de imagens: dor, temor, ira, descrena.
Mas no estive correndo atravs do estado de Nova Iorque. Tinha Trocado em uma cela
de trs por dois, minhas mos e ps amarrados. Minha stima Mudana. Por volta de
sete semanas que estava neste lugar. No tinha idia de que dia era, mas sabia quantas
vezes tinha acontecido essa tortura e me servia para determinar o tempo. Quando
despertei, seguia na jaula. Estive ali cinco semanas, cinco Mudanas desde que o homem
deixou de tentar me manter na casa. Sabia seu nome: Jeremy; mas no o usava, nem com
ele, nem quando pensava nele. Negava-me a falar com ele. Em minha mente
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
209
simplesmente era ele ou o homem, uma designao livre de idia e emoo.
Despertei sentindo o tecido rugoso do colcho. Tive lenis, lenis suaves e um
cobertor. Ento ele me encontrou fazendo tiras deles e pensou que eu ia me enforcar.
No era assim. No lhe daria o prazer de me ver morta e livrar-se de mim. Rasguei os
lenis pelo mesmo motivo que destru os livros e revistas que me trouxe, a roupa que
trouxe para que me vestisse, os lindos quadros que ps nas paredes de pedra. No queria
nada dele. No queria aceitar nada que fizesse parecer com esta jaula era algo distinto do
buraco imundo que era. Quo nico aceitava era a comida e comia s porque tinha que
ter fora para escapar. Isso era o que me mantinha viva, a idia de escapar. Logo voltaria
para a cidade, s pessoas que poderia me ajudar, me curar.
Abri os olhos e vi uma figura na cadeira fora da jaula. No princpio pensei que era ele.
Ficou sentado ali a maior parte do dia, me olhando e falando comigo, tentando lavar
meu crebro com a loucura que saltava de seus lbios. Quando pude ver, a figura se
esclareceu, um homem inclinado com os cotovelos sobre os joelhos, seus cachos
dourados brilhando sob a luz artificial. A nica pessoa a quem odiava mais que ao
homem. Rapidamente Fechei os olhos e fingi dormir, mas era muito tarde. Tinha me
visto. Ficou de p e comeou a falar. Quis tampar os ouvidos, mas no servia de nada.
Agora escutava muito. Embora pudesse bloquear as palavras, sabia o que estava me
dizendo. Dizia o mesmo cada vez que vinha, s escondidas quando sabia que o homem
no estava. Tentou explicar o que fez e por qu. Pedia desculpas. Pedia-me que me
acalmasse e obedecesse ao homem para poder sair da jaula. Queria que falasse com o
homem, que lhe pedisse que revogasse seu exlio para que pudesse voltar para me
ajudar. Mas havia uma s maneira que ele podia me ajudar. Cada vez que vinha, cada
vez que jurava que faria algo para compensar o que tinha feito, dizia-lhe o mesmo. A
nica coisa que lhe dizia. Cure-me. Desfaa o que fez.
Clay.
O som de minha voz me despertou. Estava nua, olhando um abajur em um teto de
cimento caiado. Girei a cabea e vi paredes de pedra. Nenhuma janela. Nenhum
ornamento. Senti o colcho que me sustentava. Jaula?
No sussurrei . No.
Girei a cabea e vi as barras. Havia algum sentado em uma cadeira do outro lado.
Meu corao deu um salto. Ento a figura ficou de p, seus olhos negros fixos nos meus.
No voltei a sussurrar enquanto me sentava. Caralho, no.
Tive que faz-lo, Elena disse Jeremy . Temia que fizesse mal a si mesma. Agora, se
estiver sentindo-se melhor...
Lancei-me contra as barras. Jeremy se afastou, precavido, mas no surpreso.
Deixe-me sair! gritei
Elena, se...
No entende!
Sim entendo. Daniel tem ao Clay. Apanhou-o em Toronto. Queria que estivesse no
hotel hoje s dez. Falou em sonhos no caminho de volta.
Voc... parei e engoli a saliva . Sabe?
Sim, eu...
Sabe e me mantm presa aqui? Como pde fazer isso comigo? Puxei as barras com
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
210
fora. Como pde faz-lo? Sabia que tinha que ir. Sabia que a vida de Clay estava em
perigo me deixou aqui. Como pde me fazer isso?
O que acredita que Daniel pensava fazer, Elena? Pegar voc e soltar Clay? obvio
que no. Se for para l, perdemos aos dois.
No me importo!
Jeremy esfregou o rosto com uma mo.
Sim se importa, Elena. Est muito emocionada para pensar com lgica...
Lgica? Lgica? Realmente frio assim? Voc o criou. tudo para ele. Passou a vida
protegendo voc. Arrisca sua vida para proteger voc, arrisca-a continuamente por voc.
E voc fica tranqilo, avalia com lgica a situao e decide que no vale a pena arriscar-
se para salv-lo.
Elena...
Se estiver morto, sua culpa.
Elena!
minha culpa. Se estiver morto ser porque no cheguei a tempo...
Jeremy pegou meu brao passando suas mos entre as barras, seus dedos pareciam
chegar at meus ossos.
Basta, Elena. No est morto. Sei que est preocupada, mas se acalme...
O qu, me acalmar? Diz que estou histrica?
Acalme-se e pense e saber que Clay no est morto. Pense. Daniel sabe o quanto
Clayton importante para a Matilha. Para voc. Para mim. um refm muito valioso
para mat-lo.
Mas Daniel no sabe por que no apareci. Possivelmente pensa que no nos
importamos, que abandonamos Clay, que o demos por morto.
Daniel sabe que no assim. Mas para me assegurar, enviei-lhe uma nota. Deu-me
uma caixa postal para que contatasse com ele na semana passada quando me exigiu que
entregasse voc. Tnio e Nick deixaram uma carta dizendo que no permitamos que
voc fosse nessa hora, mas que estou disposto a negociar desde que no machuquem
Clay. Estou seguro de que Daniel j sabe, mas queria deixar-lhe bem claro. No vou
correr nenhum risco com a vida de Clay, Elena.
Em algum nvel sabia que Jeremy tinha razo. Mas no me tranqilizava. Continuei
pensando, E se estivesse equivocado? E se algo saiu errado e Clay nem sequer chegou a
Nova Iorque? E se despertou e lutaram e estava jogado em um lixeiro em alguma parte?
E se Daniel no pudesse resistir oportunidade de destruir a seu inimigo de toda a vida
enquanto o tinha drogado e impotente? E embora Daniel conseguisse controlar-se, o que
acontecia com Lhe Blanc? J tinha demonstrado que no se importava com o que
pensava Daniel. Se Clay provocasse Le Blanc, este o mataria. Embora Clay no fizesse
nada Le Blanc, podia mat-lo sim. Enquanto me passavam tantas possibilidades pela
cabea, minhas pernas doloridas cederam e cai sobre o cho, ainda agarrada as barras.
No me alertou disse .
Jeremy se agachou e ps uma mo sobre a minha.
No alertei voc de que, corao? perguntou suavemente .
No pensei. Teria que saber.
Saber o qu?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
211
Que ele tambm estava em perigo. Ele cuidava de mim. Mas eu no cuidei dele.
Abaixei a cabea, apoiei-a nos joelhos e senti as lgrimas que se formavam em meus
olhos.


Jeremy me deixou na jaula toda a noite. Por mais que eu queira pensar o contrrio,
sabia que ele no estava sendo insensvel. Uma vez que eu comecei a chorar, era possvel
pensar que j renunciava briga e aceitaria a vontade de Jeremy. Algum que no me
conhecesse poderia pensar isso. Mas Jeremy me conhecia. Inclusive quando estava
chorando no cho, no me deixou sair e nem sequer entrou na jaula. Acariciou-me,
passando os braos entre as barras, e me entregou lenos de Papel, mas no abriu a
porta. Quando terminei de chorar e limpei as lgrimas, explodi novamente. Quebrei a
cama, quo nico podia romper dentro da cela. Chutei o vaso sanitrio, mas a nica coisa
que se quebrou foram alguns de meus dedos. Joguei o jantar no cho e o lamentei assim
que o aroma da carne fez meu estmago grunhir. Amaldioei ao Jeremy com todas
minhas foras. No o lamentei, embora soubesse que no era justa. E quando acabei, teria
que ter me sentido melhor, no verdade? No foi assim. Senti-me estpida. Senti que
tive um ataque de histeria e fiquei como uma idiota. Tinha que me controlar. No fazia
nenhum bem ao Clay com minhas cenas.

obvio que por mais que estivesse pronta para sair da jaula, isso no significava que
Jeremy ia me deixar sair. Deixou-me ali toda a manh, aproximando-se de vez em
quando para assegurar-se de que no tinha retomado minha imitao do exorcista.
Quando voltou com meu almoo, trouxe um envelope do tamanho de uma carta de cor
amarela. Antes de me dar a comida, passou-me o envelope.
Dentro havia uma foto instantnea de Clay. Estava sentado no cho, com os joelhos
dobrados e os braos para trs. Ambas as mos e ps estavam fora do quadro, mas a
julgar por sua posio, deviam estar amarradas. Seus olhos estavam meio fechados e to
nublados pelas drogas que pareciam cinza e no azuis. Embora no se vissem barras,
sabia que estava em uma jaula. Nenhum licntropo matria Clay cativo sem assegurar-se
de que no pudesse Trocar e escapar. S poderiam o ter com segurana usado drogas,
amarraes e/ou uma jaula. Daniel utilizaria as trs coisas. J tinha lutado com Clay e no
ia correr o risco de ter que enfrent-lo outra vez.
Voltei a olhar a foto. Tinha contuses nos braos e o torso nu, um corte grande que
partia em duas a bochecha esquerda, tinha os lbios inchados e partidos e um olho
inchado. A pesar disso, olhava cmara ou pessoa que tirou a foto, com um olhar
aborrecido e de irritao, como um supermodelo a quem tiraram fotos demais esse dia.
Mostrar-se desafiante os provocaria. Clay sabia que no devia faz-lo.
Coloquei a mo dentro do envelope e estava vazio. Olhei para Jeremy pela primeira
vez desde que me encerrou na jaula o olhei realmente. Tinha olheiras e seu cabelo caa
sobre a testa, como se no tivesse dormido nem se banhado por vrios dias. Tinha rugas
em torno dos olhos e da boca. Quase parecia de sua idade.
Onde est a carta? perguntei, com mais suavidade do que queria . Sei que Daniel
deve ter mandado uma carta. Posso v-la?
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
212
Diz que tm Clay, o que bvio, e que no est bem, mas sim vivo, coisas bvias. Se
olhar a foto de seu perfil esquerdo ver que h algum com um jornal. o New York
Times de hoje, presumivelmente para demonstrar que as fotos foram tiradas hoje
O que Daniel quer?
Clay no est em perigo imediato.
Vai responder diretamente a alguma pergunta que faa a voc?
Enviei uma nota. Exigi fotos dirias enquanto negociamos.
Pus cara de irritao e fui at o outro lado da cela, recordando a mim mesma que tinha
que me comportar bem. Se explodisse de novo, no ia sair rpido da jaula.
Olhe, sei que me descontrolei ontem disse . Mas agora estou bem. Quero ajudar.
Posso sair?
Coma seu almoo. Voltarei em um momento para ver se continua com fome.
Jeremy passou a bandeja atravs da abertura perto do piso e subiu. Mordi minha
lngua para no dizer nada insultante da qual pudesse me arrepender... ao menos at que
j no pudesse me escutar.



PLANOS

Jeremy me deixou sair essa tarde. Antes que chegssemos acima lhe perguntei por
seus planos. Fez-me esperar at depois do jantar, provavelmente para provar at onde
resistia minha pacincia. Devo reconhecer que na hora do jantar j estava perto de
explodir; mas consegui evit-lo. Enquanto Antnio e Nick lavavam os pratos do jantar,
Jeremy me levou ao escritrio para falar. A verso condensada ao estilo de Selees do
Readers Digest de nossa conversao que Jeremy me disse que tinha um plano para
libertar Clay e eu no devia saber nada a respeito, nem me permitiria ajudar a concretiz-
lo. Como se podem imaginar, aceitei-o com graa e uma atitude pormenorizada.
a idia mais estpida que jamais ouvi grunhi pela dcima vez em uma hora .
No vou ficar aqui sem fazer nada.
Prefere ficar na jaula sem fazer nada?
No me ameace.
Ento no me ameace voc.
Houve algo na voz de Jeremy que me fez decidir calar a boca e a me conformar
caminhando de um lado a outro.
No posso evitar disse, mantendo a voz baixa e supostamente calma . Por favor,
Jer, no me deixe de fora. Possivelmente me culpe pelo que aconteceu em Toronto, mas
no me castigue assim.
No fez nada errado em Toronto. Se algum tiver culpa, sou eu. Pensei que Toronto
era seguro. No me dei conta at na tera-feira pela manh de que Daniel se foi quando
j estava l, No vou dizer para voc como penso recuperar ao Clay porque ento
querer ajudar e, se no deixar, f-lo- de todos os modos.
Mas
Inclinou-se para frente.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
213
Estou sendo honesto Elena. A ningum diria o que digo a voc. Tudo est cado em
pedaos. No estava preparado para isto. Fui um bom Alfa todo este tempo porque
nunca me puseram a prova. No assim. Comecei a me mover lentamente, medindo,
juntando informao. Mataram Peter e Logan. Troquei de orientao e fui atrs de Jimmy
Koenig. Quase matam voc. Mandei-os a um lugar onde acreditei que estariam a salvo.
Passada menos de uma semana Daniel os encontrou. Agora tem ao Clay
Mas...
Jeremy me sorriu com um meio sorriso e tirou os cabelos que caam sobre meu rosto.
Sinto muito, corao. srio. Mas assim que tem que ser.
Antes que pudesse lhe responder, foi-se.

Em face s ordens de Jeremy, eu no tinha inteno de ficar sentada sem fazer nada.
Afinal de contas, ele no me proibiu nada em particular. Assim comecei a traar um
plano.

Primeiro passo: conseguir um aliado. Isso era fcil. No havia muitas opes, mas
embora as houvesse, Nick seria a opo bvia. No s era o melhor amigo de Clay, mas
tambm o deixaram fora do plano de resgate e estava to descontente quanto eu em
relao a isso. Jeremy sustentou que necessitava que Nick no se metesse no plano para
que pudesse cuidar de mim, mas era suficientemente inteligente para saber que Jeremy
no lhe contava nada por medo que me contasse isso. Persuadi-o de que s queria juntar
mais informao para demonstrar ao Jeremy que podamos ajudar sem nos colocar em
problemas. No que fosse mentira. Pensava passar ao Jeremy qualquer informao que
descobrisse. E se ainda assim se negasse a me deixar ajud-lo? No me preocuparia com
isso. Sempre podia renegociar meu acerto com Nick mais adiante.
Segundo passo: planejar o curso de ao. Jeremy tentaria averiguar onde os vira-latas
mantinham Clay. No teria que ser um gnio para saber. Negociar com Daniel s seria
uma cortina de fumaa para mant-lo ocupado enquanto Jeremy descobria onde
estavam. Nick confirmou. Ontem, antes que o tirassem do plano, Jeremy os enviou a ele
e ao Antnio ao hotel Big Bear: Todos menos Daniel saram do hotel na segunda-feira.
Daniel ficou at ao redor do meio-dia da quarta-feira. A empregada se lembrava bem
porque foi trs vezes a seu quarto para limpar e teve que ficar mais tarde por culpa dele.
De modo que a concluso que eu tirei, e provavelmente Jeremy tambm, era que os vira-
latas encontraram outro lugar onde esconderem-se e levaram Clay para l
imediatamente depois de retornar de Toronto. Nada disto era surpreendente. Seriam
idiotas se mantiveram Clay cativo em um hotel pblico. Clay podia no gostar da idia
de que humanos o resgatassem, mas seu instinto de sobrevivncia era suficientemente
forte para no ignorar a oportunidade de fazer rudo e chamar a ateno. Calculei que o
movimento seguinte de Jeremy seria deixar outra nota no correio, esperar que aparecesse
um vira-lata e tentar segui-lo at o Daniel. o que eu faria. Dado que no queria
interferir nos planos de Jeremy ou, para dizer do modo mais realista, no queria que
me fisgassem interferindo teria que o deixar seguir o vira-lata e encontrar outra
maneira de descobrir onde escondiam Clay.
Terceiro passo: Distrair a ateno de minhas atividades. Caso se tratasse de qualquer
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
214
outra pessoa que no fosse Jeremy, eu representaria o papel de subordinada
amedrontada. Mas para Jeremy isso seria um sinal seguro de que estava metida em algo.
Assim armei confuso e me queixei e lhe fiz a vida impossvel. Ele no esperava outra
coisa. Cada vez que podia, eu lhe exigia, rogava-lhe ou negociava que me inclusse em
seus planos. Fiz sugestes. Ofereci conselhos. Quando isso falhava, esperneava e batia
nas portas de Stonehaven. Finalmente, logo depois de uma noite e uma manh de me
colocar em seu caminho em quantas oportunidades tive, dei-lhe um ultimato. A no ser
que encontrasse Clay em trs dias, iria atrs dele com ou sem sua permisso. Jeremy me
recordou a jaula no poro e prometeu me pr ali se sasse dos terrenos da casa embora
fosse s um passeio. Reiterei minha ameaa, mas deixei de incomod-lo para que
permitisse ajud-lo na procurar de Clay. Sups, portanto que tinha trs dias antes que
voltasse a incomod-lo, assim que relaxou. Direi que foi um truque engenhoso, se me
permite.
Embora Nick tivesse aceitado me ajudar, negou-se a desobedecer a ordem de Jeremy
quanto a deteno domiciliria, de modo que na realidade no podia ir a nenhuma parte.
Bom podia desacordar Nick com um golpe e fugir, mas no faria isso a ele. Alm disso,
Jeremy me encontraria e me traria de volta e Nick no se sentiria muito disposto a me
ajudar de novo se o golpe ainda lhe doesse.
A primeira coisa que fiz foi ligar para o hospital. No, no liguei para o hospital local
com a premonio de que poderiam ter ao Clay ou saber onde estava. Liguei para o
hospital Saint Michael de Toronto. No esqueci que deixei Philip sangrando no piso de
nosso apartamento, Reconheo que no dediquei questo todo o tempo que pude, mas
sabia que suas feridas no significavam um perigo de morte, ao menos no quando
contive a hemorragia e pedi ajuda, e a situao de Clay era muito pior; assim acredito
poder me perdoar por minha preocupao no se dividi igualmente entre os dois. Philip
no estava nesse hospital. A sala de emergncias no recebeu novos pacientes na tarde
da tera-feira, coisa que acontecia freqentemente devido reduo das contas. Philip foi
levado ao Toronto East General e continuava ali. Falei com a enfermeira encarregada de
seu andar, dizendo que era irm dele, e assim me inteirei de que ele sofreu ferimentos
internos e teve que ser operado, mas estava se recuperando e esperava que lhe dessem
alta na segunda-feira, o que significava que na realidade se sentiria melhor na quarta-
feira ou na quinta-feira: novamente os cortes oramentrios. Ofereceu me comunicar com
seu quarto para que falasse com ele, mas me neguei, dizendo que no queria interromper
seu descanso. A verdade que fui muito covarde para falar com ele. Embora me
perdoasse por abandon-lo, havia a pequena questo de que me viu Trocar a loba. De
modo que me conformei lhe enviando flores junto com uma nota que dizia que o veria
logo e que esperava que isso no o assustasse tanto para volt-lo para a sala de cuidados
intensivos.
A segunda coisa que fiz foi ligar para a imobiliria local. No que pensasse em me
mudar e necessitasse de um lugar. Idia tentadora, mas sabia que no chegaria longe. Se
Jeremy me rastreou at um campo no norte de Nova Iorque e ainda no queria me
dizer como tinha conseguido , ento sem dvida poderia me encontrar em Bear ValIey,
fosse antes ou depois de que me encontrassem os vira-latas. Como , no sou suicida.
Ligue para a imobiliria para averiguar as casas alugadas ou compradas nas ltimas
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
215
semanas, em particular casas na rea rural. Venderam apenas trs casas no distrito
recentemente. Duas foram compradas por novas famlias e a terceiro para um casal de
pessoas de fora. Havia mais aluguis, mas todos eram residentes de longa data na rea,
que passavam um imvel a outro.
Quando no deu resultado o da casa, comecei a averiguar a possibilidade do aluguel
de cabanas. O mau era que vivamos em uma rea de cabanas. O bom que logo
comearia a temporada de aluguis e a rea de Bear Valley em si mesma no era das
mais procuradas, porque havia muitas rvores e muito poucos lagos e vias aquticas.
Liguei para a Associao de Cabanas de Bear Valley. Com um pouco de ingenuidade,
muitas mentiras e muito mais cortesia, Jeremy me educou muito bem, descobri que s
havia quatro alugadas nesse momento e que trs dos quatro inquilinos eram casais em
lua de mel e no quarto caso se tratava de um monto de homens maduros de Nova
Iorque que vinham sempre em maio para algum tipo de estreitamento de relaes entre
homens, no bosque e por motivos teraputicos. Outro beco sem sada. Estava
respondendo tudo o que eu perguntava, mas nada interessante. Teria que comprovar por
outra via. Mas no sabia bem qual.

Ter um objetivo fez que as horas passassem rpido, com o que tive pouco tempo para
lamentar a situao em que se encontrava Clay. Finalmente mesmo esse prazer se
esgotou e fiquei a ss com meus pensamentos. Estava cuidando do fogo na lareira do
escritrio, que no necessitava de meus cuidados. Nem sequer havia necessidade de
acend-la, quando a temperatura exterior se localizava ao redor dos vinte graus ao
anoitecer. Mas me reconfortava estar sentada ali, atiando os troncos e vendo como o
fogo saltava e lanava fascas. Uma ao desnecessria era melhor que nenhuma ao.
Alm disso, olhar fixamente as chamas me subjugava, para me concentrar em algo fora
dos pensamentos e dos temores que superavam continuamente as barreiras mentais que
erigi cuidadosamente nas ltimas vinte e quatro horas.
No estava sozinha no escritrio. Nick estava ali, cochilando no sof. De vez em
quando abria os olhos e dizia algo. Falvamos alguns minutos, ento a conversa se
aproximava perigosamente do tema Clay e ficvamos em silncio. Quando o relgio
bateu meia-noite, Nick voltou a despertar. Inclinou a cabea para trs por sobre os braos
do sof e olhou para a janela.
Ser lua cheia disse dois, trs dias?
Dois.
Precisarei correr. E voc?
Consegui sorrir.
Sabe perfeitamente bem que no preciso correr, porque fiz mais que o necessrio em
matria de corrida faz trs dias. O que quer saber se correrei contigo e se salvarei voc
da horrorosa idia de ter que correr sozinho.
No sei como fez em Toronto todos esses meses disse com um tremor . Eu tive que
faz-lo algumas vezes no inverno. Tnio saiu por assuntos de negcios, Logan estava
ocupado com um caso e Clay... como seja, tive que Trocar sozinho.
Pobre beb.
Foi horrvel. Foi como sair ao bosque, me despir, Trocar, ficar ali parado o tempo
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
216
suficiente, voltar a Trocar, me vestir, voltar para dentro. Nem sequer me incomodei em
correr. Era to divertido como defecar.
linda analogia.
Digo-o a srio. Vamos Elena Reconhece-o. assim se estiver sozinho. Como se diz...
uma funo corporal. Lembro-me de quando eu era menino, antes de minha primeira
Mudana, e Clay costumava a...
Deteve-se. Esta vez no voltou a conversar. Houve silncio e me virei para o fogo,
atiando-o e observando cair as fascas em cascata. A porta se abriu. Escutei Jeremy
entrar, mas no me virei. Um momento mais tarde soou as molas do sof quando Nick se
levantou. Atravessou o escritrio e fechou a porta. Jeremy veio por detrs. Sua mo
tocou minha nuca, vacilou, logo acariciou meus cabelos.
Sei o quanto difcil para voc, Elena. O quanto est assustada, quo assustada est
de perd-lo.
No isso. obvio que tenho medo de perd-lo. Mas se cr que se deve ao fato de
que de repente compreendi o quanto o amo e que quando e no caso de que o
recuperemos, voltarei para casa e tudo estar bem, ento est equivocado. Sinto muito.
Sei que isso o que quer, que seria mais fcil para voc e para todos outros, mas no vai
acontecer. Sim, preocupo-me com ele. Muito. E sim, quero que volte. Quero que volte por
voc, pelo Nick e pela Matilha. Estou transtornada porque me considero responsvel.
Jeremy no respondeu.
Olhei-o por sobre o ombro.
Assim voc tambm me considera responsvel?
No, no nada disso. No respondi por que pensei que era melhor me calar em
relao ao resto. Se pensa que este o motivo pelo qual est mau...
.
Ficou calado um momento, logo me tocou as costas, com os dedos movendo-se para a
bola dura entre meus ombros.
Qualquer que seja o motivo de sua preocupao, no considero voc responsvel
pelo que aconteceu. J falamos disso. Eu devia ter mandado vocs para outro lugar.
Acreditei que estava agindo com inteligncia, mas nem sequer me dei conta que
acontecia algo at que tentei me contatar com Clay naquela noite.
Tem-no feito aps? perguntei, me endireitando e girando para olh-lo no rosto .
Contataste com Clay desde que o capturaram? Tentou-o verdade? O que disse? Esta...?
Jeremy ps seus dedos sobre meus lbios.
Sim, tentei. Uma e outra vez. Mas no posso chegar a ele. So as drogas.
Havia outro motivo possvel para que Jeremy no pudesse contatar-se com Clay, mas
no me atrevi a mencion-lo. Jeremy pareceu l-lo em meu rosto e sacudiu a cabea.
No pense nisso. Est bem. Viu as fotos de hoje. Pode ler a data do jornal. No parece
muito bem, mas est vivo.

Parecia cansado. A Matilha estava sitiada e os vira-latas atiravam abaixo as defesas
to rpido como Jeremy conseguia as levantar. Isso estava desgastando-o. Eu desejava
no haver notado. Desejava poder acreditar, igual a Antnio e Nick, que o Alfa da
Matilha era indestrutvel. Assim se educa aos licntropos da Matilha, com a convico de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
217
que, acontea o que acontecer, seu Alfa os proteger. Isso era um engano. Totalmente
errneo. Funcionava bem em circunstncias normais, quando a Matilha no enfrentava
mais que a um vira-lata por vez e a tarefa do Alfa se concentrava em resolver disputas
internas e apresentar uma frente
11
unida contra os vira-latas. Mas enfrentado a
problemas destas dimenses, o Alfa necessitava de ajuda, no s para combater a
ameaa, mas tambm para decidir como combat-la. Tal colaborao era impensvel.
Jeremy podia comprovar suas idias com Antnio, mas no pensaria em lhe pedir
conselho, nem nenhum membro da Matilha sonharia em oferecer-lhe. Eu sim. Queria
dizer ao Jeremy o que pensava e tentar ajud-lo, mas sabia que no podia. Se ele se sentia
sobrecarregado agora, que eu andasse adivinhando seus planos pioraria as coisas. Igual a
Antnio e Nick, Jeremy tinha a mesma concepo equivocada da liderana. A
responsabilidade de salvar Matilha descansava sobre seus ombros. A nica maneira em
que eu podia ajud-lo era elaborando minha estratgia sozinha.



DESPERTAR

Na manh seguinte, Jeremy e Antnio saram outra vez. Eu voltei para o trabalho. Ou,
ao menos, preparei-me para voltar ao trabalho. Liguei para o hospital para saber a
respeito de Philip, depois me sentei em frente escrivaninha no escritrio, liguei o laptop
de Clay e fiquei ali, olhando do telefone ao laptop e vice-versa. Eram minhas nicas
ferramentas para encontrar Clay e no tinha idia do que fazer agora com nenhuma das
duas. De modo que tirei um bloco de notas e comecei a fazer uma sntese do que sabia,
esperando que me ocorresse assim outra via de explorao.
Restavam dois vira-latas com experincia, a metade do nmero original. Isso era
tranqilizador, at que recordei que eliminamos aos dois vira-latas menos importantes e
deixamos vivos aos mais perigosos. No era to bom. Tambm tnhamos dois vira-latas
novos. Ao Blanc eu conhecia bem e entendia como funcionava. Voltei a sentir certa
complacncia momentnea antes de recordar que nem sequer havia visto o protegido de
Cain, Victor Olson. Assim restava o seguinte passo: averiguar mais a respeito de Olson.
obvio que decidir o que ia fazer no era o mesmo que determinar como faz-lo. Das duas
ferramentas que tinha disponveis, Internet parecia a melhor, porque com o telefone nem
sequer sabia por onde comear.
Cain disse que o nome de seu protegido era Victor Olson e que o tirou de um crcere
do Arizona, onde estava preso por crimes sexuais. Dado que Daniel encontrou Olson,
seus crimes deviam ter sido suficientemente importantes para aparecer nos meios de
comunicao. S esperava que Victor Olson fosse seu nome real. Era. Uma simples busca
com o nome e a cidade obtive sete mensagens completas. Trs se referiam ao Victor Co
Louco Olson, o que soava prometedor, at que cliquei no primeiro lugar e me encontrei
com uma publicidade de uma extino de julgamentos por danos. O quarto se referia a
um ilustre cidado, morto a muitos anos, de nome Victor Olson. Com os ltimos trs tive

11
Frente = neste contesto o lugar de batalha, primeira fila.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
218
sorte. Victor Olson escapou do crcere fazia quatro meses, interrompendo assim sua
condenao priso perptua por violar e matar a uma menina de dez anos. Voltei a ler
vrias vezes a idade de sua vtima. Cain disse que esteve preso por foder com algumas
de suas garotas supus que com garotas queria dizer mulheres. Obviamente no era
assim. Contendo o asco, li todo o artigo. Olson era um assassino de meninas por toda a
vida que foi denunciado vrias vezes por atos indecentes, mas as imputaes sempre
foram rechaadas porque o juiz considerava que os testemunhos das vtimas no eram
confiveis. Com a ltima vtima, o juiz teve que admitir que o testemunho que dava seu
cadver era razoavelmente confivel. Passei ao artigo no segundo lugar e descobri por
que Daniel escolheu Olson. Era dos que espreitam a sua presa. Escolhia suas vtimas
cuidadosamente e as seguia durante semanas antes de agir. Um detetive disse que nunca
havia visto ningum to bom para a "caa, esse era seu comentrio.
Passei outra hora revisando o que sabia. Quando no cheguei a nada fui procurar
Nick, que estava no ginsio, e lhe repeti tudo, esperando que a ele ocorresse algo ou que
ao verbalizar a coisa me ocorresse algo. Nick escutou, mas no contribuiu com nada.
Nick no estava acostumado a ter idias. Isso soou pior do que devia. O que quis dizer
que estava acostumado a seguir os planos de outros fossem do Jeremy, de seu pai, do
Clay ou meus. Era um subalterno entusiasta, mas no era exatamente como dizer o de
um modo benvolo um pensador profundo. Falar com ele tampouco me ajudou. Assim
deixei os papis, desliguei o laptop e fiz a tarefa mais aborrecida e embotadora que me
ocorreu. Lavei a roupa.

Ningum tinha lavado roupas desde que fomos a Toronto, provavelmente porque era
a ultima coisa que algum pensaria. No entendi todas as implicncias disso at que
estava dobrando a primeira carga da mquina de lavar roupas e encontrei uma camisa
de Clay. Fiquei ali, no tanque, sustentando a camisa. Clay a vestiu no dia anterior a nossa
partida. No sei por que o recordei. Era uma camisa de golfe a listras de cor verde
escuro, uma das escassas excees no vesturio de Clay onde abundava camisetas
brancas e pretas lisas. Devia ter sido um presente de Logan, que considerava sua
responsabilidade pr um toque de moda no vesturio de Clay. Olhando a camisa, pensei
em Logan e ressurgiu a dor. Depois pensei em Peter, lembrei como tirava o sarro de Clay
pelo monocromtico guarda-roupa e o ameaava dizendo que lhe daria um monto de
camisetas das mais chamativas que pudesse encontrar. Pestanejei com fora, coloquei a
camisa debaixo de um monto de calas de Nick e segui adiante.
Logo depois de dobrar a primeira carga de roupa, levei-a para cima para guard-la.
Deixei para o final a pilha de Clay. Durante vrios minutos fiquei parada em frente
porta fechada de seu quarto e vacilei ante a idia de pr suas coisas em outro lugar antes
de reunir coragem suficiente para entrar. Fiz a tarefa apressadamente, apertando as
camisas, a roupa ntima e as meias em suas gavetas. Seus jeans foram para o guarda-
roupa. Sim, ele pendurava seus jeans, provavelmente porque se no o fizesse, no
haveria outra coisa no guarda-roupa. Estava pondo os jeans nos cabides quando vi uma
pilha de presentes embrulhados no piso do guarda-roupa. Sem sequer olhar as etiquetas
soube o que eram. Uma parte de mim queria fechar a porta do guarda-roupa com uma
batida e fugir. No queria v-los. Mas no pude resistir. Estirei a mo e peguei o presente
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
219
de acima. Estava envolto em papel natalino, com bengalas e arcos de caramelo. Na
etiqueta havia um nome: Elena, que cruzava as palavras DE e k.
Nick disse que Clay esperava que eu voltasse. Eu mesma quase esperava voltar no
Natal passado, no por vontade prpria, a no ser magicamente, como se pudesse
dormir em Toronto na Noite de Natal e despertar em Stonehaven na manh seguinte. A
Pscoa, o dia de Ao de Graas, os aniversrios, passavam sem que eu os notasse, sem
nenhuma urgncia por voltar. O Natal era diferente. O Natal pertencia ao Clay.
Desde criana eu odiava o Natal, de todas as festas, era a que mais glorificava a
famlia, todos esses filmes e especiais para a televiso e avisos e capas de revistas que
mostravam famlias felizes e sorridentes, que levavam a cabo os ritos correspondentes
ocasio. No que me faltasse as coisas tpicas do Natal, minhas famlias adotivas no
eram totalmente formada por ogros. Davam-me presentes e comia peru. Ia a festas e
missas do galo. Sentava-me no colo de Papai NoeI e aprendia a cantar para a festa do
colgio. Mas sem os vnculos normais" que desejava, os rituais pareciam to falsos como
a neve artificial. Assim quando fui viver sozinha aos dezoito, deixei de celebrar. Ento
conheci Clay. Esse primeiro ano que estivemos juntos senti por fim que era possvel um
verdadeiro Natal, No tinha pais, avs, tios e tias a meu redor, mas tinha algum. Tinha
o primeiro vnculo com todo o resto que tanto desejava.
Devo dizer que Clay no tinha idia de como celebrar o Natal. No era uma festa
oficial dos licntropos. Na realidade no h festividades oficiais dos licntropos, mas no
essa a questo. A Matilha s reconhecia o Natal como um momento para reunir-se,
como tantas outras vezes ao ano. Intercambiavam presentes, igual em seus
aniversrios, mas a celebrao s chegava at ali. Ento o que fez Clay quando sugeri que
queria um Natal com todas as letras? Ele me deu um.
Embora no soubesse ento, passou semanas estudando a festividade para saber o que
se esperava. Ento me deu um Natal com tudo. Samos e cortamos uma rvore, logo
percebemos que era impossvel lev-la a seu apartamento de moto. Fizemos que nos
levasse ela e a decoramos. Preparamos bolachas e descobrimos como era difcil fazer
figurinhas com massa de bolacha sem um molde. Fizemos um po doce, que
provavelmente ainda estava no balco de seu velho apartamento, onde finalmente o
usamos para manter a porta aberta. Compramos luzes para balco e logo tivemos que
buscar uma extenso, depois uma tesoura de cortar arame para fazer um buraco na
malha da porta para passar o fio. Escutamos msica de Natal, vimos O Grinch e
alugamos uma vida maravilhosa, embora Clay tivesse dormido, bom, na realidade
dormimos os dois. Bebemos licor de ovo junto ao fogo, melhor dizendo junto a uma foto
de uma lareira de uma revista, que Clay colou na porta. Cumprimos com todas as
tradies. Ento, na Noite de Natal, fizemos amor pela primeira vez. Eu mesma fui meu
presente para ele. Seu presente para mim foi sua pacincia inesgotvel nos meses
prvios, at que superei meu medo da intimidade. Foi o Natal perfeito. No chegamos s
Pscoas.
No houve Natal no ano seguinte. Suponho que o Natal ainda ocorria no mundo
exterior, mas em Stonehaven passou sem que se notasse. Apenas no inverno fiquei fora
da jaula. Clay continuava banido. Logan vinha me ver, mas o expulsei, como fiz a outra
meia dzia de vozes que tentaram me visitar. Nick enviou um presente. Joguei-o sem
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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abrir. Antes que Clay me mordesse, eu conheci Logan e Nick, inclusive comecei a
consider-los amigos. Depois os culpei de no me alertar. De modo que veio e se foi o
Natal e eu mal o notei. No ano seguinte, Clay continuava banido. Eu j estava bem
avanada em minha recuperao. Havia perdoado Logan e Nick e inclusive ao Jeremy.
Estava conhecendo ao Antnio e ao Peter. Comeava a aceitar a vida como mulher loba.
Chegou o Natal novamente e eu pensei que passaria um Natal sem solenidades, igual ao
ano anterior. Em troca, tivemos um Natal com todas as suas caracterstica, com presentes
debaixo da rvore, luzes coloridas refletidas sobre a neve e peru na mesa. Toda a Matilha
veio para Stonehaven por uma semana e, pela primeira vez, soube a enlouquecido,
esgotante, ruidoso e maravilhoso que pode ser um Natal em famlia. Pensei que assim
era como celebrava a Matilha todos os anos quando no tinha que lidar com uma nova
mulher loba raivosa, S em janeiro soube a verdade. Clay se comunicou com Jeremy e
lhe pediu que fizesse isso por mim. Foi o presente que me deu. Meu presente para ele foi
pedir ao Jeremy que pusesse fim a seu desterro,
Depois disso, todos os anos tiveram grandes celebraes de Natal em Stonehaven. A
Matilha me permitia viver minha fantasia por completo, sem me fazer sentir jamais que o
faziam para me dar o gosto. No posso dizer que todos os Natais foram felizes. s vezes
Clay e eu estvamos bem, a maior parte das vezes no, mas estvamos sempre juntos. Se
esse ltimo Natal sem Clay foi difcil, houve uma coisa que o fez tolervel: saber que ele
estava em algum lugar. Ao olhar a pilha de presentes em seu guarda-roupa, percebi que
isso tambm valia para cada dia de minha vida, no s para o Natal. De algum modo,
saber que Clay estava ali, me esperando se decidisse voltar, dava-me um consolo na
vida. A nossa podia ser a relao mais voltil que se pudesse imaginar e Clay mesmo
podia ser a pessoa mais irritvel que eu conhecia, mas, de um modo perverso, ele era a
coisa mais estvel de minha vida. Fizesse eu o que fizesse, ele estaria ali, acontecesse o
que acontecesse sempre podia voltar para Stonehaven. E se ele no estivesse? A idia
me encheu de algo to gelado que meu flego pareceu congelar-se em meus pulmes e
tive que me esforar para poder respirar. No menti para Jeremy na noite anterior. Este
no era um desses contos de fadas em que a herona reconhece seu amor imperecvel
pelo heri quando ele est em perigo de morte. Nesta histria no havia heris nem
heronas e no haveria um final feliz para sempre, embora recuperssemos Clay. Ainda
no podia me imaginar vivendo com ele, nem podia pensar em meu mundo sem ele.
Necessitava-o. Talvez isso fosse incrivelmente egosta. Quase com certeza era. Mas era
honesto. Necessitava de Clay e tinha que recuper-lo. Voltei a olhar os presentes e soube
que no estava fazendo o suficiente.

Vou para Bear Valley disse.
Era o dia seguinte. Nick e eu estvamos no ptio de atrs, almoando. Jeremy e
Antnio tinham sado fazia uma hora. Aps, tentar pensar em como dizer a Nick o que
planejava. Logo depois de meia dzia de intentos falhos, decidi-me diz-lo sem voltas.
Disse ao Daniel que queria v-lo.
Era isso que dizia aquele bilhete? - Quando Antnio e Nick foram enviar a ltima
carta de Jeremy para Daniel dei a Nick um bilhete para adicionar ao de Jeremy. Nick no
me fez nenhuma pergunta, provavelmente porque ele queria ignorar a resposta.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
221
Sim. Vou me encontrar com eles as duas.
Como conseguiu comunicar-se contigo?
No o fez. Disse-lhe que o veria as duas. E ele vai estar ali.
E Jeremy est de acordo?
Dei-me conta pelo tom de Nick que ele sabia perfeitamente que eu no o tinha
mencionado ao Jeremy. Perguntar era sua maneira prudente de referir-se ao assunto. Ou
possivelmente tivesse a esperana impossvel de que isto fosse algo que eu planejei com
Jeremy e tnhamos esquecido mencionar-lhe.
J no me vou ficar quieta disse . No posso faz-lo. Tentei, mas no posso.
Nick baixou as pernas e se sentou na beira de sua poltrona.
Sei o quanto difcil para voc, Elena. Sei quanto o ama...
No isso. Olhe, j falei tudo isto com Jeremy. Precisamos recuperar ao Clay. A
Matilha o necessita Eu vou fazer que volte. Que queira ajudar seu assunto.
A fazer que ele volte sim, mas no vou ajudar voc a fazer que te matem.
E isso o que quer dizer?
O que parece. Vi como voc estava. Faz alguns dias...
disso que se trata? Por que perdi o controle faz trs dias? Olhe agora. Parece que
estou fora de controle?
No e isso provavelmente me assusta mais que se o estivesse.
Vou. disse
No sem mim
Bom.
Mas eu no vou. Assim voc tampouco.
Parei e fui para a porta traseira. Nick ficou de p de um salto e fechou minha
passagem.
O que vai fazer? perguntei . Vai me desfalecer com um golpe e me encerrar na
jaula?
Desviou o olhar, mas no se moveu. Sabia que no faria nada. Prximo a isso, no
usaria a fora fsica para me deter. No era parte de sua natureza
Onde o encontro? perguntou por fim. Em um lugar pblico? Porque se no...
no Donut Hole. O mais pblico que pude obter. No importa o que pense, no
estou fazendo nada que pudesse me pr em perigo. No faria nada que pusesse voc em
perigo tampouco. O nico risco que desobedeo as ordens de Jeremy. E s o fao
porque se equivoca ao me excluir.
De modo que voc se encontrar com Daniel no caf e eu estarei ali. Estacionaremos o
carro na frente. No iremos a nenhuma parte com ele, nem sequer caminhar pela rua.
Exato.
Nick se virou e entrou na casa. No o fazia feliz, mas ia me acompanhar. Algum dia o
compensaria.

Quando estacionei diante do caf, pude ver Daniel atravs da janela. Estava sentado
em um reservado. O cabelo castanho chegava at os ombros e o usava por trs de sua
orelha esquerda, sua nica orelha, na realidade, por causa dessa pequena mordida fazia
alguns anos. Seu perfil era duro, mas do rosto altas, queixo bicudo e nariz fino, de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
222
aparncia agradvel, mas se assemelhava mais a uma raposa que a um lobo, o que
combinava melhor com sua personalidade.
Ao descer do carro, seus olhos verdes me seguiram, mas no registrou minha
presena com nenhum gesto, j que descobriu tempo atrs que eu no respondia bem
adulao. Seu corpo era magro e compacto. Medamos o mesmo, ao redor de um e
oitenta. Uma vez que tive que me encontrar com Daniel para lhe transmitir uma
advertncia de Jeremy, eu coloquei saltos de cinco centmetros e desfrutei da sensao de
lhe falar de acima, at que me disse o quanto ficava sexual de saltos. Aps isso nunca me
viu de outro modo que no com meus tnis mais velhos e maltratados.
Nesse dia Daniel vestia uma camiseta preta e jeans, que era o que vestia quase sempre.
Copiava o vesturio monocromtico de Clay, no estilo operrio da construo, como se
isso lhe desse certa classe. No era assim.
Marsten estava em frente a Daniel. Como de costume, vestido como se tivesse sado de
uma revista de modas, o que fazia Daniel parecer descuidado. Bom, Karl Marsten faria
qualquer pessoa parecer descuidada, mas no essa a questo.
Quando Nick e eu entramos, Marsten ficou de p e se aproximou da porta para nos
saudar.
Veio disse . Surpreende-me que Danvers lhe permita isso. Ou acaso no sabe?
Chutei-me mentalmente. At ento no tinha pensado no que pensariam os vira-latas
se eu estivesse violando as ordens de Jeremy. Divises na Matilha. Maravilhoso. Com
certeza Marsten se ia dar conta em cinco segundos.
Parece bem, Elena continuou Marsten, sem esperar minha resposta . Um pouco
cansada, mas isso era de se esperar. Com sorte isto se acabar logo.
Isso depender de vocs disse.
Em parte. Virou-se para o homem que atendia no balco. Dois cafs. Sem nada para
a dama e... olhou para Nick Um com creme e duas colheres de acar, no verdade?
Nick s o olhou com dio.
Um sem nada. O outro com uma colher de nata e duas de acar repetiu Marsten
ao homem . Ponha em minha conta. Deteve-se e depois se virou para mim sorrindo.
No posso acreditar que acabei de dizer isso em um caf. Tenho que sair deste povoado.
Eu desviei o olhar.

Fazia muito tempo que no via voc, Nicholas continuou Marsten . Como est seu
pai? Investi em uma de suas empresas o ano passado. Lucros de trinta por cento. Por
certo ainda dirige bem as coisas.
Ignorando-o, Nick se sentou em um tamborete em frente ao balco e estudou a oferta
de massas. Marsten se sentou a seu lado em outro tamborete e me indicou que fosse at o
Daniel.
Voc v fazer o seu. Eu fico com Nicholas. Daniel no levantou o olhar quando me
aproximei. Mexeu o caf e s me saudou com um movimento de sua cabea. O homem
do balco trouxe meu caf. Coloquei-o de um lado e me sentei em frente a Daniel, do
outro lado da mesa. Continuou mexendo o caf. Fiquei sentada ali alguns segundos. Em
outras circunstncias, eu teria esperado mais para ver quanto ele podia alongar essa
indiferena fingida de mexer o caf antes de sentir-se obrigado a me olhar. Mas o tempo
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
223
de jogar tinha acabado.
O que quer? perguntei.
Ainda mexia, com os olhos na xcara, como se pudesse escapar se deixasse de olh-la.
O que quero habitualmente?
Vingana?
Levantou os olhos e me olhou nos olhos, depois me percorreu lentamente com o olhar
como de costume. Apertei os dentes e esperei. Logo depois de alguns segundos, senti-me
tentada de estalar os dedos diante de seu rosto e lhe dizer que no havia tanto que olhar.
Quer vingana repeti, para fazer que seu crebro voltasse a funcionar.
Daniel se reclinou no assento, elevando uma perna para mostrar-se muito tranqilo e
relaxado.
No. Nunca quis isso. No importa o que me fez a Matilha, j o superei. No merecem
meu tempo. Mas voc sim.
Outra vez a mesma histria murmurei.
Daniel me ignorou.
Sei por que est com eles, Elena. Porque tem medo de sair, teme o que lhe faro e teme
o que acontecer a voc sem seu amparo. Estou tentando mostrar a voc que no podem
machuc-la e no podem proteg-la. Se quiser um companheiro, um verdadeiro
companheiro, merece algo mais que um monstro que tem que dar trs voltas antes de
deitar-se. Eu posso dar algo melhor a voc.
Assim que isto para me ganhar? No diga tolices.
No cr que vale? Acreditei que se valorizava mais.
Minha inteligncia est por cima disso. No por mim. Nunca foi. por voc e Clay.
Cr que me tem, assim me quer. Sua motivao to complexa como a de um menino de
dois anos que v outro com um brinquedo. Qu-lo para voc.
Subestima-se.
No, no subestimo o quanto o odeia. O que aconteceu? Sempre lhe deram a poro
maior de torta quando eram crianas?
Minha vida foi um inferno graas a eles. Ele e o ndio aquele touro Daniel olhou
com dio em direo de Nick . Pobre Clay. Tem problemas. Teve uma vida dura. Deve
trat-lo bem. Deve ser seu amigo. tudo o que sempre escutei. Quo nico viam era um
filhotinho de lobo. Se mostrava os dentes, parecia-lhes simptico. Mandava em nos como
se fosse um Napoleo em miniatura e eles o consideravam bonito. Para mim no era nem
bonito nem simptico. Era...
Levantei a mo.
Est delirando.
O qu?
Queria que soubesse. Est delirando. um pouco feio. Se continuar assim terminar
me informando de seus planos para dominar o mundo. Isso o que fazem todos os
vilos depois de delirar a respeito de sua motivao. Esperava que voc fosse diferente.
Daniel tomou um grande gole de caf, depois sacudiu a cabea e riu.
Bom, j me deu a bofetada para me localizar. Sempre foi boa nisso. Voc diz que
ladre e eu pergunto se alto ou baixo.
Digo que solte Clay...
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
224
Daniel fez uma careta
E eu digo: por que teria que me incomodar? Bom, h um limite para minha
obedincia. No o soltarei s porque voc quer, Elena. Poderia fazer caras e bocas e me
rogar e, embora isso me resultasse muito excitante, no me faria solt-lo. Farei a voc a
mesma oferta que fiz ao Jeremy. Voc pelo Clay
Por qu?
J disse.
Porque me deseja tanto que est disposto a arriscar sua vida para me ter? D uma
explicao melhor ou irei embora.
Daniel ficou em silncio um momento e depois se inclinou para frente.
Pensaste alguma vez em ter sua prpria Matilha? No recrutar vira-latas meio
idiotas, a no ser criar uma dinastia. No somos imortais, Elena, mas h uma maneira de
conseguirmos a imortalidade.
Realmente espero que no esteja insinuando o que penso.
Filhos, Elena. Uma nova raa de licntropos. No meio licntropos, meio humanos, a
no ser licntropos plenos, que herdem os genes de ambos os pais. Licntropos perfeitos.
Cus. Realmente quer dominar o mundo.
Falo srio.
Seriamente louco. Sinto muito, mas este tero no se vende nem se aluga.
Nem sequer pelo preo de uma vida? A vida de Clay?
Recostei-me para trs e fiz de conta que estava pensando. Era o momento de redobrar a
aposta.
De modo que se aceitar, deixa-o em liberdade?
Correto. S que no vou confiar s em que venha comigo e fique, de modo que
esclareamos isso desde o incio. Tenho um lugar para voc, romntico e adequadamente
remoto e seguro. Estaria confinada. Algo assim como a jaula de Stonehaven, mas muito
mais luxuosa. Se me der o que quero, tudo o que quero, no ficar ali muito tempo.
Quando voc se convencer de que sou sua melhor opo, deixo voc sair. Se pegar voc
tentando escapar lhe prendo novamente.
Caralho, que tentador.
Estou sendo honesto contigo, Elena. um intercmbio. O cativeiro dele pelo seu.
Fiz de conta que pensava, olhando pela janela. Ento voltei a olhar ao Daniel.
Esta minha condio. Quero v-lo livre. F-lo- luz do dia em um lugar pblico.
Estarei ali para v-lo. Quando ele estiver livre, serei sua.
No funciona assim. Quando for minha, ele fica livre.
No tem inteno de solt-lo disse, me virando para olhar Daniel nos olhos . o
que pensei.
Fiquei de p, e sa do caf. Tanto Nick como Daniel me seguiu rpido. Quando
cheguei ao automvel, Daniel me impediu de abrir a porta.
Viu as fotos, no verdade? perguntou. Detive-me, mas sem olh-lo.
Sei que viu as fotos continuou Daniel . Viu em que estado est. Viu que a coisa fica
pior. Quanto mais pensa que pode resistir?
Virei-me lentamente. Virei-me vi o rosto de Daniel e a satisfao em seus olhos e perdi
o controle. Durante a ltima meia hora, me esforcei para no pensar em Clay. Enquanto
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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falava com Daniel, esforcei-me para no recordar que era ele quem mantinha Clay cativo,
que o drogou e golpeou at que apenas restassem alguns centmetros de pele sem
marcas. Concentrei-me em falar com Daniel como fiz centenas de vezes, como se
tratasse-se de lhe transmitir outra mensagem de Jeremy lhe dizendo que se emendasse
ou teria um castigo. Realmente tentei esquecer o que acontecia. Mas quando ficou parado
ali e ameaou matar Clay, j no pude fingir. Minha ira transbordou antes que pudesse
control-la.
Puxei-o pela camisa e o lancei contra o automvel com tanta fora que a janela do lado
do condutor se partiu em pedacinhos.
Hiena repugnante me aproximei dele at que nossos rostos estavam a poucos
centmetros. Seqestra-o com uma injeo. Prende-o parede para poder golpe-lo.
Mas isso no basta. Tem que drog-lo. Tem que estar absolutamente seguro de que no
possa juntar foras suficientes para cuspir em sua cara. Ento o golpeia. Faz voc se
sentir bem? Fez voc se sentir muito homem espancar o seu inimigo quando no podia
defender-se? No homem e no lobo, uma hiena, um covarde carniceiro. Se voltar a
tocar nele, se v uma s marca a mais, vou fazer algo a voc que far que essa orelha
arrancada parea um belisco. E se o matar, juro por Deus e o Diabo e qualquer que
escute, se o matar, caarei voc. Caarei voc e o amarrarei e o torturarei de todas as
maneiras que me ocorram. Deixarei voc cego, o castrarei e o queimarei. Mas no
matarei voc. No deixarei voc morrer. Porei voc no inferno e ali viver pelo resto de
sua vida.
Joguei Daniel para um lado. Cambaleou, recuperou o controle e se virou para me
enfrentar. Sua boca se abriu, voltou a fechar, voltou a abrir-se, mas ele no parecia poder
pensar em uma resposta adequada, assim se virou e foi para o caf. Escutei um assobio e
me virei para ver Marsten apoiado contra a parte de atrs do automvel.
A bruxa voltou disse Marsten . Bom, bom. Isto pode ficar interessante.
Vai ao caralho rugi para ele.
Abri a porta do automvel, subi e o pus em marcha quando Nick se sentou do lado do
acompanhante. O Camaro saiu rugindo do estacionamento, com um chiado de
borrachas. No olhei o velocmetro em todo o caminho de volta a Stonehaven.
Em uma eu coisa tinha razo. Acabou-se o tempo dos jogos.



REGRESSO

Sa de Stonehaven quando todos dormiam. Vesti-me na escurido, saltei pela janela e
empurrei meu automvel quase um quilmetro pelo caminho antes de ligar o motor.
No falei ao Nick meus planos. Era melhor que no soubesse nada.
Tinha ido cedo para meu quarto e passei umas horas pensando na cama. Meu encontro
com Daniel foi um erro. Ao rechaar sua oferta, piorei as coisas. Jeremy esteve tentando
ganhar tempo para Clay. Eu o tinha tirado. Para arrumar as coisas, tinha que agir agora.
Durante vrias horas tentei essa noite me contatar mentalmente com Clay. obvio que
no funcionou. Nem sequer sabia como faz-lo, mas tive a esperana de que nossa
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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relao fosse suficiente. Possivelmente tivesse sido, mas era como exigir um esforo extra
a um msculo que eu ignorei muito tempo. Nada aconteceu. Quando no pude entrar na
mente de Clay, decidi tentar me introduzir nas mentes dos vira-latas que o mantinham
cativo. Introduzir-me em suas mentes em sentido figurado, quero dizer. Se me colocasse
em sua situao e tentasse imaginar o que sentiam ou pensavam, possivelmente pudesse
encontrar um ponto fraco. Daniel e Marsten eram fceis de entender. Sabia o que
queriam e sabia como operavam. Marsten no deixaria nenhum lado desguarnecido. A
debilidade de Daniel era sua obsesso por mim e por Clay. Podia aproveitar isso, fazer
contato com ele novamente e tentar enred-lo com mentiras e sorrisos, mas isso exigiria
tempo e eu no o tinha. Alm disso, tal como me sentia, ao invs de lhe sorrir era mais
fcil que lhe abrisse a garganta dentadas. Restavam os guias de ruas novos. Era um
territrio desconhecido. No eram licntropos, recordei-me disso. Eles no eram
licntropos de verdade. Ento, como podia me colocar em suas cabeas?
Fiquei a maior parte do tempo jogada na cama, olhando o teto, afligida pela
impossibilidade de entender a esses dois. Ento me dei conta. No eram licntropos, mas
eram humanos. Eu fui humana. Continuava tentando ser humana. Por que no podia me
pr em seu lugar? Tudo o que tinha que fazer era eliminar meu lado de loba, coisa que
levava anos tentando fazer. Mas necessitava algo mais para entender a esses assassinos.
No podia ser o tipo de humana que desejava: controlada, passiva, carinhosa. Tinha que
ser o que fui antes.
Todos os mecanismos de defesa de meu crebro montaram barreiras ou fizeram soar
alarmes. Ser o que era antes de Clay me morder? Mas eu fui, passiva, carinhosa. Clay
mudou isso. Antes dele eu era diferente. No era assim. Isso o que queria acreditar,
mas sabia que no era verdade. Sempre tive a capacidade de ser violenta. Clay percebeu
no instante em que nos conhecemos. O menino licntropo olhou menina vtima e viu
uma companheira de alma, algum que entendia o que significava criar-se alienado, com
adultos que analisavam nossa estranha conduta e crianas que zombavam. Aos oito anos,
Clay j era um licntropo com uma grande capacidade de violncia e um temperamento
correspondente. Quando eu tinha essa mesma idade, minhas famlias adotivas me
ensinaram a odiar, desenvolvendo minha prpria capacidade de violncia, embora tenha
conseguido ocultar melhor que ele, guardando-a em meu interior e me esforando para
mostrar ao mundo a garotinha passiva que esperavam ver. Era hora de encarar isso. Clay
no me converteu no que eu era. S me deu uma sada para descarregar a ira e o dio.
Agora, para salv-lo, tinha que voltar ali, de volta desconfiana, ao dio, a impotncia e
a fria, acima de tudo a fria, contra todos os que me fizeram mal. Ali encontraria a
mente de um assassino, um assassino humano.
Le Blanc odiava s mulheres. Possivelmente foi maltratado por sua me ou as garotas
riam dele no colgio ou possivelmente tivesse to baixa auto-estima que precisava sentir-
se superior a algum grupo de pessoas e escolheu s mulheres em vez dos negros ou dos
judeus. Se fosse a auto-estima, podia us-lo. Mas para encontrar a verdade, precisava
investigar sua vida, procurando algum sinal de sua psicopatologia. E no tinha tempo
para isso tampouco.
E Victor Olson? Comecei a deixar de lado a idia sem mais. Afinal de contas, nem
sequer conhecia esse homem. Mas era necessrio? Tirei os dois artigos que havia
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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imprimido da gaveta de meu guarda-roupa e os estudei. Alm do bvio, que era um
assassino e violador de meninas, o que me diziam de Olson? Sabia que acostumava
espreitar suas vtimas, compulsivamente. Em um artigo admitia ter sado toda noite
para ver suas vtimas dormirem, disse que ver seus rostos pacficos quando estavam
dormindo o relaxava e o ajudava a superar sua insnia crnica. Converter-se em
licntropo lhe curaria essa compulso ou essa insnia? obvio que no. O que indicava
que havia uma boa possibilidade de que Olson no houvesse abandonado seus velhos
padres de conduta, que continuasse vigiando a meninas que dormiam, aqui em Bear
Valley.
Sai de Stonehaven para encontrar Olson. Os artigos diziam que seu alvo eram
meninas de lares de classe mdia. Supus que procuraria casas de um s andar, para
poder espiar atravs de uma janela. Havia s dois bairros deste tipo em Bear Valley.
Tudo o que tinha que fazer era percorrer as ruas e cheir-lo.
Logo depois de dar voltas por Bear Valley mais de uma hora, comecei a perceber as
dimenses da tarefa. Efetivamente, s havia dois bairros, mas cada um constava de uma
dzia ou mais de ruas com ao menos cem casas. Tinha poucas horas antes do amanhecer.
Para cobrir a maior quantidade de terreno possvel, tive que dirigir lentamente com
todas as janelas baixadas... exceto a janela do condutor destroada, que agora estava
baixa de forma permanente. Por alguns momentos o vento me favoreceu. Mas na maior
parte do tempo no, e o nico que podia cheirar era o interior um pouco mido de meu
automvel pouco usado. Terminei o primeiro bairro e passei ao segundo. Uma hora mais
tarde, tambm tinha terminado com esse. No havia sinais de Olson. Talvez nem sequer
tivesse sado.
Estava dando uma ltima volta no bairro quando vi um automvel solitrio no
estacionamento de uma loja fechada. Ao passar notei que o automvel tinha uma
identificao de veculo alugado. obvio. Se os vira-latas no se escondiam na cidade,
como suspeitava, Olson necessitaria de um veculo para chegar a Bear Valley. Deixei
meu automvel em uma rua lateral e desci. No cheguei nem ao meio do caminho para a
loja fechada quando senti o aroma de um novo licntropo desconhecido.
Virava esquina e me detive. Um homem maduro, gordo, com um bluso cinza de
esquiar, caminhava pelo caminho, a menos de dez metros da esquina. Por sorte Olson
estava de costas para mim. Ia para seu automvel. Corri de retorno ao meu. Seu veculo
alugado passou quando eu virava em uma entrada de garagem. Com as luzes apagadas
o segui.
Quando samos de Bear Valley, meu corao comeou a pulsar s pressas. Tinha razo.
Estavam no campo. Olson me levava a eles. Tnhamos avanado para o noroeste quase
vinte minutos quando Olson entrou em um caminho coberto de vegetao que conduzia
ao interior do bosque. Parou o automvel logo que penetrou no bosque. Estava por
cumprir segunda parte de meu plano quando percebi que Olson no descia. Fiquei bem
longe e desliguei o motor para esperar. Passaram-se dez minutos. Ainda podia ver a
silhueta de sua cabea no automvel. Inclinei-me de lado, cuidadosamente abri a porta
do lado do acompanhante e deslizei para a banqueta.
Arrastei-me at o caminho. O bosque estava escuro. Inclusive quando meus olhos se
acostumaram escurido, no vi sinais de nenhuma casa. Ao me virar para o automvel
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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de Olson, vi que o caminho no levava a lugar nenhum. Era um ponto de retorno ou um
lugar de estacionamento para um automvel, onde faltava um caminho natural. Meti-me
no bosque e mais perto do automvel. Quando cheguei altura da porta do lado do
condutor parei e tentei ver na escurido, A cabea de Olson descansava contra o encosto
da cadeira. Tinha os olhos fechados. Dormia. Perguntei-me brevemente por que, mas a
pergunta era irrelevante. Possivelmente no pudesse dormir perto dos outros. Ou
possivelmente gostasse de estar s depois de espiar. No importava. O fato era que
Victor Olson no me conduzia de volta a Clay. Ao menos no essa noite, Mas no podia
esperar at a manh. Pela manh Jeremy saberia que sai. A Matilha me procuraria.
Embora conseguisse evit-los outro dia, isso significaria dar ao Daniel outras vinte e
quatro horas para decidir que qualquer acerto que pudesse fazer com a Matilha no
justificava perder a oportunidade de matar a seu velho inimigo. E o que aconteceria se
Olson no estivesse simplesmente fazendo uma pausa? O que aconteceria no voltasse
para onde estavam os vira-latas? Ele sabia onde Clay estava. E eu tinha que saber: essa
noite.
Em minha cabea se formou um plano enquanto olhava Olson dormir. Inclusive
enquanto o pensava, uma parte de mim rechaou a idia. Vacilei, logo me obriguei a
avanar atravs das rvores antes que pudesse mudar de idia. Aproximei-me do lado
do automvel, logo passei a mo pela janela do condutor. No momento em que Olson
comeou a despertar, eu j passava a mo atravs da janela. Puxei o cinto de segurana.
Deslizou-se por meus dedos enquanto o ajustava ao redor dele. Afastou a cabea para
trs para retirar a minha mo, mas eu j procurava alm dele. Inclinando-me para dentro
do automvel, agarrei o fecho de metal do cinturo e o retorci at quebr-lo e deix-lo
travado. Ento tirei a cabea do automvel.
Olson se virou, seguindo minha mo quando eu a retirei. Por um momento s teve a
expresso de um covarde que se prepara para receber o primeiro golpe. No momento em
que me afastei, estremeceu. Quando percebeu que eu retrocedia, franziu o cenho, depois
seus olhos se acenderam com um relmpago malvolo de astcia e sorriu. Com o olhar
baixou a mo direita ao fecho do cinto. Ento parou. Voltou a apertar o boto para soltar-
se, mas nada aconteceu. Ao perceber o que fiz, pegou o cinto e puxou, mas estava
fortemente ajustado a seu peito.
Eu sabia o que tinha que fazer, mas vacilei novamente. Podia faz-lo? Em minha mente
surgiu a imagem de Jos Carter. Disse-me que isto era diferente. Este no era um
humano enganador, e sim um assassino. Ainda assim, o que eu estava por fazer era o
que fiz ao Carter. E muito mais. Esse era o territrio de Clay. Eu poderia faz-lo? Deixar
de lada meus sentimentos e faz-lo? Olson um assassino, disse-me. Mais que um
assassino. Um doente pervertido que espreita meninas pequenas, meninas como a que
era eu faz tanto tempo. Fechei os olhos e me concentrei, at sentir a serpente da ira que
me percorria o corpo. Olson lutava com o cinto, mas era de um material que no ia se
quebrar facilmente. Ignorei-o e concentrei toda minha energia em minha mo esquerda.
Comeou a pulsar, logo a retorcer-se, e a dor percorreu meu brao. Abri os olhos e olhei.
Quando minha mo tinha Trocado pela metade, parei. Com a mo direita peguei a mo
direita de Olson. Rasguei-a com as garras de minha mo esquerda. Grunhiu, como um
coelho. Abriu-se um corte no dorso de sua mo. Comeou a brotar sangue. Peguei sua
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mo esquerda e fiz o mesmo. Grunhiu de novo e comeou a debater-se enlouquecido. O
sangue salpicou o volante e o painel.
Se voc se mexer, ser pior disse, mantendo a voz calma e Trocando minha mo a
humana . Se quer reduzir a hemorragia levante as mos.
Por que?
Por qu? Por que fao isto? Ou por que digo a voc que diminua a hemorragia? No
terei que responder a primeira. Obviamente sabe quem sou. Com isso basta. Quanto
segunda, no estou tentando matar voc. S quero informao. Se me der isso,
desamarrarei voc. Poder enfaixar seus pulsos e chegar a tempo ao hospital. Se no me
disser o que quero saber, estar se suicidando.
Qu... Olson engoliu . O que quer saber?
Tampouco necessita resposta. Mas como pode estar entrando em uma comoo, sem
poder pensar claramente, direi-lhe isso: Onde est Clayton?
No vou contar o resto da conversao. Olson no estava em condies de negociar ou
discutir e sabia. Tal como eu acreditava, importavam-lhe um caralho outros. S sua vida
lhe importava. Disse-me tudo o que precisava saber e mais, falou enlouquecido, como se
cada palavra que dissesse pudesse aumentar suas possibilidades de sobreviver. Quando
terminou, deixei-o em seu automvel. Pensei em soltar o cinto e lhe dar a oportunidade
de escapar. Afinal de contas tinha prometido. Nunca reneguei um trato, Ento pensei
nas meninas que violou e matou e imaginei todas as vezes que lhes fez promessas de no
as machucar, de no faz-lo mais. Ele no tinha cumprido. Por que eu teria que faz-lo?
Fui embora deixando Victor Olson morrer sangrado no bosque.



CONFRONTAO

Parei em um posto de gasolina e liguei para Stonehaven. As primeiras duas vezes me
atendeu a secretria eletrnica. A terceira vez Nick. Estava meio dormido e tive que lhe
repetir as coisas trs vezes antes que entendesse que no estava na casa. Ningum tinha
notado meu desaparecimento ainda. Dei-lhe instrues e lhe fiz escrev-las e depois l-
las para mim. Ento comeou a entender o que lhe dizia e o que eu pensava fazer.
Desliguei quando comeou a gritar.

Dez minutos mais tarde batia na porta do lugar onde se escondiam os vira-latas. Era
uma cabana em runa, localizada to profundamente no bosque que a luz da lua e as
estrelas no podiam penetrar atravs das copas das rvores. Parada no degrau da porta,
tentei escutar o sussurro do vento ou o canto de grilos, mas nada. O silncio e a
escurido eram completos.
Passaram vrios minutos sem resposta. Voltei a bater e esperei. Passaram-se mais
alguns minutos, mas no duvidei do que me disse Olson. Era o lugar indicado. Podia
sentir Clay aqui.
Golpeei a porta. Finalmente se quebrou a escurido com um mnimo raio de luz detrs
das cortinas da frente. Escutei passos em um piso de madeira. Olhei o trinco da porta e vi
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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que estava quebrado. Acima do trinco havia um buraco e lascas recentes, onde antes
havia um ferrolho. Realmente esperava que os vira-latas comprassem ou alugassem uma
cabana quando podiam forar a entrada? Que estpida. Quanto tempo desperdiado.
A porta se abriu. Levantei os olhos. Levei alguns segundos para reconhecer que o
homem parado ali era Karl Marsten, em parte devido falta de luz e em parte por sua
vestimenta. Vestia s a cala do pijama e seu peito nu mostrava msculos e cicatrizes
normalmente ocultas sob suas camisas de cem dlares. Piscou e forou a vista, depois
amaldioou e saiu, fechando a porta.
Que caralho faz aqui? disse com um grunhido sussurrado.
Olhei a porta fechada.
Teme que desperte a sua esposa?
Mi...? Olhou por sobre o ombro para a porta, depois se virou para mim, com sua
expresso tranqila de sempre. Estou seguro de que este um plano maravilhoso,
Elena, mas realmente tenho que aconselhar voc de que no o leve a cabo. Se entrar ali,
ser presa ou morta. Nada disso convm a voc.
Assim saiu para me alertar? Caralho, ainda restam cavalheiros.
Conhece-me. Se vir uma oportunidade, aproveito-a.
Assim me deixar ir em troca de...?
Aquilo pelo que vim. Seus olhos brilharam, e algo duro atravessou o sangue-frio.
Territrio. Se me prometer isso, deixarei voc ir. E irei. Um vira-lata a menos para
preocupar a Matilha.
A merda com outros?
Daniel me faria o mesmo. No escutei meu nome no acordo que props a voc no
caf.
Sacudi a cabea.
No importa. No vou.
Estendi a mo para pegar a porta. Marsten me agarrou o pulso, apertando o suficiente
para me deixar marcas.
No seja estpida, Elena. No o tirar assim.
Assim como? a voz de Daniel se escutava tranqila, calma, ao abrir a porta. Olhou
Marsten nos olhos. Assim como, Karl?
Estava dormindo bem, Danny? Por Deus, toda a Matilha poderia estar uivando em
sua porta antes que despertasse. Marsten dirigiu um olhar de desprezo a Daniel e me
enfiou na cabana.
uma emboscada, idiota. Elena no viria sozinha. Coloque seus criados para
procurar no bosque. Que sirvam para algo.
No sei se Daniel discutiu com ele. Estava muito ocupada em me levantar do cho,
depois que o empurro de Marsten me jogou ao outro lado do quarto. Antes que pudesse
ver o que acontecia detrs de mim, Marsten ps um joelho em minhas costas e me
aprisionou contra o cho. Pensei que me amarraria. No foi assim. Possivelmente
Marsten no considerou que eu representasse muita ameaa. Em poucos instantes senti
passos detrs de mim. Cheirei ao Blanc que se unia a Daniel e a Marsten.
Foi Olson disse Daniel.
Suponho que se foi de tudo disse Marsten . Como ela poderia nos encontrar se no
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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fosse assim? Grande perda para a causa. Nunca se sabe quando algum necessitar de
um violador de meninas.
Tinha outras... disse Daniel, mas se interrompeu . Thomas, fora. Procura os outros.
Le Blanc fechou a porta com uma batida ao sair.
Esse sim um cachorrinho leal disse, levantando a boca do cho . Sabe que tentou
me matar no aeroporto, antes que fosse para Toronto.
Um momento de silncio. E ento Daniel riu.
Boa tentativa, L. Tenta nos dividir?
No parece necessrio.
Vamos, vamos, Elena, disse Marsten, me esmagando mais contra o piso . Por mais
que admiremos essa lngua que tem, no o momento de us-la.
No se esquea de quem est l embaixo disse Daniel . Agora no est em
condies de defend-lo.
Fechei a boca e calculei quanto tempo demorariam Jeremy, Antnio e Nick para
chegar. Ao menos quinze minutos para despertarem, vestirem-se e entrarem no
automvel, outros trinta para chegarem. Quando Blanc voltou em dez minutos, soube
que no encontrou ningum. A Matilha demoraria ao menos dez minutos mais.
No h ningum disse Blanc, sacudindo o barro das botas.
Pegue o automvel disse Daniel . D uma volta e se assegure de que assim.
Verifique se h algum veculo ao lado caminho. Teriam que vir de carro.
Por um momento Le Blanc no se moveu. Pensei que ia dizer a Daniel que fosse a
merda. Em troca, pegou um bluso e algumas chaves e saiu. Esta vez demorou ao menos
vinte minutos, tempo no qual nem Daniel nem Marsten disseram uma palavra. Quando
Le Blanc finalmente voltou, Consegui virar a cabea e o vi sorridente.
O que aconteceu? disse Daniel.
Isto vai encantar voc a cavalaria foi detida. Dirigiu seu sorriso de tubaro para
mim. Esto em Pinecrest, Mal saram estrada, desfrutando da hospitalidade do
departamento de polcia local. A polcia os fisgou. No sei por que, mas esto
desarmando o automvel pea por pea. O que voc acha?
Parece-me que fala tolices disse. Seu sorriso ficou mais largo.
Ford Explorer verde, no verdade? Trs caras? Os trs de cabelos escuros. Dois de
mais de um metro oitenta, magros. O mais velho mais baixo que eu, de ombros largos.
Quando passei, o mais jovem tentava fugir para o bosque. Os policiais o agarraram e o
jogaram no cho.
Tolices disse.
Le Blanc riu.
No tem o mesmo ar altivo de recentemente.
Basta desse Marsten, me pondo de p de um puxo. No vai det-los para
sempre. Dobrou meus braos para detrs das costas e levou as duas mos prendendo-
as em uma mo. Tommy, traz para nosso outro convidado para cima. hora de ir.
Le Blanc se virou para olh-lo.
Ir? No era isto o que queriam? Acabar com esta Matilha? Aqui temos dois. Os
ltimos trs vm a caminho. Trs contra trs e j sabemos que vm. Temos a vantagem.
Traz Clayton para cima disse Daniel.
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
232
Que caralho est acontecendo? Le Blanc olhou para Marsten e para Daniel.
o grande momento. O enfrentamento decisivo. Hora de matar. No me digam que
no tm culhes.
Temos mais crebro que testculos disse Marsten . Por isso continuamos com vida.
Agora v buscar Clayton. Temos a ele e a Elena. Isso garante que logo poder brigar,
com a vantagem de nossa parte.
Le Blanc olhou com desprezo para Marsten e desapareceu por um corredor lateral.
Eu apertei os dentes e me concentrei em meu plano. Estavam os outros realmente nas
mos da polcia? No acreditava. No podia acreditar. Mas vi a polcia por a Se
vinham pela estrada a toda velocidade com o mesmo veculo que tanto interessou
polcia no outro dia...? Por que no alertei Nick?
Bom. Tranqila. Hora de passar ao plano B. Se to somente tivesse um plano B.
Enquanto pensava, Marsten me fez girar Daniel estava sentado no brao de uma
poltrona que cheirava a umidade. Saram duas figuras de outro quarto. Algum
cambaleou. Vi um brilho de cachos loiros quando caa.
Clay!
Sem pensar, lancei-me para ele. Marsten, que ainda me prendia pelos pulsos, puxou-
me para trs, to forte que me deixou sem ar. Clay estava de joelhos, com as mos
amarradas para trs. Com esforo levantou a cabea e me olhou nos olhos. Por um
segundo seus olhos tentaram me ver. Ento me reconheceu em meio bruma das drogas.
No sussurrou, sua voz apenas audvel . No.
Apenas se moveu. O p de Blanc se levantou por detrs e o chutou nas costas, fazendo-
o cair de cara ao cho.
No! Gritei.
Lancei-me contra Le Blanc. Novamente Marsten me atirou para trs e quase me
deslocou os braos. No me importei. Continuei puxando. Le Blanc pegou Clay pelas
algemas e o levantou.
Deixa-o ali. disse Marsten. Quando Le Blanc passou junto a ele, Marsten lhe tirou
algo da cintura com sua mo livre. Era a arma.
Alguma vez vai deixar a chupeta?
Le Blanc tentou pegar a pistola. Marsten a sustentou fora de seu alcance.
Um homem lobo com uma arma de fogo? disse Marsten. Que dia triste. Que idia
brilhante, Daniel. Converter um monto de humanos assassinos em licntropos. Por que
no me ocorreu?Possivelmente porque ... estpido. Nunca vai conseguir que deixem as
armas, Danny.
A minha esquerda podia ouvir a respirao de Clay. Obriguei-me a no olh-lo.
S mais alguns minutos. Enquanto Marsten e Daniel discutiam o que fazer, olhei meu
relgio furtivamente. Dez para as seis. Se a polcia deteu Jeremy, quanto tempo o
reteriam? Quanto mais teramos que esperar? Era tudo o que me ocorria como plano
alternativo? Aguardar que viessem em nossa ajuda? No servia. Podiam lev-los a
delegacia de polcia e os manter ali por horas. Jeremy estaria enlouquecido, mas a nica
alternativa seria matar aos policiais e no o faria a menos que fosse absolutamente
necessrio. Saberia que Daniel manteria eu e Clay como refns. No nos mataria, ao
menos por agora. Dado que o perigo no era imediato, Jeremy esperaria que
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
233
terminassem os trmites policiais. Mas para quando chegasse, possivelmente no
estaramos aqui. Melhor dizendo, no amos estar. Daniel j estava pegando sua carteira
e as chaves de seu automvel.
Olhei para Clay. Continuava jogado, com o rosto para o cho. Suas costas era uma
colcha de retalhos de contuses violetas, amarelas e negras, com reas vermelhas
inchadas e corte. Sua perna esquerda estava torcida para um lado, como se estivesse
quebrada e o tivessem obrigado a caminhar. Suas costas subiam e desciam com
movimentos leves. Olhei-o e soube o que tinha que fazer.
Tnhamos um trato disse, me dirigindo a Daniel . Estou aqui. Solta-o.
Ningum respondeu. Marsten e Daniel me olharam como se houvesse ficado louca.
Faz uma hora, esta era exatamente a reao que eu esperava. Pensava em aparecer na
porta e me entregar a Daniel. obvio que se sentiriam confuso. Em algum momento,
entre a surpresa e a eventual celebrao, chegaria a Matilha. Minha verso do velho
truque do Cavalo de Troya s que no havia guerreiros vista. O presente estava no
campo inimigo e no havia modo de tir-lo dali agora.
No... se... atreva. O sussurro de Clay chegou do cho.
Levantou a cabea o suficiente para me olhar com dio. Eu desviei o olhar. Todos os
outros o ignoraram. Pela primeira vez em sua vida, Clay estava com um grupo de vira-
latas que no lhe prestavam ateno. No s lhe tiraram as foras, mas tambm a
dignidade. Era minha culpa. Supunha-se que em Toronto eu devia permanecer perto
dele, mas no o fiz. O que foi que me distraiu tanto que deixei Clay? Uma proposta de
casamento de outro homem. Meu estmago se retesou ao recordar.
Virei-me para Daniel.
Queria-me, me tem. Queria Clay de joelhos. Tem-no. Agora cumpra sua parte do
acordo. Deixa-o ir e irei contigo agora mesmo. Esforcei-me para ver Marsten. Faa que
ele deixe Clay aqui e ter seu territrio. Clay dir a Jeremy que fiz o acordo. Ele
cumprir.
Mais silencio. Marsten e Daniel pensavam. Tinham o que queriam. Bastava-lhes? No
queriam um enfrentamento cara a cara. Passava o tempo e com cada segundo aumentava
a probabilidade de que aparecessem Jeremy, Antnio e Nick. Eu resistiria a que me
tirassem daqui. Sabiam. Teriam que me dominar e me amarrar e ento levar ao Clay e a
mim ao automvel.
No h acordo.
Levantei a cabea. A resposta veio do lado de Daniel, mas no soava como se fosse sua
voz. Detrs de Daniel, Le Blanc se adiantou, com as mos nos bolsos.
No h acordo repetiu. Sua voz era suave, mas cortava o silncio como uma
navalha.
Marsten riu baixo.
Ah, a revolta dos camponeses. Suponho...
Antes que pudesse terminar; a mo de Le Blanc saiu de seu bolso. Houve um brilho
prateado. Sua mo apareceu de repente diante da garganta de Daniel e cortou
horizontalmente. Por um milisegundo pareceu que nada tinha acontecido, Daniel ficou
ali, parecia um pouco confuso. Ento sua garganta se abriu em um talho vermelho.
Brotou sangue. Daniel levou as mos a seu pescoo. Seus olhos saam das rbitas, sem
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
234
poder acreditar no que acontecia. O sangue se derramou entre seus dedos e desceu por
seus braos. Abriu a boca. Lanou uma bola rosa, como uma macabra borracha de
chicletes. E ento se caiu no cho.
Fiquei piscando com os olhos em Daniel, to incapaz de acreditar que estava morrendo
como ele. Daniel morria. O vira-lata que foi o maior perigo para a Matilha por toda uma
dcada, que soube esquivar-se das manobras de Clay e das minhas para que cometesse
um erro que justificasse execut-lo. Morto. E no logo depois de uma briga longa e
perigosa. No morto pelo Clay. Nem sequer por mim, mas sim por um vira-lata com
uma faca. Morto em um instante. Com um truque to covarde e to completamente
humano que Marsten e eu no pudemos fazer outra coisa que ficar olhando.
Enquanto Daniel jazia ali, tentando respirar, agonizando no cho, Le Blanc passou
sobre ele como se fosse um tronco cado. Levantou a lmina. Estava quase limpa, s
havia algumas gotas vermelhas na borda.
No h acordo disse, avanando para Marsten.
Marsten pegou a arma da mesa e apontou para Le Blanc.
Sim, j sei. Disse que os verdadeiros licntropos no usam armas. Mas vai descobrir
que sei me adaptar quando se trata de salvar meu couro . Marsten sorriu, os olhos frios.
Este seu duelo? Faca versus pistola? Quer apostar quem vence?
Le Blanc brincou com a faca, como se pensasse na possibilidade de atir-la. Ento
parou.
Homem inteligente disse Marsten. Que tal economizamos um pouco de sangue e
fazermos um novo acordo? Partes iguais. Eu fico com Clayton. Voc com a Elena. Daqui
iremos por caminhos separados.
Como Le Blanc no respondeu, Marsten continuou.
o que quer, no verdade? Por isso matou Daniel, porque Elena humilhou voc e
ainda quer vingana.
Pelo olhar na cara de Le Blanc soube que no matou Daniel para me ter. No o tinha
matado para conseguir nada. Le Blanc se juntou a esta batalha porque gostava de matar.
Agora que se aproximava o fogo alto, Voltou-se contra seus companheiros, no por ira
ou avareza, a no ser simplesmente porque estavam ali, mais vidas para liquidar antes
que se acabasse a diverso. Agora analisava as coisas. Tinha que dar-se por satisfeito se
ficava comigo? Ou podia tambm acabar com Marsten e com Clay?
No a desejas? perguntou Le Blanc . Acreditei que todos vocs a desejavam.
Nunca fui dos que seguem a corrente disse Marsten . Embora Elena tenha seus
encantos, no se enterneceria com meu estilo de vida Eu quero territrio. Clayton uma
pea melhor para negociar. E estou seguro de que vai se divertir mais com Elena
Filho da puta rugi.
Virei-me, me soltando de Marsten. Apontei um golpe a seu estmago, mas se moveu
no ltimo instante e meus ndulos lhe roaram o flanco. Seu p enganchou-se no meu e
me jogou ao cho. Minha cabea bateu em uma quina de um armrio para rifles vazio,
Desfaleci por um tempo. Quando me recuperei, os olhos cinza de Marsten perfuravam os
meus. Pisquei e tentei me deter, mas me tinha contra o cho. Trocou de posio e
empurrou meu queixo para que ficasse olhando parede.
Est inconsciente disse, ficando de joelhos . Muito melhor. J no restam muitos
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
235
sedativos.
Inconsciente? Voltei a piscar, lentamente, sentindo que meus olhos se fechavam e
voltavam a abrir-se. Olhava uma fila de dejetos de camundongo ao longo da parede.
Estava claramente acordada Marsten no me viu abrir os olhos? Comecei a elevar a
cabea, depois pensei melhor e fiquei quieta. Que pensassem que estava inconsciente.
Necessitava de todas as vantagens que pudesse ter.
Marsten parou. Ouvi-o afastar-se alguns passos.
O que est fazendo? perguntou Le Blanc em tom agudo.
Levo minha parte do despojo e parto, que o que sugiro que voc faa tambm. Se
Elena no for prmio suficiente, pode ficar com todo dinheiro de Daniel e Vic que
houver.
No o desamarre disse Le Blanc.
Marsten sussurrou.
No me diga que Daniel tornou voc paranico tambm. Clayton mal respira. No
poderia machucar a um Chihuahua. Estou apressado. Se puder caminhar quero que o
faa.
No acordamos nada ainda.
Com os olhos fechados, movi lentamente o queixo, depois os espiei. Marsten estava
inclinado sobre Clay. Tinha-o de joelhos. Clay oscilava. Via-se apenas o azul de seus
olhos semicerrados. A pistola estava a apenas trs metros, abandonada. Duvidava que
Marsten soubesse us-la.
Disse que deixasse de desamarr-lo disse Blanc.
Por Deus murmurou Marsten . Bom.
Endireitou-se. Mas ento, ainda antes estar bem parado, lanou-se contra Le Blanc.
Marsten e Le Blanc caram no cho. Enquanto os dois brigavam, coloquei-me em quatro
patas e fui para junto de Clay. Quando peguei as algemas, levantou sua cabea. Olhou-
me por sobre o ombro.
Vai grasnou.
Peguei os dois extremos da corrente e puxei com fora. Os elos se estiraram, mas no
se quebraram.
No h tempo disse tentando virar-se para mim . Vai.
Ao olhar seus olhos soube o quanto estive equivocada. No vim para lev-lo de volta
ao Jeremy ou Matilha. Vim busc-lo para mim. Porque o amava, amava-o tanto que
estava disposta a arriscar tudo ante a menor esperana de salv-lo. Inclusive nesse
momento, ao me dar conta que ele tinha razo, que no tinha tempo de tir-lo, sabia que
no ia deix-lo ali. Preferia morrer.

Olhei em redor enlouquecida em busca de uma arma, ento me detive. Arma? Estava
procurando uma arma? Havia ficado louca? J tinha a melhor arma possvel. Se s
tivesse tempo para me preparar. Coloquei-me em quatro patas e me concentrei.
Vagamente escutei Clay grunhir meu nome. Afastei-me. A Mudana se iniciou em seu
ritmo normal. No bastava. No havia tempo suficiente! Meus pensamentos se
converteram em pnico por um momento. Tentei control-los, ento percebi que a
Mudana se acelerava. Deixando de lado todo controle, deixei que meus temores me
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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dominassem. Se fracassasse, morreria. Se fracassasse, Clay morreria. Havia feito tantas
coisas erradas. O temor e a dor se retorceram dentro de mim. Dobrei-me e me rendi a
eles. Houve um relmpago agnico. E logo a vitria.
Parei. Vi Le Blanc inclinado sobre o corpo cado de Marsten. Levantava a mo. A
lmina da navalha cintilou. Le Blanc se deteve e me olhou. Lancei-me contra ele. Deixou
a faca cair e rodou para um lado. Saltei com muita fora e ca torcida, dando uma
cambalhota, bati contra a parede e quando me recuperei, Le Blanc j no estava.
Escutei uma voz e virei-me em sua direo. Marsten se levantava, tentando respirar.
Apontou a porta de trs aberta e tossiu sangue. Saiu mais sangue dos cortes em seus
braos e do seu peito. Olhei a porta traseira. No podia deixar Le Blanc escapar. Uma
mulher o fez correr. No descansaria at obter sua vingana. Marsten disse algo, mas no
pude entend-lo. O sangue golpeava meus ouvidos, me urgindo a seguir Le Blanc. Ia
para a porta. Detrs de mim, Clay se queixou ao tentar equilibra-se. Virei-me para
Marsten. No ia machucar Clay. Abaixando a cabea grunhi. Marsten ficou petrificado.
Moveu os lbios. S um monto de sons incompreensveis. Agachei-me mais.
Elena! disse Clay
A ele sim podia entender. Detive-me. Clay estava de p agora.
No... perca... tempo disse.
Olhei para Marsten. Disse uma palavra. Ainda no podia entend-lo, mas podia ler
seus lbios. Territrio. Era tudo o que queria. Tudo o que lhe importava.. Soube que eu
estava consciente no cho. Eu tinha servido a seus planos. Era um filho da puta
traioeiro, mas no faria mal a Clay. Matar Clay no daria a Marsten o territrio que
queria. T-lo vivo e a salvo sim.
Grunhi uma vez mais para Marsten, depois sa correndo atrs de Le Blanc.
Foi fcil encontrar seu rastro. Nem sequer tive que procurar seu aroma. Podia escut-lo
correr no meio da vegetao. Idiota, lancei-me ao bosque e comecei a correr. Senti os
galhos que se enganchavam em minha pele e golpeavam minha cara. Fechei os olhos
quase por completo para proteg-los e continuei correndo. Le Blanc havia aberto um
caminho na vegetao. Segui-o. Poucos minutos mais tarde o bosque ficou silencioso. Le
Blanc havia parado. Teria percebido que sua nica esperana era Trocar Constru a
armadilha e verifiquei a brisa. O vento do leste trazia leves rastros de seu aroma, mas
quando me chegou o vento do sudeste, vinha carregado dele. Levantei uma pata
dianteira e a deixei cair sobre folhas mortas. O cho estava molhado do orvalho matinal e
meus passos mal se escutava. Bom. Virei para sudeste e avancei para os rastros.
A noite j tinha passado. O amanhecer iluminava as copas das rvores e chegavam
raios dispersos de sol ao cho do bosque. Ao passar por um buraco de luz, senti o sol nas
costas e a promessa de um dia caloroso de final da primavera. A vegetao alta e os
arbustos lanavam sua sombra mida ao ar, a terra fresca da noite se elevava para
encontrar-se com a clida manh. Inalei a umidade, fechando os olhos para desfrutar do
limpo aroma de nada. Um pssaro comeou a cantar a minha esquerda. Uma manh
bonita. Voltei a inalar, bebendo o ar, sentindo que o medo da noite cedia excitao da
caa. Aqui terminaria. Tudo terminaria nesta bonita manh.
Quando senti a respirao de Le Blanc, detive-me. Inclinou a cabea para escutar.
Estava agachado detrs de alguns arbustos, respirando com dificuldade enquanto
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
237
Trocava. Avancei lentamente at me encontrar no limite da clareira e olhei atravs da
vegetao. Tal como supus pela altura do som de sua respirao, estava agachado. Mas
me equivoquei em relao a uma coisa. No estava Trocando. Nem sequer tinha se
despido. Senti um tremor de excitao. Ele estava com medo, mas em vez de entregar-se
ao medo, lutava com a Mudana. Coloquei o focinho entre a vegetao e bebi o sabor de
seu medo. Isso me elevou a temperatura, convertendo o entusiasmo em algo um pouco
parecido com a luxria. Le Blanc podia ter me assustado no estacionamento do
aeroporto, mas este era meu terreno.
Le Blanc se acomodou e se inclinou para frente para olhar de seu lugar Usa o olfato,
pensei. "Fareja e saber a verdade". Mas no o fez. Levou uma perna para trs. O joelho
se dobrou e ficou congelado, respirando agitado. Movia a cabea de um lado a outro,
escutando e olhando. Levantou a navalha, abriu-a e logo esperei que o som me levasse a
ele. Algo mais frente um gato ou uma raposa ou algo igualmente pequeno e silencioso.
Le Blanc se retesou, levantando a faca. Idiota. Estava me cansando disto. Queria correr.
Queria caar. Retrocedi uma dzia de passos. Logo levantei o focinho e uivei. Le Blanc
saltou do matagal e correu. Eu o persegui.
Le Blanc levava a dianteira. Deixei-o mant-la. Andamos entre os arbustos e as
rvores, saltando troncos, pisoteando flores silvestres e fazendo que dois faises se
lanassem ao cu. Continuou avanando se aprofundando no bosque. Finalmente deixou
de correr. Quando percebi que j no podia ouvi-lo, desemboquei em uma clareira. Algo
cortou minha perna traseira e ca para frente no pasto. Ao cair me virei e vi Le Blanc
parado atrs, com as pernas separadas, em pose de lutador que espera o ataque seguinte.
Fez uma careta e disse algo. No precisava ouvi-lo para saber o que dizia. Vem me pegar.
Senti um enorme prazer. Realmente era um idiota.
Sem vacilar, agachei-me e saltei sobre ele. No me incomodei em tentar evitar a
navalha. No importava. Senti que a lmina me cortava levemente o lado do pescoo e se
deslizava sobre meu ombro. O sangue se derramou quente sobre minha pele. Mas no
era um jorro e a dor no era mais que um pequeno incmodo. Minha pele era muito
grossa. A faca s me arranhou. O brao de Le Blanc retrocedeu para lanar outro ataque,
mas j era muito tarde. J estava sobre ele. Caiu para trs, e a lmina saltou de sua mo
para ir desaparecer entre as rvores. Quando minha cara ficou frente sua, seus olhos se
abriram. Sobressalto. Incredulidade. Temor. Permiti-me beber em sua derrota um longo
tempo. Ento lhe abri a garganta com uma dentada.



PREPARADA

Jeremy, Antnio e Nick apareceram finalmente na cabana. Entraram quando eu
utilizava as amarras de Clay para prender Marsten. Naturalmente Jeremy estava
incrivelmente impressionado por quo bem dirigi as coisas por minha conta e jurou
nunca me deixar fora de nada. Sim, claro. Na realidade suas primeiras palavras eu no
posso repetir. Ento disse que se alguma vez eu voltasse a fazer algo to estpido, ele...
bom, essa parte tampouco, posso repetir embora Clay, Antnio e Nick a repetiram
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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rapidamente, adicionando cada um suas prprias ameaas. Assim, a alma valente que
salvou o dia teve que ir-se com o rabo entre as pernas, sentada no banco traseiro de seu
prprio automvel. Poderia ser pior poderiam ter me colocado na mala. Na realidade,
Nick sugeriu isso, mas s estava brincando... acredito.

Jeremy deu a Marsten seu territrio. Wyoming para ser precisos. Quando Marsten se
queixou, Jeremy ofereceu trocar por Idaho. Marsten se foi murmurando algo a respeito
de chapus de dez gales e calas de vaqueiro. obvio que no se conformaria retirando-
se a um rancho. Voltaria em busca de um territrio mais adequado a seu estilo de vida,
mas no momento sabia que devia fechar a boca e pegar o que lhe oferecia.

Clay demorou um tempo para curar-se. Muito tempo na realidade. Tinha uma perna e
quatro costelas quebradas e um ombro deslocado. Tinham batido tanto nele que sentia
dor deitado, sentado, parado... em todo momento. Estava exausto, esfomeado,
desidratado e cheio de drogas em quantidade suficiente para ter a um rinoceronte
deitado durante um ms. Passei uma semana em uma cadeira junto a sua cama antes de
me sentir tranqila de que ia sobreviver. Inclusive ento, s saia de seu quarto para
preparar a comida e s porque decidi que o que Jeremy cozinhava estava fazendo mais
mal que bem a Clay.
Eu tinha que voltar para Toronto. Na realidade soube disso desde o primeiro dia, mas
estive pospondo, me dizendo que Clay estava muito doente, Jeremy necessitava de
minha ajuda na casa, o Camaro no tinha combustvel, qualquer desculpa que pudesse
encontrar, mas tinha que voltar. Philip me esperava. Tinha que averiguar como pensava
dirigir-se ele frente ao que viu. Terminado isso, voltaria para Stonehaven. No havia
dvida de qual ia ser meu lar. Possivelmente nunca houve. Stonehaven era meu lar. A
idia ainda me incomodava. Suponho que nunca fosse me sentir tranqila com esta vida,
porque no a escolhi e eu era muito obcecada para nunca aceitar algo que me foi
imposto. Mas Clay tinha razo Aqui eu era feliz. Sempre haveria uma parte humana de
mim que veria mal esta forma de vida, uma moralidade humana que se sentiria afligida
pela violncia, vestgios de puritanismo que se rebelaria contra a total imerso na
satisfao de necessidades e urgncias primitivas. Mas inclusive quando Stonehaven no
me fazia feliz, quando eu estalava furiosa com Jeremy ou com Clay ou contra mim
mesma, de um modo perverso continuava me sentindo contente e satisfeita.
Tudo o que procurava no mundo humano encontrava aqui. Queria estabilidade?
Tinha-a em um lugar e com pessoas que sempre me receberiam com os braos abertos,
fizesse o que fizesse. Queria uma famlia? Tinha-a em minha Matilha, com uma lealdade
e um amor que iam alm da simples etiqueta de me, pai, irm, irmo. Portanto, ao
perceber que tudo o que queria estava aqui me senti preparada para deixar de lado
minhas aspiraes humanas e me enterrar para sempre em Stonehaven? obvio que no.
Sempre precisaria encaixar no mundo. No havia terapia ou auto-anlise que fosse
mudar isso. Ainda tentaria ter um trabalho no mundo humano, talvez escapar por um
tempo quando a vida isolada da Matilha me afligisse. Mas Stonehaven era meu lar. J
no fugiria.
E tampouco podia continuar fugindo de mim mesma. No me refiro parte de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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licntropo que h em mim. Acredito que aceitei isso muitos anos antes, possivelmente
inclusive o desfrutei porque me dava a desculpa para tantas coisas na vida. Se me
mostrasse beligerante e cortante, era pelo sangue de loba que fala em minhas veias. Se
atacasse outras pessoas, novamente o sangue de loba.
E o mesmo a respeito de toda tendncia violenta. Das mudanas de humor? Zangada?
Propensa a explodir? Caralho, tinha motivos para isso, no verdade? Eu era um
monstro. E isso no exatamente uma condio que fomente a paz e a harmonia interior.
Mas tinha que admitir a verdade. No foi me converter em licntropo o que me fez
assim. Bastava pensar em Jeremy, Antnio, Nick, Logan, Peter. Cada um deles podia
compartilhar alguma de minhas caractersticas menos atrativas, mas o mesmo
aconteceria com qualquer estranho que pudesse encontrar na rua. Sim, ser licntropo me
fazia mais capaz de agir em funo da ira e viver neste mundo fazia que tal conduta
fosse mais aceitvel, mas tudo o que eu sou, j o era antes que Clay me mordesse.
obvio que sab-lo e aceit-lo eram duas coisas diferentes. Ainda tenho que trabalhar
nisso.

Demorei quase um ms desde aquele dia em Toronto para entender o que Clay quis
dizer quando assegurou que sabia por que escolhi Philip e por que a minha relao com
ele no daria certo. As primeiras duas semanas depois de que recuperamos Clay foram
um inferno, alguns dias nem sequer estava segura de que fosse sobreviver. Pelo menos
assim me parecia. Olhava-o inconsciente na cama e de repente me parecia que seu peito
tinha deixado de se mover. Chamava Jeremy. No, apaguem isso. Gritava por Jeremy e
ele vinha correndo. obvio que Clay estava respirando perfeitamente, mas Jeremy nunca
me fez sentir que estava exagerando. Murmurava algo a respeito de que ficava
brevemente sem flego, possivelmente uma pequena apnea, e examinava Clay
exaustivamente antes de sentar-se na cadeira ao lado da cama para vigi-lo se por acaso
houvesse uma "recada". Na terceira semana, Clay j recuperava a conscincia por
perodos mais prolongados e at eu tinha que reconhecer que o perigo por fim parecia ter
passado. O que no quer dizer que eu deixasse de acampar ao lado de sua cama. No o
fiz. No podia. E enquanto eu insistia em estar ali, Jeremy insistiu em me substituir em
meu posto enquanto eu dormia ou ia correr, embora ns dois soubssemos que essa
vigilncia constante s era necessria para que eu ficasse tranqila.
Perto do fim da terceira semana, voltei depois de tomar banho e me encontrei com
Jeremy em meu lugar junto cama de Clay na mesma pose vigilante em que o deixei
vinte minutos atrs. Fiquei junto porta observando-o, as olheiras, seu rosto magro.
Soube ento que tinha que parar, me controlar e admitir que Clay estava bem e
continuaria assim ou inclusive melhoraria sem necessidade de vigilncia permanente.
Se eu no deixasse de faz-lo, terminaria destruda e Jeremy me seguiria sem protestar.
Sente-se melhor? perguntou sem virar-se.
Muito melhor.
Estendeu a mo para trs e pegou a minha quando me aproximei.
Logo vai despertar. Seu estmago grunhe.
Deus queira que no perca o jantar.
Falando disso, voc e eu vamos sair esta noite. A algum lugar aonde terei que ir de
Matilha Mulheres de outro mundo - 01
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terno e gravata e barbeado, ao menos eu. Antnio e Nick vm. Eles ficaro com Clay.
No nece...
muito necessrio. Precisa sair. Deixar de pensar nisto. Clay ficar bem. Levaremos
seu telefone celular para o caso de que algo acontea.
Enquanto assentia e me sentava na cadeira junto a Jeremy, a resposta incgnita de
Clay me assaltou de repente com tanta fora que tive que me sustentar. E me deu um
golpe em castigo por no ter percebido antes. Por que escolhi Philip? A resposta esteve
me olhando cara desde meu retomo a Stonehaven, de quem Philip me lembrava? De
Jeremy, obvio.
Devo dizer em minha defesa que Jeremy e Philip, ao menos em seu aspecto exterior,
no tinham muito em comum. No se pareciam fisicamente, No tinham os mesmos
gestos. Nem sequer agiam do mesmo modo. Philip no tinha o mesmo controle de suas
emoes que Jeremy, nem seu autoritarismo, nem sua calada reserva. Mas essas no
eram as qualidades que eu mais admirava em Jeremy. O que vi em Philip foi um reflexo
mais superficial do que valorizava em Jeremy: sua pacincia sem limites, sua
considerao, sua bondade inata. Por que subconscientemente procurei algum que
recordasse ao Jeremy? Porque em Jeremy eu via uma verso infantil do Prncipe
Encantado, algum que me levasse flores e cuidasse de mim alm de qualquer cagada eu
fizesse. O problema era que no me sentia atrada sexualmente por Jeremy. Amava-o
como amigo, como lder e como figura paterna. Nada mais. De modo que ao encontrar
uma verso humana de meu ideal, encontrei a um homem por quem estava segura de
que ia amar, mas nunca com a paixo que podia chegar a sentir por um amante.
Isso me fez sentir melhor? obvio que no. Ao me desculpar por no poder sentir
amor sexual pelo Philip, queria poder dizer que se devia a algum problema dele, algo
que lhe faltava. A verdade que tudo se devia a mim. Tinha me equivocado e, por
melhor e decente que fosse Philip, ele ia sofrer por isso.

Depois de cinco semanas de adiar o retorno a Toronto, decidi faz-lo de uma vez. Clay
dormia a sesta. Eu estava na cama junto a ele, cochilando, quando me dei conta que tinha
que partir nesse mesmo momento, antes que mudasse de idia. Levantei-me e escrevi um
bilhete para Clay. Jeremy estava no fundo arrumando o muro de pedra. No lhe disse
aonde ia. Temia que ele quisesse primeiro me fazer jantar ou que o esperasse para que
ele pudesse me levar ao aeroporto ou alguma outra demora que me desse tempo de
perder o impulso.

No liguei para Philip para lhe dizer que iria. Escutar sua voz era uma coisa mais que
podia me fazer mudar de idia. Fui direto ao apartamento e entrei. Ele no estava.
Sentei-me no sof para esper-lo. Voltou uma hora mais tarde, ofegando por ter
caminhado sob o calor de junho. Abriu a porta, viu-me e se deteve.
Ol disse, conseguindo produzir um dbil sorriso.
Vi o temor em seus olhos e ento soube que a coisa nunca poderia da certo. Por mais
que conseguisse se ntima com um ser humano, se soubesse da verdade a respeito de
mim, sempre haveria medo. No havia modo de super-lo.
Ol disse por fim . Vacilou, depois fechou a porta e secou o suor do rosto. Depois
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de tomar o tempo necessrio para recuperar o flego, deixou a toalha na mesa do
corredor e veio para sala.
Quando chegou?
Acabo de chegar. Como est?
Bem. Recebi suas flores. Obrigado. Respirei fundo. Por Deus, que incmodo isto
era. Sempre foi assim? Tinham passado somente cinco semanas e j no podia recordar
como falvamos. J no havia nenhuma sensao de familiaridade.
Seu ferimento... ah... deve estar melhor disse . Se foi correr.
Fui caminhar. Correr no. Ainda no.
Deu de ombros e se sentou na poltrona em frente a mim. Voltei a tomar ar. Isto no
estava funcionando. No havia maneira de faz-lo.
O que viu o outro dia... comecei. No disse nada.
O que me viu fazer...
No vi nada sua voz era suave, apenas audvel.
Sei que sim e temos que falar disso. Olhei-o nos olhos.

No vi nada
Philip, sei...
No. Cuspiu a palavra, depois se conteve e sacudiu a cabea No lembro de nada
desse dia, Elena. Voc foi trabalhar. Seu primo veio a sua procura. Outros dois homens
vieram atrs de voc. Algum me apunhalou. No recordo de nada depois disso.
Eu sabia que ele estava mentindo para mim. Pela segurana da Matilha, tinha que
continuar, Conseguir que ele reconhecesse o que viu e encontrar a maneira de explicar-
lhe. Mas algo me dizia que isto era melhor para Philip. Deixar que ele explicasse de sua
maneira. Devia-lhe isso.
Vou embora disse.
Fiquei de p. No disse nada. Viu minhas valises empilhadas no corredor, junto a
algumas caixas que continham suas coisas.
Vou me mudar quando o contrato de aluguel terminar disse.
Eu... esfregou o nariz. Teria ligado para seu celular. Estava... me preparando para
faz-lo.
Sinto muito.
Sei. Olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que cheguei e conseguiu esboar
um sorriso. Ainda assim foi bom. Um engano, mas um engano bom. Se voltar para
Toronto algum dia quem sabe possa me procurar. Poderamos tomar alguns drinques.
Assenti. Ao pegar minhas malas, meu olhar se dirigiu mesa do corredor.
Est na gaveta disse Philip brandamente.
Virei-me para dizer algo, mas ele j ia para o dormitrio, me dando as costas. Fechou a
porta.
sinto muito sussurrei.

Abri as portas que davam rua e sa com duas malas pequenas. Disse a Philip que
podia dar o resto a obras de caridade ou jogar no lixo ou o que quisesse. No havia nada
ali que eu necessitasse. S peguei as malas para que no pensasse que abandonava
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minhas coisas por estar zangada. Havia apenas uma coisa que eu queria no apartamento.
O que tirei da gaveta da mesa do corredor. Ainda a tinha em minha mo. Ao sair do
edifcio, parei, deixei as malas no cho e abri a mo. A aliana de casamento de Clay
cintilou sob as luzes da rua.
Clay.
O que ia fazer a respeito de Clay?
Em que pese tudo o que passamos ainda no podia dar o que ele queria. No podia lhe
prometer minha vida, jurar que estaria a seu lado a cada momento, acordando ou
dormindo, at que a morte nos separasse Mas o amava. Completamente. J no haveria
outros homens em minha vida, outros amantes. Podia lhe prometer isso. Quanto ao
resto, bom, teria que oferecer o que podia e esperar que fosse suficiente.
Est aqui.
Levantei os olhos bruscamente. Clay estava parado sob a inquieta luz amarelada de
um farol. Por um momento acreditei que era uma alucinao minha. Ento ele avanou,
arrastando a perna esquerda, ainda no recuperada de tudo.
No leu meu bilhete? perguntei
Bilhete?
Sacudi a cabea.
No deveria estar aqui. Supe-se que tem que estar de cama.
No podia deixar voc ir embora. No at que falasse contigo.
Olhei a bagagem aos meus ps e percebi que ele pensava que eu estava entrando no
apartamento em vez de saindo dele. Humm. Que no se diga que deixo passar a
oportunidade de tirar todo o suco das coisas. Se, posso ser cruel, inclusive sdica s
vezes.
E o que queria me dizer? perguntei.
Deu um passo para frente, segurou-me pelo cotovelo e se aproximou tanto de mim que
pude sentir os batimentos de seu corao. Pulsava s pressas, mas isso podia ser pelo
esforo, pela viagem.
Amo voc. Sim, j ouviu isso um milho de vezes, mas no sei o que mais dizer
Elevou a mo e tocou minha bochecha. Preciso de voc, carinho. Este ano que no
esteve comigo foi um martrio. Decidi que quando voltasse faria algo para reter voc
comigo. Sem truques. Sem cenas. Sei que no o fiz muito bem. Caralho, provavelmente
nem sequer notou a mudana. Mas tentei. E seguirei tentando. Volta para casa comigo.
Por favor.
Olhei-o nos olhos.
Por que voltou para o apartamento?
Piscou.
Como?
No dia que lhe atacaram. Viu Daniel e Le Blanc subirem ao apartamento, no
verdade?
Sim.
Sabia que eu no estava l. Acabava de falar comigo por telefone.
Sim...
Assim sabia que a nica pessoa que estava no apartamento era Philip. Mas subiu
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para tentar proteg-lo. Por qu?
Clay vacilou e depois disse:
Porque sabia que era o que voc queria que eu fizesse. Acariciou minha bochecha
com o polegar. Sei que no a reposta que desejas. Sei que quer que diga que tive um
ataque de conscincia e subi para salvar Philip. Mas no posso mentir. No posso sentir o
que voc quer que eu sinta. H coisas que no posso mudar. No me importava que
Philip morresse. Salvei-o porqu sabia que se lhe acontecesse algo, voc iria se sentir
muito mal.
Obrigado disse, beijando-o.
Foi uma boa resposta? apareceu um esboo de seu velho sorriso sardnico em sua
voz e em seus olhos.
o melhor que posso esperar. Agora sei.
Ficar comigo?
Sorri-lhe
No pensei em deixar voc, coisa que saberia se tivesse se incomodado de ler meu
bilhete antes de vir correndo at aqui para me deter.
Voc... deteve-se, lanou a cabea para trs e riu. Ento me deu um abrao e um
beijo que quase me matam. Suponho que merecia isso.
Isso e mais. Sorri e o beijei, depois me afastei para olh-lo um tempo.
O que acontece? perguntou.
Quando lhe seqestraram pensei que esta histria no teria um final do tipo
"viveram felizes para sempre". Talvez tenha me enganado.
Felizes para sempre? sorriu . Para sempre?
Bom, possivelmente no para sempre. Possivelmente, felizes para sempre por um
tempinho.
Poderia aceitar isso.
Felizes para sempre por um dia ou dois. No mnimo.
Um dia ou dois? Fez uma careta. Eu pensava em um pouco mais. obvio que no
para sempre. Possivelmente s oito ou talvez nove dcadas.
No force a coisa.
Riu e me levantou em outro abrao.
Vamos trabalhar no assunto.
Sim disse, sorrindo-lhe . Estou preparada para trabalhar nisso.

FIM

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