Mara Antonieta Coppola Rococo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 8

Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.

br/rumores
Sofia Coppola e Marie-Antoinette: o rococ na viso contempornea





Maria Cristina Mendes





Resumo:

Esse artigo trata da relao entre o filme Maria Antonieta e o estilo Rococ. Numa retomada
contempornea, a diretora Sofia Coppola prope uma nova leitura esttica para esta escola artstica
considerada por alguns crticos como Barroco tardio. A trilha sonora pautada nos anos 1980 introduz no
filme uma ambientao mais familiar ao pblico de massas. Ancorada na atuao da atriz Kirsten Dunst
emerge um novo olhar sobre a personalidade da delfina. As relaes com a Pop-art tambm contribuem
para a identificao do pblico com a narrativa.



Palavras Chave:
Comunicao, cinema, arte, sociedade, cultura.




Abstract:
This article deals with the relationship between the film Marie Antoinette and the Rococo style. In a
contemporary point of view, the director Sofia Coppola offers a new perspective for this aesthetic school,
considered by some critics as the late Baroque period. The soundtrack based in songs of the 1980`s
presents a familiar setting to a massive audience. Anchored in the performance of the actress Kirsten
Dunst, emerges a different way of looking at the personality of the dauphine. Relationships with Pop Art
help the public to identify themselves with the narrative.



Keywords:
Communication, movies, art, society, culture.







O filme Marie-Antoinette (1), dirigido por Sofia Coppola, torna mais complexa a viso de
superficialidade que costuma identificar as atitudes da nobreza francesa do Sculo XVIII. Lanado no
Festival de Cannes de 2006, ele dividiu a opinio do pblico por evidenciar um lado desprezado pela
histria oficial, que costuma priorizar, no sem razo, os ganhos da Revoluo Francesa. Longe de
parecer uma arrogante aristocrata, a jovem monarca representada como uma adolescente que enfrenta o
desafio de abandonar sua vida na ustria para casar-se, em 1774, com Lus XVI, sem saber se algum dia
voltaria a rever sua terra natal. O curso da narrativa, ao justapor distintos estilos artsticos, faz com que o
tempo perceptivo do observador seja sugado para dentro da histria. Por outro lado, ao estruturar a


Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
atmosfera flmica no clima da pop art, lana-se um olhar contemporneo sobre o passado; a trilha sonora,
com canes extradas dos anos 1980 e a insero do tnis all-star, criam uma Delfina cuja imagem
corresponde, em ampla escala, veiculao miditica das pop-stars da atualidade. Histria e fico so
imbricadas numa trama que enfatiza as passagens e as resistncias dos estilos artsticos, das estruturas
polticas e dos modos de vida.
Sem ficarmos atados s questes evidentemente feministas presentes neste filme, e sem que isso
represente algum desprezo pelo assunto, a ateno desse artigo se volta especificamente para a riqueza
visual da pelcula, expressa na citao cuidadosa dos movimentos artsticos da histria da arte. O estilo
pop, aqui abordado nos parmetros da arte surgida na Inglaterra e difundida nos Estados Unidos nos anos
1960, pode ser percebido atravs da intensidade da cor e no trato da imagem como um bem de consumo.
O consumismo caracterstico da sociedade capitalista, o prazer advindo da aquisio de bens materiais,
seja como compensao de um vazio existencial, ou como modo de aproveitar a vida, tem nas cenas das
compras de Maria Antonieta, especialmente na variedade dos sapatos e roupas, uma seduo inegvel.
Coppola estabelece com o pblico uma identificao com a rainha da Frana, agora vista como um ser
humano mais prximo dos nossos julgamentos ticos contemporneos. Hoje sabemos que conceitos como
verdade ou justia so complexos ou inapreensveis em seu todo. Se Maria Antonieta foi uma vil
histrica por mais de duzentos anos, graas adaptao cinematogrfica do livro de Antonia Fraser que
a jovem monarca consegue sua redeno.
Para que o conceito da pop art, enquanto movimento artstico possa ser mais bem compreendido,
as palavras de Argan so esclarecedoras:
A Pop-Art, em suma, assinala o ponto de chegada do processo de degradao e dissoluo do
objeto enquanto termo individualizado num dualismo cognitivo, em que o outro termo o sujeito, a
pessoa: naturalmente, tambm a degradao da pessoa enquanto sujeito, cuja atividade pensante
fundamental consiste em pr as coisas como diferentes de si, como objetos. Visto que o objeto sempre
um distinto no contexto do real, a regresso do objeto a coisa comporta uma condio de indistino e,
portanto, a regresso da noo distinta de espao noo indistinta de ambiente. , pois, o fim ou a
negao radical da concepo humanista, para a qual a arte era distino entre sujeito e objeto e definio
de sua relao ao mesmo tempo espacial e dialtica (ARGAN, 1992: 579).
Esta a atmosfera que vigora na produo de Coppola Uma definio radical da linguagem do
filme pode, sem dvida, afirmar, com segurana, que ele pop. Um olhar mais atento verifica que,
atravs de uma abordagem pop, Sofia Coppola transita pelos movimentos artsticos que se referem ao
perodo histrico abordado, bem como lana mo do repertrio artstico posterior ao enredo numa
narrativa que, constantemente, devolve o espectador para seu tempo presente.
As tradies renascentistas presentes na arquitetura, a decorao barroca e os detalhes do rococ
so passagens no tempo. Com referncias extradas do repertrio da pop art, bem como com a
possibilidade de integrao de diversos estilos artsticos, o filme trata, acima de tudo de passagens, fato
verificvel no apenas nos estilos abordados, mas presente tambm na quantidade de portas que invadem
a seqncia flmica. Passagens no tempo que remetem a um labirinto que no apresenta sada. Entre a
profundidade caracterstica deste labirinto e o plano da superfcie, a corte francesa, representada no olhar
feminino, dialoga com o observador. Esto presentes no filme, tambm, a ousadia e o enfrentamento
difundido pelas tcnicas da pintura impressionista. Maria Antonieta, na cena em que repousa no div,
aps desfrutar dos prazeres da carne, lana um olhar desafiador em direo ao espectador, tal qual
Olympia, personagem da pintura de Edouard Manet, executada em 1865, que influenciou fortemente o
surgimento do impressionismo.
Ao analisar a relao entre a pop art e o cinema, no como citao, mas como construo pop de
um imaginrio cinematogrfico, Luiz Renato Martins, enfatiza que na mudana das dcadas de 1950 para
1960, ...a mercantilizao e a coisificao se convertem na forma geral da experincia (MARTINS,
1996: 320). O filme Maria Antonieta traz novamente tona esta noo de consumo e sua imagem remete
ao universo artstico e miditico de Andy Warhol ou Oldenburg. Ainda de acordo com Martins, a pop art:
Pressupe uma produo extensa de bens de massa em face da qual o consumo est implantado

Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
como hbito majoritrio e expressa os valores de uma nao vitoriosa. (...) Por fim, sua referncia no a
incerteza da sobrevivncia nas sociedades perifricas, mas a rotina do consumo e do lazer em que se
mesclam expectativas padronizadas, tdio e entretenimento (MARTINS, 1996: 320).
Maria Antonieta pop em seu modo superficial de abordar a vida, na sua forma moderna de
consumir os bens mundanos. Mas este pop tambm uma revisitao, uma citao a mais no hibridismo
que compe o filme.
O perodo que se passa dentro do castelo de Versalhes, aps o casamento, mostra um cotidiano ao
mesmo tempo superficial e repleto de informaes, caractersticas dominantes no modo rococ de
interpretar o mundo. O interesse especfico pela anlise do rococ neste filme provm do fato que, do
mesmo modo pelo qual Maria Antonieta foi considerada uma vil histrica, tambm o estilo rococ
visto como um movimento de pequena repercusso nos livros que analisam a histria da arte. Esta
aproximao entre os conceitos da pop art e o rococ, evidenciada por Coppola, funciona tambm como
um instrumento de revalorizao e divulgao de uma escola artstica, num novo olhar tanto para a
imagem da Delfina como para a arte de seu tempo.
Estas passagens entre um e outro estilo so uma constante nesta produo cinematogrfica. Uma
cena especfica, entretanto, confirma este conceito de passagem e de mudana que so explicitados no
transcorrer do filme: a jovem de quatorze anos tem que abandonar tudo que seu, suas posses e seus
afetos. Logo no incio da narrativa flmica, aps a negociao do matrimnio, Maria Antonieta,
interpretada por Kirsten Dunst, parte de Viena para a Frana. Na fronteira entre os dois pases, ela
abandona suas serviais, seu cachorro de estimao e suas roupas. A futura rainha da Frana, de acordo
com os costumes de ento, abre mo do seu passado.
Cria-se um ritual repleto de sutilezas. Geograficamente, a personagem sai da ustria e entra na
Frana; sua entrada, contudo, em uma tenda especialmente construda para o evento, altera o sentido do
movimento de entrar e sair: ela entra na ustria e sai na Frana. Existe a uma inverso do sentido
espacial. Esta fronteira dilatada, este espao que no nenhum dos dois pases, e ao mesmo tempo pode
ser ambos, onde o passado e o futuro dialogam, onde um ciclo se fecha para que outro tenha incio. As
passagens costumam ser difceis para a construo dos processos narrativos, pois elas implicam definio
de limites e possibilidades de relaes. Neste caso especfico, a fronteira, o lugar da transformao, se
torna espesso como uma bolha entre dois diferentes mundos; um lugar de iniciao onde jamais se
retornar, dado o carter transitrio da construo. Neste no-lugar a arquiduquesa deve aprender os
novos cdigos sociais.
Dentro deste espao, Maria Antonieta despida. A tenda assume por alguns minutos o papel da
casa. Gaston Bachelard, ao analisar uma poesia de Milosz, tece uma reflexo sobre nossas moradas a qual
se aplica bem a este caso: De refgio, fez-se reduto. A choupana se transformou num castelo forte da
coragem para o solitrio que deve a aprender a vencer o medo. Tal morada educadora
(BACHELARD, s/d: 49). E assim se porta a futura rainha da Frana. Esta passagem pelo abrigo
temporrio dramatiza o enredo do filme, pois se trata do momento em que a identidade da Delfina comea
a ser moldada nos novos padres sociais.
A representao da cena de nudez triste; denota a impossibilidade de proteo, da salvaguarda
do corpo como espao pertencente ao ser que o habita. Mas a dignidade da personagem, isto no lhe
roubado. possvel, nesse momento, traar um paralelo entre sua altivez e as esculturas do perodo
clssico grego ou romano. Vista de costas, meio ao longe, ela poderia ser confundida com alguma
escultura de mrmore mantida numa sala de museu. Um frame desta imagem pode remeter a um bom
trabalho fotogrfico de arte contempornea. Iluminada por uma luz barroca Maria Antonieta submete-se
ao escrutnio das mulheres que a vestem, rapidamente, com os trajes franceses. O branco e o azul
acinzentado dominam a decorao e as roupas desde a partida da casa da me at a entrada em solo
francs. Seguindo o roteiro cromtico de Coppola, se a personagem sonha em rosa e branco, o mundo
representado em azul e dourado. Os primeiros tons vermelhos aparecero na roupa daquela que lhe
orientar como agir, um alerta cromtico da produo do filme, solicitando constantemente nossa ateno
para os padres da corte de Lus XV.

Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
Este ritual de passagem, com seu clmax no despojamento das vestes, se amplia em nossa
percepo pela lentido silenciosa da cena. O contraste entre a tonalidade escura do abrigo e a palidez do
corpo potencializado pela luz natural que invade o interior da tenda a partir de sua sada/entrada
principal. A luz francesa para a qual a futura rainha se dirige aberta e conduz o pensamento plenitude
de possibilidades da luz do dia. Os cortes que constroem a cena so capazes de desencadear um
sentimento de identificao com o espectador. O constrangimento do corpo exposto nos devolve para ns
mesmos, para as percepes comuns aos seres humanos de vrias pocas ou lugares. Um corpo nu
costuma pertencer a algum que abriu mo de suas defesas. As roupas nos protegem, nos identificam. A
diretora do filme cria, neste momento, um forte vnculo com seu pblico:
Vincular-se (diferentemente de apenas relacionar-se) muito mais do que um mero processo
interativo, porque pressupe a insero social e existencial do indivduo desde a dimenso imaginria
(imagens latentes e manifestas) at s deliberaes frente s orientaes prticas de conduta, isto , aos
valores. A vinculao propriamente simblica, no sentido de uma exigncia radical de partilha da
existncia com o Outro, portanto dentro de uma lgica profunda de deveres para com o socius, para alm
de qualquer racionalismo instrumental ou de qualquer funcionalidade societria (CABRAL, 2006: 93).
Maria Antonieta entra em solo francs com a solidariedade da platia. De acordo com as
afirmaes de Steve Coogan, ator que faz o papel do embaixador da rainha na Frana, gravadas nos
special features do DVD, a personagem histrica foi uma vtima da m propaganda, e em direo a
estes equvocos histricos que o roteiro do filme caminha. A suntuosa cerimnia do casamento e o
subseqente ritual do leito de npcias demonstram o drama que a protagonista enfrentar. O
constrangimento advindo da cena de nudez na manh posterior s bodas, com sua extenso protocolar,
justifica, para o pblico, uma compensao afetiva adquirida nas festas e exageros da jovem monarca.
Aos olhos do observador, a aceitao passiva do casamento no consumado transforma a Delfina em
algum que luta para no se deixar abater pelas adversidades da vida.
O barroco, explicitado, tambm, na narrao da me de Maria Antonieta, d incio ao filme e
ressurge nos momentos em que uma maior dramaticidade enfatizada: a rainha precisa gerar herdeiros. O
rococ evidencia a busca do conforto cotidiano e a aquisio do prazer advindo da percepo do tempo
presente. Os dois estilos se intercalam sobre os pilares da espacialidade criada a partir da perspectiva
clssica do renascimento. Enquanto o barroco, mesmo que pautado no trato excessivo da superfcie
remete a uma profundidade, o rococ permanece na superfcie, no momento presente, afastado do af de
preconizar o futuro ou se debruar sobre o passado.
Aps a intensidade barroca, a superficialidade do rococ um constante desafio para a anlise de
imagens. A Revoluo Francesa contribuiu sobremaneira para que as caractersticas da arte produzida nos
reinados de Lus XV e Lus XVI - sinnimos para o Rococ - fossem menosprezados. Janson postula que
este movimento apresenta um requinte em tom menor do Barroco curvilneo... (JANSON, 1984: 540).
Percebe-se, claramente nesta sua afirmao, uma desvalorizao da esttica do perodo.
Afirmar que o estilo rococ uma mera continuao do barroco desprezar algumas
caractersticas fundamentais para a compreenso da arte moderna, ou seja, sua nfase na especificidade
do plano pictrico. A superfcie, no mais vista tal qual uma janela para o universo das virtualidades -
este o paradigma da perspectiva renascentista - mas como uma imagem em contato com o mundo das
coisas, uma construo visual conceitualmente distinta dos moldes anteriores. O espao teorizado por
Alberti (2), monocular e em concordncia de coordenadas geomtricas, gera a partir das leis de Euclides
um modo de medir o mundo. De acordo com Pierre Francastel, entretanto;
O espao no uma realidade em si, da qual somente a representao varivel segundo as
pocas. O espao a prpria experincia do homem. to-s porque sculos de conveno habituaram-
nos a aceitar determinados signos expressivos utilizados na educao, com o fito de desenvolver
simultaneamente nossas faculdades matemticas e nossas faculdades visuais, que nos parece evidente que
determinada perspectiva euclidiana fornece-nos, de modo espontneo, a iluso perfeita da realidade
(FRANCASTEL, 1990: 24).
O estilo barroco vai introduzir nova dinmica ao modelo renascentista, sem, contudo, alterar seu

Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
modo de medir o mundo. a mesma configurao espacial, no mais vista frontalmente (tendo o homem
como o centro do mundo), mas percebendo o espao do humano em sua rbita junto aos diversos
movimentos do universo que rege a esttica dramatizada do barroco. A ordem clssica do renascimento
dinamizada por um espao onde a luz mais humana que divina, ou, pelo menos, compreendida por um
olhar que tenta explorar os mistrios desta luz. a diferena entre o espao medido pelas distncias entre
os objetos ou figuras de Leonardo da Vinci e o espao criado pela atuao da luz nas pinturas e gravuras
de Rembrandt. So, no entanto, os pintores Antoine Watteau (1684 / 1721) e Honor Fragonard (1732 /
1806) que enfatizaro a dimenso planar da pintura francesa; esta mudana radical na concepo do
espao representativo representa a fora do estilo rococ. Do francs rocaille, que significa concha,
cria-se uma arte da nobreza, a manifestao de um mundo que est para ser destrudo.
O rococ representa, portanto, muito mais do que uma vertente menor do estilo barroco. Esta
ateno para com a superfcie da representao presentes tanto no estilo rococ como na arte pop,
lembram que um olhar para o espao virtual pode, eventualmente, ser menos necessrio do que um olhar
para as coisas do mundo. Este conceito, numa tela de cinema, onde a insero do observador vital para a
construo da fbula pessoal, cria uma situao paradoxal: no constante dilogo entre profundidade e
superfcie, simultaneamente entramos e samos da narrativa flmica. Mais uma vez estamos no reino das
passagens: passagens de estilo, passagens de percepo e passagens pelas portas que surgem
constantemente no filme para criar a dinmica dos acontecimentos.
A grandiosidade barroca de Versalhes tinha sado de moda no comeo do Sculo XVIII, a favor
dos efeitos mais delicados e ntimos do rococ de Watteau. De acordo com a anlise que ele faz das
pinturas do perodo,
Ele [Watteau] comeou a pintar suas prprias vises de uma vida divorciada de todas as privaes
e trivialidades, uma vida fictcia de alegres piqueniques em parques de sonho onde nunca chove, de
saraus musicais onde todas as damas so belas e todos os enamorados graciosos, uma sociedade em que
todos se vestem de refulgentes sedas sem ostentao, e onde a vida dos pastores e pastoras parece ser uma
sucesso de minuetos (GOMBRICH, 1972: 358).
Sobre a pintura Festa num parque, executada em 1718, o autor afirma que h um toque de
tristeza nessas vises de beleza que difcil descrever ou definir, mas que eleva a arte de Watteau alm da
esfera da simples habilidade e da boniteza (GOMBRICH, 1972: 59). Nesta produo cinematogrfica, o
Estilo Rococ recebe uma leitura atenciosa e digna de ser pontuada.
As estratgias utilizadas pela equipe de produo, como pode ser visto nos extras do DVD,
recorrem pesquisa da expresso artstica da poca e incluem aspectos estilsticos distintos. No incio do
filme, a atmosfera oscila entre o classicismo arquitetnico e uma dramatizao barroca; a iluminao em
diagonal, ao banhar as figuras com densas sombras, garante a tenso necessria ao estilo. Na seqncia
flmica, durante o perodo em Versalhes, uma mistura de barroco e rococ impera na exuberncia de
detalhes: as roupas, as perucas, a decorao dos interiores bem como as atitudes da nobreza, evidenciam o
pensamento vigente no perodo.
K. K. Barrett, designer de produo, quem coloca em cena a intrnseca graciosidade do rococ.
As cores primrias se transformam em tons pastis e o estudo das relaes cromticas estrutura uma
narrativa tonal. As cores rebaixadas, dominantes nos trajes da nobreza, compem quadros de uma beleza
esttica adquirida na compreenso da vida do sculo XVIII. s jias e perucas somam-se a abundncia de
doces e bolos que inundam a tela. O vesturio, ao encargo de Milena Canonero, une o desconforto do
espartilho e das famosas anquinhas. A trilha sonora do filme, que valoriza Vivaldi e o rock dos anos 1980,
atualiza este rococ, mostra ao pblico contemporneo algumas das ressonncias estilsticas que
permeiam nossas vidas, devolve-nos nossa prpria superficialidade e desejo hedonista de convvio com o
mundo.
Os cortes das cenas e as passagens entre uma cena e outra trazem o espectador de volta para seu
prprio corpo e tempo. As portas, j mencionadas, so muitas e enfatizam constantemente a discusso
entre plano e profundidade. A insero de objetos aparentemente inadequados, como o tnis all-star
jogado por entre as compras da rainha, fortalecem esse recurso potico e fazem com que o filme seja

Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
muito mais do que uma mera narrativa histrica ou biogrfica. Coppola no quer criar uma iluso de
realidade para o passado; ela revisita este passado com uma conscincia do presente.
Quando Maria Antonieta se muda para o Petit Trianon, palacete que lhe foi dado de presente pelo
marido aps o nascimento da filha, suas roupas e cabelos se tornam menos exagerados, a peruca alta d
lugar a um penteado solto, num estilo mais prtico para a jovem me que deseja criar a filha junto da
natureza. As flores so plantadas e colhidas pelas duas, galinhas e patos circulam pelos caminhos num
lugar que equivale construo de um novo paraso. A paisagem, que no desenrolar do filme no tinha
atingido sua plenitude, assume seu papel histrico:
Onde ocorre a paisagem? As paisagens no formam, no seu conjunto, uma histria e uma
geografia. Seus limites so indefinveis, no tm localizao, hierarquia nem centro. De que forma ento
apontar o sopro que abala o esprito, quando chega a paisagem? Sua fora se faz sentir pelo fato de
interromper as narraes. Em vez de contar, apresentar. Mas como sem falar de como e quando se chegou
- os acontecimentos, a ao? A narrao faz correr o tempo, a paisagem o suspende. A poesia ento
nasceria da compreenso desta incapacidade das palavras darem conta da paisagem. Ela torna disponvel
invaso das nuances, torna passvel ao timbre: a escrita desta descrio impossvel (PEIXOTO, 1996:
297).
No Petit Trianon, Maria Antonieta se aproxima de liberdade de viver como ela quer e ser aquilo
que ela . Independentemente das solicitaes constantes da sociedade, ela busca a simplicidade da vida.
Mais uma vez, estabelece-se uma correlao entre o tempo passado e o presente. Hoje a mdia veicula
constantemente a possibilidade de um aumento na qualidade de vida diante de um convvio mais prximo
natureza. Assim como muitas pessoas se afastam das grandes cidades para obter uma vida tranqila,
tambm a Delfina da Frana se retira de Versalhes para poder educar sua filha com mais dedicao.
A seqncia do filme se direciona, claramente, para uma abordagem suavizada do rococ, agora
percebido como uma passagem para os destinos neoclssicos e romnticos da arte francesa. Numa
continuidade narrativa, o ritmo se desacelera e conduz as transposies estilsticas, ao mesmo tempo em
que mantm caractersticas contemporneas na montagem do filme. Estas caractersticas, agora, so muito
mais da ordem do clima flmico, do que de uma excessiva preocupao formal. Num ambiente mais
acolhedor, novamente nos identificamos com a jovem me.
Ao construir sua Maria Antonieta, Sophia Coppola simultaneamente demonstra riqueza no
tratamento da superfcie e esvaziamento da profundidade. Encontramos aspectos que so comuns tanto ao
perodo Rococ como ao nosso mundo contemporneo. Temos algo que nos conecta e que merece ser
objeto de anlise. Este um aspecto importante da produo do filme: mostrar que as discusses no se
esgotam facilmente e que sob a roupagem de valores antigos, muitos deles ainda sobrevivem. Sabe-se que
o problema entre profundidade e superfcie foi, durante muito tempo e especialmente durante o
movimento modernista, um desafio terico e prtico. No mundo contemporneo, esta complexidade
absorvida, digerida e constantemente reorganizada.
O filme Maria Antonieta, na medida em que questiona nosso parecer histrico e mostra sua
humanidade, d um grau maior de complexidade a uma verdade antes considerada inequvoca. Resgata
um aspecto engavetado na histria das conquistas ocidentais e nos faz perceber a impossibilidade de um
diagnstico definitivo de compreenso do mundo. Neste sculo XXI, quando a sociedade vive sob a gide
da somatria das contradies e desiste de encontrar uma resposta inequvoca para suas indagaes,
Edgar Morin esclarece que A epistemologia complexa toma forma a partir do conhecimento do
conhecimento, que compreende o conhecimento dos limites do conhecimento... O conhecimento sempre
traduo e construo (MORIN, 2003: 200).
Nesta traduo e construo de uma nova imagem pblica para Maria Antonieta, Sofia Coppola
lana dvidas sobre uma viso de mundo, problematiza os fatos histricos e lana luz sensibilidade
humana. A esposa de Lus XVI, acusada de extrema frivolidade e arrogncia desmistificada e
humanizada. Ao terminar o filme, nos deparamos, uma vez mais, com a impossibilidade de compreenso
da verdade. Ao mesmo tempo, percebemos que verses contemporneas dos fatos histricos so
relevantes para um processo contnuo de repensar a vida e conhecer um pouco mais sobre o mundo e

Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
sobre cada um de ns. A possibilidade de identificao com as injustias histricas nos torna mais
prudentes sobre os prprios pareceres em relao aos fatos do mundo. Humanizar Maria Antonieta
permite que cada um de ns, do mesmo modo, se torne mais humano.
Talvez por isso a diretora nos poupe da violncia que se sucede tomada da Bastilha. Coppola nos
mostra uma mulher que se recusa a abandonar o marido e segue com ele e os filhos para o destino que
previamente conhecemos. As despedidas foram silenciosas, assim com em silncio est o palcio
saqueado e vazio da ltima cena.
Entre o romantismo e o neoclssico, Sofia Coppola opta por um final que mais se assemelha a
Gericault e Delacroix do que a Ingres ou David. A raiz do romantismo, hoje banalizada pelo cinema de
massa de Hollywood, readquire seu poder dramtico apenas para deixar no ar a parte mais difundida da
histria de Maria Antonieta. Jamais veremos, seguindo os olhos de Coppola, a Delfina ser decapitada. Ela
opta por priorizar justamente os aspectos histricos que foram desprezados ao longo da histria, numa
abordagem incmoda para seguidores do idealismo revolucionrio. O palcio vazio mostra um estilo de
arte que foi praticamente varrido da histria, condenado por ser um movimento suprfluo e sem
profundidade. O caminho onde a pop art rejeitava o aprofundamento existencial do expressionismo
abstrato norte-americano e buscava exatamente operar diante da superficialidade das coisas do mundo
continua a ser valorizado.
Ao mesmo tempo em que o filme de Coppola um alerta aceitao simplista de uma viso
histrica parcial, ele tambm opera como um dispositivo para a manuteno de nosso apreo pela histria
da humanidade. Dentre os procedimentos culturais que possibilitam um pensamento distinto sobre o
repertrio histrico de nossa civilizao, o cinema funciona como um veculo fundamental para o trnsito
das informaes.
Alm da possibilidade de cumprir um papel antes destinado apenas ao ensino formal, o filme
Maria Antonieta de Sofia Coppola uma aula de histria da arte contempornea, onde o hibridismo
estilstico se estrutura adequadamente. A relao estabelecida entre a pop art e o rococ (2 0, enfatizando
a presena deste estilo em toda a vida da corte francesa, assume ento, a qualidade de abrir-se para uma
pesquisa mais atenta. Longe de tecer qualquer concluso sobre o assunto, este artigo se concentrou
justamente, numa reflexo sobre estas relaes. Manteve-se a ateno nas portas que se abrem para a
superficialidade do rococ no olhar contemporneo.






Bibliografia:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BACHELARD, Gaston. A potica do espao. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, s/d.
CABRAL, Muniz Sodr de Arajo. Estratgias sensveis: afeto, mdia e poltica. Rio de Janeiro: Vozes,
2006
EAGLETON, Terry. A idia de cultura. So Paulo: Unesp, 2005.
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1990.
HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
JANSON, H. W. Histria da arte Panorama das artes plsticas e da arquitetura da pr-histria
atualidade. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1984.
MARTINS, Luiz Renato: Cinema e Pop Art O flaneur, a prostituta e a montagem. In: XAVIER,
Ismail (org.). O cinema no sculo. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MORIN, Edgar. Meus demnios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
PEIXOTO, Nelson Brissac. "Cinema e pintura a pintura, a fotografia, o cinema e a luz". In: XAVIER,
Ismail (org.). O cinema no sculo. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


Revista Rumores Edio 9, volume 1, Janeiro-Junho de 2011 www.usp.br/rumores
SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mdia?. So Paulo: Loiola, 2002.

Filmografia
Maria Antonieta (Marie-Antoinette). Direo Sofia Coppola. Estados Unidos, Japo e Frana. Columbia
Pictures Corporation e Sony Pictures Entertainment, 2006, 123 min. Drama.
Notas:
(1) Nas prximas referncias ao ttulo do filme ser utilizado o idioma portugus.
(2) Leone Batista Alberti (1404-1472), arquiteto florentino.




Mini Currculo :


Bacharel em pintura e especialista em histria da arte do sculo XX (Embap-PR), mestranda em
Comunicao e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paran (UTP), professora do curso de Artes
Visuais e Tecnologia em Fotografia (UTP).

Você também pode gostar