Este documento apresenta uma análise semiótica da extrafiscalidade no direito brasileiro. Primeiro, discute-se o direito como uma linguagem e sistema comunicacional, analisando os conceitos de semiótica, signo e processo de semiose. Em seguida, propõe-se um modelo semiótico para analisar o discurso jurídico, examinando os elementos do signo jurídico e as duas semioses do direito. Por fim, aborda-se a extrafiscalidade sob três planos semióticos: pragmático, semântico e s
Este documento apresenta uma análise semiótica da extrafiscalidade no direito brasileiro. Primeiro, discute-se o direito como uma linguagem e sistema comunicacional, analisando os conceitos de semiótica, signo e processo de semiose. Em seguida, propõe-se um modelo semiótico para analisar o discurso jurídico, examinando os elementos do signo jurídico e as duas semioses do direito. Por fim, aborda-se a extrafiscalidade sob três planos semióticos: pragmático, semântico e s
Este documento apresenta uma análise semiótica da extrafiscalidade no direito brasileiro. Primeiro, discute-se o direito como uma linguagem e sistema comunicacional, analisando os conceitos de semiótica, signo e processo de semiose. Em seguida, propõe-se um modelo semiótico para analisar o discurso jurídico, examinando os elementos do signo jurídico e as duas semioses do direito. Por fim, aborda-se a extrafiscalidade sob três planos semióticos: pragmático, semântico e s
Este documento apresenta uma análise semiótica da extrafiscalidade no direito brasileiro. Primeiro, discute-se o direito como uma linguagem e sistema comunicacional, analisando os conceitos de semiótica, signo e processo de semiose. Em seguida, propõe-se um modelo semiótico para analisar o discurso jurídico, examinando os elementos do signo jurídico e as duas semioses do direito. Por fim, aborda-se a extrafiscalidade sob três planos semióticos: pragmático, semântico e s
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GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES
EXTRAFISCALIDADE: ANLISE SEMITICA
Tese apresentada ao Curso de Ps- Graduao em Direito da USP, para obteno do grau de doutor, sob orientao do Professor Paulo de Barros Carvalho.
UNIVERSIDADE DE SO PAULO USP FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SO FRANCISCO
So Paulo 2009
2 SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................................................ 6 PARTE I: O DIREITO COMO LINGUAGEM......................................................................................... 16 CAPTULO 1 SEMITICA...................................................................................................................... 17 1.1. LINGUAGEM: IMANNCIA DA CONDIO HUMANA................................................................................ 17 1.1.1. Culturalismo................................................................................................................................. 18 1.1.2. Geneticismo.................................................................................................................................. 18 1.1.3. Uma posio unificada................................................................................................................. 18 1.2. SEMITICA............................................................................................................................................ 19 1.3. SIGNO ................................................................................................................................................... 20 1.4. O TRINGULO SEMITICO ..................................................................................................................... 21 1.4.1. O significante ............................................................................................................................... 22 1.4.2. O referente.................................................................................................................................... 24 1.4.3. O Significado................................................................................................................................ 26 1.5. O PROCESSO DE SEMIOSE....................................................................................................................... 27 1.5.1. O signo como unidade lgica da semiose .................................................................................... 28 1.5.2. Os trs nveis do interpretante ..................................................................................................... 30 1.6. DA SEMIOSE COMUNICAO .............................................................................................................. 34 1.6.1. O cdigo....................................................................................................................................... 34 1.6.2. O contexto .................................................................................................................................... 36 1.6.3. Inteno........................................................................................................................................ 37 1.7. O TEXTO COMO UNIDADE DE SENTIDO................................................................................................... 38 1.8. ANLISE FUNCIONALISTA E ESTRUTURALISTA DO TEXTO ..................................................................... 41 1.9. OS PLANOS DE ANLISE: SINTAXE, SEMNTICA E PRAGMTICA........................................................... 42 CAPTULO II. UM MODELO DE SEMITICA JURDICA ................................................................. 43 2.1. O DIREITO COMO UM SISTEMA COMUNICACIONAL................................................................................. 43 2.2. O SIGNO JURDICO................................................................................................................................. 43 2.3. ANLISE DO SIGNO JURDICO ................................................................................................................ 44 2.3.1. O significante ............................................................................................................................... 44 2.3.2. O referente.................................................................................................................................... 44 2.3.3. O significado ................................................................................................................................ 46 2.3. AS DUAS SEMIOSES DO DIREITO............................................................................................................. 46 2.3.1. Semiose: do direito positivo ao sistema jurdico.......................................................................... 47 2.3.2. A incidncia como semiose.......................................................................................................... 54 2.4. OS ELEMENTOS COMUNICACIONAIS DO DISCURSO JURDICO ................................................................. 55 2.4.1. O legislador.................................................................................................................................. 55 2.4.2. O destinatrio: o indivduo e a coletividade ................................................................................ 59 2.5. EXTRAFISCALIDADE UM FENMENO SEMITICO................................................................................. 61 2.5.1. Conceito de extrafiscalidade........................................................................................................ 62 2.5.2. Intencionalidade: critrios de aferio........................................................................................ 64 2.5.3. Outros aspectos relevantes da extrafiscalidade ........................................................................... 66 CAPTULO III. INTERPRETAO JURDICA E TRADUO.......................................................... 67 3.1 JURISTA E O ORDENAMENTO CHAMPOLLION E A PEDRA DA ROSETA.................................................. 67 3.2. OS SENTIDOS DE TRADUZIR................................................................................................................... 68 3.3. TRADUZIR E INTERPRETAR.................................................................................................................... 68 3.4. A REVERSIBILIDADE E O DIREITO .......................................................................................................... 72 3.4.1. Funes pragmticas diversas entre o texto de partida e o de chegada...................................... 74 3.5. TRADUO E AS INEVITVEIS ALTERAES SEMNTICAS..................................................................... 74 3.5.1. Alteraes semnticas intencionalmente empreendidas pelo discurso prescritivo ...................... 77 3.6. CONDIES PARA TRADUO E A INTERPRETAO JURDICA ............................................................... 78 3.7. UM CASO PARTICULAR: A INTERPRETAO ECONMICA ...................................................................... 81 PARTE II: EXTRAFISCALIDADE E OS TRS PLANOS SEMITICOS ........................................... 84 CAPTULO IV. ANLISE PRAGMTICA .............................................................................................. 85 3 4.1. O PRIMADO PRAGMTICO..................................................................................................................... 85 4.2. AS DIMENSES PRAGMTICAS .............................................................................................................. 85 4.2.1. A enunciao................................................................................................................................ 86 4.2.2. O enunciado ................................................................................................................................. 87 4.2.3. O enunciador................................................................................................................................ 87 4.2.4. O enunciatrio.............................................................................................................................. 88 4.3. OS DOIS INTRPRETES: ENUNCIATRIO E NO-ENUNCIATRIO.............................................................. 90 4.4. A COMPETNCIA LINGSTICA DO ENUNCIATRIO ................................................................................ 93 4.5. A RECEPO ......................................................................................................................................... 94 4.6. O CONTEXTO PRAGMTICO................................................................................................................... 96 4.7. FINALIDADE E FUNO ......................................................................................................................... 97 4.8. VALORES: A INTENCIONALIDADE JURDICA........................................................................................... 99 4.8.1. As caractersticas dos valores .................................................................................................... 100 4.9. AS IDEOLOGIAS COMO CORPOS DE VALORES ....................................................................................... 101 4.9.1. A ideologia liberal...................................................................................................................... 102 4.9.2. A ideologia social....................................................................................................................... 103 4.9.3. A ordem liberal-social................................................................................................................ 104 4.9.4. O Estado interventor comedido.................................................................................................. 106 4.9.5. As duas finalidades interventivas ............................................................................................... 107 4.9.6. Liberdade, interveno e tributao .......................................................................................... 109 4.9.7. Produto e modo de produo ..................................................................................................... 111 4.10. DE VOLTA A FINALIDADE E FUNO.................................................................................................. 113 4.10.1. Funo extrafiscal e disfuno fiscal ....................................................................................... 113 CAPTULO V. ANLISE SEMNTICA ................................................................................................. 116 5.1. A SEMNTICA..................................................................................................................................... 116 5.1.1 A coerncia como critrio de significao................................................................................. 117 5.1.2. O modelo gerativo...................................................................................................................... 118 5.1.3. O modelo dialtico ..................................................................................................................... 119 5.2. SEMNTICA E INTERTEXTUALIDADE ................................................................................................... 119 5.2.1. A intertextualidade intra-sistmica ............................................................................................ 121 5.2.2. A intertextualidade intersistmica.............................................................................................. 122 5.3. LIMITES DA POTENCIALIDADE SEMNTICA DO DIREITO....................................................................... 124 5.4. AS SUPOSTAS FALHAS SEMNTICAS .................................................................................................... 125 5.4.1. Ambigidade: fenmeno no-intencional................................................................................... 126 5.4.2. Vaguidade como fenmeno intencional...................................................................................... 127 5.4.3. Extrafiscalidade e vaguidade ..................................................................................................... 134 5.4.4. Vaguidade ingente e estrita legalidade ...................................................................................... 134 CAPTULO VI. ANLISE SINTTICA.................................................................................................. 145 6.1. SINTTICA.......................................................................................................................................... 145 6.2. ORDEM: UMA CATEGORIA SINTTICA.................................................................................................. 146 6.3. SINTAXE: O PRIUS FORMULADOR......................................................................................................... 147 6.4. REGRAS DE PRODUO: SEU CARTER SINTTICO .............................................................................. 148 6.5. A LGICA EXPRESSO PREDOMINANTEMENTE SINTTICA ............................................................... 149 6.6. A LGICA JURDICA............................................................................................................................. 151 6.6.1. Condies formais e verificao emprica ................................................................................. 152 6.6.2. O contexto como pressuposto para a investigao lgica ......................................................... 153 6.6.3. Direito: dois planos de linguagem, duas Lgicas ...................................................................... 154 6.6.4. Valor semntico e conformao lgica...................................................................................... 155 6.6.5. Eficcia: condicionante semntico para o desempenho pragmtico da linguagem prescritiva 159 6.6.6. Tipologia dos condicionantes lgicos ........................................................................................ 160 6.6.7. Relaes lgicas entre enunciados semanticamente completos ................................................. 161 6.6.8. Eficcia e o sentido do ajuste..................................................................................................... 162 6.7. A LGICA DAS SANES ..................................................................................................................... 166 6.7.1. O espao lgico das sanes...................................................................................................... 169 6.7.2. O reforo direto e indireto do ajuste e os pares denticos......................................................... 171 6.7.3. O positivo e o negativo............................................................................................................... 173 6.7.4. Sanes e os vrios graus hierrquicos do positivo.................................................................. 174 6.8. EXTRAFISCALIDADE: O TRIBUTO COMO SANO................................................................................. 176 4 6.8.1. Extrafiscalidade como sano negativa..................................................................................... 176 6.8.2. Extrafiscalidade como sano positiva...................................................................................... 179 6.9. O TEMPO CARACTERIZADOR DA EXTRAFISCALIDADE.......................................................................... 180 6.10. ENUNCIADOS DE BLOQUEIO FUNO EXTRAFISCAL ....................................................................... 182 6.11. EXTRAFISCALIDADE RETRIBUTIVA E REPARADORA........................................................................... 183 6.12. RELAES LGICAS ENTRE FINALIDADE FISCAL E EXTRAFISCAL ...................................................... 185 6.13. RELAES SINTTICAS ENTRE REGRAS E PRINCPIOS ........................................................................ 186 6.13.1. O lugar sinttico das regras e dos princpios .......................................................................... 191 6.13.2. O consenso principiolgico e a dissenso normativa .............................................................. 192 6.14. ESTRUTURA SINTTICA DA NORMA EXTRAFISCAL............................................................................. 193 PARTE III: EXTRAFISCALIDADE E REGIME JURDICO............................................................... 195 CAPTULO VII: REGIME CONSTITUCIONAL DA EXTRAFISCALIDADE.................................. 196 7.1. REGIME JURDICO TRIBUTRIO ........................................................................................................... 197 7.2. OS ESCOPOS CONSTITUCIONAIS........................................................................................................... 198 7.3. A EXTRAFISCALIDADE CONSTITUCIONAL............................................................................................ 200 7.4. REGRAS MODULADORAS DA EXTRAFISCALIDADE................................................................................ 201 7.4.1. Regras autorizadoras ................................................................................................................. 201 7.4.2. Regras impositivas ..................................................................................................................... 202 7.4.3. Regras bloqueadoras.................................................................................................................. 202 7.5. EXTRAFISCALIDADE E REGRAS DE EXIGNCIA FORMAL....................................................................... 203 7.6. PRECEITOS LIMITANTES E ESCOPOS EXTRAFISCAIS .............................................................................. 204 7.7. PRINCPIOS DEMARCATRIOS DA EXTRAFISCALIDADE ........................................................................ 205 7.7.1. A Legalidade tributria.............................................................................................................. 205 7.7.2. A Irretroatividade....................................................................................................................... 206 7.7.3. A Anterioridade e a Noventena .................................................................................................. 207 7.8. PRINCPIOS DEMARCADOS PELA EXTRAFISCALIDADE.......................................................................... 208 7.8.1. A Isonomia.................................................................................................................................. 208 7.8.2. Capacidade contributiva ............................................................................................................ 210 7.8.3. O No-confisco........................................................................................................................... 212 7.9. A COMPETNCIA TRIBUTRIA ............................................................................................................. 213 7.9.1. Competncia condicionada a fins extrafiscais ........................................................................... 214 7.10. EXTRAFISCALIDADE E COMPETNCIAS REGULATRIAS..................................................................... 214 7.11. AS IMUNIDADES ................................................................................................................................ 215 7.12. BITRIBUTAO EXTRAFISCAL ........................................................................................................... 217 CAPTULO VIII- INSTRUMENTOS EXTRAFISCAIS INFRACONSTITUCIONAIS ..................... 220 8.1. CRITRIOS JURDICOS DE AFERIO DA EXTRAFISCALIDADE .............................................................. 220 8.1.1. O uso de palavras de significado intencional ........................................................................... 221 8.1.2. Extrafiscalidade por especialidade ............................................................................................ 221 8.1.3. Extrafiscalidade em razo de critrios no-eidticos da regra de incidncia ........................... 222 8.2. OS INSTRUMENTOS EXTRAFISCAIS....................................................................................................... 223 8.2.1. Instrumentos pecunirios ........................................................................................................... 225 8.2.2. Instrumentos formais.................................................................................................................. 233 8.2.3. O manejo do prazo de pagamento.............................................................................................. 235 8.2.4. Sanes tributrias e extrafiscalidade ....................................................................................... 236 8.3. A ISENO.......................................................................................................................................... 237 8.3.1. Iseno e imunidade................................................................................................................... 241 8.3.2. Iseno e no-incidncia............................................................................................................ 242 8.3.3. Iseno e alquota zero............................................................................................................... 242 8.4. EXTRAFISCALIDADE E AS ESPCIES TRIBUTRIAS ............................................................................... 243 8.4.1. Impostos ..................................................................................................................................... 245 8.4.2. Taxas .......................................................................................................................................... 248 8.4.3. Contribuio de Melhoria.......................................................................................................... 249 8.4.4. Emprstimo compulsrio............................................................................................................ 250 8.4.5. Contribuies especiais.............................................................................................................. 250 8.5. MODALIDADES EXTINTIVAS E FUNO EXTRAFISCAL......................................................................... 252 CAPTULO XIX - A POSITIVAO EXTRAFISCAL ......................................................................... 254 9.1. MITIGAES AOS PRINCPIOS DA ANTERIORIDADE, NOVENTENA E ESTRITA LEGALIDADE................... 255 5 9.1.1. O contedo de condies. ...................................................................................................... 258 9.1.2. Imposto sobre operaes financeiras......................................................................................... 258 9.1.3. Imposto sobre produtos industrializados ................................................................................... 260 9.1.4. Imposto de importao............................................................................................................... 261 9.1.5. Imposto de exportao ............................................................................................................... 262 9.2. A TRIBUTAO DO COMRCIO EXTERIOR............................................................................................ 263 9.2.1. O valor aduaneiro ...................................................................................................................... 270 9.2.2. Importao e entidades imunes .................................................................................................. 273 9.2.3. O preceito extrafiscal de estmulo s exportaes ..................................................................... 275 9.2.4. Imunidade e contribuio social sobre o lucro.......................................................................... 276 9.2.5. Importao, exportao e coerncia dos escopos extrafiscais................................................... 278 9.2.6. Imposto de exportao e desenvolvimento econmico............................................................... 280 9.3. IMPOSTO DE RENDA............................................................................................................................. 283 9.4. O CRITRIO DA NO-CUMULATIVIDADE.............................................................................................. 284 9.4.1. Harmonia com a seletividade..................................................................................................... 287 9.5. A TRIBUTAO SIMPLIFICADA DAS ME E EPP .................................................................................... 289 9.6. A TRIBUTAO AMBIENTAL................................................................................................................ 296 CONCLUSES............................................................................................................................................ 299 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 306 RESUMO...................................................................................................................................................... 317 ABSTRACT.................................................................................................................................................. 318 RIASSUNTO................................................................................................................................................ 319 6 INTRODUO Ao estudar as sanes pecunirias no mestrado, deparamo-nos com dois tipos: positivas e negativas. Fixamo-nos nas negativas, pois compunham realmente aquilo que ns, sem maiores precises iniciais, pretendamos estudar. Esse objeto foi investigado apenas em relao aos seus aspectos lgicos, to- somente no que se referia s relaes essenciais entre os componentes de sua estrutura conformativa. As sanes negativas esto intrinsecamente relacionadas ao par dentico proibido-obrigatrio. Se uma conduta proibida, a sua oposta obrigatria. Assim, por exemplo, se proibido fumar, igual e necessariamente obrigatrio no fumar. Dessarte, essa relao entre condutas opostas empregada pelo legislador ao prescrever sanes negativas com o fito de conferir eficcia a uma delas por meio do desestmulo da outra. No exemplo anterior, se a conduta desejada a de no fumar, ela modalizada como obrigatria, o que conseqentemente modaliza tambm a oposta fumar como proibida, qual vinculada uma sano negativa, ou seja, uma conseqncia desagradvel ao agente. As sanes negativas, a princpio, no guardam relao com as condutas conformadas pelo terceiro modal dentico: o permitido. A conduta oposta a uma permitida tambm necessariamente permitida. Se uma norma estipular a permisso de fumar, necessariamente tambm ter estipulado a permisso de no fumar. Assim, uma conduta permitida no poderia ser estimulada por meio indireto do desestmulo sancionatrio da conduta oposta, uma vez que esta tambm permitida. Ela, porm, poderia ter sua eficcia reforada por meio da imputao de algo desejado pelo seu agente; ou seja, pelas sanes positivas ou premiais. Se por um lado, as sanes negativas visam garantir a eficcia da imposio de uma conduta por meio do desestimulo da prtica da oposta e esto acopladas a regras moduladas pelo par obrigatrio-proibido; por outro, as sanes positivas ou premiais estimulam a prtica da conduta desejada diretamente e so prprias a se vincularem a normas de permisso. 7 Como j dito anteriormente, fixamos como objeto de estudo no mestrado exclusivamente o primeiro tipo de sanes, bem como as estudamos apenas sob o estrito critrio de sua estrutura formal. Consideramos que seria propcio completar esse estudo das sanes no Doutorado com enfoque, portanto, nas positivas. A princpio, julgamos que as sanes premiais, na seara tributria, comporiam o prprio conceito de extrafiscalidade, ou seja, o tributo (em verdade, suas desoneraes de todo tipo) empregado com a finalidade de estimular condutas permitidas. Nada obstante, constatamos que o fenmeno ainda mais complexo. O estmulo positivo pode, em tese, ser dirigido tambm s condutas obrigatrias, no s s permitidas; ademais, pode o tributo desestimular condutas permitidas, o que se quadraria no fomento negativo. O emprego de sanes, ou seja, a veiculao de regras com a finalidade de reforar a eficcia de outras normas fenmeno ainda mais amplo que o inicialmente por ns concebido. De toda sorte, consideramos que o conceito de extrafiscalidade abarca todos esses aspectos, exceto justamente aquele sobre o qual j havamos nos debruado no mestrado: as sanes negativas dirigidas a condutas proibidas. As regras com essa compleio so as nicas sanes deonticamente incompatveis com a estrutura das normas tributrias; de um lado, as sanes negativas vinculadas a condutas proibidas; de outro, os tributos. Todas as demais sanes podem assumir a feio de tributo; e o tributo que assume a funo de sano exerce papel extrafiscal. Fixado o objeto de estudo a extrafiscalidade como sanes sob a feio de regras tributrias , decidimos inicialmente abord-lo sob o mesmo prisma adotado no mestrado, qual seja, o da Lgica. No entanto, percebemos que muito pouco da riqueza do tema pode ser estudada pela Lgica, ao contrrio do que ocorreu na investigao das sanes negativas s condutas proibidas. A Lgica parte da viso sinttica um dos trs planos da Semitica. Os outros dois so a pragmtica e a semntica, nos quais se localizam os aspectos mais intrigantes da extraficalidade: os valores, a intencionalidade das regras, o significado e o uso no direito positivo de termos e expresses prprios de outras searas lingsticas, etc. Assim, objetivamos estudar a extrafiscalidade segundo as trs abordagens semiticas. 8 No poderamos, contudo, principiar a investigao do objeto sem antes possuir slido domnio do mtodo empregado. Iniciamos, portanto, a pesquisa por nos aprofundar em conhecimentos semiticos. E, nesse ponto, deparamos-nos com uma vasta gama de Teorias. No h sequer uma definio consensual do que seja Semitica e qual o seu objeto de estudo. Os planos sinttico, pragmtico e semntico compem uma das propostas de estudos semiticos, a qual, segundo alguns especialistas, no nem sequer exauriente das possibilidades de investigao do fenmeno lingstico. Assim, nossa dedicao preliminar foi ao estudo da prpria Semitica, bem como ao estabelecimento de quais de suas formulaes tericas sero empregadas e por qu. Os principais esteios desse mtodo de investigao sero apresentados no primeiro captulo, mas haver diversas especificidades aprimoradas ao longo de toda a monogrfica com o fito de atender ao propsito de investigar a extrafiscalidade sob o preciso enfoque de responder se tal funo deve influir na interpretao das regras tributrias e de que forma. Nesse passo, a primeira indagao a ser feita se a extrafiscalidade aspecto de ndole jurdica e, assim, se tais consideraes so relevantes para a interpretao da norma de incidncia tributria. Deparamo-nos com duas posies a princpio antagnicas: a que afirma que tais consideraes esto fora do mtodo de investigao jurdica e a de que elas devem compor seu campo de perquirio. A primeira est estampada nas seguintes palavras de Paulo de Barros Carvalho, segundo o qual, as questes extrafiscais que levaram o legislador a expedir o diploma legal so problemas alheios especulao jurdica 1 . A segunda pode ser encontrada em diversos autores, tais como em Regis Fernandes de Oliveira, Professor Titular de Direito Financeiro da USP, verdade que o que se passa antes da colocao de dada Constituio momento pr-normativo e, pois, visualizado sob outros ngulos do conhecimento humano. Mas no se pode negar que as influncias sociais, psicolgicas, religiosas, polticas, econmicas, impem sua manifestao no contedo das normas. Todo ato normativo
1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 532. 9 fruto de colocaes extrajurdicas. Toda norma deflui e filha dos sentimentos polticos, das presses econmicas e dos sentimentos sociais que dominam determinada comunidade. Ainda que pr-jurdicas, tais manifestaes fornecem subsdio para a exata compreenso dos contedos legais. Quanto mais da prpria Constituio, que expresso mxima dos sentimentos nacionais e fruto das presses da poca e da realidade vivida pela comunidade 2 . Em verdade, a pergunta inicial, deve ser repartida em duas. Primeira: os aspectos extrajurdicos devem ser levados em conta na compreenso do direito positivo, como aparentemente afirma Regis? Segunda: a extrafiscalidade se configura como aspecto extrajurdico ou jurdico? H assim quatro possibilidades retratadas no quadro abaixo: Extraficalidade Considerao jurdica Considerao no jurdica Aspecto jurdico SIM SIM Aspecto extrajurdico SIM NO
Se a extrafiscalidade for aspecto jurdico, ela ser relevante para a interpretao das normas jurdicas tributrias independentemente de os aspectos extrajurdicos serem ou no passveis de considerao jurdica ( por isso que a primeira linha da tabela apresenta dois sims). Se, por outro lado, a extrafiscalidade apresentar o carter extrajurdico, s ser considerada para a investigao jurdica se tais aspectos tambm forem relevantes; do contrrio, no. Em suma, a extrafiscalidade s ser apartada do objeto do estudo jurdico se ao mesmo tempo for aspecto extrajurdico, e este, por seu turno, for considerado como tudo que externo investigao jurdica. Em princpio, estipulamos a conjectura de que h dois momentos da extrafiscalidade: (i) o jurdico e (ii) o extrajurdico; e s o primeiro compe o objeto do estudo jurdico e intervm na interpretao do direito positivo. Nada obstante, cremos ser relevante no s distingui-los, mas tambm estabelecer as suas relaes. Para atingir esse propsito dividimos a tese em trs partes: (i) o direito como linguagem, (ii) extrafiscalidade e os trs planos semiticos, e (iii) extraficalidade e regime jurdico, cada qual dividida em trs captulos como segue.
2 OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de direito financeiro, p. 39. 10 No primeiro captulo, apresentamos a Semitica, seu objeto de estudo, seus instrumentos metodolgicos, bem como a relevncia de sua escolha como mtodo de investigao do direito e, mais especificamente, da extrafiscalidade. No h apenas uma Semitica, bem como um nico objeto de estudo. Em geral, define-se a Semitica em funo do seu objeto de estudo: o signo. No entanto, nem isso consensual. Greimas, por exemplo, entende que a Semitica deve se preocupar com as questes relativas significao e, com isso, no s com signos, mas tambm com sub- unidades significativas menores e macro-estruturas maiores e mais complexas que os signos propriamente ditos. Mesmo para a maioria das escolas que colocam o signo como o centro dos estudos Semiticos, tambm no h consenso sobre o prprio alcance do signo. H correntes mais restritivas, como a de Saussure, que estipula o signo com uma unidade arbitrria que est no lugar de algo sobre o qual pretendemos falar. J Peirce atribui um alcance mais amplo ao conceito de signo para abarcar, no s os registros arbitrrios, mas tudo aquilo que leva uma mente humana a formular interpretaes acerca de um outro algo. Por seu turno, Morris, formulador da investigao semitica em planos (pragmtico, semntico e sinttico), atribui um campo ainda maior. Enquanto para Peirce, os signos sempre esto para seres humanos, para Morris h signos e, portanto, interesse semitico, em todos os processos, mesmo entre outros seres biolgicos ou at cibernticos, os quais ele denomina organismos. De toda sorte, independentemente da Escola, todas alcanam o nosso objeto de interesse o direito , uma vez que sua manifestao se d por meio de linguagem e esta investigada desde as correntes mais amplas s mais restritas da semitica. Nos valeremos, portanto, das formulaes dessas escolas que digam respeito linguagem, tais como: i) os planos pragmtico, sinttico e semntico (Morris); ii) o cdigo como enciclopdia e a competncia lingstica do receptor (Eco); iii) o processo de semiose; o signo como unidade lgica desse processo; os trs componentes do signo; e os trs tipos de interpretantes imediato, dinmico e final (Peirce); iv) os fatores determinantes da comunicao e a traduo (Jakobson); 11 v) o processo gerativo de sentido (Greimas); dentre outros. De posse dos instrumentos semiticos selecionados, formulamos no segundo captulo uma proposta para a investigao do direito. Uma delas diz respeito segregao da investigao em razo dos planos pragmtico, semntico e sinttico, os quais serviro para a formulao de trs captulos da tese. Pretendemos ainda investigar o signo jurdico e todos os seus aspectos (significante, referente e significado) na sua completa composio. Por exemplo, postulamos que o direito positivo exerce a funo na semiose jurdica como referente do ordenamento, o qual se localiza no significado, outro dos trs stios lgicos do signo. Empreenderemos, contudo, uma anlise sob a tica da semiose e dos trs tipos de interpretantes de Peirce; o ordenamento como interpretante imediato, a doutrina (ou doutrinas, uma vez que, calcados em Eco, consideramos que no possvel a uma s pessoa possuir a competncia lingstica completa para a compreenso global de todo o texto do direito positivo) como interpretantes dinmicos e o sistema como interpretante final, inalcanvel, mas unificador lgico de todo o processo. Ainda, no mesmo captulo, buscamos verificar na Doutrina conceitos de Extrafiscalidade e os contrapor com aquele objeto de nossas pretenses iniciais, qual seja, a extrafiscalidade como a funo que as normas estritamente tributrias exercem de reforar a eficcia de outras regras, exceto a de desestmulo de condutas ilcitas. Postulamos, em princpio, que a extrafiscalidade se manifesta em dois planos distintos: o jurdico e o extrajurdico e a conexo entre os dois realizada por meio da intencionalidade. Assim como a enunciao, processo de produo do enunciado, deixa marcas no enunciado, acreditamos que a inteno do legislador deixa registros na lei, os quais demarcam a intencionalidade do ponto de vista jurdico. Tal intencionalidade e, portanto, a extrafiscalidade, pode se manifestar por meio de expedientes explcitos, implcitos e contextuais. No terceiro captulo, estipulamos que a linguagem s pode cumprir sua funo, seja ela qual for, desde que o receptor a receba e interprete. A interpretao, contudo, pode ser realizada de duas formas distintas: (i) uma simples e (ii) uma mais rebuscada, mais desenvolvida. Esta ltima a traduo. 12 Podemos olhar uma obra de arte e nos emocionar em razo disso; sentir deleite, angstia, dio, repulsa, etc. Essa interpretao do tipo simples. A complexa se d, por exemplo, no caso de ns explicarmos para um amigo por que a obra nos emociona. Nesse caso, a interpretao realizada por meio da traduo de linguagem pictrica para verbal. Se proferimos uma ordem a um subordinado faa isso, ele a cumpre e depois afirma que a cumpriu justamente em razo de termos dito faa isso, ele a interpretou, mas de forma simples. A princpio, poderamos dizer que a interpretao jurdica deste tipo. As leis, decretos, instrues, enfim, toda sorte de diplomas normativos so editados e as pessoas os cumprem aps deles tomarem conhecimento com sua imediata leitura. Cremos, contudo, que o fenmeno jurdico no se realiza por meio desse tipo de interpretao. Ele empreendido necessariamente atravs de uma interpretao mais complexa, ou seja, pela transformao de signos em novos signos, o que pode ser chamado de traduo. Em geral, consideramos que a traduo trata-se da tarefa de transcrever um texto de uma lngua para outra. Todavia, na lio de Jakobson, esse apenas um dos seus trs tipos, chamado traduo interlingual. H ainda a intralingual ou reformulao na qual est inserida a interpretao jurdica e a inter-semitica ou reformulao. justamente a interpretao jurdica como fenmeno de traduo que ser estudada no terceiro captulo com o fito de unificar todos os aspectos semiticos da extrafiscalidade. Se a interpretao jurdica pode ser classificada como uma modalidade de traduo, podemos utilizar as vrias ferramentas para este fenmeno desenvolvidas pelas Cincias da Linguagem, no caso especfico, pela Semitica. Tambm podemos, com os devidos cuidados, lanar mo das diversas concluses j alcanadas por outras Teorias, mesmo diversas da Jurdica. necessrio, porm, precauo. A transposio direta s se legitimaria no caso de no haver qualquer peculiaridade da interpretao jurdica em relao a uma estipulada Teoria Geral da Traduo. 13 No h, porm, uma Teoria com esse grau de desenvolvimento capaz de abarcar, mediante formulaes abrangentes tais, todo o conjunto de fenmenos de reformulao sgnica designado por traduo. O que encontramos foram Teorias que tratam de espcies ou gneros de traduo, mas no de todo o seu universo de possibilidades. Se uma classe possui uma dada caracterstica, suas sub-classes tambm a possuiro. Isso autoriza o Cientista a aplicar suas concluses acerca de uma classe s suas espcies componentes. Num exemplo, se o pesquisador conclui que os mamferos so homeotrmicos, os homens, de igual sorte, o sero. Para lanar mo da mesma analogia, no partiremos de uma Teoria j desenvolvida acerca de mamferos ou de primatas para investigar as caractersticas biolgicas do homem, o qual pertence a essas classes de seres. Utilizaremos, em verdade, formulaes j desenvolvidas para smios, gnero prximo, mas diverso da classe dos humanos. Assim, a despeito de estipularmos ser a traduo um grande gnero de fenmenos dentre os quais se enquadra a interpretao jurdica que guardam entre si caractersticas comuns, consideramos que as formulaes tericas atuais no se dirigem com preciso a todo o fenmeno, mas sim a alguns de seus gneros particulares. Dessarte, apesar de extremamente teis, os estudos acerca da traduo no sero adotados diretamente como premissas. Deveremos verificar se h peculiaridades da interpretao jurdica em relao s modalidades de traduo investigadas no texto que tomaremos como base e se tais aspectos de dessemelhana so relevantes. Uma das peculiaridades diz respeito diversidade da funo pragmtica do texto de partida em relao funo do texto de chegada. Uma poesia em russo traduzida para o portugus apresenta a mesma funo emocionar em ambos os textos. J o legislador incorpora, ao direito positivo, trechos de camadas lingsticas que no apresentam a funo prescritiva. Ademais, a Doutrina, ao interpretar, transforma um texto de linguagem prescritiva para descritiva. Esse processo de re-elaborao sgnica com modificaes pragmticas no est presente na traduo tradicional, o que impe verificar os seus impactos. Por fim, verificaremos a sustentao terica da denominada interpretao econmica. Estipulamos que se trata de um mtodo equivocado de interpretao, 14 decorrente da desconsiderao injustificada das mutaes pragmticas entre as linguagens do direito positivo e aquelas de onde foram extradas as expresses adotadas pelo legislador para formular o seu discurso conformador de condutas inter-humanas. Investigamos, no quarto captulo, as dimenses pragmticas da comunicao (enunciador, enunciatrio, enunciado e enunciao), especificamente em relao manifestao jurdica, e suas conexes com a intencionalidade jurdica e extrajurdica. Nesse passo, destacaremos a condio dos intrpretes do direito positivo, os quais se classificam em dois grupos distintos: (i) os enunciatrios e (ii) os no-enunciatrios. Naquele grupo, quadram-se os operadores do direito e os sujeitos cujas condutas sofrem a modulao jurdica; neste, a Doutrina. Consideramos relevante essa distino para a interpretao jurdica, uma vez que o enunciador, em tese, no leva em considerao a competncia lingstica do intrprete, mas daquele para o qual dirige o ato de enunciao. Estabelecemos, ainda, a conjectura de que a intencionalidade jurdica corresponde justamente aos valores positivados, os quais se manifestam de forma explcita ou implcita. Dessarte, um dos principais enfoques do captulo ser o de edificar uma teoria de valores luz do fenmeno extrafiscal. Nesse passo, julgamos que os valores se renem em corpos maiores de significao: as ideologias. Assim, a funes extrafiscais podem atender e, portanto, ser classificadas em funo do seu especfico vis ideolgico. No quinto captulo, em parte nos valeremos da Teoria de Paulo de Barros Carvalho acerca do processo gerativo de sentido, a qual julgamos ser uma precisa aplicao semitica na seara jurdica do Estruturalismo Semntico de Greimas. Nada obstante, consideramos que o processo desenvolvido pelo ilustre professor diz respeito a uma semntica interna ao discurso jurdico, ou seja, a uma intertextualidade intra-sistmica. Cremos, contudo, que merecem investigaes mais acuradas os aspectos semnticos relativos intertextualidade intersistmica. no plano sinttico de investigao, enfrentado no sexto captulo, que se revela a configurao formal das regras veiculadoras de extrafiscalidade, as posies sintticas de normas e princpios, as relaes entre escopos de cunho fiscal e no fiscal, bem como o completo espao lgico do emprego do tributo com a funo sancionatria. No stimo captulo, luz do emprego de regras tributrias com fins diversos ao de meramente levar recursos financeiros ao Estado, sero investigadas as disposies no 15 plano constitucional: princpios tributrios, imunidade, competncia tributria, bem como outros ditames e prescries no especficos da seara tributria, como as competncias legiferantes de regulao. O oitavo captulo dedicado investigao da extrafiscalidade no plano das normas inferiores ao degrau constitucional. So investigados os instrumentos mediante os quais os escopos constitucionais podem ser perseguidos por intermdio de normas atinentes seara tributria. No derradeiro captulo, assim como procedemos no mestrado, buscaremos empregar as formulaes desenvolvidas para investigar situaes concretas com que nos deparamos no direito positivo brasileiro. O foco desse procedimento, contudo, no estar nas especficas aparies concretas da extrafiscalidade. Sua finalidade, pelo contrrio, ser a de testar, por mais um ngulo, a correo e utilidade das concluses tericas. Selecionamos diversos temas, dentre os quais, o emblemtico caso dos quatro impostos federais (II, IE, IPI e IOF) que excepcionam os princpios da Estrita Legalidade, Anterioridade Geral e Nonagesimal. A Doutrina que justifica tais excees praticamente unnime ao afirmar que elas decorrem das funes extrafiscais a que tais impostos se destinam. Assim, nesse ponto perguntamos: que fatores levam os Juristas a esta interpretao? Aliado a isso, buscaremos responder outras indagaes, dentre elas: se tais impostos excepcionam os princpios acima referidos em razo das suas funes extrafiscais, seria constitucional excepcionar os mesmos ditames se o objetivo no tiver carter extrafiscal, mas meramente fiscal, como foi o caso do aumento do IOF em razo da no aprovao da CPMF? Enfim, a teoria que buscaremos desenvolver dever ser apta a investigar casos como o acima e a responder as perguntas que surgirem no curso da anlise empreendida.
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PARTE I: O DIREITO COMO LINGUAGEM 17 CAPTULO 1 SEMITICA verdade permitida apenas uma celebrao breve da vitria, a saber, entre os dois longos perodos em que condenada como paradoxal e desprezada como trivial. SCHOPENHAUER, Arthur; O mundo como vontade e como representao.
No h verdade sem linguagem; no h objeto, no h realidade, no h sequer seres humanos ns , entes lingisticamente conscientes. Em razo desse axioma, o da inevitabilidade lingstica para a compreenso e para a prpria constituio do eu e do mundo, a verdade sempre passageira fruto da perene re-elaborao humana, da contnua expanso de sua linguagem. A investigao jurdica passa, assim, necessariamente pela anlise da linguagem do direito, ainda que de forma inconsciente. Preferimos, contudo, a consciente, que intencionalmente adota valiosas contribuies provindas dos campos especficos de estudo da prpria linguagem.
1.1. LINGUAGEM: IMANNCIA DA CONDIO HUMANA
Em um sem nmero de aspectos, ns nos identificamos com o mundo animado e inanimado. Somos constitudos pelos mesmos tomos que formam a Terra; possumos idnticas molculas, das mais simples s mais complexas, s de animas, plantas e at bactrias. Somos semelhantes, quase idnticos, a muitos desses outros seres; aspectos sutis, porm, nos diferenciam, nos conferem a condio humana. Dentre todos, o mais decisivo a linguagem. Por isso, afirma Flusser, Ei-la, a lngua, em toda sua imensa riqueza. O instrumento mais perfeito que herdamos de nossos pais em cujo aperfeioamento colaboram incontveis geraes desde a origem da humanidade, ou, talvez, at alm dessa origem. Ela encerra em si toda a sabedoria da raa humana 3 . Mas, de que forma recebemos essa herana?
3 FLUSSER, Vilm. Lngua e Realidade, p. 36-37. 18 1.1.1. Culturalismo Numa viso culturalista, dada uma certa condio humana biologicamente j determinada, as estruturas lingsticas se desenvolveram com base na cultura. A lngua carrega todo o processo histrico de uma civilizao. Nas palavras de Flusser, A lngua, tal qual a somos, tal qual ela se derramou at ns para formar-nos, o acmulo de toda a sabedoria, de todo o esforo criador, de todas as vitrias e de todas as derrotas dos intelectos que nos precederam, Todos os nossos pensamentos, dos quais nos compomos, carregam a marca de nossos antecessores, tanto em seus conceitos (palavras) como em sua estrutura 4 . O referido autor considera a lngua como processo histrico criador 5 , isto , Cada palavra, cada forma gramatical no somente um acumulador de todo o passado, mas tambm um gerador de todo o futuro 6 .
1.1.2. Geneticismo Por outro lado, o Geneticismo afirma que a evoluo lingstica se deu com base na gentica. Recebemos pelos genes de nossos pais no s a cor dos olhos, o formato do rosto, e outras tantas caractersticas morfolgicas , mas tambm a aptido lingstica. Esta como a viso para o falco, a velocidade para o guepardo e o veneno para a cascavel , numa viso darwiniana, dota-nos de uma vantagem biolgica selecionada ao longo de incontveis geraes, do pr-humano ao homo sapiens. A linguagem assim como a viso, a audio, a estrutura muscular, etc constitui um rgo ou um sistema orgnico constitutivo do corpo biolgico do homem. Nas palavras de Chomsky, ...a faculdade de linguagem entra de modo crucial em cada um dos aspectos da vida, do pensamento e da interao humanos. Ela , em grande parte, responsvel pelo fato de, sozinhos do universo biolgico, os seres humanos terem uma histria, uma diversidade e evoluo cultural de alguma complexidade e riqueza, e mesmo sucesso biolgico, no sentido tcnico de seu nmero ser enorme 7 .
1.1.3. Uma posio unificada Enquanto a evoluo biolgica transferida de gerao a gerao por meio de marcas genticas, a evoluo cultural conduzida por registros lingsticos, que se
4 FLUSSER, Vilm. Lngua e Realidade, p. 188. 5 Ibid., p. 196. 6 Ibid., p. 199. 7 CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente, p. 18. 19 acumulam. H um paralelo, em ambos os casos, entre evoluo e diversidade. Organismos biolgicos evoludos so geneticamente mais complexos. De igual sorte, sociedades evoludas so diversificadas cultural e linguisticamente. O mesmo se diga do direito. Em uma sociedade mais evoluda, apresentar maior complexidade. O Universo caminha do simples para o complexo, do homogneo para o heterogneo. No incio, s hidrognio. Bilhes de anos se passaram para que, no interior de estrelas, a fuso nuclear formasse novos e variados tomos. A multiplicidade atmica viabilizou a ascenso a um novo patamar: o da complexidade qumica. Somente quando o Universo ascendeu diversidade qumica, foi possvel atingir novo estgio: o da complexidade biolgica; a qual, mediante mais um longo processo, gerou um ser dotado de aparato orgnico a linguagem capaz de possibilitar mais uma ascenso: a diversidade e complexidade cultural. No por acaso, Noam Chomsky encontra similaridades entre a qumica e a lingstica, uma vez que estudam como certos elementos simples so aptos para edificar estruturas mais complexas 8 . Nesse processo de ascenso da complexidade, vale destacar ainda a conquista da linguagem escrita que potencializou ainda mais a diversidade cultural; impossvel mediante linguagem exclusivamente oral. nesse contexto que encontramos o direito, nosso foco especfico de investigao.
1.2. SEMITICA A linguagem nosso paradigma e a Semitica, o instrumento para dela nos aproximar. Numa viso ampla, Winfried Nth afirma que Semitica a cincia dos signos e dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura 9 . Todavia, a seguir reconhece, Essa definio no , porm, aceita por todos os estudiosos da rea. Vrias escolas da semitica preferem definies mais especficas e restritas 10 , dentre as quais esto as que se preocupam apenas com a comunicao humana, como a Semitica de Umberto Eco para quem no h signos na natureza; o objeto de estudo deveria se constituir apenas das mensagens intencionais.
8 CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente, p. 66: A qumica e a lingstica tm muitas semelhanas. Na verdade, elas surgiram mais ou menos ao mesmo tempo meados do sculo XVII , no sentido moderno. Ambas esto estudando como coisas simples formam estruturas complexas. E estamos tentando descobrir quais so essas coisas simples e quais so os princpios de combinao e de interao. 9 NTH, Winfried. Panorama da Semitica, p. 17. 10 Ibid. 20 As duas principais escolas da Semitica so fundadas pelos estudos de Peirce e de Saussure. Peirce adota um sentido universal para a sua Teoria, a qual abarca inclusive os signos naturais, como o trovo que anuncia a tempestade. Tal abrangncia no compartilhada pelos estudos de Saussure, cuja principal preocupao foi a de aferir os aspectos diferenciadores entre a linguagem e os demais sistemas sgnicos. Dentre tais aspectos est o da arbitrariedade, que assume o centro de sua Teoria. Tambm merecem destaque as concepes de sistema e de estrutura lingstica; alm do signo arbitrrio, so traos distintivos da linguagem, a manifestao como instituio social e a sua imutabilidade. Por outro lado, no adotaremos o modelo de signo de Saussure. Cremos ser superior o de Peirce, por ser mais amplo e, assim, capaz de abarcar sutilezas que julgamos relevantes para o estudo da linguagem jurdica. Nessa linha de abordagem, no poderemos olvidar a Escola de Paris, em especial Greimas, um dos mais influentes estruturalistas do sculo XX, cujos estudos certamente inspiraram significativas contribuies Teoria do Direito, como o processo gerativo de sentido da norma jurdica proposto por Paulo de Barros Carvalho.
1.3. SIGNO
Nas palavras de Fiorin, podemos encontrar uma singela, mas esclarecedora definio de signo: ...as frases so signos, os textos so signos, qualquer produo humana dotada de sentido um signo 11 . Todavia, o conceito de signo sobremaneira mais complexo. Como nos adverte Lcia Santanella 12 , s na obra de Peirce so encontrados cerca de uma centena de definies do termo signo, muitas das quais aparentemente contraditrias entre si. Em verdade, tantas definies tiveram a finalidade de destacar as mltiplas facetas desse fenmeno.
11 FIORIN, Jos Luiz. Teoria dos signos, pg. 60. 12 SANTAELLA, Lcia. A teoria geral dos signos, p.22. 21 A definio mais singela Signo alguma coisa que representa algo para algum, por ser excessivamente simplificadora, ao revs de clarificar o tema, encobre a complexidade do fenmeno. Essa definio apresenta um erro recorrente: o de que o signo representa algo para algum. Tal concepo consta da Teoria de Peirce, mas segundo Santanella em razo de ter receio de que sua Teoria, sobremaneira abstrata, seria incompreensvel para a poca. Assim, reduziu provisoriamente a preciso com o fim de ser compreendido. Nada obstante, o signo apresenta carter independente de qualquer eu individual. uma unidade lgica cuja forma se traduz por estar no lugar de. Peirce apresenta trs modalidades de signos 13 : (i) o cone, quando h uma relao qualitativa com o seu objeto (ex. uma placa de trnsito, cujo signo similar ao formato da curva sobre a qual pretende avisar); (ii) o ndice, quando h uma relao factual com o objeto (ex. a fumaa ndice do fogo); e (iii) o smbolo, quando a relao com o objeto de carter convencional. Apesar de no haver linguagem, nem a escrita, que se manifeste por meio de um s tipo de signo (a expresso curva em S, por exemplo, apresenta carter icnico e simblico), concentrar-nos-emos nos convencionais, pois o direito positivo fundamentalmente simblico. Em razo disso, alm das lies de Peirce, valer-nos-emos, dentre outros, das lies de Saussure, uma vez que sua Teoria estabelece o grande modelo semitico do sculo XX no peirceano, isto , o Estruturalismo, que se esteia na arbitrariedade do signo.
1.4. O TRINGULO SEMITICO Adotamos o modelo tridico de Peirce por ser superior ao didico de Saussure ao conceber o objeto como integrante do signo. Segundo as lies de Winfried Nth, o signo na formulao tridica encontrado j nos estudos de Plato como composto pelos seguintes componentes: (i) o nome, (ii) a idia e (iii) a coisa. Para Plato, porm, a idia adquire concretude diversa da mera existncia na mente humana.
13 Em verdade, so vrias as classificaes de signos apresentadas por Peirce. Todavia, para nossos propsitos no utilizaremos todas. 22 Para os Esticos, o signo tambm se estrutura por meio de trs componentes: (i) o significante, (ii) a significao ou significado e (iii) o evento ou objeto. O segundo apresenta-se como uma entidade no-corporal, enquanto os demais como entes materiais. J os Racionalistas dos Sculos XVII e XVIII apresentavam o signo como entidade didica composta por duas entidades imateriais significante e significado. Segundo Winfried Nth, Em contrapartida tradio estica, que tinha postulado a materialidade desse aspecto do signo, a contribuio revolucionria da semitica de Port- Royal est na descrio do significante como imaterial, como idia de uma tal coisa 14 . Essa contribuio d um passo relevante. O signo categoria semitica e, portanto, lingstica. Est, assim, por completo num cenrio intersubjetivo. Nenhum de seus componentes apresenta materialidade, ou seja, pode ser identificado com algo no mundo exterior prpria linguagem. O signo corresponde juno de trs aspectos: (o) o referente, (ii) o conceito, e o (iii) suporte de significao. Cada um desses aspectos no tem uma realidade fsica. No so ontologicamente determinveis, mas apresentam uma relao com coisas ontologicamente determinveis: (i) o objeto em si, (ii) os contedos de conscincia, e (iii) as marcas grficas. Trs so aspectos de uma categoria lingstica e cada qual se relaciona com coisas em si. Duas delas so, nas palavras de Popper 15 , de ontologia de terceira pessoa e uma de ontologia de primeira pessoa.
1.4.1. O significante Como nos relata Nth 16 , so vrias as terminologias empregadas para designar esse critrio do signo, tais como smbolo, veculo do signo, significante e expresso. Na verdade, o prprio termo signo tem sido empregado de forma ambgua, inclusive por Tericos como Peirce: ora para designar a entidade tridica, ora para nomear esse de seus trs aspectos. O significante originalmente concebido como uma entidade fsica, o que ainda adotado por pensadores mais recentes, como Morris 17 , foi, contudo, a partir da semitica de Port-Royal, concebido como uma entidade no material, mas sim mental.
14 NTH, Winfried. Panorama da Semitica, p. 41. 15 POPPER, Karl Raimund. O eu e seu crebro, p. 27. 16 NTH, Winfried. Panorama da Semitica, p. 66. 23 Esse aspecto a distino entre a entidade fsica e a mental costuma ser desprezado no estudo da linguagem. Ignora-se o processo que leva um registro grfico a ser identificado pela mente humana como significante. Geralmente s nos apercebemos da distino no caso de dificuldades no processo mental de elaborao do significante. Podemos constatar que esse um problema com que nos deparamos a todo instante. Em geral, no compreendemos as receitas escritas por mdicos, mas o profissional da farmcia sim. comum a dificuldade de leitura de professores ao corrigirem as provas escritas de seus alunos. No por acaso, nas avaliaes escritas dos candidatos a professor da USP, suas redaes so lidas em pblico pelo prprio candidato diante da banca examinadora. O mesmo problema (dificuldade na constituio mental do significante) ocorre na linguagem oral. A dificuldade de apreender uma nova lngua no est apenas nos aspectos sintticos, semnticos e pragmticos, mas tambm em compreender quais palavras e frases foram pronunciadas pelos nativos do idioma. Por exemplo, para adultos que dominam com desenvoltura a leitura em alfabeto latino (que o mesmo da lngua portuguesa e da inglesa), dominar a leitura da lngua inglesa processo mais simples que aprender a compreenso em linguagem oral, em razo da dificuldade de converter os sons em significantes. Nos estudos jurdicos, essa questo lingstica no tem sido investigada pela simples razo de que nosso direito escrito, alis, em texto padronizado (graficamente mecanizado). Nada obstante, tema que deveria merecer mais ateno especialmente na Teoria da Prova, pois sua forma de produo sobremaneira livre em relao a de elaborao de diplomas normativos. A seguinte passagem de Chomsky ilustra bem a distino entre suporte ftico e significante, Suponhamos que a biblioteca tenha dois exemplares de Guerra e Paz de Tolstoi e que Pedro pegue emprestado um e Joo o outro. Pedro e Joo pegaram o mesmo livro ou livros diferentes? Se atentarmos para o fator material do item lexical, pegaram livros diferentes; se focalizarmos seu componente abstrato, pegaram o mesmo livro 18 , mas traz mais uma importante sutileza. O significante no material e tambm no mental. Caracteriza-se como uma entidade abstrata e, portanto, intersubjetiva. Alis, todos os vrtices do signo possuem essa mesma natureza; da a sua complexidade e a
17 NTH, Winfried. A Semitica do Sculo XX, p. 30. 18 CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente, p. 33. 24 dificuldade para compreenso. Deixamos, pois, para o tpico sobre a semiose, a abordagem mais minuciosa sobre esse ponto.
1.4.2. O referente Tambm h vrias designaes para esse aspecto do signo: objeto, referente, coisa; e a mesma dicotomia entre aspecto interno do signo e algo no mundo exterior est presente. Nas palavras de Correas, O referente ou denotatum das palavras a parte do mundo exterior sobre a qual o emissor do signo acredita poder dizer algo. E prossegue, o referente sempre uma construo cultural e no uma coisa ou um fenmeno 19 . Um exemplo interessante a Cidade de Jerusalm. Na verdade, h um objeto- em-si, composto por tijolos, argamassa, casas, etc., mas so referentes completamente distintos para os povos islmicos (chamado de Al-Quds) e para os judaico-cristos, o que gera conflitos, pois no falam sobre o mesmo referente, apesar da identidade do objeto-em- si. Num outro exemplo, apanhado do Poeta Octavio Paz, Cada lngua uma viso de mundo, cada civilizao um mundo. O sol celebrado em um poema asteca no o sol do hino egpcio, apesar do astro ser o mesmo 20 (traduo nossa). A mesma dicotomia foi constatada por Paulo de Barros Carvalho, Estudando o fenmeno da percepo, a Semitica avana no sentido de aprofundar a relao entre o sujeito do conhecimento e o objeto que pretende conhecer. H dois tipos de objetos: o imediato e o dinmico... O objeto dinmico tem autonomia, enquanto o imediato s existe dentro do signo. Mas, uma vez que no temos acesso ao objeto dinmico a no ser pela mediao do signo, o objeto imediato, de fato, aquele que est dentro do signo, que nos apresenta o objeto dinmico. Este, por no caber dentro de um s signo, pode ser representado de infinitas maneiras, atravs dos mais diversos tipos de signos. As determinaes do objeto dinmico so infinitas, de modo que os signos, individualmente considerados, representariam algumas delas 21 . Tal assertiva de Paulo de Barros Carvalho assenta-se na Semitica de Pierce. Nas palavras originais desse Terico, temos que distinguir o Objeto Imediato que o Objeto tal como o prprio Signo o representa, e cujo Ser depende assim de sua
19 CORREAS, scar. Crtica da ideologia jurdica: ensaio scio-semiolgico, p. 47. 20 PAZ, Octavio. Translation: literature and letters, p. 153: each language is a view of the world, each civilization is a world. The sun praised in an Aztec poem is not the sun of the Egyptian hymn, although both speak of the same star. 21 CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos jurdicos da incidncia, p. 90-91. 25 Representao no Signo, e o Objeto Dinmico, que a realidade que, de alguma forma, realiza a atribuio do Signo sua Representao 22 . Alis, relevante citar que a denominao Objeto Dinmico, ao revs de Objeto Real, foi empregado por Pierce, porque tal objeto pode no estar no mundo 23 . Pode ser real como uma rocha ou uma rvore, mas tambm ideal como o crculo e o tringulo, ou mesmo imaginrio como o centauro e a sereia. Na verdade, s temos contato com o objeto imediato. Temos a convico de que o objeto dinmico apresenta essa ou aquela natureza real, ideal e imaginria. Tal convico, contudo, jamais se configura como uma certeza apodctica. rvores realmente existem? Sereias, de fato, nunca existiram? Tringulos no apresentam concretude? Somos inclinados a responder cada uma dessas indagaes com respostas taxativas: rvores existem!, sereias no!, e tringulos so entidades abstratas! No entanto, podemos formular mais uma: Moiss, lder judeu que libertou seu povo do jugo egpcio e o conduziu terra prometida, como narrativa do Velho Testamento, foi realmente um ser real ou no passa de um ente imaginrio? Se no quisermos enfrentar narrativas de cunho religioso, podemos tambm perguntar: e Scrates? Que certeza essa que nos permite afirmar: Scrates existiu!? S h uma resposta: o objeto imediato Scrates existe e se relaciona com um objeto dinmico supostamente real. O mesmo devemos afirmar quanto aos demais: h objetos imediatos que se relacionam com objetos supostamente ideais e imaginrios. Segundo, Santaella, o objeto de um signo no necessariamente algo que poderamos conceber como um individual concreto e singular: ele pode ser um conjunto ou coleo de coisas, um evento ou ocorrncia, ou ele pode ser da natureza de uma idia ou abstrao ou um universal. Pode ser qualquer coisa, qualquer que seja, sendo que nada a governado por qualquer suposio a priori 24 . Para Peirce (apud Santaella), Um signo pode ter mais de um Objeto. Assim a sentena Caim matou Abel, que um Signo, refere-se pelo menos tanto a Abel quanto a
22 PEIRCE, Charles Sanders. Semitica, p. 177. 23 Ibid., p. 168: Devemos distinguir entre o Objeto Imediato i.e., o Objeto como representado no Signo e o Objeto Real (no, porque talvez o Objeto seja ao mesmo tempo fictcio; devo escolher um termo diferente), digamos antes o Objeto Dinmico que, pela natureza das coisas, o Signo no pode exprimir, que ele pode apenas indicar, deixando ao intrprete a tarefa de descobri-lo por experincia colateral (destaques originais). 24 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, pg. 15. 26 Caim, ainda que no a encaremos como deveramos encar-la, isto , como tendo um assassino na qualidade de terceiro Objeto. O conjunto de objetos por ser visto como compondo um Objeto complexo 25 . Em geral, os signos so estudados como entidades de apenas um objeto simples, singelo, particular. Isso, porm, apenas um procedimento simplificador para reduzir dificuldades de anlise. Assim, no s palavras, mas tambm frases e textos inteiros por maiores que sejam, como uma enciclopdia completa, podem ser considerados signos com mltiplos objetos, no caso, com objetos complexos. Em verdade, no h limites para a complexidade do objeto; at todo o discurso produzido pelo homem, por todas as civilizaes, ao longo de toda a histria, pode ser considerado como um nico signo composto por um s referente. Dessarte, o ordenamento como um todo pode ser visto como um nico signo, o que ser mais adiante mais minuciosamente analisado.
1.4.3. O Significado Mais uma vez, encontramos vrios nomes para esse aspecto: significao, significado ou mesmo interpretao. Peirce adotou esses vrios termos, mas o mais consagrado em sua Teoria o de interpretante, ao qual nos deteremos mais adiante. Esse vrtice, assim como os anteriores, apresenta uma concepo dicotmica, como na seguinte lio de Pierce: Quanto ao Interpretante, devemos distinguir, igualmente, em primeiro lugar, o Interpretante Imediato, que o interpretante tal como revelado pela compreenso adequada do prprio Signo, e que normalmente chamado de significado do signo; enquanto que, em segundo lugar, temos de observar a existncia do Interpretante Dinmico, que o efeito concreto que o Signo, enquanto Signo, realmente determina 26 . O interpretante dinmico so os contedos de conscincia, enquanto o interpretante imediato corresponde ao significado, este sim interior ao signo. Desde a mais tenra idade, nossos pais e parentes mais prximos apontam para objetos das mais diversas formas e dizem carro vermelho, casa vermelha, caneta vermelha e assim por diante. Passamos a identificar algo em comum entre esses mais variados objetos e a denominamos por vermelho. Da, compartilhamos com nossos pais e com toda a comunidade que compreende a lngua portuguesa esse signo.
25 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, p. 34. 26 PEIRCE, Charles Sanders. Semitica, p. 177. 27 Podemos, sem apontar, mas apenas por meio de um ato de fala, conseguir que um outro falante do portugus v buscar um determinado objeto vermelho no meio de outros tantos azuis pelo simples fato de compartilharmos o mesmo signo lingstico. Essa distino no singela. Somos levados a crer que o conceito subjetivo de vermelho exatamente o mesmo para cada um dos indivduos e a tal conceito convencionamos vincular a palavra vermelho. Vamos imaginar hipoteticamente, porm, que ao nascermos, foi afixado em nossa retina um dispositivo tal que, ao observarmos algo vermelho, o artefato transmite ao nervo tico o sinal equivalente do azul e ao observarmos o azul o inverso se processa. Assim, sempre que visualizarmos um objeto vermelho, veremos azul, mas nossos pais diro vermelho. E sempre que observarmos algo azul, veremos vermelho, mas nossos pais diro azul. Assim, ainda que no compartilhemos o conceito subjetivo (sensao) do vermelho, nem do azul, com nossos pais e nem com as demais pessoas da comunidade lingstica, a lngua ser perfeitamente operativa. Nada, nenhum teste lingstico, ser capaz de identificar que os aspectos subjetivos de nossa sensao visual diferem dos demais atores comunicativos. Apesar de os contedos de conscincia diferirem, necessrio para os atos comunicacionais serem eficazes, que o emissor e o receptor tenham algo em comum. Nunca teremos a certeza apodctica se o contedo de conscincia da sensao de vermelho de um dado receptor idntico ao nosso, mas saberemos se ele compartilha o mesmo conceito de vermelho se ao ordenar que pegue um dado objeto vermelho dentre outros de cores diferentes, ele trouxer o correto. H um conceito de vermelho por ns compartilhado, que no se confunde com nossos contedos individuais de conscincia; a est a dicotomia do significado.
1.5. O PROCESSO DE SEMIOSE Assim como no trecho de Paz, o significado de uma palavra sempre outra palavra. Quando perguntamos, qual o significado desta frase?, a resposta outra frase 27
(traduo nossa); ou na passagem de Santaella, Faz parte da prpria forma lgica de
27 PAZ, Octavio. Translation: literature and letters, p. 159: ...the meaning of a word is always another word. Whenever we ask, What does this phrase mean? the reply is another phrase. 28 gerao do signo que ela seja a forma de um processo ininterrupto, sem limites finitos 28 , percebemos que o signo no deve ser compreendido como uma entidade isolada, mas sim como uma unidade componente de um todo mais complexo: a semiose. A semiose um processo fundamentalmente tridico. No se resolve em qualquer das relaes entre pares (significante-significado; significante-referente; ou significado-referente). Essa concepo superior para a compreenso do fenmeno sgnico e, mais especificamente, comunicacional, no qual est inserido o direito. prprio da semiose crescer. Para Santaella, o interpretante realiza o processo da intermediao, ao mesmo tempo que herda do signo o vnculo da representao. Herdando esse vnculo, o interpretante gerar, por sua vez, um outro signo- interpretante que levar frente, numa corrente sem fim, o processo de crescimento 29 . A marcha da semiose jamais chega a termo. Num dado instante, num determinado momento histrico, numa fase cultural, a semiose pode at chegar a um fim, mas ser sempre provisrio. Diversamente do inseto apanhado pela aranha que ter suas partes por ela completamente devoradas, o objeto jamais poder ser completamente capturado pela teia da semiose. Aquilo que pensvamos ser definitivo, no nos sacia. Veremos a seguir se tratar de parcela de um todo inalcanvel. A semiose demonstra a autoreferncia da linguagem, pois nas palavras de Santaella, O processo lgico da semiose, especialmente a relao entre objeto e interpretante sempre mediada pelo signo, e a introduo do objeto imediato como outra inevitvel mediao entre signo e objeto estabelecem uma cadeia regressiva de signos do lado do objeto, assim como uma cadeia progressiva de signos do lado do interpretante, de modo que os elos contnuos da linguagem se constituem em algo inquebrantvel, para o qual no se oferecem sadas 30 .
1.5.1. O signo como unidade lgica da semiose O signo compe a estrutura lgica da semiose como sua unidade fundamental, mas cada um dos aspectos do signo significante, significado e referente tambm so signos quando isoladamente considerados. So entidades, portanto, tridicas; e, assim, compem os elos da semiose como uma corrente ininterrupta.
28 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, p. 18. 29 Ibid., p. 29. 30 Ibid., p. 45. 29 Como observa Santaella, numa relao tridica genuna, no s o signo, mas tambm o objeto, assim como o interpretante so todos de natureza sgnica. Ou seja, todos os trs correlatos so signos, sendo que aquilo que os diferencia o papel lgico desempenhado por todos eles na ordem de uma relao de trs lugares 31 . O vnculo do signo com o objeto no se d por meio de todos os seus aspectos, porque, se assim o fosse, corresponderia ao prprio objeto. signo justamente por que no objeto. Uma coisa dizer pegue e estender o brao com uma ma nas mos, outra coisa dizer pegue a maa. Para exemplificar o processo de semiose e o signo como sua unidade lgica, adotemos o signo minha me. H infinitos suportes fsicos possveis MINHA ME, minha me, minha me, minha me, minha me etc , alguns dos quais at de interpretao (fontica) no imediata, como em minha me; todos, porm, correspondem a um nico significante. Esse significante, por si s, tambm um signo, uma vez que apresenta um significado e tambm um objeto (o registro grfico). Ele, porm, opera para o signo sob enfoque, no como signo que , mas sim como significante e se refere a um objeto: a Dona Glria (minha me). Todavia, o que esse objeto? O objeto uma mulher casada, de estatura baixa e capixaba. Essa resposta, com efeito, corresponde ao que realmente a Dona Glria no mundo das coisas? No, pois poderamos prosseguir. Casada com quem? Com Seu Manoel. De estatura baixa, mas quanto? Um metro e cinqenta e sete centmetros. Capixaba de qual cidade? De Cachoeiro do Itapemirim. E assim indefinidamente. A semiose caminha em direo ao objeto por meio de um traado ininterrupto de outros signos sem jamais alcan-lo. A todo instante posso agregar mais um aspecto semiose na direo do objeto para dele me aproximar, sem nele em momento algum tocar. O objeto, assim, daquele signo sob enfoque (minha me) no algo no mundo das coisas, mas sim um outro signo tambm ou, porque no dizer, toda uma cadeia semitica em direo ao inatingvel (mas cognoscvel) objeto dinmico. E quanto ao significado?
31 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, p. 17. 30 No o prprio objeto. Evidentemente no o dinmico, mas tambm no o imediato. Para o signo sob apreo (minha me), o significado no se apresenta como todo e qualquer dos aspectos do objeto (ser capixaba, casada, etc.), mas apenas como uma qualidade relacional entre duas pessoas. Todavia, posso prosseguir: minha me orgnica? Legal? Ambas? Afetiva? As trs coisas, respondo. Mas o quo afetivo? Posso prosseguir uma vez mais. Enfim, a cadeia semitica tambm se perpetua em direo ao significado atravs de outros tantos signos (infinitos) na direo de um significado final, tambm inatingvel como o objeto dinmico. O direito sofre o mesmo processo.
1.5.2. Os trs nveis do interpretante Como j visto, o significado tambm apresenta um nvel intra-signo e outro exterior, ou seja, ontolgico. So os, na terminologia peirciana, interpretante imediato e dinmico. Em verdade, contudo, ao aplicar a mesma dicotomia a esse vrtice semitico, Pierce no se deu por satisfeito. Para ele h ainda um terceiro interpretante. Nas suas palavras, Uma distino similar pode ser feita em relao ao Interpretante. Mas, em relao a esse Interpretante, a dicotomia no suficiente de modo algum 32 . Sua Teoria est esteada num interpretante sob estrutura tricotmica. Alm do interpretante imediato, do interpretante dinmico, h, segundo suas convices, o interpretante final 33 . Entender a Semitica de Peirce passa necessariamente por compreender o seu escalonamento dos interpretantes no processo de semiose. Como destaca Lucia Santaella, ... impossvel se chegar a entender a concepo de signo em Peirce sem uma viso rigorosa e elucidadora da noo de interpretante 34 ; e prossegue: ...o interpretante no o
32 PEIRCE, Charles Sanders. Semitica, p. 168. 33 Vale destacar as prprias palavras de PEIRCE, Charles Sanders; Semitica., p. 168: ...suponhamos que eu acorde de manh antes de minha mulher e que, a seguir, ela desperte e pergunte Como que est o dia, hoje?. Isto um signo cujo Objeto, tal como est expresso, o tempo naquele momento, mas cujo Objeto Dinmico a impresso que eu presumivelmente extra do ato de espiar por entre as cortinas da janela. E cujo Interpretante, tal como expresso, a qualidade do tempo, mas cujo Interpretante Dinmico a minha resposta pergunta dela. Mas, alm desse, existe um terceiro Interpretante. O Interpretante Imediato aquilo que a Pergunta expressa, tudo aquilo que ela imediatamente expressa,e que eu enunciei imperfeitamente acima. O Interpretante Dinmico o efeito real que ela tem sobre mim, seu intrprete. Mas a Significao dela, ou o Interpretante ltimo, ou Final o objetivo de minha mulher ao fazer a pergunta, qual o efeito que a resposta ter sobre seus planos para aquele dia. 34 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, p. 61. 31 resultado de uma atividade subjetiva. O signo no um ente vazio e passivo dependente de um ego individual que, por um ato interpretativo, venha introjetar no signo o que lhe falta, isto , o interpretante. Ao contrrio, ele capaz de determinar o interpretante porque dispe do poder de ger-lo, ou seja, o interpretante uma propriedade objetiva que o signo possui em si mesmo, haja um ato interpretativo particular que a atualize ou no; uma criatura do signo que no depende estritamente do modo como uma mente subjetiva, singular possa vir a compreend-lo 35 ; ademais Embora essas afirmaes, primeira vista, possam soar de maneira aversiva ao leitor (uma vez que elas criam a impresso de que o signo uma criatura auto-suficiente que independe do uso que os homens dele fazem) no custa lembrar que nascer, para ns, no seno chegar e encontrar o universo da linguagem coletivamente j em curso e que este curso no depende de cada uma de nossas experincias individuais 36 ; mas a seguir arremata A noo de interpretante no significa, porm, que no existam atos interpretativos particulares e individuais 37 . Apesar dessa tricotomia do interpretante ser um dos temas da Teoria de Peirce mais complexos, no totalmente compreendido e ainda bastante controvertido, merece nossa ateno, pelo menos quanto a pontos de relativo consenso. O interpretante imediato aquele visto em potencial. uma significao latente do prprio signo. Se no houvesse tal interpretante, o signo no poderia ser identificado como tal. O interpretante dinmico o de mais simples compreenso. Trata-se dos contedos particulares de conscincia. o interpretante psicolgico. J o interpretante final aquele que atinge o mais alto grau de abstrao. Ele corresponde ao significado final do processo de semiose; inatingvel, portanto. Todavia, apesar de a semiose nunca o atingir; tende para ele. Dessarte, a fenomenologia do interpretante no explicada apenas pela contraposio entre um aspecto concreto e outro abstrato, pois so dois os interpretantes ou significados abstratos; um, como entidade potencial do signo, algo a ele intrnseco; outro, como seu resultado final. O significado assume, pois, vrios nveis: desde o concreto, que se caracteriza como uma imagem mental individual, portanto; at o mais abstrato como ente inalcanvel.
35 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, p. 63. 36 Ibid. 37 Ibid. 32 Em realidade, apesar de sua concretude, o interpretante dinmico o mais fugaz dos trs, pois depende do especfico ato de interpretao que se perde at para seu realizador , e s deixa marcas para outras pessoas em novos suportes fticos. Se de um lado, o interpretante dinmico o menos problemtico dos trs, de outro, o mais efmero. Numa analogia com a matemtica, a semiose pode ser comparada soma de uma progresso geomtrica de termos infinitos com razo menor que um. O interpretante imediato equipara-se frmula, os dinmicos a cada uma das parcelas, enquanto o interpretante final ao resultado finito, que s determinado por abstrao e nunca pela efetiva soma dos termos da PG. Como os smbolos matemticos no carregam contedos, mas apenas formas em seu estado puro, o resultado pode ser determinado. O mesmo no se diga, no processo de semiose. Como o interpretante final s pode ser inferido por abstrao, no possvel aferir seu contedo. abstrao s dado descobrir formas, nunca substncias. O interpretante final a derradeira fronteira para a qual os interpretantes dinmicos tendem, mas nunca alcanam. Sua existncia compreendida como forma, como um limite ideal, mas no h, em nenhum processo semitico particular, como determinar sua substncia 38 . Alm de investigar o papel de cada um desses interpretantes, o seu conjunto permite-nos compreender a natureza do prprio processo semitico. Nas palavras de Santaella, fica evidente a natureza social e coletiva, mais do que isso, lgica do interpretante no seu sentido geral. Uma interpretao particular, psicolgica (interpretante dinmico) sempre uma atualizao necessria, mas relativa e, portanto, sujeito correo e crtica. Erra correo s possvel devido relao dialtica entre o interpretante imediato (potencial inscrito no signo) e o interpretante final, limite ideal para o qual, a partir desse potencial, as atualizaes singulares tendem a se dirigir 39 . Assim, os interpretantes dinmicos podem ser identificados como mediadores entre o interpretante imediato e o final. No podemos deixar de considerar, contudo, que cada significante dinmico, em face de seu carter efmero, s se manifesta para outrem por meio de novo significante, o qual carrega consigo outro interpretante imediato. Uma vez que a semiose uma cadeia sgnica, o interpretante imediato no pode ser nico, mas
38 Vale transcrever as palavras de Ransdell (apud SANTAELLA, Lcia. A teoria geral dos signos, p. 77), o interpretante final , ento, a margem dos interpretantes possveis tal como seria definitivamente estabelecida com a paralisao de todo crescimento nos poderes que um dado signo manifesta quando ele tivesse mostrado tudo que ele poderia ser tudo que ele poderia fazer como signo. 39 SANTAELLA, Lcia. A teoria geral dos signos, p. 76. 33 sim concebido tambm como uma seqncia ininterrupta de um sem nmero de tais entidades. A semiose um caminho perptuo para se avizinhar, mas nunca alcanar, o interpretante final. Em cada ponto desse caminho, encontramos os trs nveis de interpretante, mas s um comum entre todos os elos sgnicos: o interpretante final. Essa entidade s determinvel do ponto de vista lgico, mas sua funo essencial para unificar todo o processo semitico. Em resumo, para cada particular semiose podemos identificar trs nveis de interpretantes de significados, portanto: dois abstratos, o imediato e o final; um concreto, o dinmico. Todavia, s o final singular; os demais so imensurveis. Essa classificao dos interpretantes em trs nveis no foi a nica formulada por Peirce. Outras duas mais foram propostas. Uma delas foi obtida pela aplicao de suas conhecidas categorias primeiridade, secundidade, e terceiridade, o que resultou nos interpretantes emocional, energtico e lgico. H relativo consenso de que essa diviso no corresponde classificao entre interpretante imediato, dinmico e final, mas ainda se est longe de unanimidade quanto relao entre uma classificao e outra. De um lado afirma-se 40 que se trata de uma subdiviso do interpretante dinmico, de outro que os trs interpretantes imediato, dinmico e final, podem ser subdivididos em emocional, energtico e lgico; num total, portanto, de nove subespcies 41 . No nos estenderemos mais acerca dessa classificao por que no a usaremos para investigar nosso objeto de anlise: a extrafiscalidade. Por fim, a ltima classificao elaborada por Peirce diz respeito ao interpretante luz de um processo comunicacional ao seu stio comunicacional, portanto. Sob tal aspecto, fala Peirce em interpretante intencional, eficiente e comunicacional. O primeiro corresponde quilo que est determinado na mente do emissor; o segundo, ao resultado no intelecto do receptor; ao passo que o terceiro o que deve ser compartilhado entre os dois agentes a fim de se cumprir a funo do signo 42 .
40 Savan, apud SANTAELLA, Lcia; A teoria geral dos signos, p. 81. 41 Johansen, apud SANTAELLA, Lcia; A teoria geral dos signos, p. 82. 42 Peirce, apud SANTAELLA, Lcia; A teoria geral dos signos, p. 83, H o interpretante Intencional, que uma determinao da mente do emissor; o interpretante Eficiente (effectual) que uma determinao da mente do intrprete; e o interpretante Comunicacional, ou melhor, o Cominterpretant, que uma determinao daquela mente na qual as mentes do emissor e do intrprete tm de se fundir a fim de que 34 Das trs tricotomias do interpretante propostas por Peirce, essa a que Santaella destacada estudiosa do tema menos se dedica, por considerar que o espectro dessa diviso bem limitado, uma vez que ela s aplicvel a situaes dialgicas, concretas, de modo que a funo do interprete parece terminar, e efetivamente termina, quando dois parceiros, num ato comunicativo, atingem uma compreenso mtua do signo 43 . No podemos, contudo, concordar com a autora. A limitao dessa classificao s estaria amparada se concebssemos o processo de comunicao tambm como algo limitado, sem qualquer filigrana merecedora de ateno. No o que pensamos. A comunicao algo extremamente complexo e diversificado. Dentre tais processos, como veremos mais adiante, encontramos o direito, o qual no se resume a meros atos de linguagem, limitados temporal e espacialmente e adstritos a fenmenos entre pares humanos. Se por um lado a semiose pode ser identificada como um fenmeno amplo, concebido para abarcar todos os fenmenos sgnicos, por outro, tal abrangncia, dado seu propsito de ser universal, elimina sutilezas que s podem ser percebidas e estudadas quando nos defrontamos com processos particulares, dentre os quais, o principal a comunicao.
1.6. DA SEMIOSE COMUNICAO A viso de Peirce do fenmeno semitico , em grande parte, focada no receptor, em razo de sua concepo ampla de signo, na qual se inserem tambm os signos naturais, vale dizer, os no produzidos por pessoas. Nada obstante, interessa-nos uma semiose particular: a que se realiza a partir da emisso do signo tambm por um ser humano, ou seja, a comunicao. Para tal, outros aspectos devem ser investigados, como o cdigo e o contexto.
1.6.1. O cdigo
qualquer comunicao possa ocorrer. Esta mente pode ser chamada de Comens. Ela consiste de tudo aquilo que, de sada, e deve ser bem compreendido entre emissor e intrprete a fim de que o signo em questo cumpra sua funo. 43 SANTAELLA, Lcia. A teoria geral dos signos, p. 68. 35 Como nos alerta Jakobson, Falar implica a seleo de certas entidades lingsticas e sua combinao em unidades lingsticas de mais alto grau de complexidade [...] Mas o que fala no de modo algum um agente completamente livre na sua escolha de palavras: a seleo [...] deve ser feita a partir do repertrio lexical que ele prprio e o destinatrio da mensagem possuem em comum [...] Assim, para ser eficiente, o ato da fala exige o uso de um cdigo comum por seus participantes 44 . O conceito de cdigo, contudo, deve ser compreendido como algo mais amplo como a idia de enciclopdia de Eco. Uma das maiores contribuies de Eco ao estudo da semitica diz respeito a sua concepo de cdigo como enciclopdia e hermenutica normativa. Nas palavras de Nth, A obra literria, conforme Eco, no uma obra aberta a qualquer interpretao, como o ttulo do seu prprio estudo de 1962 e a prtica de certos crticos desconstrutivistas da ps-modernidade parecem sugerir. A sua semitica literria exige um equilbrio entre os dois extremos de uma teoria literria que quer admitir uma infinitude de interpretaes para qualquer texto, de um lado, e uma hermenutica normativa, que s quer admitir interpretaes conforme as intenes do autor 45 ; e prossegue, O caminho interpretativo do leitor atravs de uma obra literria, conforme Eco, implcito na obra mesma, que prope, na sua estrutura, um leitor modelo, que segue e explora um potencial interpretativo da obra justificado pelas evidncias que o texto contm. No seu caminho interpretativo, o leitor modelo segue vrios princpios da semitica peirceana: a sua interpretao baseada em abdues e inferncias com base nos signos do texto e progride, num processo de semiose ilimitada (mas no descontrolada), conforme o ideal de uma progresso perfeitiva para resultados determinados conforme hbitos comuns e acordos interpretativos da comunidade literria. Nesse processo, o leitor ideal no nem um leitor perfeito nem um leitor aberto a pluralidades de leituras possveis (e admissveis), que so justificveis pela estrutura textual 46 . Para Eco, o cdigo no deve ser concebido de forma esttica, mas como um repertrio que se altera por meio de um processo. Uma palavra, assim, apresenta tantos significados quantos forem os contextos em que possa ser adotada; e tais possibilidades contextuais no so dadas de pronto previamente , mas evoluem. Numa viso enciclopdica do cdigo, sempre est presente a
44 JAKOBSON, Roman. Lingstica e Comunicao, p. 37. 45 NTH, Winfried. Panorama da Semitica, p. 166-167. 46 Ibid., p. 167. 36 concepo criativa do significado, seja dum termo, duma frase ou dum texto por maior que seja.
1.6.2. O contexto Contexto termo ambguo. Pode apresentar-se sob o aspecto pragmtico, semntico ou ambos. Uma pessoa que caminha pela Avenida Paulista se depara com uma placa em que se alerta ser proibido usar roupas de banho, seguramente, compreender que sua vestimenta deve comportar peas como ternos e vestidos. J aquela que encontra o mesmo aviso numa praia, imediatamente identificar tratar-se de uma rea reservada prtica de nudismo. Veja-se, contudo, que expressamos tais contextos a partir de texto. No precisamos levar algum para estes referidos lugares a fim de demonstrar que h dois sentidos para expresso proibido usar roupas de banho, conforme o contexto. Tais contextos foram informados e no vivenciados por meio de palavras, as quais tambm apresentam sentido; mas sentido este que tambm depende de um contexto ainda mais amplo. Tudo que escrevemos faz sentido, porque o avaliador de nossa tese est nessa condio vivenciada e ela foi entregue como tal num departamento da faculdade e levada s suas mos por uma pessoa autorizada. Sem isso, o que garantiria que tudo sobre o que escrevemos refere-se a um trabalho cientfico de um ramo especfico do conhecimento e no a uma obra literria ou a uma brincadeira jocosa? Esse conjunto de eventos compe o contexto sob o aspecto pragmtico. Os demais, edificados a partir de texto, ilustram o contexto semntico. Assim, o contexto o conjunto destes dois aspectos (evidentemente poderamos ainda destacar aspectos sintticos, uma vez que as palavras e frases que edificam o contexto sob o aspecto semntico tambm apresentam relaes entre si de cunho sinttico). Alis, como afirma Santaella, possvel, tambm, ver como Peirce lida com questes sobre objetos de signos tais como advrbios, preposies etc. Esses signos funcionam sincategorematicamente, dentro de um contexto que inclui frases, clusulas e 37 sentenas, e por meio de uma anlise de tais contextos que seus objetos podem ser identificados 47 . Assim, podemos identificar as frases como contextos das palavras; o texto como contexto das frases; mas qual ser o contexto do texto? Mais: o contexto do texto jurdico tambm jurdico, ou melhor, compe objeto de especulao pelo jurista? Creio que a resposta seja positiva, uma vez que o objeto (imediato) construdo necessariamente por meio do contexto. Nas palavras de Santaella, que se vale das lies de Savan, o objeto deve ser definido como aquela parte do contexto que comum ao signo e a todos os seus intrpretes 48 .
1.6.3. Inteno Um dos aspectos distintivos da comunicao, quando comparada com outras semioses, diz respeito inteno. Como nos informa Winfried Nth 49 , j na obra de Aurlio Agostinho (354-430), pice da semitica antiga, encontramos a distino entre signos intencionais e no intencionais. Os primeiros so convencionais estipulados por seres vivos e no por humanos , enquanto os segundos so ditos signos naturais como a fumaa, ndice do fogo. Searle 50 afirma que o estudo da comunicao humana apresenta como unidade fundamental o ato de fala e no, por exemplo, o signo. Sua concepo se calca no fato de que a diferena entre marcas naturais e as produzidas por seres humanos em atividade comunicacional s pode ser estabelecida em razo da inteno de produzi-las.
47 SANTAELLA, Lcia. A Teoria Geral dos Signos, p. 57. 48 Ibid. 49 NTH, Winfried. Panorama da semitica, p. 32. 50 Merecem destaque suas palavras originais, A razo para que este estudo se concentre nos actos de fala simplesmente a seguinte: toda a comunicao lingstica envolve actos lingsticos. A unidade da comunicao lingstica no , como se tem geralmente suposto, o smbolo, a palavra, ou a frase, ou mesmo a ocorrncia do smbolo, palavra, ou sentena na execuo do acto de fala. Considerar a ocorrncia como uma mensagem consider-la como uma ocorrncia produzida ou emitida. Mais precisamente, a produo ou emisso de uma ocorrncia de frase sob certas condies um acto de fala, e os actos de fala [...] so a unidade bsica ou mnima da comunicao lingstica. Um modo de compreender este ponto de vista perguntar qual a diferena entre considerar um objeto como um exemplo de comunicao lingstica e no consider-lo sob este ngulo. Uma diferena crucial a seguinte: quando consideramos que um rudo ou uma inscrio numa folha de papel constituem, enquanto mensagem, um exemplo de comunicao lingstica, uma das coisas que devemos supor que o rudo ou a marca foram produzidos por um ser, ou seres mais ou menos semelhantes a ns, e foram produzidos com certas intenes. Se ns considerarmos o rudo ou a marca como um fenmeno natural, tal qual o vento nas rvores ou uma mancha no papel, exclui-los-emos da classe de comunicao lingstica, mesmo que o rudo ou a marca no possam ser distinguidos de palavras faladas ou escritas. Alm disso, no s devemos supor o rudo ou a marca como produzidos por um comportamento intencional (Actos de Fala, p. 26-27) (nossos destaques). 38 A importncia da inteno resulta em que do lado do falante, dizer e querer significar alguma coisa est estreitamente ligado com a inteno de produzir certos efeitos no ouvinte. Do lado do ouvinte, entender a enunciao do falante est fortemente ligado ao reconhecimento das suas intenes 51 . Apesar de no concordarmos com a posio de Searle segundo a qual a unidade fundamental da comunicao humana so os atos de fala (consideramos que a unidade depende do corte produzido pelo agente cognoscitivo), cremos que sua investigao sobremaneira relevante, em especial, no que se refere ao intento do emissor; e esta anlise de cunho eminentemente pragmtico (os principais planos de investigao semitica so o pragmtico, o semntico e o sinttico, o que ser mais adiante explicitado). Cremos merecer acentuada ateno verificarmos se a inteno relevante para o Estudo do Direito, ou se esta seara especfica de comunicao humana, devido a aspectos a ela peculiares que a distinguem de todas as demais camadas comunicacionais, no comporta a anlise da inteno do legislador seu emissor. Sobre esse tema nos debruaremos no prximo captulo, pois conjecturamos haver estreita relao entre extrafiscalidade e a inteno do ato comunicacional que produz o direito positivo.
1.7. O TEXTO COMO UNIDADE DE SENTIDO H vrios tipos de comunicao em razo dos vrios tipos de signos produzidos pelo homem. Uma cena retratada numa tela um signo mediante o qual o pintor busca se comunicar com seu pblico. O ato de pintar e expor possui todos os elementos essenciais da comunicao: o emissor, o receptor, o contexto, etc. Nada obstante, estamos interessados numa espcie especfica de comunicao: a veiculada atravs de texto, pois nesse tipo que se enquadra o direito. Assim, importante perquirir o que h de particular ao texto que o diferencia de todas as demais formas de comunicao e qual a relevncia desse aspecto diferenciador para a compreenso do direito. Essa caracterstica diferenciadora a linearidade presente em todo tipo de texto, o escrito e o oral. Isso implica que esse tipo de comunicao no se apresenta de pronto aos sentidos e conscincia do receptor, mas sim como um processo.
51 SEARLE, John R. Os Actos de Fala, p. 66. 39 Ela unidimensional e, em razo disso, para veicular mensagens cujos signos so compostos por referentes multidimensionais, prolonga-se. Diriam alguns, assim, que no seria o tipo adequado para representar a realidade de natureza multifacetada. Seriam mais aptos outros tipos de comunicao, como pinturas, esculturas, etc. Essa afirmao, contudo, equivocada, pois o signo no corresponde jamais ao objeto (dinmico) e, destarte, no h necessidade de correspondncia entre suas estruturas. Nada obstante, a linearidade do texto impe um importante condicionante interpretao. Ela no pode ser promovida como um lampejo. necessrio todo um percurso para se interpretar, todo um esforo produtivo por parte do receptor, que deve ler, armazenar em sua memria as vrias partes e, s posteriormente, coorden-las com o intuito unificador. Evidentemente, conforme a dimenso do texto medida que ele aumenta mais extenso ser o processo interpretativo; e esse esforo do intrprete aumenta mais que proporcionalmente ao aumento do prprio texto em verdade, exponencialmente , pois o texto se expande pelo mero incremento de partes; enquanto a interpretao, pelo estabelecimento de relaes. Para uma nica parte adicionada ao texto; vrias relaes podem ser estabelecidas com as demais componentes; relaes estas cujo nmero ser maior quo maior for a dimenso do prprio texto. Uma parte (A) introduzida num texto formado por apenas duas outras partes (B e C) poder formar quatro relaes (A-isolado, AB, AC e ABC), ao passo que se fosse adicionada a um texto com trs partes (B, C e D), haveria oito possveis relaes (A-isolado, AB, AC, AD, ABC, ABD, ACD e ABCD), e assim sucessivamente. Essa emergncia de complexidades em razo do tamanho do texto conduz alguns importantes Cientistas da Linguagem at a duvidarem da possibilidade de se compreender um texto como uma unidade de sentido. Essa caracterstica no estaria ao alcance do intelecto humano, pelo menos para textos extensos. o caso da posio ctica de Chomsky retratada na seguinte passagem, Como a gramtica gerativa compreende o texto como unidade? Isso no ocorre, porque o problema difcil demais. Nem a gramtica gerativa nem qualquer outro tpico compreende o texto como unidade. certamente verdadeiro que um texto uma unidade... mas nosso entendimento do que seja muito, muito pouco profundo. Como em muitas questes complicadas, simplesmente no 40 compreendemos 52 . E conclui: O mundo um lugar complicado. E quando chegamos ao texto, est muito alm da compreenso terica 53 . No assumimos essa posio pessimista. Militamos a tese segundo a qual o conhecimento um processo infinito e como interpretar, num certo sentido, identifica-se com conhecer, o sentido de um texto e, portanto, a sua unidade infindo. A unidade de um texto construda, edificada, reedificada, reconstruda, edificada novamente, construda uma vez mais e assim indefinidamente. Tal unidade edificada mediante um processo de circularidade hermenutica como afirma Winfried Nth, O processo de interpretao textual no , portanto, um processo que comea com signos autnomos e sentidos independentes para seguir at o mais alto nvel do sentido global. O sentido elementar j contm traos do sentido global. Porm a aparece a circularidade, uma vez que o sentido global tambm no pode existir sem os sentidos elementares 54 . O processo de interpretao do texto como uma unidade de sentido identifica- se com a semiose de Peirce. Ademais, uma atividade individual e coletiva. Ao entramos em contato com uma obra literria, com um texto cientfico ou com um diploma legal, no as interpretamos de primeira leitura, ou melhor, o fruto dessa primeira interpretao ser extremamente apequenado. Em geral, para expandi-lo, relemos, conversamos com outras pessoas que tambm leram o texto, e at entramos em contato com pessoas desconhecidas atravs da leitura de suas obras sobre o nosso texto de interesse. Para expandir nossa compreenso sobre Dom Casmurro, podemos ler o livro mais de uma vez, conversar com quem o leu e trocar impresses, bem como ler um livro de um especialista em Machado de Assis. Todo texto (dentre os quais, o direito positivo) apresenta uma unidade de sentido, a qual, contudo, no deve ser identificada como um produto acabado ou passvel de s-lo, mas sim como um postulado unificado de todo o processo de interpretao (individual e coletivo).
52 CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente, p. 62. 53 Ibid., p. 63. 54 NTH, Winfried. Panorama da Semitica, p. 73-74. 41 1.8. ANLISE FUNCIONALISTA E ESTRUTURALISTA DO TEXTO O processo de interpretao do texto pode ser visto sob dois enfoques: o funcional e o estrutural. No primeiro, o texto apresenta unidade de sentido em razo da sua funo; no segundo, por meio da sua estrutura. Funo amide caracterizada em oposio estrutura ou forma de um dado sistema. Nada obstante, tais termos no devem ser vistos em oposio, uma vez que no h funo sem estrutura e nem estrutura sem funo. So apenas pontos de vista diversos de um mesmo objeto, no caso, de um sistema. A linguagem, como sistema, pode ser investigada segundo esses dois enfoques, os quais podem (e devem) ser integrados. Nada obstante, o termo funo apresenta vrias significaes. Em nosso estudo, reduziremos a duas: a funo de cada elemento dentro da estrutura e a funo da prpria estrutura. No primeiro caso, trata-se de funo sinttica, no segundo de funo pragmtica. A primeira abordagem visa investigar a relao de cada elemento semitico com o texto, ou melhor, o vnculo entre uma unidade de nvel mais baixo com uma de patamar mais alto, enquanto o segundo volta-se relao de cada elemento com o contexto pragmtico (emissor, meio, receptor, etc). neste ltimo aspecto que a Teoria Funcionalista, que tem por principal expoente Roman Jakobson, se ope ao formalismo dos estruturalistas seguidores de Saussure. A Escola de Praga, da qual Jakobson o principal expoente, recusou-se a conceber a linguagem como uma forma pura e isolada e com isso superou a oposio entre as vises esttica e dinmica da linguagem, a qual foi descrita como um sistema funcional que visa comunicao. Sua Teoria pode ser designada como estruturalismo dinmico. O direito, concebido como um sistema de comunicao, deve ser analisado sob esse enfoque unificador. Qual a sua funo? Qual a sua estrutura? Mais: como deve se estruturar para cumprir sua funo? Qual a funo das suas partes componentes dentro da sua estrutura? Nessa linha de investigao, o tributo deve ser concebido como parte; a extrafiscalidade, como uma funo dessa parte em relao estrutura, a qual edificada em razo da funo (que pode ser concebida como um conjunto de funes ou uma funo complexa) pragmtica do discurso do direito positivo como um todo unificado. 42 1.9. OS PLANOS DE ANLISE: SINTAXE, SEMNTICA E PRAGMTICA Para investigar a extrafiscalidade, empregaremos tambm, e principalmente, uma das maiores contribuies para a Semitica no Sculo XX promovida por Charles Morris. Sua Teoria ainda mais abrangente que a de Peirce. Para este Terico, o fenmeno semitico tipicamente humano (ainda que no verbal, lingstico, nem comunicacional exclusivamente), mas um signo, mesmo o natural, s adquire este status perante o homem. J para Morris, o signo abrange fenmenos com animais e at com entidades cibernticas nas duas pontas do processo (emisso e recepo). O signo no est mais para o homem, mas sim para organismos. Contudo, no estamos interessados em todo o espectro de sua Teoria, mas na sua especfica classificao dos planos de investigao semitica. Seu signo tambm concebido como uma entidade tridica: veculo, designatum e interpretante. A partir desses componentes, Morrris identificou trs relaes didicas todas com um componente comum: o veculo , relaes as quais constituem as dimenses para a investigao semitica e se estabelecem entre o veculo (o significante) e (i) os veculos de outros signos, (ii) seu designatum, e (iii) seu referente. A primeira relao objeto do plano sinttico de investigao semitica; a segunda, do plano semntico; por fim, a terceira, do pragmtico. H, contudo, vrias contestaes diviso de Morris, afirmando-a no exaustiva. No seria suficiente para uma investigao analtica completa do fenmeno semitico e, portanto, para a anlise completa de qualquer texto. De fato, essa classificao no permite investigar, por exemplo, o que h de comum entre determinados registros grficos ou sons, que nos faz identific-los como suportes fticos e, assim, interpret-los como significantes. Isso fica a cargo da fontica: ramo da semitica que no est abarcado, nem parcialmente, pelos planos de investigao de Morris. De toda sorte, a contribuio de Morris foi determinante para a Semitica Geral e satisfatria para Semiticas especficas. Para investigar o fenmeno jurdico, tal classificao sobremaneira til. Em razo disso, dedicaremos um captulo para cada plano com o foco especfico de investigar o fenmeno (jurdico?) da extrafiscalidade.
43 CAPTULO II. UM MODELO DE SEMITICA JURDICA O direito no apenas possui uma linguagem, mas uma linguagem, na medida em que instrumenta uma modalidade de comunicao entre os homens, seja para ordenar situaes de conflito, seja para instrumentalizar polticas. GRAU, Eros; O direito posto e o direito pressuposto.
2.1. O DIREITO COMO UM SISTEMA COMUNICACIONAL
No captulo precedente, vimos que o direito uma manifestao sgnica, mais especificamente comunicacional, uma vez que seu emissor e receptor so necessariamente seres humanos. Ademais, pertence classe das comunicaes textuais (que se distinguem, por exemplo, das pictrias), cuja caracterstica distintiva a linearidade. Em razo dessas consideraes, reputamos precisas as palavras de Gregorio Robles, La teora comunicacional concibe el derecho como un sistema de comunicacin cuya funcin pragmtica es organizar la convivencia humana mediante, bsicamente, la regulacin de las acciones. Otra forma de expresar que el derecho es un sistema de comunicacin se logra diciendo que el derecho es texto 55 . Como sistema de comunicao, podem ser aplicadas ao Estudo do Direito todas as formulaes gerais da Semitica (como os planos de anlise sinttica, semntica e pragmtica), como as relativas a esse tipo especfico de fenmeno sgnico.
2.2. O SIGNO JURDICO Todo texto pode ser concebido como o suporte de significao (o significante) de um signo. Assim, o prprio ordenamento como um todo compe um signo, cujos elementos componentes so sobremaneira complexos. No entanto, no s o todo, mas tambm as partes nos interessam; elas em si, e sua relao com o todo. Certas partes da ordem jurdica exercem relevante funo comunicacional, e atuam como signo, que so. A funo do direito positivo conformar condutas inter-humanas. Dessarte, a menor partio significativa do todo discursivo apta a cumprir tal escopo deve ser adotada como sua unidade lgica. Trata-se da norma jurdica.
55 ROBLES, Gregorio. El derecho como texto, p. 15. 44 A norma tambm, sob o paradigma semitico, signo e como tal sujeita a todas as ilaes pertinentes ao estudo desse objeto: a anlise de seu significante, representante e significado (interpretante); a investigao da semiose; o estudo do seu processo gerador de sentido; etc.
2.3. ANLISE DO SIGNO JURDICO Em razo da complexidade do ordenamento, entendemos no ser til para nossos fins o estudo de suas partes estruturais na sua feio sgnica, ou seja, seu significante, referente e significado. Tal investigao mais adequada para as suas unidades as normas. O ordenamento ser analisado no estudo da semiose jurdica.
2.3.1. O significante O significante do signo jurdico a primeira interpretao (a interpretao fontica) das marcas de tinta fixadas nos diplomas normativos. o resultado da leitura dos textos legais sem articulao entre as suas partes componentes. importante destacar que o interpretante no corresponde s prprias marcas, mas edificada a partir delas.
2.3.2. O referente H algumas propostas acerca do referente; uma delas: o homem. De fato, o homem pode ser referente de signos. Quando ns (emissor) falamos para algum (receptor) sobre o atual presidente dos Estados Unidos (Barack Obama), primeiro negro a ascender ao cargo mais poderoso do mundo, este um homem o referente. Seres humanos so emissores, receptores e referentes (todos diversos entre si). No discurso prescritivo, contudo, s h homens na funo de enunciador e de enunciatrio. A segunda proposta a conduta humana. De fato, a norma se refere a uma conduta, como j alertava o prprio Kelsen, Que uma norma dirigida a uma pessoa, de modo algum significa outra coisa seno que a conduta de um indivduo, uma conduta humana, devida. No o ser humano como tal, na totalidade de sua existncia, e sim uma certa conduta humana, qual a norma se refere 56 . Numa outra passagem, Objeto de uma norma aquilo que est prescrito numa norma, fixado como devido, a conduta de um ser
56 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas, pg. 12. 45 dotado de razo e de vontade segundo nossa concepo de hoje a conduta de uma pessoa 57 . Se o signo no corresponde ao objeto (dinmico), de igual sorte o signo jurdico no corresponde prpria conduta, esta considerada como a realizao de uma atividade fsica por um algum concretamente considerado. H assim duas condutas: uma que pertence prpria realidade sgnica, que est modulada segundo os functores obrigatrio, proibido ou permitido; e outra concretamente realizada (ou no) por membros de uma dada sociedade. primeira, podemos denominar conduta imediata, ou conduta-modulada; outra, conduta-dinmica ou conduta-evento. A conduta modulada jamais corresponder prpria conduta-evento. A conduta-modulada de pagar tributo no corresponder a todos os aspectos da conduta- evento de pagar tributo que poder ser de manh, tarde, numa ou noutra agncia bancria, diretamente ou por meio de um portador e assim por diante. Sob o amplo campo de possibilidades da linguagem, no h limitaes temporais ao objeto. Podemos falar acerca dos nossos avs j falecidos, da nossa atual esposa e filhos, bem como dos possveis netos que teremos. O objeto pode ser pretrito, presente e futuro. Nada obstante, seria a linguagem do direito positivo um sub-domnio particular sob esse aspecto? Teria o objeto jurdico alguma limitao temporal especfica? Todo signo composto por um objeto (imediato). No entanto, para fins de reduo de complexidades, especificamos signos com objetos mais simples. Esse procedimento foi adotado inclusive em relao norma, por, em realidade, o objeto da norma no apenas a conduta (esta objeto do prescritor normativo, o qual muitas vezes confundido com a prpria norma, mas em verdade lhe parte), mas tambm o fato. O referente normativo completo a composio fato-conduta; o fato no antecedente, a conduta no conseqente normativo. Com fins analticos, contudo, merecem investigao apartada.
57 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas, p. 113. 46 O referente do antecedente normativo tambm se submete dicotomia: objeto imediato e dinmico. O fato jurdico o objeto normativo imediato, ao passo que o evento o objeto dinmico. Como o direito tem a funo de conformar condutas humanas, o referente do prescritor (a conduta) ser sempre um comportamento futuro em relao ao momento do ato de enunciao. J a temporalidade do referente do descritor depende do tipo de norma. As normas individuais e concretas sempre so compostas por referentes passados; j as normas gerais e abstratas apresentam, em sua maioria, referentes futuros. Podem, porm, apresentar referentes pretritos, o que redunda no efeito retroativo do direito; geralmente indesejado, mas no impossvel do ponto de vista lgico. H ainda mais uma particularidade acerca do referente do discurso prescritivo. O destinatrio no estabelecido por meio pragmtico. Deve constar tambm do enunciado normativo. Ao conversarmos com parentes na sala de estar de nossa residncia sobre o tempo, no precisamos expressar (pelo menos no atravs do texto oral) que a comunicao a eles dirigida. J o legislador (o emissor do direito positivo) precisa enunciar o destinatrio; ao faz-lo torna o prprio destinatrio tambm referente.
2.3.3. O significado o sentido normativo que tambm pode receber a denominao de norma. Em verdade, norma palavra ambgua. Freqentemente empregada para designar o prprio diploma normativo, que no se identifica nem sequer com o significante normativo; outras vezes, com mais propriedade, com o significado normativo. Preferimos, contudo, denominar por norma o signo jurdico completo, cuja finalidade comunicacional a de conformar a conduta humana. A norma, nessa acepo, composta por um significante, um referente (fato-conduta) e um significado. Esse significado corresponde prpria modulao prescritiva.
2.3. AS DUAS SEMIOSES DO DIREITO O signo no uma entidade isolada. Ele faz parte de um processo que se desenvolve perenemente: a semiose. Uma vez concebidos ordenamento e norma como signos, o prximo passo inquirir de quais semioses eles so componentes. 47
2.3.1. Semiose: do direito positivo ao sistema jurdico O direito positivo corresponde ao significante do signo ordenamento. Estamos convictos de que no h apenas uma interpretao correta e, portanto, um nico significado. Todavia, isso no legitima toda e qualquer interpretao. Se o texto escrito autoriza um sem nmero delas, ele desqualifica um nmero infinitamente maior. O texto do direito positivo , pois, importantssimo; para cada interpretao digna de nota, ao menos um milho de outras no so. Ao discorrer acerca da interpretao e seus axiomas (inesgotabilidade e intertextualidade), Paulo de Barros Carvalho alerta-nos que esse processo guarda suas balizas, vale dizer, o texto no sentido de direito positivo. Nas suas prprias palavras: A interpretao toma por base o texto: nele tem incio, por ele se conduz e, at o intercmbio com outros discursos se instaura a partir dele 58 . Mas o direito positivo conceito idntico ao de ordenamento ou sistema jurdico? Segundo Robles, Ordenamiento es el texto jurdico tal y como es generado por las autoridades, que son las que toman las decisiones jurdicas. Los distintos poderes, a partir del constituyente y siguiendo por los constituidos, generan un texto al que podemos llamar texto jurdico en bruto [...] a ese documento lo llamaremos ORD [...] El texto bruto es sometido a un proceso de refinamiento y reelaboracin, generando un nuevo texto, que refleja al primero y, al mismo tiempo, lo completa. Este nuevo texto, o texto jurdico elaborado, no se produce directamente por la accin de las autoridades (poderes jurdicos), sino que es el resultado del trabajo de la dogmtica jurdica. [...] La dogmtica construye as el sistema [...] al que llamaremos SIS 59 . Robles ainda afirma que o sistema muito mais amplo e desenvolvido que o ordenamento. Se o processo de semiose, o caminho do referente para o interpretante, o passar para um signo mais desenvolvido que outro, no dizer de Peirce, por que no aceitar que o sistema jurdico um signo mais elaborado e, portanto, superior ao ordenamento, ou seja, ao signo enunciado pelo legislador?
58 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 416. 59 ROBLES, Gregorio. El derecho como texto, p. 23. 48 Entendemos que pode ser adotado ordenamento no sentido de signo original do processo de semiose ou como o seu prprio significado. Tal significado o interpretante imediato. Nesse sentido, o ordenamento no corresponde a um apanhado de regras, de enunciados prescritivos, mas sim de um todo orgnico dotado de caractersticas tais que lhe conferem uma identidade diversa das unidades lingsticas menores que o compem. Como nos informa Bobbio 60 , foi o positivismo jurdico a escola que introduziu originariamente no pensamento jurdico a Teoria do Ordenamento e sua concepo mais apurada e coerente foi estabelecida por Kelsen. So trs as caractersticas fundamentais atribudos ao ordenamento: unidade, coerncia e completude. A primeira no caracterstica exclusiva da escola positivista, uma vez que o jusnaturalismo tambm afirma a unidade das normas. Alis, a concepo de ambas as escolas se alinham com a nossa de cunho semitico, segundo a qual todo texto pode ser concebido como uma unidade de sentido. J a coerncia (no h normas a mais no ordenamento) e a completude (no h normas a menos) so caractersticas polares de uma mais ampla, a da plenitude conformativa do ordenamento: a caracterstica de conformar todas as condutas inter- humanas. Para cada conduta intersubjetiva, presente est no ordenamento, uma e somente uma norma que a module deonticamente. Nesse passo, deve ser destacado que o direito no governa a classe de todas as condutas humanas, mas apenas a subclasse daquelas que so relevantes em face do outro; as intersubjetivas ou inter-humanas, portanto. O direito positivo no se confunde com ordenamento ou sistema jurdicos, mas estes dois nomes (ordenamento e sistema) corresponderiam mesma entidade ou seriam distintas? Podemos segregar as escolas jurdicas em duas grandes vertentes: (i) as que tratam ordenamento e sistema jurdico como designativas da mesma entidade e, por esse motivo, devem ser adotadas como expresses sinnimas e (ii) aquelas identificam significados diferentes entre as duas expresses.
60 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico, p. 197. 49 Tercio Sampaio Ferraz Jr. adota a primeira posio: Um ordenamento (...) alm de ser um conjunto de elementos normativos (normas) e no-normativos, tambm uma estrutura, isto , um conjunto de regras que determinam as relaes entre os elementos. (...) O sistema um complexo que se compe de uma estrutura e um repertrio. Nesse sentido, ordenamento sistema 61 . Em resumo, o ordenamento apresenta-se como tal justamente por ser concebido como um sistema organizado de normas. H, porm, aqueles que adotam posio diametralmente oposta como Professor Gregrio Robles 62 , j citado, para quem o ordenamento o texto jurdico em bruto ou simplesmente material jurdico, ao passo que o sistema o produto de um processo de refinamento e re-elaborao doutrinria. O sistema, assim, no resultado da ao das autoridades legalmente competentes, mas sim do trabalho re-formulador da Doutrina. Seria o sistema um documento mais amplo e desbastado das lacunas, contradies e omisses prprias do ordenamento. A Doutrina no seria uma atividade meramente descritiva, mas sim construtora do prprio direito, uma vez que o sistema seria fruto de sua atividade; e, assim, os juristas seriam atores necessrios aos processos de deciso normativa. A doutrina , de fato, parte essencial da semiose jurdica, mas ela no exerce a funo edificadora do sistema, mas sim colaboradora no processo de semiose jurdica que marcha do ordenamento ao sistema; este inalcanvel. Kelsen 63 , j na obra Teoria Pura do Direito, discorreu acerca da necessidade de se distinguir a interpretao promovida por um agente autorizado a editar texto normativo daquela formulada pela Doutrina. Doutrina compete apenas apontar os possveis sentidos de uma norma mais precisamente, do texto normativo e no afirmar que tal ou qual sentido o correto, o verdadeiro. A aproximao cientfico-jurdica teria natureza exclusivamente cognitiva e, como tal, deparar-se- com vrias significaes. Competiria, assim, ao rgo autorizado promover, por ato de vontade e no apenas de cognio, a positivao, dentre as possveis significaes, de uma delas.
61 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito, p. 175. 62 ROBLES, Gregorio. El Derecho como texto, p. 23-26. 63 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 388. 50 Tal circunstncia esvaziaria a Doutrina de todo o papel crtico acerca das formulaes legislativas? Ao analisar essa posio de Kelsen, Tercio Sampaio Ferraz Jr., assim se manifestou: Esta coerncia de Kensen com seus princpios metdicos, porm, nos deixa sem armas. Sua renncia pode ter um sentido herico, de fidelidade cincia, mas deixa sem fundamento a maior parte das atividades dogmticas, as quais dizem respeito hermenutica 64 . Para a seguir prosseguir: Com isso, porm, Kelsen frustra um dos objetivos fundamentais do saber jurdico, desde que ele foi configurado como um conhecimento racional do direito. Ainda que lhe atribuamos um carter de tecnologia, de saber tecnolgico, a sua produo terica fica sem fundamento, aparecendo como mero arbtrio. No teria, pois, realmente, nenhum valor racional procurar um fundamento terico para a atividade metdica da doutrina, quando esta busca e atinge o sentido unvoco das palavras da lei? Seria um contra-senso falar em verdade hermenutica? 65
E conclui: Enfrentar esta questo constitui o que chamaramos, ento, de o desafio kelseniano 66 . (destaque original)
Assumindo justamente essa postura tecnolgica da doutrina, consideramos que as vrias possibilidades de interpretao do texto legislado no significam que todas esto num mesmo patamar de igualdade. Se pretendemos adquirir um aparato tecnolgico com a finalidade de ir de um ponto ao outro de uma cidade, certamente no iremos comprar uma geladeira, mas sim um automvel ou uma motocicleta. Se desejarmos conservar alimentos, nossa opo ser a geladeira e no mais o automvel. Assim, h opes corretas e erradas para o atendimento de um dado propsito. Mas, definido que o aparato correto deve ser um automvel e no uma geladeira, todos os aparatos que assim se qualificam esto em mesmo p de igualdade? Claro que no. H uns melhores que outros.
64 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito, p. 263. 65 Ibid. 66 Ibid. 51 Se o valor considerado for a velocidade, apesar de todos nos levarem ao destino pretendido, o mais rpido ser o escolhido (nessa avaliao, desconsideramos outros fatores, como preo, segurana, economia de combustvel, etc). Mesmo num ambiente de alto grau de desenvolvimento tecnolgico, como a Frmula 1, uns carros so melhores que os outros e, para identificar qual o melhor, ingressam em uma ambiente de competio. O mesmo se diga das formulaes doutrinrias. H aquelas que pretendem vender geladeiras no lugar de automveis. Todavia, h uma vastido de elaboraes dotadas do carter automobilstico, mas umas so mais adequadas que outras e sua maior ou menor adequao ser determinada tambm num cenrio de competio pela preferncia de uma dada comunidade lingstica. Assim, em razo do carter tecnolgico da Doutrina, compete-lhe elaborar interpretaes acerca do produto legislado, entrar em competio com as demais formulaes, bem como at criticar o prprio direito positivo. Todavia, tal crtica de ser parcimoniosa, uma vez que o processo de elaborao legislativa, que resulta na emisso do direito positivo, completamente diverso do mtodo de formulao doutrinria. Umberto Eco, ao analisar a obra de Alexandre Dumas, destaca a pssima qualidade do livro O Conde de Monte-cristo. Mas como poderia um autor da estatura de Dumas, de obras como A Tulipa Negra, Os trs Mosqueteiros, dentre outras, escrever um texto, apesar de tambm bastante conhecido, de qualidade to inferior na viso de ECO? A resposta est no processo de produo. Dumas foi pago para produzir a obra. Alm de ganhar por linha, o que o levou a estender em muitas situaes o texto em demasia, a publicao era por captulos, como nas atuais novelas televisivas. Assim, era obrigado, em cada episdio, com o fito de rememorar o leitor, a repetir parcialmente o que j havia escrito anteriormente. Evidentemente, ao reunir as partes numa pea nica, o texto perde a fluidez que lhe seria prpria caso houvesse sido escrito para leitura de uma s tocada. No seria o caso da produo legislativa? Cremos que sim. O processo de produo da lei talvez seja ainda mais tormentoso que a do Conde de Monte-cristo de Dumas. Alm de tambm ser produzida em captulos (os 52 diplomas normativos isoladamente considerados), mesmo estas partes no so elaboradas e nem manifestadas por um nico agente cognoscitivo. A lei no pode ser comparada justamente por ser fruto de um processo sobremaneira catico e adverso com o resultado de reformulao significativa empreendida pelo Doutrinador. A Doutrina, antes de criticar de forma pejorativa, deve efetivamente contar com o resultado freqentemente confuso e bablico do produto legislado como algo inerente a esse processo e colaborar ativamente para a sua elucidao. Outro ponto merecedor de destaque que a Doutrina no metalinguagem apenas do direito positivo. dele e de si prpria. Uma nova Doutrina no erigida exclusivamente com base no direito positivo, mas sim sobre as anteriormente formuladas, num processo dialgico com os textos anteriores. A Doutrina, assim, corresponde aos interpretantes dinmicos relativos ao ordenamento como interpretante imediato e ao sistema como interpretante final. O processo de elaborao doutrinria infinito uma vez incapaz de alcanar o sistema jurdico. A doutrina atente, pois, a um dos postulados de todo processo de interpretao: a inesgotabilidade, a qual, nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, a idia principiolgica de que toda interpretao infinita, nunca circunscrita a determinado campo semntico. Um texto poder sempre ser reinterpretado 67 . Dessarte, tambm concebemos o sistema jurdico como algo distinto do ordenamento, mas no como uma entidade dotada de significao concreta. No elaborado pelo legislador, nem pelo jurista. O sistema jurdico uma entidade ideal; incapaz de ser efetivamente alcanada. H como afirmar de forma categrica que um dado trabalho doutrinrio isento de contradies e lacunas? Ou que alcanou a perfeio tal que no pode mais ser aprimorado? Evidentemente as respostas a essas indagaes devem ser negativas. O sistema deve ser concebido, segundo o paradigma de uma semiose jurdica, como seu interpretante final mais complexo; aquele dotado de perfeio e completude; incapaz de ser atingido pela Doutrina, mas foco lgico atrativo e unificador das formulaes doutrinrias.
67 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 416. 53 O produto da dogmtica, com respaldo na teoria peirciana, algo diverso do ordenamento no sentido de ser um acrscimo de significao; um signo mais evoludo. Num certo aspecto, o ordenamento, concebido no s pelas normas gerais e abstratas, mas tambm por todo o corpo de linguagem prescritiva, inclusive as denotativas resultado das inmeras cadeias de positivao , deve ser concebido como um signo degenerado ou incompleto. Tal acepo, contudo, no deve ser recebida de forma pejorativa, como nos alerta Santaella 68 . O signo corresponde a um elo de uma cadeia ininterrupta a semiose. Qualquer fator que interrompe esse processo, o degenera, ou seja, impede que ele atinja toda a sua potencialidade como processo de significao. E justamente o que ocorre quando observamos cada marcha de positivao isoladamente considerada. Por razes prticas, alheias s possibilidades lingsticas, ela encontra um termo. Isso se d, porque o signo genuno muito mais um constructo terico do que um signo atualizado e utilizvel 69 . O ordenamento deve corresponder, portanto, a um signo til, funcional e no a um modelo abstrato inalcanvel. J, em relao ao sistema jurdico, afirmamos o contrrio. O seu processo de elaborao apresenta-se como uma semiose em toda a sua potencialidade (pelo menos em direo ao significado). O labor do Jurista, por menor que seja o seu objeto de investigao um ramo ou mesmo um nico instituto jurdico no tem fim, mesmo que nenhum outro enunciado prescritivo seja acrescido ao ordenamento. Dessa forma, como todo signo apenas um elo provisrio de uma cadeia semitica, cada Dogmtica pode ser concebida como um significado momentneo do ordenamento. O Sistema, assim, deve ser compreendido como exemplo do interpretante final peirceano. entidade abstrata e inatingvel com a qual nenhuma Doutrina em particular pode aspirar identificao, mesmo em relao aos aspectos mais consensuais de sua poca.
68 SANTAELLA, Lcia. Teoria Geral dos Signos, p. 71, Para evitar equvocos desnecessrios, bom lembrar que os termos degenerado, incompleto, primitivo e imperfeito no tm a nenhum sentido pejorativo. Essas denominaes se justificam porque neles a semiose no se completa, no atingindo o estgio genuno, ou seja, de processo ininterrupto, devir, infinitude, difuso e crescimento. 69 Ibid. 54 Ordenamento, doutrina e sistema so, respectivamente, os interpretantes imediato, dinmico e final da semiose jurdica completa e o direito positivo o seu primeiro significante.
2.3.2. A incidncia como semiose A incidncia um processo de produo sgnica. um caso especfico de semiose. Todavia, uma vez que o processo infindo, como justificar o marco final da marcha de positivao? As cadeias particulares de positivao jurdica, por meio das quais as normas so produzidas at atingir os patamares inferiores das regras individuais e concretas, compem um outro processo de produo sgnica, que se caracteriza com uma semiose interrompida por razes de ordem prtica.
A justificativa de natureza operativa. O fim se d com o trnsito em julgado por questes prticas. A deciso passada em julgado no significa que o sistema jurdico atingiu a posio correta sobre o caso. Por isso, a jurisprudncia se modifica. Alis, em razo da natureza sempre inacabada das semioses, em situaes excepcionais, o processo nunca se encerra. o caso de revises a favor do ru na ao penal. A cadeia de positivao parte dos patamares superiores da ordem jurdica, onde se localizam as normas estruturantes, passa pelas regras gerais e abstratas que estipulam o comportamento intersubjetivo, e se finaliza com a edio das normas individuais e concretas que efetivamente ferem a conduta social. Mas, se esse processo corresponde a uma semiose, a qual composta por signos cada vez mais desenvolvidos, como compatibilizar com a caracterstica hierrquica do direito. Como os primeiros signos podem ser hierarquicamente superiores, mas menos desenvolvidos? A lei o significante de um signo mais desenvolvido que o da Constituio; assim como o ato administrativo e a deciso judicial compem significantes tambm so mais desenvolvidos que o legal . Essa afirmao no deve ser erroneamente compreendida como sendo a lei algo melhor ou superior Constituio. A lei apenas um signo mais elaborado, de contedo de significao mais complexo. Ela, porm, decorre do signo anterior (a Constituio). Na semiose, os signos posteriores so mais elaborados que os anteriores, mas tal elaborao est vinculada os 55 anteriores; o contrrio. Os anteriores, numa certa medida, determinam os posteriores. A lei determinada pela constituio, mas sua elaborao maior. De igual sorte, o ato administrativo e a deciso judicial que inserem os significantes das regras individuais e concretas so determinados pela lei, mas mais elaborados que ela.
2.4. OS ELEMENTOS COMUNICACIONAIS DO DISCURSO JURDICO Dentre os elementos do ato de comunicao, para nossos propsitos de investigao do direito, em particular, da extrafiscalidade, destacam-se o emissor e o receptor. O signo comunicacional assim se caracteriza em razo de seres humanos assumirem a condio tanto de receptor, quanto de emissor; fruto, portanto, de um ato intencional do emissor e no meramente causal, como os signos naturais. A febre de uma pessoa , para um mdico, signo da doena, mas no se caracteriza como signo comunicacional. O direito, ao contrrio dos sintomas de patologias, caracteriza-se como um signo comunicacional, vale dizer, intencionalmente produzido por uma (ou vrias) conscincia para outras conscincias humanas.
2.4.1. O legislador O emissor do direito positivo, em geral, no individual. O ato de fala da linguagem prescritiva , no mais das vezes, coletivo. Mais: freqentemente a sua menor partio apta a cumprir a funo pragmtica de ferir condutas, ou seja, a norma jurdica, apresenta significantes enunciados por diversos atos de fala. Uma norma nem sempre pelo contrrio edificada a partir de um nico diploma legal; fruto, portanto, de um nico ato de fala. A comunicao jurdico-prescritiva sobremaneira complexa, pois alm de se estabelecer geralmente por meio de inmeros atos de fala; estes atos, por seu turno, so produzidos por emissores coletivos e, freqentemente, distintos para cada ato de enunciativo. Uma prescrio pode ser edificada a partir de enunciados de diversas leis, as quais foram produzidas por colegiados diferentes em momentos distintos e distanciados em dias, meses, anos e at dcadas. Assim, como afirmar, apesar de produzido por conscincias humanas, que o signo jurdico intencional? Ainda que haja inteno de cada uma das pessoas que participaram de cada ato de fala, como esta inteno ou o seu 56 conjunto pode ter relao com o signo jurdico? Como pode determin-lo de alguma forma? Segundo Trcio Sampaio, Do ngulo do objeto, o direito pode ser visto como a positivao de normas dotadas de sentido. Do ngulo do mtodo, o problema como e onde captar esse sentido. Em funo disto podemos cindir a doutrina em duas correntes que, embora no se distinguindo com essa nitidez, podem ser separadas didaticamente conforme o reconhecimento ou da vontade do legislador ou da vontade da lei como sede do sentido das normas 70 (destaques originais). A primeira chamada escola subjetivista, a segunda de objetivista. Todavia, antes de prosseguirmos, necessrio estabelecer a relao entre vontade e inteno. A Teoria Geral do Direito afirma que todo diploma normativo fruto de um ato de vontade, ao passo que, na Teoria da Comunicao, o ato de fala produzido em face de uma inteno. Como o direito um sistema comunicacional, podemos afirmar que vontade e inteno so sinnimos? Ou, como o direito uma das espcies de signos comunicacionais, deveramos conceber tambm a vontade como uma espcie de inteno? A resposta negativa para ambas as indagaes, pois todo ato intencional volitivo, mas nem todo ato volitivo intencional; nem toda volio possui finalidade. Podemos comer por que temos vontade (fome) e no, necessariamente, com a inteno de nos alimentar, de ingerir nutrientes que consideramos indispensveis manuteno da nossa sade e, s vezes, nem sequer para saciar nossa prpria vontade (a fome). Podemos comer simplesmente por que temos a vontade de comer. Por outro lado, sempre que praticamos algum ato intencionalmente, temos a vontade de faz-lo. Atos intencionais so espcies de atos volitivos e no o contrrio. Dessa forma, o direito fruto de atos de vontade, mas no de toda e qualquer vontade, mas sim daquela dirigida a algum escopo. Dessa forma, podemos prosseguir nas discusses acerca do direito ser fruto da vontade do legislador ou da lei, desde que compreendamos tratar-se de uma vontade do tipo intencional. Ainda segundo Trcio, calcado em Engisch, os objetivistas defendem sua posio contrria interpretao como resultante da vontade do legislador sob os seguintes argumentos: (i) a vontade do legislador seria um fico, uma vez que este raramente se
70 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito, p. 266. 57 identificaria com uma s pessoa, (ii) o texto legislado exige um determinado procedimento normativamente previsto para a sua produo, (iii) o texto deve ser inteligvel e, como tal, identificvel pelo intrprete e (iv) s a considerao de fatores objetivos capaz de complementar o texto legislado a fim de criar o direito com o fito de satisfazer a dinmica evoluo social. Por outro lado, os subjetivistas afirmam a favor de sua posio: (i) seria imprescindvel recuperar as razes histricas da produo legislativa de tal forma no ser possvel desprezar o legislador original, (ii) a vontade objetiva da lei no resolveria o problema da subjetividade, mas apenas a transferiria para a do intrprete, (iii) a escola objetivista comprometeria a segurana e a certeza do direito ao deixar a interpretao ao talante do intrprete. Nas prprias palavras de Karl Engisch: ... precisamente aqui que comea a problemtica central da teoria jurdica da interpretao: O contedo objetivo da lei e, conseqentemente, o ltimo escopo da interpretao, so determinados e fixados atravs da vontade do legislador histrico, manifestada ento e uma vez por todas de modo que a dogmtica jurdica deva seguir as pisadas do historiador no, claro est, em razo da histria, mas em razo da prpria matria em causa , ou no ser, pelo contrrio, que o contedo objectivo da lei tem autonomia em si mesmo e nas suas palavras, enquanto vontade da lei, enquanto sentido objetivo que independente do mentar e do querer subjetivos do legislador histrico e que, com isso, em caso de necessidade, capaz de movimento autnomo, susceptvel de evoluo como tudo aquilo que participa do esprito objetivo? Em volta desta problemtica se trava a luta das teorias da interpretao jurdica designadas abreviadamente por teoria subjectivista e teoria objectivista at os dias de hoje 71 . Tercio ainda destaca que a polmica entre as duas escolas no se resolve e a posio estremada de cada um apresenta uma raiz ideolgica 72 . A escola subjetivista daria esteio ao autoritarismo personalista, como foi o nazismo; ao passo que a objetivista geraria uma certa anarquia, o que levou os juristas realistas americanos a afirmar que o direito aquele decidido pelos tribunais 73 .
71 ENGISCH, Karl. Introduo ao pensamento jurdico, p. 170. 72 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito, p. 267-268. 73 BOBBIO, Norberto, O positivismo jurdico, p. 143 [...] os realistas se referem ao comportamento dos juzes, daqueles que devem fazer respeitar as regras de conduta impostas aos cidados. Normas jurdicas so, 58 No nos alinhamos com nenhuma dessas duas posies. Com efeito, a inteno do agente emissor, no direito, no deve ser buscada por dois motivos: (i) por que o emissor no uma nica pessoa; e (ii) por causa do primado da segurana jurdica. Mesmo que um projeto de lei tenha sido proposto por uma nica pessoa (por um deputado, senador, pelo Presidente da Repblica, etc) ele aprovado por diversos agentes, cada qual com uma inteno prpria. Ainda que o texto normativo tenha sido produzido por um s agente, como no caso de um Decreto, de uma Medida Provisria ou de uma Instruo Ministerial, no devemos considerar a inteno do agente produtor por causa da segurana jurdica. A sua inteno no deve ser buscada por meio de uma perquirio posterior. No se deve indagar ao Ministro com que objetivo publicou a Instruo, porque a inteno subjetiva dos agentes altera-se com o passar do tempo ou pode se alterar conforme as conjunturas. Tambm no se deve buscar a sua inteno por meio de outros textos produzidos na poca da edio da medida, uma vez que s o texto produzido segundo o procedimento previsto no ordenamento tem carter prescritivo. Esses textos, contudo, formam contexto intertextual, o que ser discutido posteriormente. O direito no composto por comandos, como a de um pai ao dar ordens ao filho. Neste caso, correto o filho indagar o pai com que inteno enunciou a ordem para bem compreend-la e execut-la. Essa circunstncia, contudo, no exclui a premissa de que o texto de direito positivo um produto humano intencional e isso no deve ser afastado pela Cincia Jurdica. A inteno, luz da Semitica, deve ser analisada em seu duplo sentido: (i) a dos contedos de conscincia e (ii) a dos conceitos como um dos trs aspectos componentes do signo. Os contedos de conscincia no so acessveis diretamente, seno por aqueles que os produziram. J os conceitos so algo intersubjetivo. Assim, no devemos buscar a inteno presente nos individuais contedos de conscincia, pois s pode ser inferida por outras conscincias mediante a emisso de novos significantes, o que produz insegurana repudiada pelo direito. Faz sentido um filho
pois, aquelas que os juzes aplicam no exerccio de suas funes [...] A definio realista do direito no faze conseqentemente tanta referncia ao legislador que estabelece a norma, mas sobretudo ao juiz que a aplica. 59 pedir ao pai que confirme o seu entendimento acerca da inteno de uma dada ordem por meio de nova emisso com outras palavras. No faz sentido, porm, indagar a cada deputado com qual inteno aprovou o texto legislativo, pois sua funo de enunciao da mensagem prescritiva se esgotou com percurso do prprio procedimento legiferante. O texto normativo, contudo, no deixa de ser intencional e, como tal, apresenta esse carter no vrtice conceitual e suas marcas esto presentes no significante. Assim, a inteno que interessa ao Estudo do Direito decorre de uma posio intermediria. Ela no est no contedo de conscincia do intrprete, nem tampouco no do legislador histrico. Ela interna do signo jurdico, entidade de natureza intersubjetiva, passvel de controle social.
2.4.2. O destinatrio: o indivduo e a coletividade H uma srie de posies acerca de quem o destinatrio do ato comunicacional do direito. Trs se destacam: (i) o sujeito que tem seu comportamento conformado pela norma, (ii) o agente pblico a quem se incumbe aplicar a norma e (iii) a doutrina. Apesar de a doutrina exercer um papel primordial como intrprete e, portanto, no processo semitico de re-elaborao do ordenamento na direo do sistema jurdico, no pode ser considerada como destinatrio, o que ser minudenciado mais adiante no captulo sobre a pragmtica. O destinatrio aquele que tem seu comportamento conformado pela norma. Com isso damos destaque primeira das hipteses selecionadas, mas no afastamos a segunda, uma vez que o agente pblico tambm tem seu comportamento conformado pela ordem jurdica por normas haja vista que deve aplicar a regra originalmente dirigida a outrem. Destarte, podemos simplificar, numa primeira abordagem, o destinatrio como aquele a quem a norma conforma suas aes e omisses. Para compreenso completa do fenmeno comunicacional do direito, o destinatrio no deve ser analisado apenas do ponto de vista individual, mas tambm coletivo. Num modelo de ordem jurdica que exera apenas a funo protetivo-repressora, em que se privilegiam apenas as regras moduladas pelos functores obrigatrio e proibido, 60 tal reduo (equivocada como o prprio modelo reducionista) considera o destinatrio apenas sob o ponto de vista individual. Num modelo completo, em que se consideram todas as demais funes da ordem jurdica, deve ser investigado o destinatrio tambm do ponto de vista de toda uma comunidade. No modelo repressivo, suficiente o aspecto meramente individual. O legislador ao modular como proibida uma dada conduta pretende que cada indivduo deixe de pratic-la e, assim, que esta conduta seja expurgada da coletividade. Ao agir sobre o individual, pretende-se atingir o coletivo numa exata medida. Todavia, nem sempre o fito normativo o de que cada indivduo deixe de praticar uma data conduta. A inteno jurdica pode ser a de conformar o conjunto das condutas sociais, mas no em pontos extremados e, assim, no adota a finalidade tudo-ou- nada, tpica da obrigao e da proibio; a primeira a de que todos pratiquem a conduta; a segunda, a de que ningum realize. O ordenamento no opera necessariamente com o escopo individual: proibio-obrigao. Podem ser buscados o aumento e a reduo de determinadas prticas, numa certa sociedade, em relao a uma dada posio em que se realizariam sem a conformao normativa. Nesse caso, o destinatrio da norma deve ser concebido como um grupo, uma coletividade e no pessoas individualmente consideradas. Nesse passo vale citar a constatao do Professor Celso Lafer, no prefcio da edio brasileira da obra de Bobbio, Da estrutura a funo, segundo a qual o privatista encara o direito a partir do indivduo por meio do conceito de relao jurdica. O direito pblico tem como funo dirigir interesses divergentes para um escopo comum, por meio de normas diretivas de comportamento 74 . Ao analisar aspectos pragmticos de normas indutoras de comportamentos econmicos, Schoueri, esteado nas lies de Gosch, assim asseverou: ...o incremento da tributao de um produto poder implicar seu menor consumo, conforme esteja ou no o mercado disposto a assumir tais custos. No sentido inverso, isenes pontuais podem induzir os consumidores em direo a determinados produtos. Em todos os casos, de qualquer modo, no lugar da deciso poltica, privilegia-se o mercado como centro decisrio, para determinar quem vai produzir (ou consumir) e quanto ser produzido (ou
74 LAFER, Celso. In: BOBBIO, Norberto. Da estrutura funo, prefcio, p. LIII. 61 consumido) 75 . Todavia, no concordamos integralmente com a posio adotada pelo Ilustre Professor. O mercado j toma essa ou aquela direo, com maior ou menor grau de intensidade, em razo da resultante das tomadas de deciso econmica de cada um de seus agentes, no caso de sua atividade estar governada por simples normas de permisso. Isso pressuposto para a edio de normas incentivadoras ou desestimuladoras. A imposio de regras que criam prmios ou nus para a prtica de atividades necessariamente uma ao poltica que adquire escopo jurdico. A coletividade (chamada mercado no caso de normas que visem conformar condutas de carter econmico) deve ser considerada como destinatrio. O fato de o destinatrio deixar de ser considerado individualmente para assumir uma compleio coletiva, no desloca para ele o centro decisrio de agir ou deixar de agir. A deciso poltica, que se incorpora num intento legislado, de outra natureza. Deixa de ser um deve agir ou um deve no agir para cada e, assim, para todos; e passa a ser pode agir, mas numa medida coletivamente diversa.
2.5. EXTRAFISCALIDADE UM FENMENO SEMITICO Para Paulo de Barros Carvalho, as questes atinentes extrafiscalidade So problemas alheios especulao jurdica, verdade, mas formam um substrato axiolgico que, por to prximo, no se pode ignorar. A contingncia de no lev-los em linha de conta, para a montagem do raciocnio jurdico, no deve conduzir-nos ao absurdo de neg- los, mesmo porque penetram a disciplina normativa e ficam depositados nos textos do direito posto. O intrprete do produto legislado, ao arrostar as tormentosas questes semnticas que o conhecimento da lei propicia, fatalmente ir deparar-se com resqucios dessa intencionalidade que presidiu a elaborao legal 76 .
To breve e to precioso. Esse trecho recorda-nos os aforismas de Wittgeinstein. Um copo de palavras que inunda um oceano de pensamentos. Levanta com argcia questes que devem ser enfrentadas na investigao do fenmeno da
75 SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 44. 76 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 532. 62 extrafiscalidade: (i) os valores, (ii) os problemas de ordem semntica e (iii) a intencionalidade. Antes, contudo, devemos conceituar extrafiscalidade.
2.5.1. Conceito de extrafiscalidade Como para a maioria dos objetos de estudo, no encontramos na Doutrina unanimidade sequer em relao ao estabelecimento dos limites do conceito de extrafiscalidade. Uma concepo das mais amplas encontrada na obra de Marcus de Freitas Gouva, para quem a funo extrafiscal importa realizar os fins constitucionais do Estado, mediante a canalizao de recursos para finalidades especficas e a criao de estmulos que visam induzir ou reprimir comportamentos, orientando-os na busca pelos mesmos objetivos, medida que cria diferenas entre indivduos e coisas 77 , a qual est em consonncia com sua concepo de fiscalidade que se compe apenas da funo do tributo de arrecadar recursos para mera manuteno da estrutura do Estado. Ainda segundo esse autor, o sistema tributrio organizado segundo duas grandezas: o fato gerador e a destinao do produto arrecadado pelos tributos. Essas grandezas, que definem as espcies tributrias, so dotadas de potencialidades extrafiscais 78 . Essa definio, contudo, de to abrangente, invade a seara de outra Dogmtica o Direito Financeiro. A Doutrina majoritria 79 define a extrafiscalidade como a funo exercida diretamente pelo tributo diversa daquela de meramente levar recursos aos cofres pblicos, mas se divide em duas vertentes: (i) aqueles que entendem haver extrafiscalidade quando a funo fiscal no prioritria o caso do Professor Portugus Casalta Nabais 80 e de Roque Antonio Carrazza 81 , e (ii) os que entendem estar sempre presente a extrafiscalidade
77 GOUVA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributrio, p. 279. 78 GOUVA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributrio, p. 280. 79 Cite-se ATALIBA, Geraldo. IPTU Progressividade, p. 81: Consiste a extrafiscalidade no uso de instrumentos tributrios para obteno de finalidades no arrecadatrias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realizao de outros valores constitucionalmente consagrados. 80 NABAIS, Jos Casalta. O dever fundamental de pagar impostos, p. 629, A extrafiscalidade traduz-se no conjunto de normas que, embora formalmente integrem o direito fiscal, tem por finalidade principal ou dominante a consecuo de determinados resultados econmicos ou sociais atravs da utilizao do instrumento fiscal e no a obteno de receitas para fazer frente s despesas pblicas. 81 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 93: H extrafiscalidade quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alquotas e/ou as bases de clculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa (grifos nossos). 63 independentemente do cunho fiscal do tributo como o Professor Paulo de Barros Carvalho 82 . Comungamos desta ltima posio e as razes para tal sero desenvolvidas nos captulos dirigidos investigao dos planos semiticos, especialmente, da sinttica. De toda sorte, h um ncleo comum maioria dos conceitos de extrafiscalidade: o seu carter finalstico; como bem observou Paulo de Barros Carvalho 83 . A finalidade de cunho intencional. , numa primeira visada, caracterstica subjetiva do enunciador, no caso, do legislador. Em razo disso, comum o tratamento da extrafiscalidade como aspecto extrajurdico; no passvel, pois, de ser objeto da Cincia do Direito. A intencionalidade, contudo, est sujeita dicotomia prpria dos fenmenos semiticos. H intencionalidades subjetivas, impregnadas nos contedos particulares de conscincia; mas h uma intencionalidade intersubjetiva, interna ao signo, e, portanto, lingustica. De igual modo, h finalidades subjetivas, mas tambm intersubjetivas localizadas no interior do signo jurdico. Aquelas podem ser objeto de outras Cincias da Psicologia, da Sociologia, etc , e examinadas a partir de outros signos (um relato de um deputado aps uma votao, por exemplo), mas no da Cincia Jurdica; j a finalidade intersubjetiva localizada no interior do signo jurdico prpria de perquirio pela Cincia do Direito. dessa finalidade que se constitui a extrafiscalidade. Todavia, finalidade sempre transitiva, vale dizer, se possumos uma finalidade, esta finalidade sempre dirigida a algo. A afirmao tenho a finalidade necessariamente incompleta; a ela seguramente seguir a indagao finalidade de qu?. A Doutrina responde, no mais das vezes, que o tributo de cunho extrafiscal tem por objetivo influir diretamente numa conduta social. No , contudo, a concreta influncia e nem apenas aquela previsvel a partir do exame da norma. Para se caracterizar a extrafiscalidade no suficiente que a imposio tributria interfira com o
82 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 241: H tributos que se prestam, admiravelmente, para a introduo de expedientes extrafiscais. Outros, no entanto, inclinam-se mais ao setor da fiscalidade. No existe, porm, entidade tributria que se possa dizer pura, no sentido de realizar to-s a fiscalidade, ou, unicamente, a extrafiscalidade. Os dois objetivos convivem, harmnicos, na mesma figura impositiva, sendo apenas lcito verificar que, por vezes, um predomina sobre o outro. 83 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 239: Os signos fiscalidade, extrafiscalidade e parafiscalidade so termos usualmente empregados no discurso da Cincia do Direito para representar valores finalsticos que o legislador imprime na lei tributria, manipulando as categorias jurdicas postas sua disposio. Rarssimas so as referncias que a eles faz o direito positivo, tratando-se de construes puramente doutrinrias. 64 comportamento, mas sim que haja uma razo jurdica para tal influncia. Como nos alerta Alcides Jorge Costa, ao prefaciar a obra Normas Tributrias Indutoras e Interveno Econmica: A induo a certo comportamento pode no ter sido desejada pelo legislador ou sequer prevista por ele. o que ocorre quando um determinado ente tributante institui impostos excessivos, o que leva empreendimentos novos a se dirigirem para territrio de outros entes tributantes 84 . No se caracteriza a extrafiscalidade no exemplo do ilustre professor, uma vez que no se caracteriza o aspecto intencional. Na destacada obra, contudo, seu autor (o ilustre Professor Titular de Legislao Tributria da Faculdade de Direito da USP), desconsidera o aspecto intencional (subjetivo do legislador, bem como objetivo da lei), para se fixar na funo que o diploma normativo exerce, com enfoque no destinatrio. Apesar de no concordarmos em afastar o critrio intencional, cremos ser sobremaneira relevante o enfoque promovido por Schoueri na funo e no destinatrio da norma. No captulo relativo pragmtica, abordaremos com mais detalhes essa dicotomia finalidade-funo, a qual entendemos decorrer da relao comunicacional entre emissor e receptor.
2.5.2. Intencionalidade: critrios de aferio Ainda sobre o tema intencionalidade, relevante destacar que os planos de investigao semitica (pragmtica, semntica e sinttica) so de cunho epistemolgico. No h linguagem que apresente apenas aspectos deste ou daquele plano; nem a Lgica meramente sinttica. A semiose una. No h como promover cortes ontolgicos; colocar de um lado o significante, de outro o referente, seno mediante uma suspenso provisria e com fins exclusivamente cognoscitivos. O significado de um signo, por exemplo, construdo a partir de seu significante, tema investigado no plano semntico, mas questes pragmticas e sintticas devem ser consideradas sob pena de se promover um equivocado reducionismo do fenmeno. De igual sorte, a intencionalidade do signo jurdico, a qual determina a extrafiscalidade objeto da Cincia do Direito, prioritariamente semntica, mas critrios
84 COSTA, Alcides Jorge. In: SCHOUERI, Lus Eduardo Normas Tributrias Indutoras e Interveno Econmica, prefcio, p. X 65 tpicos dos demais planos semiticos no devem ser ignorados, pois redundaria numa abordagem incompleta do fenmeno. O artigo 179 da Constituio Federal assim prescreve: Art. 179. A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios dispensaro s microempresas e s empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurdico diferenciado, visando a incentiv-las pela simplificao de suas obrigaes administrativas, tributrias, previdencirias e creditcias, ou pela eliminao ou reduo destas por meio de lei.
Esse nico artigo por meio de poucas palavras (tratamento jurdico diferenciado, incentiv-las, etc) evidencia inteno jurdica de se fomentar, mediante regras de tributao, a criao e o desenvolvimento de pequenas empresas. Assim, poderamos afirmar que a extrafiscalidade est presente no sentido dessas palavras. Teria cunho claramente semntico. Por outro lado, o intuito extrafiscal pode resultar da relao, no s entre palavras de uma mesma frase, mas entre os mais diversos dispositivos. A Constituio, por exemplo, prescreve no uma, mas vrias desoneraes (imunidades e isenes heternomas) de tributos sobre exportaes: a iseno heternoma de ICMS e ISS, art. 155, 2, XII, e, e art. 156, 3, II, respectivamente; e as imunidades de IPI, art. 153, 3, III, e das contribuies sociais e de interveno no domnio econmico, art. 149, 2, I. Esse conjunto de enunciados evidencia a inteno jurdica de incentivar tais operaes, o qual determina a interpretao dos prprios enunciados isoladamente considerados. Os dispositivos colaboram na formao de um sentido maior, o qual, em contrapartida, influencia a elaborao dos sentidos especficos de cada um dos enunciados prescritivos. A formao de sentido no unidirecional. H uma relao dialtica entre pequenas parties textuais que determinam o todo discursivo e o todo que determina o sentido das partes. Assim, de volta ao exemplo, apesar da contribuio social sobre o lucro no ser estritamente sobre receitas, deve-se interpretar que a imunidade sobre as receitas de exportao tambm a abranja. Finalmente, o sentido e, portanto, a intencionalidade, deve ser construdo tambm em razo do contexto: aquela parte do mundo (tambm intersubjetivo) no qual est inserido o texto e que evidenciado por meio da intertextualidade extra-sistmica. O valor neutralidade, por exemplo, permeia o princpio da no-cumulatividade e determina a 66 interpretao jurdica das normas que implantam este primado, mas aferido de forma contextual. Assim, a intencionalidade jurdica pode ser aferida (i) por meio do sentido isolado das palavras, (ii) atravs da relao entre as vrias parties do texto, e (iii) mediante a contextualizao. O primeiro critrio de aferio de cunho semntico; o segundo, sinttico; enquanto o terceiro, pragmtico. No entanto, um no prevalece sobre o outro e s podem ser considerados isoladamente num primeiro momento de aproximao.
2.5.3. Outros aspectos relevantes da extrafiscalidade No estudo da extrafiscalidade, vrios outros aspectos merecem ateno. A finalidade jurdica essencialmente axiolgica. A edio de uma norma decorre de uma inteno, busca atingir uma finalidade e, portanto, garantir um valor. Por outro lado, a intencionalidade jurdica aquela interna ao signo jurdico; est impregnada na relao entre significante e significado deste signo. Ademias, a norma tributria de cunho extrafiscal desempenha uma funo interna ao ordenamento jurdico. Esses trs aspectos sero analisados nos captulos relativos a cada um dos trs planos semiticos de investigao. Na pragmtica, ser abordado o substrato axiolgico; na semntica, a relao entre significante e significado; e na sinttica, a funo interna das normas extrafiscais. 67 CAPTULO III. INTERPRETAO JURDICA E TRADUO no espere que o sublime, imenso, e extraordinrio na lngua original ser fcil e imediatamente compreensvel na traduo.
HUMBOLDT, Wilhelm von; Da introduo sua traduo de Agammnon.
3.1 JURISTA E O ORDENAMENTO CHAMPOLLION E A PEDRA DA ROSETA O direito, como vimos, est inserido no grande conjunto de fenmenos lingsticos do tipo comunicacional, vale dizer, aqueles cujos signos so, no s recebidos, mas tambm produzidos por uma mente humana consciente. A comunicao humana, contudo, nem sempre se estabelece por meio de apenas dois atores (o emissor e o receptor). Um terceiro pode ser necessrio quando emissor e receptor no compartilham do mesmo cdigo lingstico (ou enciclopdia). a traduo. Uma das passagens histricas de maior destaque relativas traduo a da Pedra da Roseta. O primeiro sentido de traduo que nos vem mente, certamente, o de um poliglota que, ao dominar duas lnguas, reescreve o texto de uma para outra. Por isso, a histria da Pedra da Roseta to surpreendente, uma vez que se inverte o processo. Aps a descoberta de uma pedra grafada com textos em trs idiomas diferentes (o Grego, o Demtico Egpcio e a dos Hierglifos) foi estipulada a conjectura de se tratarem do mesmo texto. Desde antes de Cristo, no mais havia utentes de duas das lnguas, nem havia textos que permitissem a sua decifrao. Com isso, os vastos registros, principalmente em Hierglifos, encontrados desde ento eram vazios, ocos de significao. No passavam de marcas. Na ausncia do cdigo, no constituam verdadeiros signos. Foi Champollion quem a decifrou e, com isso, entregou ao Mundo Moderno a chave para a efetiva descoberta de parte do mundo antigo at ento desconhecido. Essa histria chama a ateno por destacar a importncia da traduo, mas tambm porque representa um fato relacionado tributao. A Pedra da Roseta foi uma homenagem de sacerdotes ao Fara Ptolomeu V por ter concedido ao povo isenes de tributos e perdes de dvidas. Por tal concesso, foram organizados festivais anuais e foi 68 grafada uma exortao ao feito em pedras colocadas nos principais templos. A pedra da roseta uma delas. Nesse passo, cabe-nos indagar se as semioses jurdicas, alm de se caracterizarem como um fenmeno comunicacional, caracterizariam algo mais especfico: um processo de traduo?
3.2. OS SENTIDOS DE TRADUZIR Num sentido lato, a traduo pode ser identificada com o prprio processo de transformao de um signo e outro. Com diz Octavio Paz, ler traduzir dentro da mesma lngua 85 (traduo livre), ou Jakobson, Para o lingista como para o usurio comum das palavras, o significado de um signo lingstico no mais que sua traduo por um outro signo que lhe pode ser substitudo, especialmente um signo no qual ele se ache desenvolvido de modo mais completo, como insistentemente afirmou Peirce, o mais profundo investigador da essncia dos signos 86 . Nada obstante, num sentido mais especfico, traduzir verter uma mensagem para um cdigo diferente daquele em que havia sido originariamente elaborada. Como assevera Paz, quando aprendemos a falar, aprendemos a traduzir; a criana que pergunta a sua me o significado de uma palavra est, em realidade, pedindo a ela para traduzir o termo no familiar em palavras j conhecidas 87 (traduo livre). Nota-se que esse processo no equivale mera substituio de umas palavras por outras, mas sim ampliao da prpria realidade para criana. o que tambm ocorre relativamente traduo entre lnguas diversas.
3.3. TRADUZIR E INTERPRETAR J estipulamos que a linguagem s pode cumprir sua funo, seja ela qual for, desde que o receptor a receba e interprete. A interpretao, contudo, pode ser realizada de
85 PAZ, Octavio. Translation: literature and letters, p. 159: reading is translation within the same language. 86 JAKOBSON, Roman. Lingstica e Comunicao, p. 64. 87 PAZ, Octavio. Translation: literature and letters, p. 152: When we learn to speak, we are learning to translate; the child who asks his mother of a word is really asking her to translate the unfamiliar term into the simple words he already knows. 69 duas formas distintas: (i) uma simples e (ii) uma mais rebuscada, mais desenvolvida. Esta ltima considerada traduo no sentido lato. Podemos olhar uma obra de arte e nos emocionar em razo disso; sentir deleite, angstia, dio, repulsa, etc. Essa interpretao do tipo simples. A complexa se realiza, por exemplo, no caso de explicarmos a um amigo por que a obra nos emocionou. Nesse caso, a interpretao realizada por meio da traduo de linguagem pictrica para verbal. Eros Grau lanou mo de idntica analogia ao estudar o fenmeno da interpretao jurdica. No seu Ensaio e Discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, afirmou que h dois tipos de arte: as alogrficas e as autogrficas. Aquelas, tais como a msica, dependem da conjugao de duas pessoas: autor e executor; estas, como a pintura, realizam-se diretamente pelo autor; e conclui: Em ambas h interpretao, mas distintas, uma da outra 88 . Na autogrfica, a interpretao implica apenas compreenso; j na alogrfica, conjuga-se compreenso e reproduo. O direito no pertence ao primeiro tipo; , pois, alogrfico. O sentido do texto legislado depende do intrprete-executor. Com efeito, se profirerimos uma ordem a um subordinado faa isso, ele a cumpre e depois afirma que a cumpriu justamente em razo de termos dito faa isso, ele a interpretou, mas de forma simples. Poderamos ento dizer que a interpretao jurdica deste tipo e chegar concluso diversa da proferida por Eros Grau para afirmar que o direito autogrfico. Afinal, leis, decretos, instrues, enfim, toda sorte de diplomas normativos so editados e as pessoas os cumprem aps deles tomarem conhecimento com sua imediata leitura. Cremos, contudo, que tal cumprimento um modo simplificado que no representa a essncia do fenmeno jurdico. A interpretao jurdica empreendida necessariamente atravs de um processo mais complexo, que extrapola a simples compreenso. Ele comporta uma efetiva transformao de signos em novos signos e, portanto, quadra-se no conceito amplo de traduo. Em geral, consideramos que a traduo trata-se da tarefa de transcrever um texto de uma lngua para outra. Todavia, na lio de Jakobson, esse apenas um dos seus trs tipos, chamado traduo interlingual (ou traduo propriamente dita). H ainda a
88 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, p. 20. 70 intralingual ou reformulao na qual est inserida a interpretao jurdica e a inter- semitica ou transmutao. Na transmutao, um signo de um dado sistema semitico vertido para outro de um sistema diverso, tais como a elaborao para teatro e cinema de obras literrias e a descrio de uma obra visual; deste, um belo exemplo o magnfico captulo primeiro do livro As palavras e as coisas de Foucault, no qual compe em texto o quadro As Meninas de Velsquez 89 . Podemos numa acepo lata estipular que todo processo semitico de transformao sgnica quadra-se no conceito de traduo, dentre os quais, a interpretao jurdica. Dessarte, se a interpretao jurdica pode ser classificada como uma modalidade de traduo, podemos utilizar as vrias ferramentas para este fenmeno desenvolvidas pelas Cincias da Linguagem, no caso especfico, pela Semitica. Tambm podemos, com os devidos cuidados, lanar mo das diversas concluses j alcanadas por outras Teorias, mesmo diversas da Jurdica, bem como efetuar analogias. Um exemplo interessante de analogia entre os diversos tipos de traduo que uma vez mais nos relembra a comparao efetuada por Eros Grau entre a interpretao jurdica e a execuo de uma pea musical foi a empreendida por Umberto Eco ao perquirir o efeito de modernizar e arcaizar no processo de traduo de obras literrias: O problema no existe apenas com a traduo de lngua para lngua, mas tambm com as execues musicais. Queria citar uma discusso de Marconi [...] acerca das que s vezes so chamadas execues autnticas de um trecho clssico. Em princpio considera-se autntica a execuo de uma pauta que reproduza no s os sons, mas tambm os timbres e duraes como se poderiam ter ouvido na poca da primeira execuo. Da as execues filolgicas da msica renascentista com instrumentos da poca, e o evitar que os trechos concebidos para cravo sejam executados ao piano e os de pianoforte num piano de cauda contemporneo. No entanto parece que uma execuo filolgica pode no respeitar as intenes do autor (ou do texto) pelo fato de no produzir no ouvinte contemporneo o mesmo efeito que produzia no seu coevo 90 . Essa passagem ser importante mais adiante para perscrutarmos a questo da relao para a interpretao (e, portanto, traduo) do texto legal entre o contexto de elaborao e o de aplicao. Por ora, merece destaque apenas o fato de Eco, ao discorrer
89 Na edio consultada, so dezenove pginas, da 03 a 21. 90 ECO, Umberto. Dizer quase a mesma coisa: sobre a traduo, p. 196. 71 sobre a Teoria da Traduo entre lnguas, lanar mo de uma analogia com o processo de execuo de obras musicais (repisamos: tal qual feito por Grau ao discorrer sobre a natureza da interpretao jurdica). necessrio, porm, precauo. A transposio direta de concluses acerca de processos de traduo distintos s se legitimaria no caso de no haver qualquer peculiaridade da interpretao jurdica em relao a uma estipulada Teoria Geral da Traduo. No h, porm, uma Teoria com esse grau de desenvolvimento capaz de abarcar, mediante formulaes abrangentes tais, todo o conjunto de fenmenos de reformulao sgnica designado por traduo. O que encontramos foram Teorias que tratam de espcies ou gneros de traduo, mas no de todo o seu universo de possibilidades. Se uma classe possui uma dada caracterstica, suas sub-classes tambm a possuiro. Isso autoriza o Cientista a aplicar suas concluses acerca de uma classe s suas espcies componentes. Num exemplo, se o pesquisador conclui que os mamferos so homeotrmicos, os homens, de igual sorte, o sero. Para lanar mo da mesma analogia, no partiremos de uma Teoria j desenvolvida acerca de mamferos ou de primatas para investigar as caractersticas biolgicas do homem, o qual pertence a essas classes de seres. Utilizaremos, em verdade, formulaes j desenvolvidas para smios, gnero prximo, mas diverso da classe dos humanos. Assim, a despeito de estipularmos ser a traduo um grande gnero de fenmenos dentre os quais se enquadra a interpretao jurdica que guardam entre si caractersticas comuns, consideramos que as formulaes tericas atuais no se dirigem com preciso a todo o fenmeno, mas sim a alguns de seus gneros particulares. Dessarte, apesar de extremamente teis, os estudos acerca da traduo no sero adotados diretamente como premissas. Deveremos verificar se h peculiaridades da interpretao jurdica em relao s modalidades de traduo investigadas no texto que tomaremos como base e se tais aspectos de dessemelhana so relevantes. Uma das peculiaridades diz respeito diversidade da funo pragmtica do texto de partida em relao funo do texto de chegada. Uma poesia em russo traduzida para o portugus apresenta a mesma funo emocionar em ambos os textos. J o 72 legislador incorpora, ao direito positivo, trechos de camadas lingsticas que no apresentam a funo prescritiva. Ademais, a Doutrina, ao interpretar, transforma um texto de linguagem prescritiva para descritiva. Esse processo de re-elaborao sgnica com modificaes pragmticas no est presente na traduo tradicional, o que impe verificarmos os seus impactos.
3.4. A REVERSIBILIDADE E O DIREITO Uma das caractersticas determinantes do fenmeno da traduo o da reversibilidade. Os processos de significao unidirecionais no so tradues nem sequer em sentido lato. Se um livro escrito em Alemo pode ser traduzido para o Portugus e vice- versa, uma obra de literatura portuguesa tambm pode ser traduzida para a lngua tedesca e ser revertida para o Portugus sem necessidade de conhecimento do texto original. Evidentemente, os textos no sero idnticos. Tal fato decorre da impossibilidade de perfeita correspondncia entre significados (e referentes) de lnguas diversas, tema sobre o qual nos debruaremos ainda neste captulo. Apesar das diferenas entre os textos seguro que, se ambas as tradues (a de ida e a de volta) tiverem sido realizadas a contento, ser perfeitamente identificvel se tratar do mesmo texto. Do contrrio, seria relativamente simples a criao de obras novas. Bastaria dois poliglotas se ajustarem para trabalhar em conjunto; um traduzindo, o outro revertendo. A reversibilidade, contudo, apresenta graus. Traduzir uma pintura para texto e depois vert-lo de volta em pintura, provavelmente, redundar em duas obras pictogrficas bem mais distintas entre si, que os textos do exemplo anterior. Nada obstante, certamente no estar retratada numa das telas uma paisagem da savana africana e seus animais de grande porte, como lees e bfalos, enquanto na outra um cu repleto de anjos. Os vrios tipos de traduo apresentam tambm graus diversos de reversibilidade, mas esta caracterstica, mesmo esvaecida, deve necessariamente estar presente. Nesse passo, indagamos: o direito reversvel? Se for, em relao a qu? 73 Vamos tecer algumas conjecturas: (i) o ato de fala do legislador produz uma traduo das demais linguagens sociais, (ii) este mesmo ato de fala produz uma traduo de um outro discurso prescritivo, e (iii) a doutrina uma traduo do direito positivo. A primeira conjectura seguramente falsa. Se o direito exercesse necessariamente a funo de conservao das condutas sociais, talvez fosse possvel promover uma reverso; e, nesse caso, o discurso prescritivo seria em algum grau uma traduo do conjunto dos demais discursos sociais. Poderamos afirmar o mesmo se o direito possusse apenas a funo oposta, vale dizer, a de modificar as searas sociais. No entanto, o discurso jurdico-prescritivo exerce ambas as funes e nada, a priori, possibilita a aferio de quando e em que situaes exerce uma e no a outra. Assim, do discurso do direito positivo no possvel reconstruir o discurso das demais searas lingsticas sociais e vice-versa. Quanto segunda conjectura, poderamos afirmar tambm ser falsa. Afinal, as leis so calcadas na Constituio; os decretos, nas leis; as portarias, nos decretos; e os lanamentos, nas portarias. Cada diploma normativo formulado com base no hierarquicamente superior e no o contrrio. No se conhecem as portarias em razo dos lanamentos; nem os decretos em razo das portarias; nem as leis em razo dos decretos; e nem a Constituio em razo das leis. No haveria, desse modo, qualquer grau de reversibilidade intra-sistmica. Todavia, quando o Judicirio declara uma lei constitucional (ou inconstitucional) no est a proferir tambm uma norma e pela interpretao desta norma no possvel conhecer a Constituio? Consideramos que sim. Desse modo, h, ainda que de forma tnue, alguma reversibilidade entre os diversos diplomas normativos, o que nos permite afirmar que o legislador ao editar uma lei realiza um ato comunicacional de traduo da Constituio. Cada patamar, na escala de positivao jurdica, traduz o texto que lhe hierarquicamente superior e o teste de sua validade deve ser promovido por meio de um ato de reverso (de traduo oposta). E quanto terceira conjectura? Seria a doutrina o resultado de uma traduo do discurso prescritivo? A resposta aparentemente negativa, pois os dois discursos exercem funes pragmticas diversas.
74 3.4.1. Funes pragmticas diversas entre o texto de partida e o de chegada Entendemos, contudo, que a resposta negativa incorreta. Se fosse correta, tambm no poderamos considerar como traduo a converso para o portugus da Constituio Americana, pois o texto em nossa lngua no ter o condo de obrigar ningum. Dessarte, o fato de o texto de chegada e o de partida apresentarem funes pragmticas diversas no descaracteriza a traduo. Podemos at afirmar que o grau de reversibilidade entre a Doutrina e o direito positivo no muito elevado, nas no podemos negar sua existncia. Ao ler a doutrina podemos inferir como deve estar redigido o diploma legal. Evidentemente, no seremos capazes de distribuir os enunciados prescritivos nos mesmos artigos, pargrafos e incisos. Provavelmente, o texto legislado estar disperso por mais de um diploma, enquanto a lei vertida na Doutrina estar registrada num nico corpo. Nada obstante, esperado que esse dois textos o direito positivo e a verso do direito positivo construdo a partir da doutrina sejam, num certo grau de significao, equivalentes.
3.5. TRADUO E AS INEVITVEIS ALTERAES SEMNTICAS Uma vez mais para elucidar o fenmeno da traduo, vamos nos valer do signo vermelho. Vimos, no primeiro captulo, que, mesmo sem a certeza de possuir a mesma sensao de vermelho dos demais membros da comunidade dos falantes de portugus, somos todos aptos ao ato comunicacional por compartilhar o mesmo signo vermelho. H um conceito de vermelho que comum a todos os agentes comunicacionais, apesar de poderem no ser iguais os seus contedos de conscincia. No entanto, os daltnicos no compartilham a mesma realidade. So incapazes de distinguir as cores entre si. Seu mundo, sua realidade, em tons de cinza. No h ato comunicacional possvel de levar a esses agentes daltnicos o mundo das cores. Isso, contudo, no impede a comunicao. Para tal, contudo, devemos traduzir a linguagem das cores para a linguagem dos tons de cinza. Vamos imaginar que possamos colocar culos que nos faz enxergar em tons de cinza e que para cada faixa de tonalidade haja previamente uma expresso designativa, por exemplo, banco, cinza-1, cinza-2, cinza-3 ... at o preto. Assim, ser suficiente 75 identificarmos qual o tom do objeto determinado e qualific-lo. Nada obstante, na outra linguagem (na das cores) dois determinados objetos podem ser completamente diversos (por exemplo, azul e vermelho), mas na linguagem dos tons de cinza, absolutamente iguais. Nesse caso, a traduo produzir uma ambigidade. Ser ento necessrio identificar um outro aspecto que possibilite a comunicao. Se, dentre os objetos com a mesma tonalidade de cinza, o desejado o maior, traduziremos pegue o objeto vermelho por pegue o maior dos objetos cinza-2. Pelo contrrio, se for o menor, traduziremos por pegue o menor dos objetos cinza-2; se ele for o maior, mas tambm o nico redondo, poderemos traduzir, no lugar de pegue o maior dos objetos cinza-2, por pegue o objeto cinza-2 redondo. Ou seja, conforme o contexto, vermelho foi traduzido por maior cinza-2, menor cinza-2 ou, de forma indiferente, maior cinza-2 e cinza-2 redondo. Neste ltimo caso, h duas tradues absolutamente corretas em funo do objetivo pragmtico da linguagem especfica que era a de veicular uma ordem. Nota-se com isso que traduzir no estabelecer uma relao de correspondncia palavra a palavra e nem frase a frase. No uma operao que redunde num nico resultado correto, nem uma que dependa estritamente de aspectos semnticos. A traduo uma operao que pode redundar em diversos resultados igualmente legtimos, muitos dos quais aparentemente diversos do ponto de vista semntico, mas aptos a cumprir o mesmo paradigma pragmtico. Note-se, porm, que a traduo atingir o objetivo da comunicao (apontar um determinado objeto), mas no corresponder a qualquer identidade entre as duas realidades. A linguagem volta a ser operativa, mas nem por isso o receptor compartilhar a mesma realidade daqueles que compartilham o cdigo das cores. A comparao com o daltonismo, contudo, imperfeita. Ela passa a impresso de que uma realidade mais completa que a outra; que os falantes da linguagem das cores so aptos a compreender o mundo em tons de cinza, mas no o contrrio. No foi esse, contudo, o nosso propsito. O objetivo foi o de destacar realidades diferentes. Para tal basta imaginarmos um mundo em cores sem tonalidades cinza e outro apenas em tons de cinza. Nesse caso, os viventes do primeiro tambm no compartilham a realidade dos outros. 76 Outra impreciso que merece, nesse momento, reparo diz respeito a de que, no exemplo do daltonismo, a impossibilidade comunicativa decorre apenas de uma falha de percepo por motivos meramente orgnicos. Tais percepes diversas e, portanto, compreenses dessemelhantes de mundo, podem decorrer, mesmo para cores, apenas da lngua e isso que nos interessa. Como nos relata Nth 91 , a lngua dos Ndembu, uma populao do Congo, s apresenta distines lingsticas para trs cores (o branco, o preto e o vermelho). Assim, no conseguiramos nos comunicar sob tal aspecto, mediante nossa distino, por exemplo, entre o azul e o vermelho. Deve-se destacar que tal limitao de linguagem no diz respeito apenas a no possuir palavras para expressar uma dada qualidade, mas sim a no perceber justamente por ausncia de linguagem a distino entre qualidades. Alis, a diferenciao qualitativa determinada por meio da prpria lngua, uma vez que no haver, por exemplo, amarelo de um lado e vermelho do outro. As cores, assim como os sons e qualquer outro conjunto de qualidades, se distribuem num espectro contnuo. Somos ns que, mediante linguagem arbitrada em funo das necessidades da comunidade na qual nos inserimos, a recortamos em trechos. conhecido o estudo do antroplogo norte-americano Franz Boas acerca da lngua dos esquims, a qual apresenta vrias palavras para representar aquilo que as lnguas ocidentais denominam por branco ou neve. Em razo de sua realidade ser constituda basicamente por elementos brancos, relevante distinguir tonalidades para as quais ns no detemos qualquer domnio vocabular ou extralingstico. importante notar que no se trata apenas de ausncia de palavras, mas de absoluta no compreenso significativa daquela realidade. O mundo do rtico muito mais vivo para os olhos esquims, que para ns. Como nos adverte Arthur Schopenhauer, aprender uma nova lngua no corresponde somente a adquirir palavras, mas tambm a incorporar novos conceitos para os quais no h em nossa lngua termos equivalentes, em razo das diferentes realidades.
91 NTH, Winfried. Panorama da Semitica: de Plato a Pierce, p. 132. 77 Isso se evidencia no aprendizado de lnguas antigas como o latim , cujas expresses so mais dispares das de lnguas atuais, que de uma lngua moderna para outra 92 . Ainda segundo Schopenhauer 93 , a perfeita compreenso do sentido do texto estrangeiro no possvel por meio da traduo de palavra por palavra. O mesmo princpio vale tambm para frases e sentenas e at para livros inteiros. S ascendemos a um status superior de conhecimento, quando somos capazes de nos traduzimos para a outra linguagem.
3.5.1. Alteraes semnticas intencionalmente empreendidas pelo discurso prescritivo Se a traduo um processo comunicacional caracterizado pela reversibilidade, ento as alteraes semnticas entre o texto de partida e o de chegada no so intencionais, mas fruto das limitaes prprias da linguagem humana. Se, mesmo num processo com tais caractersticas, h modificaes semnticas, o que dizer entre corpos de linguagem que mantenham relao entre si (como o direito e as demais searas lingsticas sociais), mas no tpicas de um fenmeno de traduo? Numa comparao com o dilogo entre as lnguas, o Portugus apresenta suas regras prprias de formao de frases, de palavras, de flexo de verbos de adjetivos, etc. No entanto, recebe palavras de outras lnguas. Por exemplo, o verbo deletar foi recebido como uma derivao do verbo ingls to delete. Tal verbo j registrado pelos dicionrios, como o Houaiss, que considera a sua entrada para o nosso idioma em 1975. Evidentemente, essa nova palavra dever atender as regras gramaticais e, portanto, sintticas da lngua portuguesa. Ela deve se flexionar como qualquer outro verbo de terminao em ar. No presente do indicativo, eu deleto, tu deletas, ele deleta, ns deletamos, vs deletais, eles deletam; no pretrito perfeito, eu deletara, tu deletaras, ele deletara, e assim por diante.
92 SCHOPENHAUER, Arthur. On language and words, p. 33, when we learn a language, our main problem lies in understanding every concept for which our own language lacks an exact equivalent as is often the case. Thus, in learning on must map out several new spheres of concepts in ones own mind that did not exist before. Consequently, one does not only learn words but acquires concepts. This is particularly true for the learning of classical languages, since the ways in which the ancients expressed themselves differ considerably from ours than modern languages vary from one another. 93 Ibid.,p. 33-34. 78 Assim, quando uma palavra incorporada por um dado idioma. Ela no modifica as regras sintticas desse idioma. Alm disso, o seu prprio contedo semntico alterado. Quando flexionamos o verbo deletar para a primeira pessoa do singular do pretrito mais que perfeito, a nova palavra deletara apresenta uma significao prpria que no apresenta correspondncia na lngua inglesa. O mesmo podemos dizer na incorporao ao discurso do direito positivo de palavras originarias de outros discursos. Em primeiro lugar, tal incorporao no altera as regras sintticas de formao do discurso. Em segundo lugar, a sua prpria significao modificada. Estamos convencidos de que todas as palavras incorporadas ao discurso do direito apresentam alteraes semnticas, muitas das quais intencionais. Mesmo termos como petrleo que compem o texto da prpria Constituio (so diversas aparies; como no art. 20, 1, no art. 155, 2, inciso X, alnea b, no art. 155, 3, no art. 155, 4, inciso I, no art. 177, inciso I, II e IV, dentre outras) no possuem o mesmo significado dos textos de qumica e geologia. Se no h possibilidade de uma perfeita traduo entre lnguas naturais, como poderamos afirmar que haveria perfeita correspondncia entre os discursos das outras searas sociais e o do direito apesar de este ser constitudo amide por palavras originariamente pertencentes queles corpos de linguagem?
3.6. CONDIES PARA TRADUO E A INTERPRETAO JURDICA Um processo de comunicao para se caracterizar como traduo exige trs atores. Dois so essenciais para todo tipo de comunicao o enunciador e o enunciatrio , o terceiro especfico para a traduo: o tradutor. Num certo sentido, o tradutor exerce a funo de enunciatrio para o enunciador e enunciador para o enunciatrio. A traduo, assim, composta por dois atos comunicacionais mais simples, mas relacionados. O segundo depende do primeiro por outras palavras, sem o primeiro no possvel o segundo. No entanto, nem todo encadeamento comunicacional pode ser considerado como uma traduo, ainda que um ato dependa do anterior. Um empregado aps ser repreendido pelo patro, pode ofender sua esposa ao chegar em casa. O segundo ato 79 comunicacional foi causado pelo segundo, mas esse conjunto no pode ser considerado como um processo de traduo. O trabalhador no traduziu para sua consorte a reprimenda do empregador. Podemos constar isso por no haver qualquer grau de reverso entre os dois atos. A traduo, assim, exige trs atores com papis comunicacionais diversos e algum grau de reversibilidade entre os dois atos de fala de que composta. No ato comunicacional simples formado apenas por dois atores (um enunciador e um enunciatrio) necessrio que ambos compartilhem do mesmo cdigo (enciclopdia). Na traduo, por ser composta por dois atos mais simples, necessrio que o tradutor possua o domnio do cdigo tanto do enunciador, quanto do enunciatrio. condio necessria que o tradutor seja poliglota; domine, ao menos, duas linguagens. Ademais, deve estar apto a verter significados de um cdigo em outro. No necessariamente quem domina dois cdigos est qualificado a identificar signos em uma lngua equivalentes ao da outra. A substituio de signos por signos equivalentes no tarefa simples nem sequer dentro de uma mesma lngua, quanto mais entre lnguas diversas. a onde repousam os problemas no processo de traduo e, portanto, de interpretao. comum um estudante das primeiras lies de uma lngua buscar, no af inicial para compreender frases e textos, substituir palavra por palavra para sua lngua nativa, o que em geral redunda em resultados pouco adequados. A isso se denomina traduo lxica. Ou seja, na busca de compreender o significado da frase que est num patamar de complexidade superior ao das respectivas palavras isoladamente consideradas, o iniciante substitui diretamente termos estrangeiras por outros na sua lngua nativa por serem mais familiares. Um belo exemplo, encontramos na obra de Flusser, A frase portuguesa Estou com medo da consulta que vou fazer ao dentista amanh ter a traduo aproximada significativa para o alemo como segue: ich fuerchte mich vor der morgigen Untersuchung beim Zahnarzt. A traduo lxica seria: dabin mit Furcht der Anfrage was ich gehe machen dem Zahner morgen. A traduo lxica do alemo para o portugus seria: eu receio-me diante da amanhanesca perquisa perto do dentomdico. A retraduo lxica da frase portuguesa para o portugus seria: existncia da primeira pessoa do singular presente junto com medo pertencente consulta o que eu estou andando fazer para o dentista amanh 94 .
94 FLUSSER, Vilm. Lngua e realidade, pg. 60. 80 E conclui com veemncia: Este tipo de traduo grotesca 95 . A traduo lxica resultado da substituio apressada de partes do texto por signos mais familiares. Se o resultado da traduo lexicogrfica grotesco, o que dizer da traduo realizada por aquele que desconhece por completo a outra lngua? Tal condio, contudo, no suficiente. No basta conhecer duas lnguas para habilitar algum ao exerccio da traduo. necessrio saber articular os vrios nveis de compreenso das respectivas linguagens. Se o processo legiferante no um ato de fala do tipo traduo em relao s demais linguagens sociais, ento seria desnecessrio ao legislador dominar o cdigo (enciclopdia) destas linguagens; o mesmo se diria em relao ao intrprete do direito positivo. Essas afirmaes, contudo, so equivocadas. Negar a correspondncia semntica no implica negar relaes semnticas. As relaes semnticas entre discursos diversos podem ser, e geralmente so, mais complexas que a relao de equivalncia. O direito tem a finalidade de conformar os demais sub-domnios sociais e o faz, freqentemente, por meio da incorporao de termos e expresses dessas diversas searas. Se para ser um tradutor, necessrio ser um bom poliglota. Para ser um intrprete da linguagem do discurso do direito positivo que lana mo de palavras importadas de outros discursos, a necessidade de domnio das duas realidades ainda maior. Para algum se habilitar a tradutor condio necessria o domnio de duas lnguas, a do texto de partida e a do de chegada. Seria, porm, essencial o pleno domnio de ambas? Em outras palavras, o nvel de articulao do tradutor em ambas as lnguas deve ser o mais elevado dos respectivos utentes? Um tradutor de um texto em ingls para o portugus deveria ser to hbil na lngua de Cames quanto na de Shakespeare? recorrente entre os estudiosos desse ramo da lingstica que a traduo mais adequada de uma lngua A para uma lngua B aquela realizada por bilnges, mas nativos desta e no daquela. Ou seja, necessrio um domnio mais elevado da lngua para
95 FLUSSER, Vilm. Lngua e realidade, pg. 60. 81 a qual vertido o texto, que a daquela em que se encontra originariamente escrito e que ser apenas objeto de leitura para o tradutor. Na lngua original, o tradutor deve apenas ler (interpretar). Em relao lngua para a qual se pretende traduzir, o tradutor deve escrever (re-elaborar). Ambas as tarefas exigem nveis de compreenso diferentes da lngua. A tarefa de escrever exige um domnio superior que a de leitura. Muitos alunos do ensino mdio so capazes de ler e entender os livros de Saramago, mas intuitivo afirmar que dificilmente qualquer um deles est apto a produzir obras dignas de indicao ao Nobel de Literatura. Como isso se reflete na interpretao jurdica, em especial, na produo da Doutrina? Para interpretar de forma mais adequada um texto de lei que discipline o mercado financeiro necessrio que o Jurista conhea linguagem utilizada pelos componentes dessa especfica seara social. Isso no significa que esses componentes so mais aptos que o jurista para promover a interpretao do direito posto. A interpretao de um texto de direito positivo deve ser empreendida por Juristas, mas como conhecimentos da linguagem da Economia, da Contabilidade, das Finanas, etc. e no por Economistas, Contabilistas, Financistas com conhecimentos da linguagem jurdica.
3.7. UM CASO PARTICULAR: A INTERPRETAO ECONMICA Como nos adverte Schopenhauer, Pessoas de limitadas habilidades intelectuais no tero facilidade para dominar um idioma estrangeiro. Eles aprendem as palavras; no entanto, sempre as empregam no sentido aproximado do termo equivalente em sua lngua materna, e sempre constroem expresses e sentenas com a mesma estrutura de seu prprio idioma 96 (traduo livre). Apesar de discordarmos do tom cido bastante peculiar, alis, aos textos de Schopenhauer , o trecho elucida como a traduo pode ser imperfeita, quando executada por pessoas que no dominam a lngua para a qual se pretende expressar.
96 SCHOPENHAUER, Arthur. On language and words, p. 34: People of limited intellectual abilities will not easilly master a foreign language. They actually learn the words; however, they always use the word only in the sense of the approximate equivalent in the mother tongue, and they always maintain those expressions and sentences peculiar to the mother tongue. 82 Esse fenmeno idntico to discutida interpretao econmica. Essa interpretao equivale a um alemo que, ao dominar apenas significados de palavras da lngua portuguesa, procura se expressar e, assim, diz a mesa redondo, dentre incalculveis anomalias, que nos faz perceber de imediato no se tratar de um nacional. A interpretao econmica o resultado de uma traduo do direito positivo por quem no domina com plenitude a linguagem jurdica. No h interpretao econmica vlida para o discurso do direito prescritivo, pois o signo de discurso prescritivo e no de discurso descritivo. H vrios exemplos que ilustram a inadequao da interpretao econmica para a edificao do significado do discurso prescritivo. A interpretao econmica, segundo a qual os preos dos variados produtos aumentam num determinado perodo e determinam um ndice mdio chamado inflao, no determina a interpretao jurdica de que a lei deve fixar este ou aquele indexador da correo monetria sob pena de inconstitucionalidade. O art. 166 do CTN determina: A restituio de tributos que comportem, por sua natureza, transferncia do respectivo encargo financeiro somente ser feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de t-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a receb-la. De acordo com as lies de Economia, todo tributo pago em parte pelo vendedor, em parte pelo comprador e a relao entre estas duas parcelas depende da elasticidade das curvas de oferta e de demanda do respectivo mercado. A transferncia do ponto de vista econmico corresponde ao valor pago pelo adquirente, mas para determin- la necessrio o conhecimento dos condicionantes especficos da oferta-procura. O direito, contudo, exige a prova jurdica. Em razo da dificuldade e at, freqentemente, impossibilidade de realizar a reconstruo probatria do mercado a fim de se aferir qual parcela do tributo se propagou para o comprador, a significado de transferncia do encargo financeiro no pode ser aquele construdo por meio de princpios e regras da Economia. A formao do direito positivo, como vista em tpico precedente, no realizada por meio de um processo de traduo. Na traduo, deve estar presente a caracterstica da reversibilidade, ainda que em grau diminuto. No o caso do direito positivo para as outras searas lingsticas sociais. Como absurdo se conceber que do direito positivo ou da Cincia do Direito se possa tirar lies de Economia, de igual 83 sorte equivocada a posio de que a Cincia Econmica pode colaborar com a interpretao do direito positivo. Isso fica ainda mais evidente ao verificarmos outras camadas de linguagem. O direito positivo emprega termos e expresses desenvolvidos na Medicina; apesar disso, a interpretao do direito positivo deva ser mdica, ou seja, deva se valer dos princpios e mtodos de investigao da Medicina. Seria hilrio se perquirir, numa investigao jurdica, quais so os sintomas da lei, ou quais as reaes orgnicas que ela provoca nos seus destinatrios. De igual sorte, um psiquiatra no deve aplicar preceitos de Direito Penal para investigar os efeitos psiquitricos sobre um detento. Nada obstante, encontramos interpretaes desta estirpe promovidas por leigos; por aqueles que no detm a competncia lingstica especfica da linguagem jurdica. Karl Engisch relata uma experincia pessoal dessa natureza: Quando ainda era estudante, um aluno de medicina insurgiu-se na minha presena contra o facto de o 1589 al.2 do Cdigo Civil 97 declarar ento (mas hoje j no): Um filho ilegtimo e o seu pai no so parentes. Nesta disposio via ele arbtrio de juristas, arrogante denegao dos dados biolgicos e porventura ainda um falso pudor e uma moral hipcrita. Sustentava abertamente a opinio de que no era possvel ao Direito atropelar desta forma os factos naturais 98 .
Vilm Flusser, alerta: Cada lngua um mundo diferente, cada lngua o mundo inteiro, e diferente de toda outra lngua. Este paradoxo resolve-se se considerarmos que cada lngua inclui em seu mundo todas as demais lnguas pelo mtodo da traduo [...] Pelo Mtodo da traduo pode participar das diversas realidades 99 .
O direito positivo no fruto da traduo das linguagens sociais. uma outra lngua e, portanto, um outro mundo. Nele, os demais mundos se incorporam, mas como signos jurdicos. Para o Jurista, assim, h o mercado, a contabilidade, a economia, a taxa libor, o valor aduaneiro, a espondiloartrose anquilosante, etc., mas todos compem, seno outra, a prpria realidade jurdica.
97 Dispositivo similar constava originariamente no Cdigo Civil Brasileiro de 1916: art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos no podem ser reconhecidos. 98 ENGISCH, Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico, p. 16-17. 99 FLUSSER, Vilm. Lngua e Realidade, p. 128. 84
PARTE II: EXTRAFISCALIDADE E OS TRS PLANOS SEMITICOS
85 CAPTULO IV. ANLISE PRAGMTICA A razo pode agir, e efetivamente age, como controle e guia da vontade e das paixes. Mas, a rigor, a vontade que escolhe os fins. Uma conseqncia desse fato que no podemos justificar cientificamente os objetivos que perseguimos nem os princpios ticos que adotamos. RUSSELL, Bertrand; Histria do Pensamento Ocidental, p. 453.
4.1. O PRIMADO PRAGMTICO Segundo Fiorim, a Pragmtica a cincia do uso lingstico, estuda as condies que governam a utilizao da linguagem, a prtica lingstica 100 . Nas palavras de Morris, a pragmtica a cincia da relao dos signos com os seus intrpretes ou tambm ramo da semitica que estuda a origem, os usos e os efeitos dos signos 101 . Sob um certo aspecto, pode ser considerado o primeiro dos planos semiticos. Isso, contudo, no significa anterioridade temporal, mas tem primazia sob o aspecto lingstico. um prius semitico, pois condiciona os aspectos semnticos e sintticos inclusive os estritamente lgicos. A pragmtica assume um status apriorstico para a semitica, mas no do ponto de vista ontolgico. No existe texto sem as trs dimenses conjuntas e, deste modo, as condies pragmticas, semnticas e sintticas so simultneas.. Em termos fenomenolgicos, so concomitantes, mas epistemologicamente o pragmtico anterior. Em razo disso, decidimos abord-lo antes dos outros dois.
4.2. AS DIMENSES PRAGMTICAS Para uma Semitica que abarca tambm os signos naturais, a Pragmtica se preocupa apenas com a relao entre o signo e o seu receptor. No entanto, estamos interessados numa Semtica particular: a comunicacional, cujos signos so produzidos tambm por seres humanos. Dessa forma, a pragmtica comunicacional tem por escopo no s a relao do receptor com o signo, mas tambm a do emissor e o que h de comum entre ambas que permite o estabelecimento da comunicao.
100 FIORIN, Jos Luiz. Pragmtica, p. 161. 101 Apud NTH, A semitica no Sculo XX, p. 189. 86 Toda norma pressupe um ato de comunicao e, portanto, um emissor (ou enunciador) e um receptor (ou enunciatrio). No dizer de Kelsen, Uma ordem, e principalmente uma ordem que se qualifica como norma, pressupe dois indivduos: um que ordena, que d a ordem [...] e um outro, ao qual a ordem dirigida 102 e conclui nenhuma norma sem uma autoridade que a estabelea, nenhuma norma sem um destinatrio 103 . As dimenses pragmticas da comunicao, contudo, no se resumem aos seus agentes, mas tambm abarcam o prprio processo e o produto da comunicao, vale dizer, a enunciao e o enunciado, respectivamente. Antes de prosseguirmos na anlise de cada uma das dimenses pragmticas da comunicao, merece ser destacada a seguinte advertncia de Chomsky: A teoria lingstica lida fundamentalmente com um locutor-auditor ideal, inserido numa comunidade lingstica completamente homognea, que conhece perfeitamente sua lngua e a salvo dos efeitos gramaticalmente no pertinentes tais como limitaes da memria, distraes, deslizes de ateno ou de interesse, ou erros na aplicao de seu conhecimento da lngua durante o desempenho 104 . Ora, no estudo do fenmeno jurdico, qual aspecto merece ateno: o ideal ou o real? Cremos que os dois e os efeitos da diferena entre um e outro. No que se refere ao emissor, sobremaneira repisada a considerao doutrinria segundo a qual o legislador comete um sem par de impropriedades e seria papel da Dogmtica justamente apontar tais incorrees e o caminho para a soluo. Mas e quanto diferena entre o receptor ideal e o real. No deveria a Teoria do Direito apontar tambm solues? Pensamos que sim.
4.2.1. A enunciao
Segundo Fiorim, enunciao [...] ato produtor de enunciado 105 , o qual deixa traos no prprio enunciado: Esse conjunto de marcas enunciativas colocado no
102 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas, p. 37. 103 Ibid.,p. 38. 104 Apud BOURDIEU, A economia das trocas lingsticas, p. 30. 105 FIORIN, Jos Luiz. Pragmtica, p.162. 87 interior do enunciado no a enunciao propriamente dita, cujo modo de existncia ser o pressuposto lgico do enunciado, mas a enunciao enunciada 106 . Tais traos definem a enunciao enunciada 107 , a qual a nica que compe objeto de interesse da Cincia do Direito, pois constitui o significante do signo jurdico. Ademais, vale observar que a enunciao do signo jurdico apresenta a peculiar caracterstica de estar disciplinada pelo prprio discurso no qual busca inserir o seu produto.
4.2.2. O enunciado O enunciado o resultado do processo de enunciao 108 . So as marcas grficas estampadas, num suporte material, e advindas do processo de enunciao.
4.2.3. O enunciador O enunciador do direito positivo o legislador (num sentido amplo, que abarca todos os agentes legitimados pela ordem jurdica para introduzir no s as normas gerais e abstratas, mas tambm as individuais e concretas), o qual, assim como a enunciao, previsto pela prpria ordem jurdica e deixa marcas no produto de sua prpria enunciao. H, assim, um legislador e um legislador-enunciado. E qual desses do interesse da Cincia do Direito? Conjecturamos o segundo. H ainda uma outra dicotomia relevante: o legislador emprico e o legislador modelo, que no se confunde com o legislador emprico nem com o legislador-enunciado. O legislador modelo deve ser concebido como o enunciador-ideal; aquele cuja inteno subjetiva se identificaria com a intersubjetiva que interna ao signo jurdico e, assim, contribuiria com o processo de interpretao promovido pelos enunciatrios. Esse legislador-modelo alm de no se confundir com o legislador emprico ou histrico, nem sequer erigido a partir dele. , para o fenmeno jurdico, o equivalente ao autor-modelo das lies semiticas de Umberto Eco, para quem: O leitor emprico apenas um agente que faz conjecturas sobre o tipo de leitor- modelo postulado pelo texto. Como a inteno do texto basicamente a de produzir um leitor-modelo capaz de fazer conjecturas sobre ele, a iniciativa do leitor-modelo
106 FIORIN, Jos Luiz. Pragmtica, p.162. 107 Tema que foi explorado a mincias na destacada obra de Tarek Moyses Moussallem, Fontes do direito tributrio. 108 Tambm perscrutado por Moussallem, em Fontes do direito tributrio. 88 consiste em imaginar um autor modelo que no o emprico e que, no fim, coincide com a inteno do texto 109 . E conclui: ...nessa dialtica entre a inteno do leitor e a inteno do texto, a inteno do autor emprico foi totalmente desconsiderada. [...] Minha idia de interpretao textual como a descoberta da estratgia com inteno de produzir um leitor-modelo, concebido como a contra-partida ideal de um autor-modelo (que aparece apenas como uma estratgia textual), torna a idia da inteno do autor emprico totalmente intil. Temos que respeitar o texto, no o autor enquanto pessoa assim-e-assim 110 . Na mesma estratgia semitica de interpretao, podemos afirmar que a inteno do legislador emprico no interessa para a formao da inteno jurdica e, portanto, da extrafiscalidade.
4.2.4. O enunciatrio O enunciatrio para quem dirigido o ato de fala uma das dimenses comunicacionais mais relevantes. No deve ser concebido apenas como algum que deve interpretar a norma, mas principalmente como um elemento do fenmeno comunicacional que determina mais um aspecto a ser considerado no processo de interpretar. O enunciatrio no deve interpretar o signo comunicacional como um signo qualquer, mas sim como um intencionalmente dirigido a ele. Como observa Fiorim, O enunciatrio, como filtro e instncia pressuposta no ato de enunciar, tambm sujeito produtor do discurso, pois o enunciador, ao produzir um enunciado, leva em conta o enunciatrio a quem ele se dirige 111 . E prossegue com um exemplo deveras elucidativo, No a mesma coisa fazer um texto para crianas ou para adultos, para leigos numa dada disciplina ou para especialistas nela 112 . A pergunta imediata, e tormentosa, que nos vem : se o enunciatrio aspecto pragmtico relevante para a compreenso dessa dimenso semitica e, portanto, da prpria compreenso do discurso, quem assume tal papel no discurso do direito positivo? E qual a relevncia disso para a sua compreenso?
109 ECO, Umberto. Interpretao e superinterpretao, p. 75. 110 Ibid., p. 77. 111 FIORIN, Jos Luiz. Pragmtica, p. 163. 112 Ibid. 89 Podemos promover vrias conjecturas. A mais simplista a sociedade como um todo. Tal resposta, dado o seu carter genrico, mascara as sutilezas. Claro que estamos todos envoltos pela ordem jurdica, mas ao mesmo tempo exercemos papis diversos. Um agente fiscal tambm sujeito passivo dos tributos exigidos dos demais membros da sociedade, mas enquanto agente fiscal exerce uma atribuio diversa da das outras pessoas. O mesmo se diga do juiz. J afirmamos precedentemente que o enunciatrio do direito positivo no o jurista. Diante de um enunciado prescritivo nacional evidente que um brasileiro que aqui reside e pratica condutas o recebe de forma diversa que um americano que nunca colocou os ps em nosso territrio . O mesmo se diga em relao a um agente fiscal brasileiro e um americano. Todavia, e quanto a um Jurista brasileiro e a um americano interessado em Dogmtica Brasileira, ainda que tambm nunca tenha posto seus ps em nosso territrio? No vemos, a princpio, diferena. No estamos a dizer que o Jurista deva se colocar numa condio passiva, na posio de mero observador de fatos naturais. No somos adeptos dessa concepo. Alis, atm mesmo os Estudiosos de Cincias Naturais, no raro, colocam-se diante da natureza, no como meros observadores, mas sim como proponentes de solues para governar o meio natural. Alinhamo-nos, nesse ponto, com a posio de Trcio Sampaio, segundo o qual, a cincia dogmtica cumpre as funes tpicas de uma tecnologia. Sendo um pensamento conceitual, vinculado ao direito posto, a dogmtica pode instrumentalizar-se a servio da ao sobre a sociedade 113 . Nada obstante, a condio de Cientista impe se colocar de fora, seja para observar o objeto, seja para propor modificaes. No h diferena em ser jurista nacional ou jurista estrangeiro com interesse no direito nacional. No entanto, o jurista, na medida em que l o texto e o compreende, participa, numa certa medida, do ato de comunicao. Como dizer ento que ele no tambm enunciatrio?
113 FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito, p. 87. 90 4.3. OS DOIS INTRPRETES: ENUNCIATRIO E NO-ENUNCIATRIO A resposta est, mais uma vez, na inteno. O direito positivo no elaborado com a finalidade de conformar a conduta de juristas. Assim, o cientista do direito deve entrar em contado com o texto normativo como no dirigido a ele. O discurso prescritivo no desempenha funo pragmtica em relao comunidade cientfica e, assim deve ser compreendido. Voltemos questo: quem ento o enunciatrio? Parece-nos incontestvel que o sujeito cuja conduta foi regrada; mas seria, de fato, o nico? Todo enunciatrio deve se caracterizar como intrprete. Inexiste receptor no intrprete. Nesse caso, o prprio ato comunicacional se desnatura e, assim, no haver o prprio enunciatrio. Ademais, o emissor leva em conta a competncia lingstica do seu receptor. No discurso descritivo, escrever para especialistas no o mesmo que escrever sobre o mesmo tema para um pblico leigo. Dessarte, se um crtico no souber para qual destinatrio um texto literrio dirigido, poder considerar uma obra escrita para jovens como de baixa qualidade, alm de chegar a concluses diversas daquelas que obteria se conhecesse precedentemente qual o pblico-alvo. Deve considerar que o texto no foi escrito para ele, mas sim para outrem. Ambos crtico e leitor-alvo so intrpretes, mas ocupam posies semiticas diversas. Os possveis intrpretes de qualquer texto devem ser segregados em dois grandes pblicos: (i) aqueles para quem o emissor escreveu os enunciatrios e (ii) aqueles para os quais o emissor no escreveu. Aos primeiros denominamos intrprete- enunciatrio; aos segundos, intrprete-no-enunciatrio. As condies pragmticas, em especial, a competncia lingstica do intrprete-enunciatrio devem ser consideradas no processo de interpretao do intrprete-no-enunciatrio. Os operadores do direito e aqueles cujas condutas so conformadas pela norma se quadram no primeiro grupo; j a Doutrina, no segundo. Alis, Kelsen j apresentava distino similar, existem duas espcies de interpretao que devem ser distinguidas claramente uma da outra: a interpretao do Direito que no realizada por 91 um rgo jurdico mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela cincia jurdica 114 e conclui acerca da manifestao lingstica dos rgos judiciais e administrativos, aplicadores do direito, atravs deste ato de vontade se distingue a interpretao jurdica feita pelo rgo aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretao, especialmente levada a cabo pela cincia jurdica 115 . Para Kelsen, a interpretao do direito pelos rgos aplicadores deve ser compreendida como um ato no s de conhecimento; de razo, portanto. Trata-se fundamentalmente de um ato de vontade ao selecionar uma de vrias possibilidades de sentidos. J os atos de interpretao das demais pessoas, em especial, do Jurista, deve ser meramente um ato de inteleco e, como tal, redundar no numa, mas em vrias interpretaes possveis acerca do texto legislado. Nas suas contundentes palavras, em que critica a posio oposta: A teoria usual da interpretao quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipteses, apenas uma nica soluo correta (ajustamento), e que a justeza (correo) jurdico-positiva desta interpretao como se se tratasse to-somente de um ato intelectual de clarificao e de compreenso, como se o rgo aplicador do Direito apenas tivesse que pr em ao o seu entendimento (razo), mas no a sua vontade, e como se, atravs de uma pura atividade de inteleco, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo 116 . Devemos fazer, nesse passo, apenas uma contribuio: os sujeitos de direito, aquele que deve cumprir a norma individual e concreta, tambm pode ser o agente autorizado pela ordem jurdica a veicul-la. De tal sorte, sua interpretao da mesma natureza que a promovida pela autoridade administrativa e judicial (bem como a promovida pelo legislador ao interpretar o texto constitucional com o fito de editar os textos-suporte das regras gerais e abstratas). Trata-se de um ato de conscincia permeado no s pela razo, mas especialmente pela vontade. Assim, denominaremos todos esses agentes (as autoridades judiciais, administrativas e o particular que enunciam normas individuais e concretas, bem como o legislador que introduz normas gerais e abstratas
114 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 388. 115 Ibid., p. 394. 116 Ibid, p. 391. 92 conforme competncia formal e material estampada na Constituio) por aplicadores, os quais figuram na posio comunicacional de enunciatrio. A interpretao promovida pela Doutrina, pelo contrrio, deve ser um ato exclusivo da razo. A vontade deve ser, ao mximo, afastada. Esse fenmeno pode ser assim esquematizado:
Nessa formulao, a Doutrina elemento externo do ato de comunicao. Mas ento como justificar seu papel relevante na construo do Sistema Jurdico como afirmamos anteriormente? A resposta est no fato de o Jurista no se portar como um Bilogo escamotiado a fim de observar a vida animal sem que ele prprio seja notado. Pelo contrrio, o cientista do direito tambm observado pelos agentes da comunicao, os quais sofrem marcadamente sua presena. Por um lado, o aplicador interpreta a mensagem legislada freqentemente com os olhos do observador, ou melhor, com os filtros de sua observao; por outro, tambm devemos contar com a possibilidade do prprio legislador elaborar o enunciado prescritivo com ateno, no s naqueles cuja conduta intenta conformar, mas tambm nos formuladores doutrinrios. Um livro dirigido ao pblico infantil, por exemplo, pode ser mais bem elaborado se o autor tiver conhecimento prvio de que sua obra ser submetida crtica especializada. Podemos afirmar, porquanto, que o fenmeno semitico da observao empreendido pela Doutrina predominantemente descritivo influencia o ato comunicacional legislador-aplicador predominantemente prescritivo.
Observador (Doutrina) Enunciador (Legislador) Enunciatrio (Aplicador) Mensagem (norma) 93 4.4. A COMPETNCIA LINGSTICA DO ENUNCIATRIO J foi visto anteriormente que o enunciatrio de uma norma no est na condio de mero intrprete. Se formos Paris, dominarmos o cdigo, tanto da lngua portuguesa, quanto da francesa, e pretendermos fazer um pedido a um balconista, seguramente elaboraremos a mensagem em francs em razo da competncia lingstica do enunciatrio. Fenmeno idntico ocorre dentro de cada lngua. Apesar de haver um ncleo comum a todos os seus utentes, o cdigo no deve ser concebido como nico e, portanto, dominado por todos os falantes de uma mesma lngua, mas sim como uma enciclopdia, a qual formada por parties especficas dominadas por grupos sociais igualmente especficos. Assim, as competncias lingsticas so bem diversificadas entre os diversos grupos sociais, ainda que compartilhem a mesma lngua. Essa variao determina a prpria atividade de enunciao. Da mesma forma como uma obra cientfica mais complexa e, por isso, exige uma maior esforo de interpretao que um conto de literatura infantil, em razo da maior competncia lingstica do intrprete-enunciatrio; os textos legais tambm apresentam variaes de complexidade em funo da competncia lingstica dos seus destinatrios. H textos legais mais complexos e, assim, merecedores de um exame mais sofisticado que outros. Tais textos so aqueles dirigidos a conformar condutas em searas mais especficas e especializadas que as atividades cotidianas. Dessarte, de se esperar que um texto legal relativo a Direito Penal, em especial, no que se refere a crimes passveis de serem praticados por todos (homicdio, roubo, leso corporal, etc) seja de interpretao mais simples, ao menos em relao tipificao do crime, que um diploma regulador do mercado financeiro. O que dizer ento de um texto legal que trate da tributao sobre o mercado financeiro? Nesse caso, o legislador fala para especialistas e sua obra o diploma normativo deve ser interpretado como fruto de uma enunciao erigido por meio de um cdigo especializado. Se for da inteno do autor de uma obra literria que ela alcance o maior pblico possvel, dever compor seu texto de forma simples e o intrprete deve considerar tal simplicidade; no deve formular rebuscadas conjecturas acerca das possveis combinaes de palavras e frases. Pelo contrrio, se o autor dirigir sua obra a um pblico 94 especializado, provavelmente empregar linguagem mais rebuscada, estruturas mais bem elaboradas e complexas. De igual sorte, encontramos o mesmo fenmeno no direito positivo. Se o legislador edita uma lei que dirigida a conformar condutas habituais, sua dico ser a mais simples possvel; ao revs, se visar conformar condutas de uma seara especializada da sociedade, provavelmente lanar mo de recursos mais sofisticados de linguagem e seus intrpretes devero estar lingisticamente aptos nessa camada de linguagem mais rebuscada. Tal especializao e, portanto, maior exigncia de esforo interpretativo, no prpria deste ou daquele ramo jurdico, mas sim de todos. A referncia a um diploma de direito penal para exemplificar um caso de dico mais simplificada foi casual. Um texto legal que estabelece a incidncia do imposto de renda sobre salrios, por se dirigir a uma partio sobremaneira ampla da sociedade, provavelmente ser elaborado com uma linguagem menos especfica que a empregada numa lei tipificadora de crimes contra o sistema financeiro. No direito penal, o esforo interpretativo certamente maior em relao a crimes especficos, passveis de serem cometidos por apenas certos grupos de pessoas. O mesmo ocorre com todos os ramos jurdicos. O direito tributrio, especialmente quando envolto em funes extrafiscais, no escapa a necessidades de esforo interpretativo. A extrafiscalidade carreia um grau maior de complexidade ao discurso do direito positivo e, por isso, exige uma maior sofisticao do processo hermenutico e uma competncia lingstica mais ampla do formulador da doutrina.
4.5. A RECEPO Os componentes da comunicao geralmente apontados pela Lingstica (enunciador, enunciao, enunciado e enunciatrio) simplificam o fenmeno e, assim, desconsideram aspectos que so fundamentais para a compreenso do direito como um processo comunicacional. Como nos adverte Pierre Bourdieu, o produto lingstico s se realiza completamente como mensagem se for tratado como tal, isto , decifrado. Alm do fato de que os esquemas de interpretao que os 95 receptores pem em ao em sua apropriao criativa do produto proposto podem ser mais ou menos distanciados daqueles que orientam a produo 117 . A comunicao, assim, composta por dois processos: a enunciao e a recepo; aquela como atividade do enunciador, esta do enunciatrio. A simplificao, que decorre da supresso da recepo, oportuna apenas quando as coordenadas contextuais das duas atividades so as mesmas. Para o direito, contudo, essa premissa totalmente falsa. Nessa seara especfica da comunicao humana, o momento da enunciao e o da recepo esto geralmente distanciados, no por minutos, mas por dias, meses, anos, dcadas, qui sculos. E tal circunstncia no pode ser desconsiderada. Devemos ento, no processo de interpretao, deslocar nossa ateno da enunciao para foc-la na recepo? Devemos, por exemplo, abandonar o contexto em que foi editada a lei para nos centrar apenas nos parmetros contextuais de sua aplicao? Cremos que no. Ambas as atividades (enunciao e recepo) compem o processo comunicacional e, assim, devem ser consideradas na formao da inteno jurdica. Se fosse considerada apenas a recepo, o signo jurdico deixaria de se caracterizar como comunicacional para se verter num signo natural, com o que no concordamos. Por outro lado, a recepo e, em especial, suas coordenadas contextuais so extremamente relevantes e no podem ser desconsideradas. Ademais, a comunicao no se estabelece por meio de toda e qualquer recepo, mas apenas por aquelas que guardam relao com a inteno enunciativa. E como se estabelece essa relao, uma vez que os esquemas de enunciao e recepo podem estar distanciados por dcadas? A soluo est na contigidade. Nas palavras de Jakobson, Quer mensagens sejam trocadas ou a comunicao proceda de modo unilateral do remetente ao destinatrio, preciso que de um modo ou de outro, uma forma de contigidade exista entre os protagonistas do ato da fala para que a transmisso da mensagem seja assegurada. A separao no espao, e muitas vezes no tempo, de dois indivduos, o remetente e o destinatrio, franqueada graas a uma relao interna: deve haver certa equivalncia entre os smbolos utilizados pelo remetente e os que o destinatrio conhece e interpreta. Sem tal equivalncia, a mensagem se torna infrutfera mesmo quando atinge o receptor, no o afeta 118 .
117 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingsticas, p. 24-25. 118 JAKOBSON, Roman. Lingstica e Comunicao, p. 41. 96 no enlace entre enunciao e recepo, determinado pela contigidade entre os dois processos, que se estabelece a comunicao. Desse modo, o contexto que informa a interpretao jurdica no apenas o da enunciao, o da recepo, nem a soma dos dois, mas aquele formado pela contigidade entre ambos e que estabelece o contexto comunicacional.
4.6. O CONTEXTO PRAGMTICO No primeiro captulo, alertamos para os diferentes significados de contexto. Nesse captulo, interessa-nos o contexto pragmtico.
Para compreendermos a importncia do contexto para a comunicao e, portanto, para o direito, merecem destaque as seguintes palavras do Professor Alar Caff Alves: A base material e o significado (ato fontico, ftico e rtico) de uma frase constitui o que se pode chamar ato locucionrio. Por exemplo, a janela est aberta. Todos, que possuem o cdigo da lngua portuguesa, entendem esta frase, visto que cada palavra e suas conexes sintticas so conhecidas. Entendemos o significado proposicional da frase. Mas o significado geral (o entendimento) dessa frase no vem ao mundo da vida comunicacional seno dentro de um contexto que lhe d a fora de compreenso da frase (o seu sentido especfico). Aqui temos a dimenso ilocucionria da frase. Entender o significado (geral) de um proferimento que funo das condies mnimas para se ter experincia de uma lngua, como a sintaxe e a semntica dessa lngua bsico para se trabalhar pragmaticamente com esse proferimento, para configurar-lhe o sentido especfico (a fora) numa dada e determinada situao comunicacional. Neste caso, o ato locucionrio passa a ter uma fora ilocucionria, que corresponde a um plus em relao sua estrutura lingstica locucionria 119 . Valendo-me dessa passagem, a frase a janela est aberta pode significar apenas a informao da causa diante da pergunta interposta por outro locutor por que h uma corrente de ar no ambiente?. Em outro contexto, no qual est fazendo frio no recinto, pode significar uma ordem para que outra pessoa feche a janela. Todavia, no mesmo ambiente, mas com relao hierrquica entre os interlocutores inversa (quem profere a
119 ALVES, Alar Caff. Lgica pensamento formal e argumentao, p. 352-353. 97 frase hierarquicamente inferior quele que a escuta), pode significar: posso fechar a janela?. Desse modo, uma mesma frase pode, conforme o contexto, apresentar variegados significados. Mudar o contexto pode redundar na alterao do significado da frase. O mesmo se diga do direito positivo; o seu significado deve ser compreendido em funo do contexto, o qual no se caracteriza de forma pontual, mas sim como uma linha ininterrupta entre os processos de emisso e recepo do signo jurdico. Desse modo, no h rupturas contextuais e, portanto, de significado, mas, medida que se distancia a recepo, mais extenso ser o contexto e, portanto, diferente do anterior, o que redunda em graduais alteraes do prprio significado dos textos prescritivos. Esse gradativo processo de alterao contextual nos remete necessariamente Histria, como seara do conhecimento humano que estuda, no fatos isolados, mas principalmente a relao dos passados com os atuais. Como bem observa Paulo de Barros Carvalho, Os signos do direito surgem e vo se transformando ao sabor das circunstncias. Os fatores pragmticos, que intervm na trajetria dos atos comunicativos, provocam inevitveis modificaes no campo de irradiao dos valores significativos, motivo pelo qual a historicidade aspecto indissocivel do estudo das mensagens comunicacionais 120 .
4.7. FINALIDADE E FUNO Como j apontado no segundo captulo, ao investigar diversos conceitos de normas indutoras (denominao adotada no lugar de extrafiscalidade) empregados por vasta doutrina, Schoueri reconhece que praticamente todos adotam a tese central de que tais regras se caracterizam em razo de sua finalidade. A divergncia se daria apenas entre aqueles que adotam critrios subjetivos (a vontade do legislador) e objetivos (a vontade da lei). Para ambas posies, contudo, destaca a inadequao de se buscar o elemento teleolgico de classificao e conclui: A identificao das normas tributrias indutoras no se satisfaz por critrios teleolgicos, sejam subjetivos, sejam objetivos, sejam combinados. A vontade objetivada na lei tampouco serve de critrio para sua determinao, j que este critrio dependeria do conhecimento do que seria uma tributao normal, para, a partir da, determinar-se o desvio que caracterizaria a norma indutora. Ademais, a constatao de uma finalidade arrecadadora da norma tributria no exclui possa ela,
120 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 198. 98 simultaneamente, ter finalidade direcionadora. Da a necessidade de um enfoque pragmtico para a identificao das normas tributrias indutoras, quando se passam a considerar os efeitos da norma, a partir de suas funes eficaciais. [...] Assim que, no lugar de identificarem-se normas tributrias indutoras por sua finalidade, estuda-se o efeito indutor das normas tributrias indutoras por sua finalidade, estuda-se o efeito indutor das normas tributrias, por meio de um corte, quando se extraem determinaes individualizadas, justamente com conseqncias a elas relacionadas. Identificam-se, assim, as normas tributrias indutoras a partir de sua funo 121 . fundamental sua contribuio para o estudo da extrafiscalidade ao destacar, por meio da funo, a relao da norma com o destinatrio, vale dizer, o vnculo comunicacional ente enunciado e enunciatrio. Nada obstante, consideramos necessrio reconciliar a finalidade funo, pois a finalidade est na relao entre emissor e mensagem, ao passo que a funo est na relao entre mensagem e destinatrio. Como pode uma norma possuir uma dada funo, bem como qualquer outro signo, sem que o seu enunciatrio tenha tal inteno? Como essa caracterstica (a funo) da norma pode ser aferida exclusivamente pela sua relao com o destinatrio? S vemos duas possibilidades. A primeira trata-se da conjectura de a norma ser um signo natural, decorrente, assim, de um acontecimento causal e no intencional. Como exemplo, a lei da gravidade pode ser entendida como um signo de que deve ser evitado por um homem saltar de penhascos sob pena de falecer ou gravemente se ferir. Mas como defender que uma lei natural apresenta uma dada funo? Teria a gravidade a funo de evitar que homens pulem de penhascos? Cremos que no. Tambm no encontramos qualquer outra lei causal que exera funes para o homem. Ademais, o que evidente, mas sempre calha repisar, as normas jurdicas, como todos os demais signos comunicacionais, so intencionais e no naturais. A segunda possibilidade diz respeito ao efeito no ser intencionado pelo enunciador. Quantas no so as vezes que dizemos algo com uma dada inteno, mas o resultado no destinatrio diverso. Buscamos elogiar, mas s vezes nossas palavras so consideradas ofensivas, dentre outros tantos exemplos. No cremos, contudo, que as regras jurdicas sejam produzidas sem inteno e que a sua funo decorra to-s do efeito sobre o destinatrio, no caso, no intencionado.
121 SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas Tributrias Indutoras e Interveno Econmica, p. 40. 99 De fato, a investigao pragmtica requer a anlise do efeito da norma (e de qualquer signo) sobre o destinatrio, mas no s. Como j explanamos anteriormente, o plano pragmtico de investigao semitica requer anlise do uso do signo, investiga a relao entre o signo e seus utentes, os quais no podem ser, sem maiores cuidados, restringidos aos destinatrios. A comunicao sempre bipolar (ainda que possa ser apenas mono-direcional), exige a participao de dois agentes (que podem ser individuais ou coletivos): o enunciador e o enunciatrio. A investigao da norma jurdica, por se incluir na grande classe dos signos comunicacionais, exige que se considerem, tanto o enunciador, quanto o enunciatrio. Enfim, a funo , de fato, aspecto relevante para a definio da extrafiscalidade, mas no se destaca como critrio autnomo do plano intencional do fenmeno comunicacional, que o direito. Uma viso pragmtica completa deve buscar conciliar esses dois aspectos do ato comunicacional. O direito positivo visa cumprir uma dada finalidade pretendida pelo legislador e, para tal, exerce sobre os seus destinatrios uma determinada funo. H, desse modo, uma relao intrnseca entre esses dois aspectos. So faces distintas, mas de uma mesma moeda. Para atingir uma determinada finalidade, o direito deve apresentar uma certa funo; por outro lado, exerce uma dada funo para cumprir uma certa finalidade (uma inteno).
4.8. VALORES: A INTENCIONALIDADE JURDICA A intencionalidade do signo jurdico essencialmente teleolgica. O direito editado para cumprir uma dada finalidade, sobre a qual ainda no nos debruamos mais detidamente. Apesar disso, podemos afirmar que a finalidade uma determina uma preferncia. Se economizamos dinheiro ao longo do ano com o escopo de viajar ao exterior em dezembro; preferimos, neste ms, passar as frias noutro pas. Ademais, se preferimos a estada fora do Brasil por que a achamos, ainda que momentaneamente, mais valiosa que a nacional. Esse singelo exemplo, demonstra a umbilical relao entre finalidade e valor. Toda finalidade apresenta bagagem axiolgica, e a extrafiscalidade, atributo tipicamente finalstico, no poderia escapar a tais consideraes. Segundo Paulo de Barros Carvalho, valor 100 a no-indiferena de alguma coisa relativamente a um sujeito ou a uma conscincia motivada. uma relao entre o sujeito dotado de uma necessidade qualquer e um objeto ou algo que possua qualidade ou possibilidade real de satisfaz-lo. Valor um vnculo que se institui entre o agente do conhecimento e o objeto, tal que o sujeito, movido por uma necessidade, no se comporta com indiferena, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas 122 . E, em outra passagem assim assevera acerca do direito: como construo do ser humano, sempre imerso em sua circunstncia (Gasset), um produto cultural e, desse modo, portador de valores, significa dizer, carrega consigo uma poro axiolgica que h de ser compreendida pelo sujeito cognoscente o sentido normativo, indicativo dos fins (thelos) que com ela se pretende alcanar 123 . Por um lado, as finalidades so de cunho essencialmente axiolgico; por outro, os valores apontam para os escopos das prescries normativas.
4.8.1. As caractersticas dos valores Os valores apresentam certas caractersticas inatas. O saudoso Professor Miguel Reale apontava a implicao, referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade, objetividade, historicidade e inexauribilidade 124 . Paulo de Barros Carvalho, alm destes, indica a atributividade 125 . Ambos, ainda, apontam a polaridade (bipolaridade na lio de Paulo de Barros Carvalho) e a graduao hierrquica (Paulo de Barros Carvalho mais especfico ao afirmar que esta caracterstica corresponde tendncia de graduao hierrquica); atributos aos quais dedicaremos maior ateno, pois so os que determinam a funo interna e, portanto, sinttica das normas de cunho extrafiscal. Conforme a resposta do ordenamento (mais precisamente de suas normas) s condutas juridicamente moduladas, o intrprete identifica a polaridade do valor e a sua posio hierrquica dentre aqueles de igual polaridade. Por meio da anlise das respostas empreendidas pela ordem jurdica, podemos segregar os valores positivos dos negativos, identificar a sua distribuio hierrquica e, portanto, a intencionalidade jurdica.
122 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 175. 123 Ibid., p. 253. 124 REALE, Miguel. Introduo Filosofia, pg. 145. 125 Ibid., p. 179. 101 Onde houver normas, h valores 126 . Aquelas, que modulam condutas obrigatrias e permitidas, apontam para valores positivos; as que prescrevem condutas proibidas destacam os valores negativos. Assim assevera Paulo de Barros Carvalho: Os modais obrigatrio e permitido trazem a marca de uma valor positivo, porque revelam que a sociedade aprova o comportamento prescrito, ou mesmo o tem por necessrio para o convcio social. Caso o functor escolhido seja o proibido, fica ntida a desaprovao social da conduta, manifestando-se inequvoco valor negativo 127 . Mas devemos ir alm. Pela simples circunstncia de uma conduta ser modulada como obrigatria, podemos afirmar que o valor por ela abarcada hierarquicamente superior quele, tambm positivo, mas relativo a uma conduta to- somente permitida. Nada obstante, os trs tipos de modulaes no so as nicas caractersticas que devem ser empregadas com estratgias de interpretao para a compreenso da polaridade e hierarquia entre os valores. Para cada uma das condutas reguladas, a ordem jurdica estabelece conseqncias, as quais, conforme sua caracterstica e intensidade, revela a distribuio hierrquica dos valores.
4.9. AS IDEOLOGIAS COMO CORPOS DE VALORES Segundo Paulo de Barros Carvalho, as ideologias constituem prismas, critrios de avaliao de valores, e logo a seguir complementa: A ideologia vai se formando com a consolidao de valores em posies de preeminncia, de tal modo que definida a composio desse bloco axiolgico, passa ele a submeter outros valores que pretendam ingressar no sistema de estimativas do indivduo, selecionando-os em funo de sua compatibilidade com aquela camada que fundamenta a estrutura 128 . Em passagem anterior, afirmamos que o significado das partes de um texto determina o sentido do prprio texto, o qual, por seu turno, tambm influencia na formao significativa das suas partes constituintes num processo dialtico de construo de sentido. As partes determinam o todo e so tambm por ele determinadas. Essa relao bidirecional est presente em todos os sistemas, no s nos lingsticos. A ao gravitacional de cada
126 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 256: ...o direito e, mais particularmente as normas jurdicas, esto sempre impregnadas de valor. 127 Ibid., p. 174-175. 128 Ibid., p. 176. 102 hidrognio origina, a partir de certo nmero de tomos, a formao de uma estrela, a qual determina a fuso dos mesmos tomos de hidrognio em hlio. Noutro exemplo, dessa vez de nossa prpria Constituio, o art. 149, 2, inciso II, estipula que as contribuies sociais no incidiro sobre receitas de exportao. J o art. 195 discrimina contribuies seguridade social (contribuies sociais, portanto) sobre receita e sobre o lucro. Desse modo, esses dispositivos isoladamente considerados nos levaria a interpretar que apenas a contribuio, cuja base de clculo a receita, no poderia incidir sobre aquela decorrente de exportaes, ao passo que a contribuio sobre o lucro poderia adotar como base inclusive o lucro advindo de receitas de exportao. Nada obstante, a Carta Constitucional est repleta de dispositivos que desoneram as exportaes, o que nos permite afirmar a presena de um escopo jurdico dirigido a estimular as vendas ao exterior por meio da supresso de tributos. Essa finalidade, construda por meio dos diversos dispositivos, determina a interpretao, em contrapartida, de cada um deles; o que nos permite afirmar que a imunidade das receitas de exportao abarca tambm o lucro delas advindo. Os valores e as ideologias apresentam a mesma relao parte-todo. O conjunto dos valores forma as ideologias; as quais, por seu turno, determinam a prpria construo significativa dos valores. O estudo da extrafiscalidade, assim, exige no apenas a investigao dos valores, mas principalmente das ideologias que esto encampadas na ordem jurdica nacional.
4.9.1. A ideologia liberal inconteste que a Constituio Federal de 1988 assumiu um forte compromisso liberal. O momento histrico, em que foi erigida, exigiu a edificao de um aparato jurdico contra o jugo de um Estado autoritrio, o qual estava juridicamente consolidado em razo das modificaes normativas implementadas, em especial, a revogao da Constituio Democrtica de 1946 e a edio dos atos de exceo. O artigo 5 da atual Carta Constitucional estabelece um grande nmero de direitos e garantias contra a interveno do Estado nos domnios das liberdades individuais; direitos e garantias que no podem ser reduzidos sequer por emenda constitucional. Esse modelo de Estado est firmemente erigido, no s no artigo 5, mas num sem nmero de outros dispositivos. A liberdade concebida como um prisma de valores, 103 cujos mltiplos lados so firmemente estatudos como direitos e preservados por inmeras garantias. Dentre as faces protegidas, est o direito propriedade e ao desempenho de toda sorte de atividades econmicas. No por acaso, o Sistema Tributrio Nacional constitudo por enunciados prescritivos permeados por essa ideologia: a legalidade tributria que apresenta contornos extremamente rgidos; a anterioridade e a noventena; o primado do no-confisco; a taxativa discriminao dos impostos, dentre outros tantos. Como assenta Jos Afonso da Silva, O Estado Liberal firmou a restrio dos fins estatais, consagrando uma declarao dos direitos do homem, como estatuto negativo, com a finalidade de proteger o indivduo contra a usurpao e os abusos do Estado 129 . O destaque original do texto merece toda ateno. A ideologia liberal juridicamente conformada por normas de proibio. Em razo disso, o Regime Jurdico Tributrio concebido como um conjunto de enunciados garantistas, que protegem os agentes privados do Poder para criar tributos e, portanto, limitar o direito individual propriedade e a livre organizao produtiva.
4.9.2. A ideologia social Todavia, no foi apenas com o modelo liberal que a atual Constituio se comprometeu. Nosso Pas um dos mais inquos do mundo. Nossa distribuio de renda rivaliza com os pases mais desiguais do planeta. J fomos o segundo pior dentre todos. Uma parte significativa de nossa populao no tinha (e muitos ainda no tm) direito sequer a um singelo prato de comida todos os dias; o que dizer ento de sade e educao? Em razo disso, outro compromisso foi estabelecido: o social. J no artigo 6 est estampado: So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio. Esse modelo exige direitos de outra ordem. Ao revs de proibir que o Estado atue, so lhe impostas obrigaes de ao. Celso Antnio Bandeira de Mello, em paralelo interveno do Estado no domnio econmico, registra tambm em sua clssica obra Curso de Direito
129 SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 135. 104 Administrativo, a interveno no domnio social, a qual tanto se faz pela prestao dos servios pblicos desta natureza (educao, sade, previdncia e assistncia social) como pelo fomento da atividade privada mediante trespasse a particulares de recursos a serem aplicados em fins sociais 130 . Entendemos que no h bices pelo contrrio ao emprego de regras tributrias com a mesma finalidade.
4.9.3. A ordem liberal-social A ideologia liberal clssica de mundo caracteriza-se como uma viso otimista, segundo a qual h uma lei causal tendente a harmonizar os interesses entre os particulares de tal forma a possibilitar a todos obterem para si o mximo de suas potencialidades se operarem livremente. O Estado, ao interferir nessa liberdade, agiria como um agente de conturbao; do ponto de vista econmico, desviaria recursos dos reais produtores para quem no contribuiu na sua obteno, o que conduziria ao desestmulo produtivo de ambos os grupos e, conseqentemente, prejuzo de todos. O modelo liberal clssico, portanto, no foi idealizado em antagonismo necessidade de se prover a todos direitos mnimos ao desenvolvimento da personalidade humana. Assume, porm, a premissa de que tal provimento s possvel atravs do respeito absoluto liberdade, inclusive e principalmente, liberdade econmica livre iniciativa. Nada obstante, a histria comprovou que no s o Estado tem o poder para atuar como agente opressor; outras tantas formas de organizaes sociais no-estatais podem desempenhar com a mesma eficincia esse papel, dentre estas esto as corporaes de capital. Os defensores incondicionais do Capitalismo rejeitam veementemente essa posio. Afirmam ser melhor promover nveis de prosperidade, mesmo desiguais, a se tolerar a igualdade na misria gerada por um sistema inclinado ao Socialismo. Nas palavras de Dworkin, Muitos economistas acreditam que reduzir a desigualdade econmica por meio da redistribuio prejudicial economia geral e, a longo prazo, fracassar por si s. Os programas de assistncia social, dizem eles, so inflacionrios, e o sistema tributrio
130 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 792-3. 105 necessrio para reduz o estmulo e, portanto, a produo. A economia, afirma-se, s pode ser reestimulada pela reduo de impostos e pela adoo de outros programas que, a curto prazo, iro gerar elevado desemprego e prejudicar especialmente os que j esto na posio mais baixa da economia. Mas esse prejuzo ser apenas temporrio, pois uma economia mais dinmica ir gerar prosperidade, o que, no fim, oferecer mais empregos e mais dinheiro para os deficientes e outros realmente necessitados 131 . Em contra tal posio Dworkin assevera essas contundentes palavras: embora isso seja muitas vezes sugerido na descuidada retrica da discusso dos benefcios sociais, , absurdo. muito improvvel que pessoas destinadas h muitos anos, sem receber nenhum novo treinamento eficaz, recobrem seus prejuzos mais tarde, particularmente se forem considerados os danos psicolgicos. Crianas que no tiveram alimentao adequada nem chances efetivas de uma educao superior sofrero prejuzo permanente, mesmo que a economia siga o caminho mais otimista de recuperao. Parte daqueles a quem so negados empregos e assistncia social agora, particularmente os idosos, no vivero o suficiente para compartilhar essa recuperao, por mais generalizada que ela venha a ser 132 . Como alternativa ao modelo capitalista-liberal, h quem propugne o Socialismo como o nico sistema de produo capaz de distribuir de forma justa a riqueza produzida pela sociedade. O Capitalismo, sob a justificativa de ser o melhor sistema econmico para gerao de riqueza, promoveria, em verdade, a concentrao da renda nas mos de poucos. Seria, sob essa tica, no apenas um modo de produo, mas um instrumento de dominao. Em verdade, os defensores de cada uma dessas ideologias (o Liberalismo Clssico, em que se esteia um Capitalismo imaturo, e o Socialismo) parecem acertar mais ao criticar a outra do que ao se defenderem contra suas prprias fragilidades. Seguramente, a Constituio Federal no adota o modelo socialista 133 , uma vez que o direito propriedade basilar. Nosso modelo, contudo, no de cunho liberal clssico. Em que ideologia, ento, se esteou a nossa Constituio? Numa ordem liberal- social de cunho intervencionista moderado.
131 DWORKIN, Ronald. Uma questo de princpio, p. 311-312. 132 Ibid, p. 312. 133 Como observa GRAU, O direito posto e o direito pressuposto, p. 55: no socialismo, o indivduo tem acesso produo j no mais mediante a entrega do seu trabalho, em sua expresso monetria, atravs do intercmbio, porm em razo do carter coletivo da produo e do trabalho. 106 4.9.4. O Estado interventor comedido Enquanto o iderio liberal apresenta como foco o indivduo, o social centraliza-se na coletividade. O primeiro composto por valores e ditames de simples formulao e compreenso, ao passo que o segundo exige maiores esforos de elaborao, pois no pode prescindir tambm do indivduo. At o mundo natural nos traz exemplo da complexidade da empreitada coletiva. Depois que a Terra se resfriou, foram quinhentos milhes de anos para surgirem as primeiras formas de vida, no caso, unicelular. Foi necessrio mais o dobro desse tempo (um bilho de anos) para se desenvolverem os primeiros seres pluricelulares. Ou seja, mesmo no mundo natural, mais fcil viver que conviver. O mesmo se passa na seara jurdica. O liberalismo focaliza o viver, ao passo que a ideologia social centraliza-se no conviver e, assim como o meio natural, estipular as formas de convivncia sobremaneira mais complexo e, portanto, sujeito a crticas e controvrsias, pois no h como conviver sem viver; no h como atender aos primados sociais, sem respeitar os pessoais; no h implemento coletivo, sem realizao individual. O equilbrio est na ao social para a obteno de objetivos individuais e mitigao com prudncia da esfera pessoal para cumprimento de aes coletivas. com esse condo que surge o Estado interventor. Num primeiro e prolongado perodo histrico, o Estado constitudo como uma grande organizao social, que interfere na rbita individual, mas em benefcio de poucos; num segundo e breve movimento de anttese, repudia-se a atuao do Estado. As aes particulares livres, sem a interveno estatal, seriam capazes de assegurar o mximo de satisfao para todos na medida de suas capacidades. Num terceiro, verifica-se que as aes individuais no coordenadas so auto-destrutivas. Nesse momento exige-se a ao do Estado, mas apenas na medida necessria para dotar-lhes de organicidade. esse o modelo ideolgico adotado pela Constituio Nacional. Por um lado, assegura a liberdade, inclusive a econmica; por outro, promove uma mitigao parcimoniosa desta mesma liberdade a fim de garantir a convivncia social mais equilibrada. Conforme assevera o constitucionalista Jos Afonso da Silva, As constituies contemporneas constituem documentos jurdicos de compromisso entre o liberalismo capitalista e o intervencionismo 134 (destaque original), o
134 SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 135. 107 que tambm foi observado por tributaristas nacionais de elevada envergadura, como o saudoso professor Ruy Barbosa Nogueira, Um dos fatos mais evidentes ocorridos na vida das naes, nesta metade do sculo, sem dvida a transformao das funes e deveres do Estado. Assistimos a uma crescente e constante interveno do poder pblico em quase todos os setores da atividade dos particulares, principalmente na esfera econmica [...] O Estado liberal do sculo passado, da premissa do laissez-faire, laissez-passer, foi substitudo pelo Estado intervencionista, o Estado providncia 135 .
4.9.5. As duas finalidades interventivas A prpria histria comprovou que o modelo liberal clssico no capaz de entregar a parcela significativa da populao, direitos mnimos para o desenvolvimento de uma vida condigna condio humana. Para suprir essa lacuna, implantado o Estado Social, da Justia ou do Bem-Estar. Para cumprir esse intento, necessrio que o Estado se municie de recursos, os quais esto em mos particulares. Nesse instante, mitiga a liberdade (o direito propriedade) e retira o que de um para entregar a outro. H, desse modo, uma finalidade interventiva de cunho social. Nada obstante, no a nica. O Liberalismo exacerbado no s incapaz de prover o grosso da populao de direitos mnimos indispensveis, mas tambm corri suas prprias bases, em especial, as econmicas capitalistas. Outrora, concebia-se que os agentes econmicos livres, submetidos s leis causais da oferta e procura, promoveriam da forma mais eficiente possvel a alocao de recursos e, com isso, produziriam mais e melhor em prol de todos. Hoje, contudo, foi constatado que o mercado totalmente desregulado incapaz de manter seus prprios pilares, isto , a liberdade caracterizada na seara econmica pela livre concorrncia. H, assim, a necessidade do Estado garantir o prprio modo de produo capitalista atravs, uma vez mais, de aes interventivas. Essa interveno de cunho econmico. Como observou Bobbio, nas sociedades industriais modernas, medida que o
135 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributrio, p. 184. 108 processo de industrializao avana, as tarefas do Estado aumentam em vez de diminuir 136 . A nossa Constituio adota esse modelo intervencionista de duplo espoco. Nela, est contido um enorme repertrio de normas dirigidas no s atuao do Estado para atender reclamos sociais, mas tambm para sustentar as prprias bases econmicas capitalistas. A seguir alguns exemplos:: Art. 3, inciso IV (promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao); art. 23, inciso VIII (fomentar a produo agropecuria e organizar o abastecimento alimentar), inciso IX (promover programas de construo de moradias e a melhoria das condies habitacionais e de saneamento bsico), X (combater as causas da pobreza e os fatores de marginalizao, promovendo a integrao social dos setores desfavorecidos); art. 32, VIII (promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupao do solo urbano); art. 43, 3 (a Unio incentivar a recuperao de terras ridas), art. 78 (O Presidente e o Vice-Presidente da Repblica ... prestando o compromisso de ...promover o bem geral do povo brasileiro); art. 151, inciso I ( vedado Unio ...instituir tributo que no seja uniforme em todo o territrio nacional ... admitida a concesso de incentivos fiscais destinados a promover o equilbrio do desenvolvimento scio-econmico entre as diferentes regies do Pas); art. 161, inciso II (Cabe lei complementar ... estabelecer normas sobre a entrega dos recursos de que trata o art. 159 ... objetivando promover o equilbrio scio-econmico entre Estados e entre Municpios); art. 172 (A lei disciplinar, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivar os reinvestimentos e regular a remessa de lucros), art. 174 (Como agente normativo e regulador da atividade econmica, o Estado exercer, na forma da lei, as funes de fiscalizao, incentivo e planejamento), art. 179 (A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios dispensaro s microempresas e s empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurdico diferenciado, visando a incentiv-las pela simplificao de suas obrigaes); art. 180 (A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios promovero e incentivaro o turismo como fator de desenvolvimento social e econmico); art. 192 (O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do Pas e a servir aos interesses da coletividade); art. 196 (A sade direito de todos e dever do Estado,
136 BOBBIO, Norberto. Da estrutura funo, p. 5. 109 garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao); art. 205 (A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade); art. 214, inciso V (A lei estabelecer o plano nacional de educao ... visando ... integrao das aes do Poder Pblico que conduzam ...promoo humanstica, cientfica e tecnolgica do Pas); .art. 215, 3, inciso II (A lei estabelecer o Plano Nacional de Cultura, ... visando ... integrao das aes do poder pblico que conduzem ...produo, promoo e difuso de bens culturais); art. 217 ( dever do Estado fomentar prticas desportivas formais e no-formais); art. 218 (O Estado promover e incentivar o desenvolvimento cientfico, a pesquisa e a capacitao tecnolgicas); art. 219 (O mercado interno integra o patrimnio nacional e ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e scio-econmico, o bem-estar da populao e a autonomia tecnolgica do Pas, nos termos de lei federal).
4.9.6. Liberdade, interveno e tributao No h dvidas acerca do compromisso constitucional com o amplo direito liberdade, inclusive a econmica. Por outro lado, essa liberdade comedidamente mitigada por meio de aes de interveno em prol da ideologia social e da prpria manuteno do modelo liberal-capitalista. Nesse passo, compete-nos indagar qual dessas propostas informa a seara tributria. evidente que o modelo constitucional est repleto de regras que visam proteger os agentes privados do poder estatal de criar tributos. O tributo macula a liberdade econmica concebida de forma absoluta. Numa concepo liberal extremada, no deveria haver tributo. O tributo prejudica a livre iniciativa, a liberdade concorrencial, desestimula a produo, etc. Uma vez que isso no possvel mesmo para os mais radicais defensores do modelo liberal-capitalista (a ausncia total de tributao s concebvel na ausncia total de Estado, ou seja, na formulao de cunho anarquista), no mais alto patamar da ordem jurdica devem estar consagradas regras garantidoras de que o Estado empregar o Poder de Tributar com extrema moderao. Como observa Alberto Xavier, num sistema econmico que tenha como princpios ordenadores a livre iniciativa, a concorrncia e a propriedade privada, torna-se indispensvel eliminar, no maior grau 110 possvel, todos os fatores que possam traduzir-se em incertezas econmicas suscetveis de prejudicar a expanso livre da empresa, designadamente a insegurana jurdica 137 . Se, por um lado, no possvel eliminar a tributao sobre as atividades econmicas, pois ao Estado so necessrios recursos para cumprir seus demais compromissos, em especial, com o modelo assistencial; por outro, so estatudas regras que limitam ao mximo a interveno do Estado por meio da sanha arrecadadora. Assim, o Regime Jurdico Tributrio, no patamar das regras constitucionais, seria constitudo por regras e princpios de cunho estritamente liberal, ao passo que os escopos intervenionistas seriam atendidos por meio das regras relativas ao gasto. Desse modo, os valores e ideologias relativos liberdade econmica, de um lado, e interveno, de outro, estariam segregados a momentos distintos da atividade financeira do Estado. Para dar compatibilidade e coerncia ordem constitucional como um todo, os primados da ordem econmica liberal influenciariam apenas a atividade relativa obteno de receitas e, assim, as regras tributrias, ao passo que os ditames sociais e regulatrios apenas induziriam a atividade relativa despesa. Os ditames liberal- econmicos conduziriam a um Sistema Constitucional Tributrio edificado com o nico fito de maximizar a produo capitalista, enquanto os valores sociais e os intervencionistas reguladores conduziriam as polticas ligadas ao gasto. A nossa Constituio, contudo, no estabelece corte to preciso. Da mesma forma como h preponderncia, mas no exclusividade, do compromisso interventor nas regras relativas ao gasto (parte do gasto pblico empregado para a manuteno de um aparato estatal capaz de reprimir as condutas individuais desviantes do modelo liberal), o Regime Jurdico Tributrio no deve ser concebido como um feixe de normas e princpios dirigidos exclusivamente a impedir que o Estado, atravs do seu poder de tributar, intervenha na liberdade de ao dos agentes privados. Como ensina Ricado Lobo Torres, as relaes entre a Constituio Econmica e a Tributria apresentam-se como ntimas e profundas. No h subordinao entre elas, pois a Constituio Tributria no se dilui na Econmica nem ocorre o contrrio. Esto em equilbrio permanente, influenciando-se mutuamente e relacionando-se em toda a extenso dos fenmenos econmico e tributrio 138 . E a seguir conclui: A interveno indireta do Estado sobre a economia, atravs de tributos ou outros ingressos, um assunto de rara complexidade. Ou seja, o
137 XAVIER, Alberto. Os princpios da legalidade e da tipicidade da tributao, p. 50. 138 TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas constitucionais tributrios, p. 630. 111 destacado professor identifica o papel que podem (e, freqentemente, devem) desempenhar as regras tributrias na regulao do prprio modelo capitalista com a finalidade de manuteno de suas bases, o que caracteriza a tributao como um fenmeno em nada singelo. Sua complexidade, contudo, ainda maior, pois as regras tributrias podem desempenhar a funo de dirigir comportamentos que diretamente atendam aos cnones da ordem social. O Estado Assistencial pode desempenhar seu intento por meio de dois tipos de polticas: (i) diretamente fazer e (ii) incentivar a fazer. Nesta, a funo extrafiscal da tributao pode tambm estar presente.
4.9.7. Produto e modo de produo No grande intento de compatibilizar o compromisso liberal com o social no que se refere seara econmica, as regras constitucionais podem ser segregadas dm funo da conhecida dicotomia processo-produto. O Liberalismo foi adotado como a poltica organizadora da ordem econmica, mas com maior intensidade em relao ao modo de produo em si. A Constituio impe ao legislador que prestigie o mercado, a sociedade civil e os agentes privados em relao deciso de quem deve produzir e por que processo. No entanto, no podemos afirmar o mesmo em relao ao que deve ser produzido; neste caso, a deciso pelos agentes econmicos sobremaneira mitigada. O Liberalismo Clssico peca ao atribuir ao mercado todo o mbito de deciso processo-produto. Numa situao hipottica, em que metade da populao fosse composta de ricos e outra metade de pauprrimos, o mercado produziria bens bsicos (alimentos e remdios, por exemplo) suficientes apenas para a parte favorecida; os demais meios sociais de produo seriam empregados para saciar as demais demandas daquela camada social abastada. Em razo da conhecida Teoria dos rendimentos decrescentes de produo, numa sociedade em que todos os recursos sociais empregados para a produo apenas de alimentos por exemplo, feijo , os meios desviados para produzir um canho reduziro pouco a produo de feijo. Todavia, para cada canho produzido maior seria a reduo da produo de feijo. Se para fabricar o primeiro canho fossem sacrificadas dez sacas de feijo, para fabricar o segundo seriam sacrificadas quinze; para o terceiro, vinte; e assim 112 por diante. Numa posio situao oposta, em que s fossem fabricados canhes, deixar de fabricar um para produzir feijo resultaria numa imensa quantidade desta leguminosa; j deixar de fabricar dois aumentaria bastante a produo de feijo, mas no na mesma quantidade anterior, e assim por diante. Assim, haveria um ponto ideal em que os meios sociais de produo seriam mais bem empregados com uma produo mxima intermediria entre canhes e feijes. Haveria, assim, para cada sociedade, um ponto em que a produo total de utilidades atingiria seu cume; e s o modelo liberal permitiria atingi-lo. Todavia, essa formulao no responde seguinte indagao: como comparar canhes com feijes? Para um famlico, mas vale um quilo de feijo ou dois mil canhes? Como afirmar que uma sociedade que produz dez canhes e cem toneladas de feijo mais eficiente que uma produtora com os mesmos meios sociais de nove canhes e cento e dez toneladas de feijo ou de que outra produtora de onze canhes e noventa toneladas de feijo? Bens que atendem a necessidades diversas s podem ser comparados quando reduzidos a uma mesma unidade de medida, isto , moeda. A comparao entre canho e feijo s possvel, nesse modelo, quando lhes so atribudos preos. Sem a reduo monetria de tudo, no h como estabelecer o suposto ponto de produtividade mxima. Mas como so estabelecidos os preos? No modelo liberal, pelo mercado. O mercado, por seu turno, composto pelos interesses individuais que formam as foras da demanda e da oferta, as quais definem pelo equilbrio o preo de cada bem. Todavia, no s a oferta, mas tambm a demanda formada por aqueles que detm o poder econmico. Ento, a sociedade produz aquilo e na quantidade desejada por quem tiver dinheiro para pagar, o que no significa maior eficincia produtiva em relao a uma outra organizao produtiva. Num exemplo atual, adotando-se o Planeta como um nico mercado, o insumo milho desviado para a produo de combustvel em detrimento da produo de alimentos (to necessrios a bilhes de famintos), por meio da forte demanda Americana por energia. Os americanos, uma vez saciados do ponto de vista alimentar, impulsionam o preo do milho para empreg-lo em outras necessidades menos essenciais. No modelo liberal clssico, a deciso do que e quanto produzir fundamentalmente tomada em razo da demanda, que no sinnimo de necessidade 113 social. A demanda dimensionada na proporo do poder econmico de quem quer consumir e no na medida da efetiva necessidade do bem para a sobrevivncia digna do homem. Evidentemente, podemos afirmar que esse modelo de produo fere os ditames democrticos de forma similar ao voto censitrio. Por outro lado, a viso liberal a mais eficiente em relao ao modo de produzir e quem deve produzir. Nisso pecou a doutrina marxista. Deixar nas mos do Estado quem deve produzir, de que modo, leva ineficincia produtiva sem ganhos no processo decisrio a favor da sociedade.
4.10. DE VOLTA A FINALIDADE E FUNO Agora, j estamos em condies de discorrer acerca da finalidade do modelo jurdico brasileiro e quais funes deve exercer para que possa efetivamente atingir o seu escopo. No modelo liberal clssico, a finalidade do Estado e, portanto, da ordem jurdica, era apenas a de garantir a paz entre os agentes privados de forma a tutelar, contra condutas desviantes, a realizao mxima de sua liberdade. Para atingir esse fito, exercia a funo protetiva-repressora. Protegia a liberdade dos indivduos ao punir aqueles que atentassem contra essa mesma liberdade. Nos estados modernos, dentre os quais se insere o Brasileiro, ao lado dessa finalidade (que no deixa de estar firmemente presente), surgem outras de cunho interventivo, tanto para regular a atividade econmica, quanto para implementar polticas de cunho social. Assim, alm da funo repressora surge a promocional como constatado por Bobbio, Nas constituies liberais clssicas, a principal funo do Estado parece ser a de tutelar (ou garantir). Nas constituies ps-liberais, ao lado da funo de tutela ou garantia, aparece, cada vez com maior freqncia, a funo de promover 139 .
4.10.1. Funo extrafiscal e disfuno fiscal Ao darmos uma ordem a um filho para que v ao seu quarto e faa a lio de casa, pretendemos (temos a finalidade), atravs deste ato de fala, que ele assim se comporte, com isso, tenha um melhor desempenho escolar, etc. Por outro lado, a ordem
139 BOBBIO, Norberto. Da estrutura funo, p. 13. 114 cumpre a funo de lev-lo a se comportar conforme o nosso intento. Finalidade e funo, repisamos, so aspectos interligados do mesmo ato comunicacional; um relativo ao emissor, outro ao receptor. Nada obstante, outros resultados poderiam advir do nosso ato de fala. Conforme a seleo dos vocbulos ou o tom de voz empregado, nosso filho poderia ficar magoado, com isso, no se concentrar nos estudos, etc. Esses resultados no pretendidos pelo emissor caracterizam, no uma funo da comunicao, mas uma disfuno. Essa mesma dicotomia apresenta-se no ato comunicacional do direito. A imposio de uma regra pode levar a vrios resultados; uns juridicamente pretendidos, outros no. Na imposio tributria o mesmo pode ocorrer: o tributo conduzir a determinados resultados pretendidos e a outros no pretendidos. Sob esse ponto de vista, precisas so as palavras de Geraldo Ataliba, No possvel engendrar um imposto cuja aplicao no altere ou modifique, de algum modo, a situao econmica geral e a individual dos envolvidos direta ou indiretamente nos fatos imponveis. Do recolhimento de imposto sempre resultam modificaes nas posies relativas dos atingidos. A neutralidade dos impostos foi postulao terica que a realidade jamais confirmou: seja a neutralidade dos sistemas, seja a de impostos isoladamente considerados (destaque original) 140 . Desse modo, toda imposio tributria induz comportamentos inter-humanos, o que no legitima dizer que, em toda e qualquer ocorrncia, h o desempenho de funo extrafiscal pela norma tributria. Esta estar presente apenas no caso de ser a contrapartida de uma finalidade jurdica extrafiscal. Desse modo, podemos segregar os efeitos indutores das regras tributrias em dois tipos: (i) concretizadores de uma funo extrafiscal, no caso da norma ter sido enunciada com uma finalidade; e (ii) os resultantes de uma disfuno fiscal, na hiptese contrria, vale dizer, de no haver uma finalidade jurdica que legitime o efeito produzido. Os tributos cumulativos, por exemplo, desestimulam a organizao dos agentes econmicos em longas cadeias produtivas, bem como a produo de bens de alto valor agregado que necessariamente exigem a organizao produtiva em extensas cadeias. A tributao que adota como base de incidncia a folha de salrios privilegia mtodos produtivos intensivos em capital em detrimento dos intensivos em trabalho. Evidentemente, luz de todo o sistema constitucional, que prestigia o desenvolvimento
140 ATALIBA, Geraldo. IPTU progressividade, p. 75. 115 econmico e a busca do pleno emprego, nenhum desses efeitos pode ser considerado advindo de uma funo desempenhada pela regra tributria. Em verdade, nesses casos, a Constituio, em prestgio necessidade de arrecadao do Estado, admite um certo grau de disfuno, como o pai que, para levar o filho aos estudos, assume o risco de ele se magoar com sua ordem. Desse modo, a disfuno em razo da finalidade fiscal no conduz necessariamente invalidade da norma. A imunidade dos templos de qualquer culto, por exemplo, est edificada originariamente na Carta Constitucional de 1988. Sua funo a de preservar todas as manifestaes religiosas de qualquer pretenso estatal de inibi-las por meio de imposies tributrias. Nada obstante, essa imunidade pode conduzir a disfunes, como o domnio dos meios de comunicao por igrejas, que se favorecem da estrutura jurdica para concorrer deslealmente com os agentes submetidos a toda ordem de imposies tributrias. Nem por isso, poderamos afirmar que a prpria imunidade inconstitucional.
116 CAPTULO V. ANLISE SEMNTICA Recobremos a lembrana de que as expresses lingsticas conservam sempre um mnimo de vaguidade em sua integralidade compositiva, inafastvel por maior que seja o esforo de argumentao para efeito de convencimento. No h como escapar dessa poro movedia que se aloja nos termos e nos enunciados proposicionais, alimentando, incessantemente, os estudos semnticos. Admitir esse trao, porm, longe de trazer a insegurana que desde logo imaginamos, significa reconhecer que h uma matria-prima prpria para o discurso persuasivo, tecendo a linguagem jurdica que antecede a deciso normativa.
Paulo de Barros Carvalho; Direito tributrio, linguagem e mtodo, pg. 216.
5.1. A SEMNTICA Para Alf Ross, os problemas semnticos da interpretao, em sentido estrito, so aqueles que se referem ao significado das palavras individuais ou das frases 141 . Preferimos, contudo, a definio do prprio elaborador dos trs planos de investigao, para quem a Semntica ramo da semitica que estuda a significao dos signos 142 . As questes de mbito semntico no se restringem significao de meras palavras ou simples frases, mas a todo e qualquer texto, independentemente da sua extenso e complexidade. A soma dos significantes de cada frase resulta no significante do texto. Quem consegue ler todos as frases de um texto, evidentemente, tambm l o prprio texto. Nada obstante, o mesmo no ocorre no vrtice do significado. Aquele que consegue interpretar cada frase, no conseguir necessariamente edificar o significado global. O significado de um texto depende do significado de suas partes, mas no corresponde a uma mera justaposio. De igual sorte, o significado das partes (palavras e frases) sofre influncia do prprio texto no qual esto inseridas. H, assim, em todo texto, uma relao dialtica de significao parte-todo; e h vrias propostas para solucionar essa questo.
141 ROSS, Alf. Direito e Justia, p. 164. 142 Apud NTH, A semitica no Sculo XX, p. 189. 117 Para o estruturalismo de Saussure, o significado de uma palavra no pode ser um atributo da prpria palavra. Conforme lio de Nth, o significado o valor de um conceito dentro do sistema semitico como um todo. Estes valores semnticos formam uma rede de relaes estruturais, nas quais no os conceitos semnticos em si, mas somente as diferenas ou oposies entre eles so relevantes semioticamente 143 . Com isso Saussure descarta o objeto, uma vez que o significado do signo no mais depende dele, mas apenas das relaes com outros signos com os quais constitui todo um sistema. Apesar de valiosa a posio estruturalista ao destacar que o significado depende das relaes entre os diversos elementos de um texto, com ela no podemos concordar integralmente, pois h necessariamente algo em cada palavra que lhe possibilita formar frases e no se confunde com o seu significado nem com sua relao com a frase. No belo trecho de Octavio Paz, Perder nosso nome como perder nossa sombra; ser somente nosso nome ser reduzido sombra. A ausncia de qualquer correlao entre coisas e seus nomes sem dvida intolervel: tanto os significados se evaporam, quanto as coisas se esvaecem. Um mundo apenas de significados to inspito quanto um mundo de coisas sem significado sem nomes 144 (traduo livre).
5.1.1 A coerncia como critrio de significao Um outro critrio para a edificao do significado de um texto e de suas partes a coerncia interna. Eco, valendo-se das prprias lies de Santo Agostinho, em De doctrina christiana, afirma ...qualquer interpretao feita de uma certa parte de um texto poder ser aceita se for confirmada por outra parte do mesmo texto, e dever ser rejeitada se a contradizer. Nesse sentido, a coerncia interna do texto domina os impulsos do leitor, de outro modo incontrolveis 145 .
Por esse critrio, combinaes incoerentes so descartadas e permanecem as coerentes. Por exemplo, a palavra manga tem o significado de uma espcie de fruta, mas tambm de uma parte da camisa. Assim, se dissermos manga doce certamente
143 NTH, Winfried. A semitica no Sculo XX, p. 33. 144 PAZ, Octavio. Translation: Literature and Letters, p. 157: To lose our name is like losing our shadow; to be only our name is to be reduced to a shadow. The absence of any correlation between things and their names is doubly intolerable; either the meanings evaporate or the things vanish. A world of pure meanings is as inhospitable as a world of things without meaning without names. 145 ECO, Umberto. Interpretao e superinterpretao, p. 76. 118 referimo-nos fruta, uma vez no ser coerente que uma pea da vestimenta tenha a qualidade doce. Por outro lado, na expresso manga rosa, o processo combinatrio no afasta qualquer das hipteses de significado. Pode se tratar de fruta rosa ou da pea de vesturio rosa. H, na situao, uma ambigidade s solucionvel pela combinao de novos trechos do texto. Apesar de relevante por se constituir um critrio necessrio para a edificao de significados, a coerncia no suficiente seno para pequenos conjuntos de palavras, como no exemplo anterior. De um texto, podem ser edificados um sem nmero de significados coerentes e, nem por isso, podemos afirmar que todos apresentam o mesmo status.
5.1.2. O modelo gerativo Para Greimas, a Semitica no uma Teoria do Signo, mas sim da significao que depende de uma investigao em patamares textuais superiores e inferiores ao prprio signo. Evidentemente, o conceito do lingista lituano no por ns compartilhado. Nada obstante, sua contribuio para a compreenso do sentido de textos complexos fundamental: a construo de sentido mediante um processo de elaborao de umidades maiores de significao a partir de unidades menores, chamada percurso gerativo de sentido. Paulo de Barros Carvalho desenvolveu modelo equivalente para a interpretao jurdica. Seus quatro subsistemas conjunto de enunciados, tomados no plano da expresso, conjunto de contedos de significao dos enunciados prescritivos, domnio articulado de significaes normativas e forma superior do sistema normativo 146 , correspondem a camadas de significao construdas sobre unidades menores num processo de interpretao tal qual o percurso gerativo de Greimas. Nas palavras do destacado Professor: Observa-se a existncia dos quatro planos da linguagem, representados por S1, S2, S3 e S4, partindo a interpretao do plano da literalidade textual (S1), que compe o texto em sentido estrito (TE), passando, mediante o processo gerador de sentido, para o plano do contedo dos enunciados prescritivos (S2), at atingir a plena compreenso
146 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio, p. 111. 119 das formaes normativas (S3), e a forma superior do sistema normativo (S4), cujo conjunto integra o texto em sentido amplo (TA) 147 . relevante se destacar que o TE (texto em sentido estrito) corresponde ao significante, o qual idntico para todos os patamares de significao como j havamos apontado anteriormente.
5.1.3. O modelo dialtico J havamos anteriormente afirmado que sistemas complexos so determinados por suas unidades constitutivas, mas tambm as determinam. As partes agem sobre o todo, mas o todo tambm age sobre as partes. tomos de hidrognio foram estrelas e estrelas os fundem para formao de hlio. O processo de formao de sentido caracteriza-se como um passo dentro de uma cadeia infinita de semiose. Ainda que se mantenha inalterado o plano S1 (no h edio de novos diplomas normativos), os planos S2, S3 e S4 no permanecem imutveis. O S4, constitudo a partir do S2 e S3 iniciais, determina a formao de novos S2 e S3, os quais constituiro um prximo S4 e assim numa sucesso ininterrupta de construo de significados. a odissia interpretativa do ordenamento ao sistema, mas sem uma Ilha de taca.
5.2. SEMNTICA E INTERTEXTUALIDADE Para haver texto, necessariamente deve haver contexto. obrigatrio o processo de significao extrapolar as fronteiras do texto para encontrar o que no o texto; com o texto, porm, jamais perde contato. Deve ser sempre mantida uma linha de Ariadne. No basta matar o Minotauro, h que regressar do labirinto; mas, assim como Perseu no deixa as obras mitolgicas para ingressar na Histria, o intrprete jamais penetrar em pginas diversas de seu tempo. Como afirma Paulo de Barros Carvalho: Esse processo interpretativo encontra limites nos horizontes da nossa cultura (H1 e H2), pois fora dessas fronteiras no possvel a compreenso. Na viso hermenutica adotada, a interpretao exige uma pr-compreenso que a antecede e a torna possvel 148 .
147 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio, p. 133. 148 Ibid. 120 O mesmo autor aponta dois axiomas relativos a todo processo de interpretao: a intertextualidade e a inesgotabilidade. Este corresponde ao ininterrupto e infinito processo de semiose de Peirce em direo ao interpretante final. J a intertextualidade formada pelo intenso dilogo que os textos mantm entre si, sejam eles passados, presentes ou futuros, pouco importando as relaes de dependncia estabelecidas entre eles. Assim que inseridos no sistema, iniciam a conversao com outros contedos, intra-sistmicos e extra-sistmicos, num denso intercmbio de comunicaes 149 . Podemos falar acerca do contexto em que foi escrita uma obra literria sem t- lo vivido. A intertextualidade, assim, configura o contexto sob o aspecto semntico. Como explanado no primeiro captulo, o contexto pragmtico pode ser vertido tambm em texto. Mas que importncia tem o contexto para a interpretao do direito positivo? Que relao h entre o sentido de palavras empregadas em um especfico diploma normativo e outros textos? Paulo de Barros Carvalho ao estudar a intertextualidade no direito afirma que tal predicado se apresenta em dois nveis bem caractersticos: (i) o estritamente jurdico, que se estabelece entre os vrios ramos do ordenamento (intertextualidade, interna ou intrajurdica); e (ii) o chamado jurdico em acepo lata, abrangendo todos os setores que tm o direito como objeto, mas o consideram sob ngulo externo, vale dizer, em relao com outras propostas cognoscentes, assim como a Sociologia do Direito, a Histria do Direito, a Antropologia Cultural do Direito, etc 150 . Nosso conceito de intertextualidade intra-sistmica do direito corresponde ao primeiro nvel apresentado pelo destacado Professor. Todavia, entendemos que o direito se comunica com um sem nmero de textos e no s com aqueles de patamar cientfico que recortam seu objeto de estudo do fenmeno jurdico. Se h comunicao com a Sociologia e com a Histria do Direito, por que no haveria tambm relaes contextuais com outros campos da Sociologia e da Histria? Se h comunicao com essas cincias, no haveria com outras, tais como a Engenharia, a Medicina, a Economia, etc? Mais: seria tal comunicao restrita aos domnios cientficos? E quanto Religio, Moral, etc?
149 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 193. 150 Ibid., p. 195. 121 Nessas hipteses, freqentemente os liames se tornam mais tnues, mas no h como lhes negar existncia. Podemos ainda constatar que setores especficos do conhecimento jurdico se aproximam bastante de certos nichos lingsticos, os quais, numa viso meramente panormica da ordem jurdica, no guardariam vizinhana alguma do direito; tais como a Biologia que, por intermdio da Ecologia seu ramo especializado , estabelece robustos laos intertextuais com o Direito Ambiental. No entanto, para no nos perdermos num certo niilismo de, ao tentar entender tudo, nada compreender, dois aspectos devem ser considerados. Primeiro, apesar de haver seguramente conexes entre as mais diversas searas lingsticas de uma sociedade, a sua grande maioria, de to tnues, tornam-se irrelevantes para o processo de interpretao do direito. H de se estabelecer um preciso corte para se demarcar as relaes que merecem ateno. E segundo, ao considerarmos a relao entre duas esferas lingsticas, no devemos tomar uma pela outra. Considerar a relao da Moral com o Direito, no implica tomar a Moral pelo Direito.
5.2.1. A intertextualidade intra-sistmica A intertextualidade intra-sistmica nos conduz a indagar quais fatores so relevantes para um texto normativo influir na significao de outro. A hierarquia de seus enunciadores? O sentido da palavra no texto constitucional determina o sentido no texto da lei? Mas e o contrrio? O aspecto temporal da enunciao relevante? O sentido da palavra no texto constitucional pode ser edificado a partir do sentido constante de uma lei anterior? Acreditamos no haver uma regra ou critrio absoluto que possa ser adotado de forma mecanicista para definir as relaes intertextuais entre os diversos diplomas normativos. Alis, palavras contidas num mesmo diploma podem apresentar significaes diversas, apesar de possurem idnticas coordenadas temporais e hierrquicas. Um exemplo contundente o da palavra lei. No artigo 5, inciso II, da Constituio, ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei, bem como no art. 150, inciso I, que veda s Pessoas Polticas exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabelea, dvidas no h de que lei deve ser adotada segundo a 122 significao de lei ordinria e lei complementar151. J no inciso XIII, art. 5 ( livre o exerccio de qualquer trabalho, ofcio ou profisso, atendidas as qualificaes profissionais que a lei estabelecer), o significado de lei ordinria, ao passo que no pargrafo 4, art. 195 (A lei poder instituir outras fontes destinadas a garantir a manuteno ou expanso da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I), seu significado de lei complementar, uma vez que deve ser interpretada luz justamente do contexto definido pelo art. 154, inciso I (A Unio poder instituir: I - mediante lei complementar...). Se uma mesma palavra, num mesmo diploma, apresenta trs significaes diversas, o que dizer daquelas presentes em diplomas diversos? O significado de uma palavra em um diploma legal deve ser edificado a partir da significao da mesma palavra no patamar constitucional em razo do critrio hierrquico, mas os dois significados no so idnticos. Renda no texto supremo apresenta significao diversa de renda no texto da lei complementar e esses dois no diferentes de renda no plano da lei ordinria, que cria o imposto. H, desse modo, pelo menos trs significados de renda no direito positivo. A criao normativa se d justamente por meio dessa modificao do significado no curso da cadeia de positivao, o que ser mais minuciosamente abordado ainda neste captulo. Ademais, o significado da Constituio, de suas palavras e dispositivos, no pode ser construdo apenas com base na leitura do Texto Supremo. Do contrrio, tanto um recm alfabetizado e um doutor em Direito Constitucional teriam a mesma compreenso.
5.2.2. A intertextualidade intersistmica H duas intertextualidades intersistmicas: (i) aquela que se d entre as vrias searas estritas do saber e (ii) a que alcana todos os campos lingsticos do domnio social. primeira, podemos chamar de intertextualidade intersistmica em sentido estrito ou interdisciplinaridade; segunda, de intertextualidade em sentido amplo. Em relao primeira, observa Paulo de Barros Carvalho, Sem disciplinas, claro, no teremos as interdisciplinas, mas o prprio saber disciplinar, em funo do princpio da intertextualidade, avana na direo dos outros
151 Em verdade, no so poucos os que defendem que tambm pode ser adotada com o significado de medidas provisrias, dentre outros diplomas. No entanto, como isso no de todo pacfico e no contribui para a nossa exemplificao, decidimos adotar o ncleo de significao incontroverso. 123 setores do conhecimento, buscando a indispensvel complementaridade. O paradoxo inevitvel: o disciplinar leva ao interdisciplinar e este ltimo faz retornar ao primeiro 152 . sob o aspecto semntico que o direito se comunica com os demais setores da tecitura social: as finanas pblicas, a economia, a contabilidade, etc. O direito positivo fala (no sentido de prescrever) sobre outras linguagens sociais. Assim, no h como conhecer na plenitude um determinado ramo jurdico sem que se domine com desenvoltura as linguagens sobre as quais ele pretende intervir. Isso no significa que os princpios das Cincias no jurdicas devam ser acatados pela Cincia Jurdica, mas sim que a construo de sentido da linguagem prescritiva que incide sobre uma determinada seara de convivncia humana no completa sem o conhecimento da linguagem social sobre a qual ela se refere. Na funo extrafiscal, muitos so os sub-domnios lingsticos sobre o qual o Direito Tributrio fala: o mercado financeiro, o comrcio exterior, o meio ambiente, etc. Por isso, tal investigao das mais complexas. Um dos sub-domnios mais relevantes para o estudo da extrafiscalidade o da eEconomia. Por meio do direito positivo, o legislador busca promover polticas econmicas, seja para fomentar o desenvolvimento nacional, seja para promover aes de relevncia social. Assim, sem compreender corretamente os mecanismos econmicos, o intrprete no ser suficientemente hbil para aplicar a norma. Sua interpretao ser superficial. Um exemplo: Vamos supor que uma portaria do Ministrio da Sade institua a obrigao de, nossos rtulos de produtos perecveis, serem grafadas a data de fabricao e a validade. Ademais, fixe para cada tipo de produto o seu respectivo prazo de validade (dez dias para uns, vinte dias para outros e, assim, sucessivamente). Ora, evidente que tais prazos esto estabelecidos em dias contnuos e no teis. do senso comum que os produtos continuam a se degradar independentemente de o dia ser til ou no. No necessrio um conhecimento cientfico mais rebuscado para isso. Assim, qualquer pessoa estaria apta a compreender que o significado de dias dias contnuos. O direito, contudo, no disciplina apenas fatos sociais de compreenso generalizada. Seu alcance no encontra limites e fere, no raro, searas das mais
152 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, pg. 197. 124 particulares. Pois bem, h um sem nmero de proposies que, a despeito de no serem do domnio da populao em geral, so consagradas nos seus ramos cientficos especficos; e so empregadas pelo legislador para formular os textos legais. Dessa forma, necessrio que o intrprete delas conhea, sob pena de interpretar incorretamente o direito positivo. O intrprete deve possuir, no mnimo, a mesma competncia lingstica (o cdigo como enciclopdia) do enunciatrio-modelo. Isso no significa que deva promover mtodos de aproximao da linguagem prescritiva prprios de outros domnios do conhecimento humano. Ao abordar o problema da autonomia do Direito Financeiro, Ricardo Lobo Torres afirma que a tese mais coerente a da interdisciplinariedade, em que a Cincia do Direito Financeiro aparece em permanente dilogo com as outras disciplinas jurdicas e extrajurdicas, merc do coeficiente de normatividade que a todas informa: tanto o Direito Financeiro quanto as cincias prximas (Economia, Finanas e Poltica) apresentam um ncleo comum de normatividade, ou seja, contm elementos para a programao da vida social e para o estabelecimento de regras do dever-ser, o que se traduz em interdisciplinariedade 153 . Em razo disso afirma que A Cincia do Direito Financeiro pluralista. Abre-se para o pluralismo metodolgico, apoiando-se em vrios mtodos 154 ; e mais, ...o direito tributrio deve se abrir tambm para as cincias extrajudiciais, especialmente, a Economia e as Finanas 155 . H nessa posio uma confuso entre abertura semntica e definio de mtodo cientfico. Como afirma Paulo de Barros Carvalho em suas lies presenciais: para cada Cincia um e somente um mtodo. O Estudo do Direito o Estudo da sua linguagem. Este o nosso paradigma metodolgico.
5.3. LIMITES DA POTENCIALIDADE SEMNTICA DO DIREITO A lngua sempre capaz de exprimir o que desejar o enunciador? Sobre essa questo se debruaram filsofos e lingsticas da mais alta estatura.
153 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributrio, p. 14-15. 154 Ibid., p. 14. 155 Ibid., p. 19. 125 Para Searle, sim. E chama tal caracterstica da lngua chamado pelo Filsofo como princpio da expressabilidade, segundo o qual tudo o que se quer dizer pode ser dito 156 . Para Searle, ...muitas vezes, ns no temos capacidade para dizer exatamente o que queremos, ainda que ns gostssemos de faz-lo, porque no conhecemos suficientemente bem a lngua (se ns estivssemos a falar espanhol, por exemplo), ou, pior, porque a lngua pode no conter palavras ou construes para dizer o que queremos dizer. Mas, mesmo nestes casos em que , de facto impossvel dizer exactamente o que queremos dizer, possvel, em princpio, tornarmo-nos aptos a dizer exactamente o que queremos. Podemos em princpio, se no de facto, aumentar o nosso conhecimento da lngua; mais radicalmente ainda, se a lngua ou as lnguas existentes no forem adequadas para as nossas finalidades, ou simplesmente no dispuserem dos meios que nos no necessrios para dizer o que queremos dizer, podemos, ao menos em princpio, enriquecer esta lngua introduzindo-lhe novos termos ou novas construes. Toda lngua nos fornece um conjunto finito de palavras para dizermos o que queremos dizer. Mas se uma dada lngua ou mesmo toda lngua, qualquer que ela seja, ope ao exprimvel um limite superior, se h pensamentos que ela no pode expressar, isto um fato contingente e no uma verdade necessria 157 . J Umberto Eco ocupa a posio oposta, segundo a qual no verdade que toda a linguagem possa exprimir tudo 158 e, valendo-se de um exemplo de Quine, afirma que numa lngua da selva no se pode traduzir a assero neutrinos lack mass. Diante dessa questo geral, devemos especific-la: a linguagem do discurso do direito positivo apta a prescrever tudo que assim desejar o legislador? Sim, independentemente de adotarmos a posio de Searle ou de Eco. O direito positivo sempre se dirige a searas sociais j imersas em um universo lingstico. Dessarte, pode lanar mo dos prprios termos inditos para o produto legislado, mas pertencente lngua. Se o legislador, por exemplo, pretende regular a internet, poder se valer de palavras como web ou site.
5.4. AS SUPOSTAS FALHAS SEMNTICAS O sentido preciso de uma palavra, de uma expresso, de uma frase e at mesmo de todo um texto, pode ser comprometido por fenmenos conhecidos como vaguidade e ambigidade.
156 SEARLE, John R. Os actos de fala, p. 30. 157 Ibid., p. 30-31. 158 ECO, Umberto. Dizer quase a mesma coisa: sobre a traduo, p. 166. 126 Searly e Warat distinguem imprecises (vaguidade) de ambigidade. Consideramos, porm, na esteira das lies de Alaor, que um conceito impreciso por duas razes: vaguidade e ambigidade. O direito como um corpo de linguagem no escapa manifestao desses fenmenos. Como j afirmou Grau, se torna indispensvel conscincia, tambm, de que o direito porta em si a ambigidade 159 . Apesar de ambas se caracterizarem como problemas semnticos que comprometem a identificao precisa de sentido, apresentam naturezas diversas. A ambigidade est relacionada a um problema designativo, isto , h dvida acerca de qual conjunto de objetos o signo se refere. Na ambigidade, h mais de um conjunto de propriedades designativas aplicvel. Por exemplo, no comando: filho v l em casa e pegue uma manga, haver ambigidade e o receptor ficar numa condio de indecidibilidade, no caso de quem ordenar ser uma costureira e tambm haver frutas na geladeira. Nessa hiptese, no h no texto, nem no contexto, elementos que possibilitem ao receptor determinar o conjunto de propriedades designativas adotado pelo emissor.
5.4.1. Ambigidade: fenmeno no-intencional Eco 160 , ao estudar a interpretao de obras literrias com o fito de traduzi-las, afirma que pode haver quatro tipos de ambigidade. A primeira se d quando uma palavra empregada apresenta dois significados diversos, mas luz do contexto, s um dos sentidos se legitima. A segunda ocorre quando o autor efetivamente cometeu um equvoco. A terceira uma espcie de nuana da primeira. H o equvoco do autor, mas seu erro, ao revs de comprometer a esttica da obra, a enriquece. Por fim, a quarta diz respeito ao caso de o autor querer permanecer ambguo. No direito, h apenas o primeiro e segundo tipos. Na verdade, o primeiro tipo de falsa ou aparente ambigidade, uma vez que o contexto permite a elucidao do significado do termo. O terceiro tipo no ocorre, por uma questo de premissa. Em
159 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, p. 113. 160 ECO, Umberto. Dizer quase a mesma coisa: sobre a traduo, p. 114-115. 127 nenhuma hiptese, a ambigidade cumpre ou potencializa a funo pragmtica do texto normativo de dirigir as condutas intersubjetivas; em outras palavras, o texto normativo no deve ser ambguo. A quarta, apesar de possvel do ponto de vista da produo do direito, uma vez que nada capaz de impedir que o legislador produza um texto normativo intencionalmente ambguo, no penetra o jurdico. O intrprete no deve perquirir acerca dessa inteno, justamente pela premissa de que o direito positivo no deve ser permeado por ambigidades. Se o legislador quis ser ambguo, esse querer permanece subjetivo e perece nas coordenadas espao-temporais do processo legislado sem penetrar no produto legislado. Essa ambigidade deve sempre ser considerada, do ponto de vista jurdico, como do tipo dois, isto , resultado de um equvoco; e s pode ser saneada por meio de um corte de deciso; vale dizer, diante de mais de uma possibilidade interpretativa, o aplicador legitimado pelo prprio ordenamento, decide qual aplicar. Por outro lado, a Doutrina deve apresentar as possibilidades legtimas de interpretao. No compete nesse caso ao jurista decidir do ponto de vista interno ao sistema, isto , como se aplicador fosse. A ambigidade em outras searas lingsticas, especialmente, na literatura pode ser concebida como recurso estilstico, como manifestao intencional do autor. No direito positivo, contudo, tal idia no pode ser concebida. Trata-se essencialmente de falha legislativa cuja eventual intencionalidade pr-jurdica deve ser desprezada e no como tcnica de produo legiferante.
5.4.2. Vaguidade como fenmeno intencional O mesmo, contudo, no podemos afirmar em relao vaguidade, a qual est relacionada a um problema denotativo, isto , dvida acerca dos limites do conjunto a que se refere o conceito. H vaguidade sempre que no houver certeza sobre a aplicao de um conceito a um determinado caso. Se partirmos ao meio uma nota de R$ 10,00 e tentamos com uma das metades promover sua circulao, certamente ningum a receberia como uma cdula monetria. No entanto, se recortamos um pequenino pedao de uma de suas pontas, ou uma fina tira de um dos seus lados, dificilmente algum deixar de receb-la como moeda. Alis, se retiramos, numa dessas mutilaes, 0,1 % de sua substncia, ela no recebida como algo que represente o valor de R$ 9,99; ou so R$ 10,00 ou no nada. Ao prosseguir na experincia, retirando mais um diminuto pedao ou tira, mais uma vez continuamos a 128 circular a cdula. No entanto, se seguimos continuamente, atingiremos um ponto em que algum no mais a recebe, enquanto a maioria sim; e se prosseguirmos ainda mais, atingiremos um outro ponto no qual, em apenas uma de vrias tentativas, conseguiremos passar a nota; talvez com 90% ou at menos de 80% por cento da sua constituio original. Enfim, h uma gama de notas, mesmo desprovidas de sua absoluta integralidade, que so consideradas como tal por todos; h uma outra gama de notas, as quais, em razo do montante de sua mutilao, desconsiderada por todos como uma nota; e h ainda um espectro de cdulas consideradas por alguns como dinheiro; mas por outros, no. Em sntese, h uma rea de certeza positiva (todos afirmam se tratar de uma nota), uma rea de certeza negativa (todos afirmam no se tratar de uma nota), e uma terceira rea (alguns afirmam se tratar de uma nota e os outros no). nesta terceira rea que repousa a vaguidade do conceito da expresso nota de R$ 10,00. Retomando o exemplo anterior das mangas, se a costureira houvesse ordenado ao filho para trazer todas as mangas maduras, no haveria ambigidade. O menino certamente saberia que sua me referia-se a frutas e no a partes de uma vestimenta. Ao se deparar com a cesta de frutas na geladeira, certamente pegaria algumas delas por apresentarem uma tonalidade roscea vibrante e descartaria outras por serem de um verde cintilante; no entanto, teria dificuldades de atribuir ou deixar de atribuir a qualidade de madura quelas cuja tonalidade ficasse a meio caminho entre uma cor e outra. Haveria, nesse caso, indecidibilidade por vaguidade. Se a costureira mandasse um segundo, terceiro e quarto filho para a misso, seguramente todos trariam algumas das mangas, enquanto outras no; mas certas frutas seriam trazidas por s alguns dos filhos. Estas estariam no campo de vaguidade do conceito maduro. O sentido de maduro, no exemplo, conferido pela tonalidade da fruta. Mangas rosas so maduras; mandas verdes, no. Tal sentido apresenta vaguidade em relao aos frutos, cuja tonalidade medeia o verde para o rosa. Esse conceito pode se tornar mais preciso, se for estabelecido que sempre que houver dvida acerca da tonalidade do fruto, devem ser considerados maduros os macios. Nesse caso, muito provavelmente, ser menor o nmero de frutos trazidos por s alguns dos filhos. Alis, vale destacar que, se o conceito for corretamente aplicado, esse nmero no deve aumentar. Isso se d em razo de que o conceito se tornar mais preciso. Ainda assim, pode haver frutos com tonalidade intermediria entre o verde e o rosa, bem como densidade duvidosa entre o duro e o macio. Dessarte, por maiores os esforos elucidativos, o texto, seja ele qual for (exceto os formais 129 e os denotativos, a respeito dos quais trataremos posteriormente), sempre guardar um qu de vaguidade. Em verdade, todas as palavras so vagas em alguma medida. A vaguidade inerente linguagem. Ela pode ser reduzida, mas nunca eliminada por completo. Assim, o discurso jurdico no escapa a essas questes. A Constituio, por exemplo, estatui a imunidade dos livros. Pois bem, certamente um corpo de 600 (seiscentas) pginas unidas e concatenadas forma um livro. Na posio oposta, a reunio de apenas duas folhas no seria intitulada por ningum como um folheto, quanto mais como livro. Mas a partir de quantas pginas uma reunio de folhas passa a ser um livro? Trs, quatro, dez, vinte, quarenta, cem, ou duzentas? Um dos princpios basilares do direito tributrio, que consagra o direito individual propriedade privada, o do no-confisco. Nos impostos sobre o patrimnio, no h dvidas de que uma alquota anual de 50% (cinqenta por cento) o macula, enquanto uma de 0,1% no. No entanto, a partir de que patamar uma alquota passa a ser confiscatria? Provavelmente alguns diriam 2%; outros, 5%; e uns terceiros, 10%. No haver mais consenso. Essa a rea de vaguidade do conceito; aquela em que no mais possvel estabelecer consenso. Nessa rea, a soluo passa por um corte de deciso e no mais de interpretao. Assim como o menino dever decidir sobre quais frutas dever levar para a me, o aplicador (e o legislador infraconstitucional) dever decidir qual posio adotar acerca dos limites conceituais de livro e do no-confisco. Apesar disso, a vaguidade, ao contrrio da ambigidade, no pode ser vista exclusivamente como uma falha do legislador, ou como uma caracterstica inconveniente da linguagem; pelo contrrio, ela da essncia do prprio direito. O direito no apresenta vaguidade, porque tal caracterstica, assim como a ambigidade, no poderia ser de todo evitada. Ele vago geralmente porque assim deve ser. Kelsen tambm examinou esse problema da vaguidade ao se referir relativa indeterminao do ato de aplicao do direito 161 . Para esse autor, a vaguidade pode ser tanto no-intencional ...a indeterminao do ato jurdico pode tambm ser conseqncia no intencional da prpria constituio da norma jurdica que deve ser aplicada pelo ato em
161 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 388-390. 130 questo 162 , quanto intencional a indeterminao pode mesmo ser intencional, quer dizer, estar na inteno do rgo que estabeleceu a norma a aplicar 163 . Queremos, porm, deixar claro que a vaguidade intencional, numa ordem jurdica como a nossa, em que a funo de produo normativa est distribuda por vrios rgos, deve ser concebida como essencial a cada emanao legislativa e no s uma possibilidade. Se o enunciador do direito positivo fosse nico e, com isso, o poder jurdico estivesse concentrado em uma s fonte, seja ela um rgo uni ou pluripessoal, a vaguidade poderia ser concebida apenas como uma falha ou como uma caracterstica ingente, mas indesejvel, da linguagem, da qual apenas se poderia escapar. Se aquele que edita as normas gerais e abstratas tambm as executasse e aplicasse, no haveria razo para ser vago. Deveria, ao mximo, elaborar seu discurso da forma mais precisa possvel. No Estado Moderno, contudo, em que o Poder repartido em favor da prpria sociedade; onde h uma multiplicidade de fontes, mesmo hierarquicamente escalonadas, o texto normativo deve ser concebido como intencionalmente vago. Vale destacar que, assim como Kelsen 164 , preferimos a denominao repartio ou diviso de poderes separao. Em nosso Pas, constitudo juridicamente como um Estado Democrtico de Direito, o poder distribudo entre diversos rgos com o fito de evitar a sua concentrao e os desmandos seguramente decorrentes. Cada instncia estatal, contudo, no deve operar isoladamente, como poderia sugerir o termo separao. Se o texto normativo originrio (o qual pode ser denominado de constituio) fosse absolutamente preciso, se para cada situao concreta houvesse a certeza de como deveriam as partes se comportar em razo da interpretao de preceitos superiores, no haveria razo para serem estabelecidos os diversos Poderes. Legislativo para qu? Bastariam rgos de aplicao: o Executivo ou o Executivo mais o Judicirio.
162 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 389. 163 Ibid. 164 KELSEN, Hans. Jurisdio constitucional, p. 152: a expresso diviso dos poderes traduz melhor que a de separao, isto , a idia da repartio do poder entre diferentes rgos, no tanto para isol-los reciprocamente quanto para permitir um controle recproco de uns sobre os outros. E isso no apenas para impedir a concentrao de um poder excessivo nas mos de um s rgo como concentrao que seria perigosa para a democracia , mas tambm para garantir a regularidade do funcionamento dos diferentes rgos. 131 Segundo o prprio Kelsen, a diferena entre a funo legislativa e a jurisdicional corresponde em que esta estabelece as normas individuais, ao passo que aquela cria as normas gerais 165 . E quanto ao Executivo? Sob uma tica pura, lhe competiria os atos materiais de execuo. Nada obstante, o Executivo exerce com bastante intensidade ambas as funes legislativas e jurisdicionais. Na seara tributria, por exemplo, exerce atividade legislativa ao editar decretos, portarias, instrues, enfim, toda sorte de diplomas de carter conotativo, dotado de generalidade e abstrao; e exerce com profuso ainda maior atos jurisdicionais ao constituir autos de infrao, conceder e denegar toda sorte de relaes jurdicas; tais com as extintivas (compensaes, remisses, anistias, etc), as suspensivas (parcelamentos, moratrias, recebimento de recursos administrativos, etc), os benefcios fiscais (isenes, crditos presumidos, ressarcimentos, etc) e a repetio do indbito; isto , normas individuais e concretas de carter denotativo. Evidentemente, o Executivo no exerccio de tais funes (e tambm em relao tarefa de promover a execuo fsica) subordina-se ao Legislativo e ao Judicirio. Os atos normativos do executivo so sempre hierarquicamente inferiores aos diplomas normativos editados pelo Legislativo. De igual sorte, a deciso judicial sempre suplanta o lanamento, o indeferimento da restituio, a imposio de penalidade administrativa, etc. Isso, contudo, no significa que parcela do Poder no seja exercida pelo Executivo; pelo contrrio, como veremos na seqncia. As relaes hierrquicas entre fontes produtoras do discurso prescritivo jamais estabelecem uma determinao absoluta de contedo entre os diplomas normativos produzidos. Como afirma Kelsen, A relao entre um escalo superior e um escalo inferior da ordem jurdica, como a relao entre Constituio e lei, ou lei e sentena judicial, uma relao de determinao ou vinculao: a norma do escalo superior regula como j se mostrou o ato atravs do qual produzida a norma do escalo inferior [...]; ela determina no s o processo em que a norma inferior ou o ato de execuo so postos, mas tambm, eventualmente, o contedo da norma a estabelecer ou do ato de execuo a realizar. Esta determinao nunca , porm completa. A norma do escalo superior no pode vincular em todas as direes (sob todos os aspectos) o ato atravs do qual aplicada 166 .
165 KELSEN, Hans. Jurisdio constitucional, p. 151. 166 Id. Teoria Pura do Direito, p. 388. 132 Numa ordem onde h vrias fontes produtoras, absolutamente essencial que o texto que atribui poder seja vago. por meio da elucidao da vaguidade que as vrias fontes exercem o poder que lhe foi conferido. Para ficarmos com um nico exemplo, no se extrai da Constituio ao atribuir o poder Unio para criar o imposto sobre a renda, que ao faz-lo quanto s pessoas jurdicas, do lucro devero ser deduzidos ou no e em qual percentual a proviso para devedores duvidosos. de uma evidncia cristalina que o conceito constitucional de renda vago. Dizer, contudo, que um conceito vago; que num determinado texto h vaguidade; no implica dizer que no h conceito, nem que o texto destitudo de sentido; pelo contrrio. A vaguidade s passvel de ser eliminada nos textos formais (Lgica e Matemtica) e nos denotativos. , por isso, que a vaguidade do direito s eliminada ao final da cadeia de positivao; na emisso da norma individual e concreta. Para sermos mais exatos, nem sequer as decises judiciais declaratrias eliminam por completo a vaguidade. S as constitutivas expurgam (ou devem expurgar) a vaguidade. O exerccio do poder se esgota com a eliminao das vaguidades, as quais s so expungidas mediante enunciados denotativos. Em outros termos, o exerccio do poder s se esgota ao se proferir enunciados denotativos em razo da eliminao total das vaguidades. O processo de positivao corresponde a uma marcha elucidadora de vaguidade e, com isso, exerccio do poder. No dizer de Kelsen, Como a Constituio regula, no essencial, a elaborao das leis, a legislao , com respeito a ela, aplicao do direito. Com relao ao decreto e a outros atos subordinados lei, ela , ao contrrio, criao do direito; o decreto , tambm, aplicao do direito com respeito sentena e ao ato administrativo que o aplicam. Estes, por sua vez, so aplicao do direito, se olharmos para cima, e criao do direito, se olharmos para baixo, isto , no que concerne aos atos pelos quais so executados 167 . Assim, a lei aplica a Constituio ao reproduzir seus lindes de certeza positiva e negativa, mas no deve se resumir a isso, pois do contrrio no teria finalidade alguma. Deve caminhar no sentido de reduzir (mas nunca eliminar) seu alo de vaguidade. Ao faz-
167 KELSEN, Hans. Jurisdio Constitucional, p. 125. 133 lo, cria o direito em relao aos atos subordinados, como o decreto. Este, por outro passo, tem uma regio de certeza sobremaneira maior que a conferida ao legislador pela Constituio; mas tal regio no esgota por completo o campo de significao. Cada ato conotativo inferior tem o papel de reduzir a vaguidade do anterior, criando o direito. Nos degraus inferiores, os textos necessariamente so mais extensos, mais minuciosos e cada vez mais aplicam o direito das camadas acima e menos o cria para as camadas abaixo. Nada obstante, por mais extensos que sejam, jamais eliminaro por completo a vaguidade, que inerente aos textos de carter conotativo. Em sntese, a eliminao da vaguidade um processo de criao do direito consagrado num Estado Democrtico de Direito, no qual o Poder distribudo por rgos subordinados. O Poder s se esgota na edio de regras individuais e concretas, dado o seu carter denotativo. Nesse passo, divirjo de Kelsen, segundo o qual est sempre presente a possibilidade de vrias interpretaes na prpria fase de execuo fsica independentemente da natureza da sentena. Isso no significa que o Poder sempre se esgota toda vez que forem proferidos enunciados denotativos pois outros podem ser proferidos em substituio aos anteriores , mas sim que o Poder no capaz de se esgotar com a emisso de atos conotativos por mais minuciosos que possam ser. Assim, o Executivo ao enunciar atos gerais e abstratos o faz subordinado lei, uma vez que no pode extravasar suas fronteiras de segura significao afirmativa e negativa. Todavia, tambm exerce o poder na medida em que cria o direito ao reduzir a vaguidade legal. No que se refere ao papel jurisdicional do Executivo, tambm no podemos negar o exerccio do poder. Apesar de seus atos denotativos poderem sempre ser substitudos por aqueles editados pelo Judicirio e, portanto, colocam-se num patamar hierrquico inferior, o direito, freqentemente, no atingiria a concreo sem o ato de linguagem do Executivo. Para tal, basta pensarmos no lanamento tributrio. Ainda que o Judicirio, pela sentena, possa substituir o lanamento; no pode constituir ele mesmo o crdito tributrio, a relao jurdica-tributria; ou seja, a incidncia normativa, a efetivao das camadas normativas superiores necessariamente passa por um ato de linguagem do 134 Executivo. Assim, evidencia-se o exerccio do Poder tambm na enunciao de atos individuais e concretos. Se o agente fiscal, ao tomar contato com os diplomas veiculadores de normas gerais e concretas, elimina a ambigidade para concluir que a situao ftica deve se quadrar do lado negativo, da no incidncia, ter exercido um poder de forma definitiva, ao menos para aquele perodo concreto. De igual sorte, se lana, mas seu ato substitudo por uma deciso de rgo administrativo que o revoga, estaremos diante do esgotamento do exerccio do poder estatal sem a possibilidade sequer de participao do Judicirio.
5.4.3. Extrafiscalidade e vaguidade Ao discorrer acerca do histrico embate entre a ideologia liberal e a intervencionista ou socialista que repercutiu nas constituies contemporneas, Jos Afonso da Silva Prossegue, assevera que a nossa Diploma Suprema no raro, foi minuciosa e, no seu compromisso com as conquistas liberais e com um plano de evoluo poltica de contedo social, o enunciado de suas normas assumiu, muitas vezes, grande impreciso, comprometendo sua eficcia e aplicabilidade imediata, para requerer providncias ulteriores para incidir concretamente 168 . A impreciso constitucional acima dita visa justamente atribuir ao legislador competncia para editar normas adequadas ao estgio de desenvolvimento econmico- social as normas mais adequadas a cumprir os fins constitucionais. A extrafiscalidade, como emprego intencional do tributo para dirigir condutas sociais, repousa justamente nesta vaguidade. Do texto constitucional, no se obtm direta e precisamente a conformao de condutas humanas por meio de tributos. Tal atribuio conferida ao legislador por meio da impreciso da dico constitucional.
5.4.4. Vaguidade ingente e estrita legalidade Se a vaguidade caracterstica intrnseca da linguagem, pelo menos da conotativa, como se compatibiliza tal afirmao com o Primado da Estrita Legalidade, segundo o qual os critrios essenciais da norma de incidncia devem ser veiculados por enunciados lingsticos do legislador?
168 SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 137. 135 Segundo o princpio da estrita legalidade, todos os critrios essenciais para a criao de um tributo devem ser introduzidos mediante texto legal. A lei no pode delegar tal funo a enunciaes de fontes de hierarquia inferior, como atos do Executivo. So critrios essenciais: (i) o material, que corresponde a um verbo mais complemento, (ii) o espacial, concebido como o local da ao do verbo, (iii) o temporal, que corresponde ao momento (a data) da ao do verbo, (iv) o pessoal, que corresponde ao sujeito ativo e ao passivo, e (v) o quantitativo, que corresponde base de clculo e alquota. Nada obstante, quase todos esses critrios so veiculados por meio de enunciados de natureza conotativa. No imposto sobre a renda, o aspecto material auferir renda e, por mais especificado que seja na lei ordinria, tal como o lucro comercial ajustado por adies (adies estas como a reverso de provises para devedores duvidosos, excesso de remunerao de administradores, etc), excluses (tais como dividendos recebidos, depreciao acelerada incentivada, etc) e compensaes; por mais enunciados pormenorizados que possam ser veiculados, so sempre conotativos. O aspecto temporal do imposto de renda tambm apresenta-se conotativamente. Trata-se do momento em que a renda disponibilizada, mas que momento exatamente esse? No caso de rendimento auferido no exterior, h uma enorme controvrsia acerca da sua caracterizao. apenas na data em que os lucros foram efetivamente entregues sociedade nacional que participa do capital de uma controlada ou coligada estrangeira, ou tambm pode ser considerada a data em que aliena a participao? Utilizar a participao para integralizar o capital de outra sociedade caracteriza uma ao que define tal critrio temporal? No IPTU, o aspecto espacial a zona urbana do municpio, mas qual exatamente a demarcao geogrfica dessa zona. Isso no fixado pela prpria lei criadora do imposto, mas em atos legislativos outros. Podemos dizer o mesmo do sujeito passivo contribuintes e responsveis elemento componente do critrio pessoal, bem como da base de clculo que compe o critrio quantitativo. O artigo 34 do CTN estipula que o contribuinte do IPTU o proprietrio do imvel, o titular do seu domnio til, ou o seu possuidor a qualquer ttulo. Ento o locatrio pode ser eleito pela lei municipal como contribuinte? Segundo o STJ, no; pois 136 na posse que enseja a hiptese de incidncia deve haver animus domini, qualidade no atribuvel ao locatrio. J o artigo 47, inciso II, alnea a, da mesma codificao, define a base de clculo do imposto sobre produtos industrializados como o valor da operao. Pois bem, nesse caso os descontos devem ser deduzidos? A lei n 7.798/89 estabelece que no. No entanto, o STJ decidiu que os descontos incondicionais, vale dizer, os concedidos independentemente de evento futuro e incerto, tais como descontos por pagamento vista ou por aquisio de grande quantidade, devem ser considerados na definio de valor da operao e, portanto, podem ser deduzidos. Nada obstante, os descontos condicionais, como os concedidos pela antecipao do pagamento a prazo, no reduzem a base de clculo por no estarem abarcados pela definio do CTN. Assim, s o sujeito ativo e a alquota no se apresentam com natureza conotativa. Os enunciados veiculadores do sujeito ativo so denotativos; apontam precisamente para uma pessoa; em geral de forma implcita, que corresponde prpria entidade poltica detentora da competncia tributria para criar o tributo, mas tambm de forma explcita no caso de delegao da capacidade tributria ativa para tal ou qual pessoa jurdica de direito pblico, como uma autarquia. Podemos fazer a mesma afirmao em relao alquota. Esta veiculada por enunciados cuja proposio apresenta-se sob a compostura formal; uma expresso matemtica; por isso no conotativa. No por acaso, Karl Engisch, ao tratar dos conceitos jurdicos indeterminados, afirma: Por conceito indeterminado entendemos um conceito cujo contedo e exteno so em larga medida incertos. Os conceitos absolutamente determinados so muito raros no Direito. Em todo o caso devemos considerar como tais os conceitos numricos 169 . Dessarte, o sujeito ativo e a alquota so os nicos critrios essenciais da regra-matriz de incidncia tributria aptos a serem introduzidos por enunciados destitudos de vaguidade. Todos os demais so postos como enunciados conotativos e, como tais, apresentam de forma inerente vaguidade. Tal vaguidade, contudo, deve ser reconhecida como intencional? Como uma inerente distribuio de parcela do poder que no deve ser exercida na integralidade pelo Legislativo?
169 ENGISCH, Karl. Introduo ao pensamento jurdico, p. 208. 137 Em recente e profunda obra sobre as normas tributrias no campo econmico, Schoueri milita a tese de uma certa mitigao da rigidez da legalidade tributria para adequ-la s funes indutoras. Nas suas palavras, Clusulas gerais e conceitos indeterminados so freqentes na legislao brasileira, especialmente em matria de normas tributrias indutoras. A admisso de tal fenmeno permite a conciliao entre o veculo tributrio, sujeito ao princpio da legalidade prprio do pouvoir financier e as normas indutoras, de resto adequadas flexibilidade da legalidade do pouvoir lgislatif. Ocorrendo a interveno sobre o Domnio Econmico por meio de normas tributrias indutoras, no deixa o legislador de se submeter s amarras do Direito Tributrio, dentre as quais se destaca o princpio da legalidade. Conquanto a lei no se apresente como instrumento rgido, impermevel realidade social, diante do emprego de clusulas gerais e conceitos indeterminados, aquela no fica dispensada 170 . S admite, porm, essa flexibilidade ao antecedente da norma, pois a reprova em relao ao conseqente, em especial, no que se refere ao critrio quantitativo: Conquanto o emprego dos conceitos indeterminados possa resolver, em parte, a necessidade de versatilidade, prpria das normas de interveno sobre o Domnio Econmico, no se revelam eles instrumentos prprios quando se ingressa na prpria quantificao do tributo 171 . No concordamos, contudo, com esse entendimento, pois legitimaria, por exemplo, a instituio de regras de tributao diferenciadas e mais onerosas para produtos que causem impacto ambiental, deixando a cargo do Executivo estabelecer quais seriam estes produtos. Note-se, nesse caso, que a indeterminao claramente intencional, o que viola flagrantemente os contornos constitucionais da legalidade na seara tributria. A vaguidade inerente de toda e qualquer linguagem conotativa no pode ser eliminada por completo pelo legislador, seja na enunciao dos critrios do antecedente, seja na dos critrios do conseqente. Isso no significa, contudo, a legitimao para se valer intencionalmente de palavras e expresses com halos de indeterminao mais amplos, ainda que para possibilitar a adaptao da norma tributria s mudanas econmico-sociais a fim de dar cumprimento s suas funes extrafiscais. Direcionar o modelo econmico e atender a reclamos sociais so objetivos que podem ser atendidos por inmeros instrumentos normativos a maioria dos quais com regimes jurdicos sobremaneira flexveis para o Poder Executivo. Se o legislador adotar as
170 SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 321. 171 Ibid., p. 261. 138 normas tributrias para perseguir tais intentos, deve respeitar a moldura constitucional de seu regime, especialmente, a rigidez de sua elaborao. Essa rigidez, contudo, no elimina por completo a vaguidade no-intencional, a qual no deve ser considerada como uma falha legislativa, e sim como uma caracterstica da linguagem que deve ser reduzida, mas no passvel de ser totalmente eliminada. Um projetista de chassis automobilsticos jamais conseguir evitar o efeito do atrito do ar o arrasto que prejudica a velocidade final do veculo e que de forma indesejada aumenta o consumo de combustvel. Mesmo o melhor dos engenheiros da formula 1 no capaz de construir um carro de corrida com tal caracterstica, pois o atrito inerente a todos os processos mecnicos reais. Deve, contudo, se esforar ao mximo para reduzi-lo. De igual sorte, como o atrito uma caracterstica fsica indesejvel no projeto automobilstico, a vaguidade , no caso da enunciao da regra matriz de incidncia, uma caracterstica semntica inerente indesejvel da linguagem conotativa. O legislador deve assim se esforar para ser o mais preciso possvel, reduzindo ao mximo a vaguidade. O atrito, contudo, em outras aplicaes, caracterstica fsica desejvel, da qual o engenheiro lana mo para produzir sistemas mais eficientes do que aqueles que seriam passveis de se construir caso no houvesse atrito. Se no existisse atmosfera em nosso planeta, ainda assim seria possvel construir aeronaves para ir de um ponto ao outro da superfcie sem tocar o solo, mas seus motores deveriam ser mais potentes que os das nossas aeronaves comerciais, as quais usam o atrito como meio de sustentao. por isso que os avies possuem asas. Ou seja, o atrito uma caracterstica fsica inerente a todo e qualquer processo mecnico, mas numa aplicao positivo; noutra, negativo. Podemos dizer o mesmo da vaguidade. Na edificao de normas gerais e abstratas, deve ser concebida como uma caracterstica inerente da linguagem que contribui com a inteno jurdica de distribuio do poder entre diversos rgos. J na edificao da regra-matriz de incidncia, tal caracterstica assume aspecto negativo indesejado o qual no pode ser de todo afastado, mas apenas minimizado. Assim, compete ao legislador a rdua tarefa de minimizar a ingente vaguidade de todo e qualquer enunciado conotativo ao introduzir na ordem jurdica a regra-matriz de incidncia com o fito de atender a estrita legalidade. Todavia, como o produto legislado 139 ainda guardar resqucios de vaguidade, como deve se comportar os demais aplicadores do direito? Discordamos da posio de Alberto Xavier que, ao discorrer acerca da legalidade tributria, afirma: ...no Direito Tributrio o princpio da reserva absoluta substituiu para alm da crise do iluminismo e, em geral, de todas as concepes que viram na aplicao da lei um mero mecanismo automtico de subsuno lgico-dedutiva 172 . Ou seja, para o destacado autor, a aplicao da regra de incidncia consubstancia-se num resultado inequvoco, completamente pr-determinado. Respeitamos suas consideraes, mas do ponto de vista poltico, uma vez que, numa tica estritamente cientfica, no h como enunciados de carter conotativo determinar com garantia absoluta de certeza a sua aplicao. Kelsen j denunciava a Doutrina que assim concebia a interpretao jurdica: A idia de que possvel, atravs de uma interpretao simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, o fundamento da chamada jurisprudncia dos conceitos, que repudiada pela Teoria Pura do Direito [...] A interpretao jurdico-cientfica no pode fazer outra coisa seno estabelecer as possveis significaes de uma norma jurdica. Como conhecimento do seu objeto, ela no pode tomar qualquer deciso entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal deciso ao rgo que, segundo a ordem jurdica, competente para aplicar o Direito. Um advogado que, no interesse do seu constituinte, prope ao tribunal apenas uma das vrias interpretaes possveis de norma jurdica a aplicar a certo caso, e um escritor que, num comentrio, elege uma interpretao determinada, de entre as vrias interpretaes possveis, como a nica acertada, no realizam uma funo jurdico-cientfica mas uma funo jurdico-poltica (de poltica jurdica). Eles procuram exercer influncia sobre a criao do Direito. Isto no lhes pode, evidentemente, ser proibido. Mas no o podem fazer em nome da cincia jurdica, como freqentemente fazem. A interpretao jurdico-cientfica tem de evitar, com o mximo cuidado, a fico de que uma norma jurdica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma s interpretao: a interpretao correta. Isto uma fico de que se serve a jurisprudncia tradicional para consolidar o ideal de segurana jurdica [...] No se pretende negar que esta fico da univocidade das normas jurdicas, vista de uma certa posio poltica, pode ter grandes vantagens. Mas nenhuma vantagem poltica pode justificar que se faa uso desta fico numa exposio cientfica do Direito positivo, proclamando como nica correta, de um ponto de vista cientfico objetivo, uma interpretao que, de um ponto
172 XAVIER, Alberto. Os princpios da legalidade e da tipicidade da tributao, p. 41. 140 de vista poltico subjetivo, mais desejvel do que uma outra, igualmente possvel do ponto de vista lgico. Neste caso, com efeito, apresenta-se falsamente como uma verdade cientfica aquilo que to-somente um juzo de valor poltico 173 . Trabalhamos at aqui com a afirmao de que todos os enunciados conotativos apresentam trs regies: (i) a de certeza positiva, (ii) a de certeza negativa e a (iii) intermediria, ou halo de incerteza 174 , as quais so demarcadas por fronteiras. Essas linhas divisrias, contudo, tambm no so precisas. A regio de significao sobre o qual os enunciados conotativos buscam demarcao apresenta-se como um todo contnuo, cujos lindes demarcatrios so incertos. Vamos imaginar os conceitos de azul e verde; depois, uma folha de papel cuja extremidade direita azul e a esquerda verde e entre as duas, gradualmente e de forma contnua, as tonalidades caminham do verde para o azul, da esquerda para a direita. Poderemos afirmar ento que uma extremidade verde, a outra azul e que, no meio, h incerteza sobre a aplicao dos conceitos de verde e do azul. Seguramente essa inferncia possvel de ser realizada, mas como dizer a partir de qual ponto passa-se da rea de certeza de aplicao do conceito de azul para a de incerteza entre o azul e o verde? Cada pessoa que se debruar sobre a folha apontar, provavelmente, pontos diferentes para demarcar as fronteiras em que acaba a certeza e se inicia a incerteza. Em verdade, as regies precisamente demarcadas de zonas de incerteza e de certeza s podem ser estabelecidas do ponto de vista individual. Podemos afirmar que para determinado caso, a aplicao do conceito segura, certa. No entanto, quantas vezes no nos surpreendemos com a dvida suscitada por outras pessoas acerca da nossa certeza? O campo de certeza coletiva, que exigiria o absoluto consenso de todos os indivduos de uma dada coletividade, sempre menor que o da certeza subjetiva; conseguintemente, o halo de incerteza intersubjetivo sobremaneira maior os individualmente considerados.
173 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 395-396. 174 De forma similar a Karl Engisch, Introduo ao pensamento jurdico, p. 209: podemos distinguir nos conceitos jurdicos indeterminados um ncleo conceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noo clara do contedo e da extenso dum conceito, estamos no domnio do ncleo conceitual. Onde as dvidas comeam, comea o halo do conceito. 141 Para enunciados jurdicos conotativos, tal incerteza ainda maior, uma vez que outros princpios ou valores alm da certeza, no caso especfico, da segurana jurdica influenciam a tarefa de interpretao. Retomando o exemplo do Princpio da Vedao ao Confisco, poderamos afirmar que uma alquota de 50% para impostos sobre o patrimnio confiscatria, enquanto uma de 0,1% no o . Todavia, a partir de qual percentual uma alquota deixa de ser no-confiscatria para confiscatria? Se afirmamos 10%, ento 9,9% no . Todavia, algum ainda poderia afirmar que no atenderia o primado da razoabilidade ou da isonomia que uma diferena to diminuta como 0,1% possa estabelecer a constitucionalidade da exao. Assim, para atender a tal primado, diramos que a fronteira confiscatria deve ser marcada no percentual de 9,9%, mas a qual seria a afirmao acerca da alquota de 9,8%? Enfim, toda fronteira demarcatria entre supostas regies de certeza e de incerteza ela prpria uma linha de incerteza. Assim, o ato de sua fixao no um ato de mera inteleco, mas sim de deciso. E toda vez tomada, pode ser questionada sob a alegao de que o ponto imediatamente sucessivo poderia pertencer ao quadrante da incerteza, e, assim, levado s ltimas conseqncias, poderamos afirmar que h alguma incerteza acerca do percentual de 0,1% se tambm confiscatrio, o que implicaria a no tributao de toda e qualquer situao por esgotar o conceito, por esvaziar de sentido o enunciado conotativo componente da regra de incidncia. Poder-se-ia ainda alegar que o exemplo acima no adequado, pois se refere a um princpio, o qual no tem a fora prescritiva de uma norma estrita. Seria prprio dos princpios a vaguidade e no das normas na sua formulao lgica de um antecedente deonticamente vinculado a um conseqente. Pois bem, vamos a outro exemplo. Uma lei concede iseno para deficientes fsicos. Assim, seriam contribuintes os no-deficientes. Ora, em termos de restrio motora, qual percentual deve ser considerado pelas autoridades aplicadoras para definir a caracterstica da deficincia? 90%, 50% ou 10%? Certamente se for fixada como deficincia fsica uma restrio de 50%, aqueles que tiverem limitaes motoras de 49% alegariam violao da isonomia ao serem considerados contribuintes por diferena to nfima. Mas se levarmos ao limite tais consideraes comparativas, s os recordistas 142 mundiais de uma dada modalidade atltica sero considerados no deficientes, uma vez que todos os demais apresentam desempenho motor inferior. Haver sempre a necessidade de se estabelecer um corte arbitrrio do que considerado abarcado pelo enunciado conotativo do que no deve ser abarcado; e qualquer tentativa de se afirmar que a incerteza deve sempre ser afastada de forma absoluta redundar no esvaziamento completo da significao do enunciado conotativo e, assim, a desconstituio da regra-matriz de incidncia. A certeza no pode ser estabelecida por meio de uma atividade cognoscitiva. Sua natureza meramente operativa. Cada um de ns, diante de um enunciado conotativo, est apto a asseverar em que ponto termina a certeza de sua aplicao e comea a incerteza. Mas certamente tal ponto no ser o mesmo para todas as pessoas. Tal demarcao entre o certo e o inseguro, incerto para uma dada coletividade. Ainda que adotssemos como zona de certeza, a interseo entre as diversas reas de certeza individuais, tal rea freqentemente se alterar conforme a coletividade investigada, ou at mesmo, para uma mesma coletividade com o fluir do tempo. , por isso, que as votaes em tribunais no so, na sua maioria, por unanimidade; h divergncia entre turmas e cmaras; e at alteraes jurisprudenciais ainda que sem a modificao da composio dos colegiados . Seguramente, tais incertezas so, at certo ponto, indesejveis. Como idealmente a certeza no pode ser alcanada em razo de limitaes de mbito semntico, o direito estabelece mecanismos operativos que visam estabelecer uma certeza possvel. Uma vez que cada indivduo possui a sua prpria concepo acerca da aplicao segura de cada enunciado conotativo, concepo esta freqentemente diversa dos demais componentes do grupo social, assume-se como regio de certeza social aquela estabelecida por certos agentes autorizados pela prpria ordem jurdica; e, no caso de deciso coletiva, adota-se a posio da maioria. Isso, porm, no garante a certeza absoluta, a perfeita segurana jurdica do ponto de vista ideal, mas o mais prximo que podemos dela chegar. Ento o Legislativo, ao veicular enunciados relativos a critrios componentes da regra matriz de incidncia, no esgota as possibilidades significativas de incidncia. Como ento deve ser compreendida a legalidade estrita? Como um processo de clarificao legislativa, que no esgotado, mas que deve ser maximizado. 143 O poder de imposio tributria no exercido ao final e ao cabo pelo Executivo ao emitir enunciados denotativos (o auto de infrao, por exemplo), mas sim pelo Judicirio, quando provocado. A estrita legalidade implica o controle absoluto, sem exceo pelo Judicirio. No h qualquer parcela significativa que dele possa ser excluda. por isso que a atividade do lanamento vinculada e, no prprio conceito de tributo, est estampado que se trata de prestao cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (grifos nossos). O plenamente refora essa idia. Na atuao oposta o mesmo no se processa. Na deciso final de no incidncia, o Executivo quem completa a norma tributria. ele o Poder que afirma no haver incidncia, posio a qual no passvel de controle pelo Poder Judicirio. Na interpretao que redunda numa cadeia de incidncia, a estrita legalidade no se d porque o Legislativo esgota a incidncia, mas sim por que a compostura significativa da incidncia ao final controlada pelo Judicirio. J a no-incidncia implica um juzo de legalidade, o qual levado a cabo pelo prprio Executivo, sem controle final do Judicirio. Poderamos ainda sustentar que, apesar da interpretao no ser capaz de precisar as fronteiras conceituais das reas de certeza e incerteza, h seguramente hipteses que se quadram na zona de incerteza, sobre as quais, em razo da estrita legalidade, no deveria caminhar o marcha da incidncia tributria. Nesses casos, sem esvaziar por completo a significao dos enunciados conotativos da regra-matriz de incidncia, deveria o Judicirio decidir pela interpretao que implicasse o menor contedo significativo e, assim, a mais restrita incidncia. A sentena seria o resultado de uma mera atividade intelectiva, uma simples constatao racional das nicas hipteses certamente includas na zona de certeza. Ora, como j dito anteriormente, se a fronteira da zona de certeza incerta, a prpria regio de certeza incerta. Evidentemente, essa afirmao redunda numa contradio, que se resolve da seguinte forma. No h zonas de certeza e incerteza, mas sim graus de certeza, ou melhor, de verossimilhana. A certeza absoluta que um dado elemento quadra-se num certo conceito impossvel. Evidentemente, tal exigncia equivaleria verdade apodctica exclusiva da linguagem formalizada. Seria levar a 144 certeza jurdica ao extremo do grau de verdade formal, que esgotaria o prprio contedo do conceito. Desse modo, a deciso judicial acerca da aplicao ou no de um conceito jurdico no se trata de um ato de simples inteleco capaz de conduzir a uma nica interpretao determinvel por todas as pessoas dotadas do conhecimento jurdico necessrio para proferi-la. O resultado de interpretao no pode ser equiparado soluo de uma formulao algbrica. Dois matemticos, ao lanarem mo dos seus conhecimentos especficos chegaro ao mesmo resultado formal. Dois juzes, ao contrrio, por mais capacitados que possam ser, freqentemente no chegaro mesma soluo para o mesmo caso concreto em face da mesma ordem jurdica, ainda que se estipule deverem decidir, em caso de dvida, pela no incidncia. Assim, a estrita legalidade no princpio apto a estipular com preciso as decises judiciais. No primado que possibilite antever sentenas. No preceito que esgote por completo o carter volitivo das emanaes jurisdicionais. Ademais, a legalidade tributria, apesar de indubitavelmente se constituir num dos pilares do sistema tributrio nacional, no o nico. Capacidade contributiva e isonomia tributria so, dentre tantos outros esteios, igualmente relevantes para a interpretao do direito positivo tributrio.
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CAPTULO VI. ANLISE SINTTICA O castigo de um crime, como seja uma multa, no o mesmo que um imposto sobre uma atividade, ainda que ambos envolvam diretivas a funcionrios para infligir idntica perda de dinheiro. O que diferencia estas idias, que a primeira envolve, ao contrrio da segunda, um delito ou uma falta de cumprimento de um dever sob a forma de violao de uma regra estabelecida para orientar a conduta dos cidados comuns. verdade que uma tal distino geralmente ntida pode, em certas circunstncias, surgir ofuscada. H impostos que podem ser criados sem objetivos de receita, mas para desencorajar as atividades sobre as quais incidem, embora a lei no d qualquer indicao expressa de que estas devam ser abandonadas. HART, Herbert L. A.; O Conceito de Direito.
6.1. SINTTICA importante destacar que a Sinttica no estuda a relao propriamente dita entre signos, mas apenas entre seus significantes. Aquela sobremaneira mais complexa e abarca os trs planos de investigao semitica. As regras de combinao entre significantes no apresentam relao necessria entre seus significados. Ao dizer cobra macho, cometemos um erro sinttico (o correto cobra macha), uma vez que o adjetivo deve se flexionar em funo do gnero do significante, que feminino, e no em funo do gnero do significado. Afirmamos anteriormente que h uma prioridade hermenutica entre os planos semiticos de investigao e a Sinttica est em ltimo lugar entre os trs. No exemplo anterior, s podemos identificar a relao entre os significantes (cobra e macha) aps compreender os seus respectivos significados (em razo do significado de cobra, sabemos se tratar de um substantivo; de igual sorte, sabemos que macha um adjetivo). Desse modo, poderamos ento afirmar que, se os aspectos semnticos so condio para aferio dos sintticos; estes no condicionam, em contrapartida, os semnticos (e os pragmticos)? Condicionam tambm, pois a semiose um processo ininterrupto. Cada etapa, que constituda pelos trs patamares semiticos, condiciona a posterior. Ademais, a construo da significao de textos complexos exige um escala gerativa de significados 146 (de unidades menores para maiores de significao) e, em cada degrau, esto presentes os trs nveis de aspectos. Por exemplo, para estabelecer as relaes sintticas entre frases, necessrio previamente conhecer seu significado, o qual construdo levando-se em conta as relaes sintticas entre as palavras. Os sinais de pontuao certamente correspondem aos registros grficos que mais bem destacam a relevncia da sintaxe para formao de significao e, portanto, para a comunicao humana. Se escrevemos: Do o imvel ao meu irmo no do minha irm jamais do aos pobres. No h condies de responder qual a significao desse conjunto de palavras. Todavia, se estabelecemos a seguinte pontuao: Do o imvel ao meu irmo. No do minha irm. Jamais do aos pobres. Podemos afirmar que o beneficirio da doao o irmo e no a irm. Ademais, ela pessoa de poucos recursos e o doador no contempla pessoas com tal qualificao. O doador revela, assim, uma certa natureza mesquinha, ao contemplar favores apenas a pessoas igualmente abonadas. Por outro lado, a pontuao pode ser diferente: Do o imvel ao meu irmo? No! Do minha irm. Jamais do aos pobres. Nesse caso, a irm a beneficiria, mas o carter interesseiro do doador continua patente. Todavia, e se a pontuao fosse a seguinte? Do o imvel ao meu irmo? No! Do minha irm? Jamais! Do aos pobres. Desta vez, no s o donatrio alterado, como o carter sovina do doador se esvaece. Assim, os registros grficos, que representam relaes de natureza sinttica, so determinantes para a significao do conjunto frasal.
6.2. ORDEM: UMA CATEGORIA SINTTICA Nada obstante, as relaes sintticas podem ser representadas no s por registros grficos especficos, mas tambm e principalmente por meio da ordem em que so dispostas as expresses. 147 A mera inverso da ordem entre duas palavras pode redundar em significativas alteraes semnticas do conjunto. Uma famlia grande corresponde a pai e me com vultosa prole ou a um vasto grupo de pessoas que guardam entre si relao de parentesco; grande, sito aps o substantivo famlia, assume significao relativa quantidade; por outro lado, uma grande famlia pode ser representada por apenas um casal e seu nico filho, mas certamente com estreitos laos de mtuo afeto, vale dizer, o mesmo adjetivo assume, neste caso, feies qualitativas. A ordem corresponde a uma categoria sinttica, mas com implicaes semnticas e pragmticas nas camadas e etapas subseqentes de significao. Pelo lado do enunciador, se deseja proferir uma dada mensagem com uma certa significao, deve dispor os signos lingsticos numa certa ordem. Pelo lado do enunciatrio, a ordem confere mensagem uma certa significao e no outras que poderiam ser obtidas a partir dos mesmos registros dispostos de forma diferente, assim como possibilita inferir a inteno enunciativa de cunho pragmtico. O mesmo deve ser dito do discurso do legislador. Um enunciado prescritivo em que se veicula um percentual de alquota ser relativo regra-matriz de incidncia do tributo disciplinado pelo diploma. Se uma lei trata exclusivamente de imposto sobre a renda; evidentemente um artigo que introduza um percentual dever ser interpretado como uma alquota deste imposto. Por outro lado, num diploma que disciplina mais de um tributo, a alquota veiculada num sub-dispositivo (um pargrafo, por exemplo) dever ser interpretada como relativa ao tributo regrado pelo respectivo artigo. Em suma, a ordem de carter tipicamente sinttico e, como tal, determina a prpria interpretao.
6.3. SINTAXE: O PRIUS FORMULADOR Afirmamos haver uma seqncia prioritria entre os trs planos semiticos. Em primeiro lugar, o pragmtico; depois, o semntico; por fim, o sinttico. A frase Braslia a Capital do Brasil apresentar sentidos diversos e estruturas sintticas diferentes, conforme tenha sido observada num livro de geografia ou na Constituio Federal. Reiteramos no haver uma sucesso cronolgica dos trs planos, mas apenas uma prioridade cognoscitiva. 148 O sentido pragmtica semntica sinttica, contudo, s prioritrio para o receptor da mensagem; no plano da interpretao, portanto. No plo do emissor, a seqncia muda de sentido para sinttica semntica pragmtica. Para o enunciador cumprir a funo pragmtica pretendida (informar, prescrever, indagar, etc) deve formular enunciados com sentido, os quais devem ser formados segundo regras sintticas. Frases formuladas sem atender os critrios sintticos de formao tais como vivida a ser vida por bela no lugar de a vida bela por ser vivida no apresentam sentido, no possuem qualquer valor semntico. Ademais, frases h que respeitam as diretrizes sintticas, mas no apresentam sentido ou seu sentido no guarda relao com o propsito pragmtico. A frase acima a vida bela por ser vivida ainda que apresente algum sentido, no est apta em termos semnticos a cumprir a funo proposta para um texto legal. Em resumo, o intrprete decodifica a mensagem, em cada etapa de construo de sentido, partindo do plano pragmtico, passando pelo semntico, at atingir o sinttico. O enunciador percorre caminho inverso. H uma relao dialtica comunicacional entre os trs planos semiticos, pois. Assim, podemos afirmar no haver precedncia em sentido hierrquico entre os trs planos. Eles so mutuamente dependentes. A prioridade depende do momento do processo de semiose, o que no redunda, portanto, num descrdito da anlise sinttica ao tratarmos dela aps a pragmtica e a semntica.
6.4. REGRAS DE PRODUO: SEU CARTER SINTTICO A pertinncia de uma norma ao sistema caracterstica tipicamente pragmtica, como a existncia de um dado enunciado numa obra de cincia natural. Todavia, a pertinncia jurdica, ou validade, aspecto mais complexo que a existncia proposicional num corpo de linguagem descritiva. A validade compreende uma complexidade sinttica. As normas s so consideradas como tais, uma vez enunciadas por uma certa pessoa mediante um determinado procedimento; ambos aspectos que devem ser verificados pragmaticamente, tal como se uma dada frase descritiva est ou no contida num livro de cincia. Todavia, a pessoa apta a enunciar a norma, no uma qualquer, mas sim aquela prescrita pelo prprio ordenamento. 149 Em trabalhos cientficos, o enunciador (o cientista) ator externo ao sistema. ele quem cria o prprio sistema. Na produo normativa, pelo contrrio, o enunciador ator interno, deve ter sido constitudo pelo prprio ordenamento normativo. O mesmo se diga da forma de produo. No necessrio que um trabalho cientfico seja produzido desta ou daquela forma; que seja publicado neste ou naquele peridico cientfico. Todavia, para um enunciado ser considerado de direito positivo, no basta a enunciao de um agente competente; necessrio tambm que tal enunciao seja realizada segundo um procedimento tambm regrado pelo prprio ordenamento. Tais caractersticas, regras que regulam a produo de outras regras apresentam um carter nitidamente sinttico, como comenta Vilanova sobre a obra de Kelsen, Quando kelsen observa que o sistema jurdico tem a particularidade de regular a sua prpria criao, podemos traduzi-lo em termo de sintaxe: o sistema de proposies normativas contm, como parte integrante de si mesmo, as regras (proposies) de formao e de transformao de suas proposies. As normas que estatuem como criar outras normas, isto , as normas-de-normas, ou proposies-de-proposies, no so regras sintticas forma do sistema. Esto no interior dele 175 .
6.5. A LGICA EXPRESSO PREDOMINANTEMENTE SINTTICA A Lgica est na linguagem e no no Mundo. H relaes sintticas necessrias e relaes sintticas no necessrias. A Lgica estuda as primeiras. Assim, a Lgica apresenta preocupaes eminentemente sintticas. Isso, contudo, no implica desconsiderar por completo, na investigao lgico-formal, aspectos de cunho semntico e pragmtico. A Lgica por ser linguagem apresenta, como toda e qualquer linguagem, aspectos sintticos, pragmticos e semnticos. Sua investigao focaliza as relaes formais da estrutura da lngua. Tais relaes so estampadas mediante o processo de formalizao, o qual realizado por meio da abstrao de um certo conjunto de elementos materiais. Esse processo, contudo, no esvazia a significao totalmente. As formas lgicas no so totalmente ocas de significado. Traos de significao permanecem
175 VILANOVA, Lourival. As estruturas lgicas e o sistema do direito positivo, p. 154. 150 presentes, impregnam-se, mesmo aps o processo de formalizao da linguagem-objeto. Com preciso assevera Alar Caff Alves: Observe-se, entretanto, que apesar da formalizao, atravs das variveis, temos sempre os lugares preenchidos por alguma diferena material (o signo materialmente considerado), Isto, por algum mnimo de contedo, representado por traos simblicos distinguveis, que nos permitem diferenar uma varivel de outra na mesma inferncia 176 (destaques originais). Tal abstrao, contudo, quanto mais abrangente, quanto mais amplo for seu alcance, menor ser a sua significao. Quanto mais unvoco e abrangente for o conhecimento, menor o seu contedo. Nas palavras de Vilm Flusser, O simbologismo lgico vale provavelmente para todas as lnguas flexionais, porm ganhou esta vastido pelo preo da perda do significado 177 . As formulaes lgicas pertencem categoria kantiana dos juzos a priori. Tais juzos no dependem da experincia. Ao afirmar que cavalos so maiores que ces e estes maiores que ratos, estaremos seguros, em termos lgicos, independentemente de qualquer conhecimento acerca de qualquer destes animais, que cavalos so maiores que ratos. Em verdade, nossa afirmao decorre da forma lgica de que se A > B e B > C, ento A > C. O dado emprico acerca dos valores de A, B e C irrelevante para a validade da formulao. Jamais encontraremos exemplos de valores de A, B e C, que no satisfao formulao; ela, portanto, a priori da experincia sensvel. O fato de as formulaes lgicas pertencerem categoria dos juzos a priori e estarem contidas no plano sinttico pode nos levar a falsa concluso de que a Lgica e, assim, a Sinttica, prioritria; se sobressai ou determina os demais planos semiticos de investigao, o que contradiria nossa afirmao anterior de que a Pragmtica se coloca como um prius semitico de interpretao, bem como a Semntica em relao Sinttica. As variveis lgicas 178 , por exemplo, tem significado, ou seja, podem ser analisadas sob o prisma semntico. Na verdade, os smbolos lgicos so categorias semnticas. Na formulao lgica de uma relao jurdica, em primeiro lugar, partimos de um texto prescritivo em razo da sua funo pragmtica; a partir da, especulamos sobre as
176 ALVES, Alar Caff. Lgica pensamento formal e argumentao, p. 139. 177 FLUSSER, Vilm. Lngua e Realidade, p. 61. 178 Os demais smbolos lgicos tambm apresentam significao e, portanto, so passveis de investigao semntica. As variveis foram adotadas apenas porque ilustram com maior clareza esse aspecto semitico. 151 categorias semnticas envolvidas; no caso, os sujeitos de direito ou, mais especificamente, o sujeito ativo e o sujeito passivo. S ento construmos a frmula S 1 r S 2 . Mesmo na formulao de Lgica Altica vista anteriormente se A > B e B > C, ento A > C as variveis A, B e C so categorias semnticas. Apesar de sobremaneira genricas, no perdem sua referncia semntica. No caso, formalizam a categoria semntica de todas as coisas. A anlise sinttica, assim, depende de uma investigao prvia (o que no significa exaustiva) do ponto de vista pragmtico e semntico. Tal ordem repisamos no implica qualquer hierarquia de importncia. Para uma correta interpretao do texto, todos os planos semiticos so relevantes.
6.6. A LGICA JURDICA A Lgica aplicada ao Estudo do Direito teve enorme avano a partir da verificao da diferena entre metalinguagem e linguagem-objeto, como j afirmamos em nossa dissertao de mestrado: A aplicao da Lgica ao Estudo do Direito ganhou impulso e consistncia a partir do momento em que se distinguiram com clareza os dois planos de linguagem: a linguagem-objeto do direito positivo e a metalinguagem da Cincia do Direito. Naquela esto presentes as normas, nesta as proposies sobre normas. Como nos aponta Eugenio Bulygin, em estudo preliminar de Normas juridicas y analisis logico, pgina 11, a distino ainda no era clara para Kelsen em sua primeira edio do Teoria Pura do Direito de 1934, nem para G. H. von Wright no Lgica Dentica de 1951, e nem tampouco para Ulrich Klug em Juristische Logik tambm de 1951 179 . O direito positivo, isto , o discurso do legislador (em sentido lato como agente autorizado pela prpria ordem jurdica a emanar enunciados prescritivos) compe o objeto acerca do qual o Jurista discorre. Dessarte, os enunciados lingsticos do Jurista no tm o mesmo propsito de prescrever condutas, como a do legislador, mas sim o de afirmar a significao dos enunciados lingsticos inseridos na especfica camada comunicativa do direito posto.
179 MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. A estrutura lgico-formal da sano pecuniria no direito tributrio, p. 49. 152 Em suma, cada discurso o do legislador e o do jurista cumpre funo pragmtica diversa do outro e, como tal, apresenta estrutura formal diferente, logo tambm se submete a Lgicas diversas. A funo pragmtica da Cincia do Direito a de descrever. Por meio de sua linguagem, o jurista visa enunciao de proposies que informem o contedo de significao das regras jurdicas, o qual no deve ser identificado com as prprias regras, pois estas apresentam funo pragmtica diversa. Enquanto o Jurista informa, o Legislador prescreve. Dessarte, a funo pragmtica da linguagem do Jurista a mesma de qualquer cientista, ao passo que funo pragmtica do discurso do legislador idntica, nesta acepo sinttica, a da Religio, da Moral e das regras de convivncia social; aquela afirma o que , estas o que deve ser. Assim, a linguagem da Cincia Jurdica se submete Lgica Altica, Lgica que estuda as condies de validade formal dos discursos para apresentarem enunciados verdadeiros. Se afirmo que (i) o cavalo maior que o co, (ii) o co maior que o gato e (iii) o cavalo maior que o gato, a Lgica me permite predizer que os trs enunciados so aptos a apresentar, num mesmo discurso sob as mesmas condies contextuais, contedos de significao verdadeiros.
6.6.1. Condies formais e verificao emprica Isso, contudo, no implica afirmar que os enunciados so, de fato, verdadeiros. S a investigao emprica capaz de estabelecer tal valor. Numa dada situao, posso estar a me referir a um filhote de pnei e a um galgo adulto de tal forma que o cavalo, ao revs do senso comum, menor que o co. Essa verificao emprica, contudo, no retira a validade da enunciao lgica, cuja frmula pode ser assim apresentada: Se A > B, B > C, ento A > C. A Lgica Altica s permite afirmar se, do ponto de vista formal, as proposies esto aptas a receber contedos verdadeiros, mas no garante que tais contedos sejam, de fato, verdadeiros. Se dissermos (i) a casa azul est direita da amarela, (ii) a casa amarela est direita da vermelha, (iii) a casa vermelha est direita da casa azul e (iv) todas esto dispostas numa rua reta; necessariamente pelo 153 menos uma das proposies ser falsa independentemente da verificao emprica. Ou a proposio (iii) falsa e a casa vermelha est esquerda da casa azul ou falsa a proposio (iv), porque as casas esto dispostas em crculo, dentre outras possibilidades.
6.6.2. O contexto como pressuposto para a investigao lgica As formulaes lgicas, porm, pressupem sempre a manuteno do contexto. Se afirmamos que (i) o co maior que o gato, (ii) o gato maior que o rato, mas (iii) o co menor que o rato, a Lgica nos permite afirmar que pelo menos um dos enunciados necessariamente falso, independentemente da verificao emprica. Todavia, todos poderiam ser verdadeiros, se o terceiro houvesse sido verificado numa data em que o co era um filhote recm-nascido realmente menor que o rato j adulto. Neste caso, contudo, o momento do enunciado (iii) diverso das coordenadas temporais dos enunciados (i) e (ii). As formulaes lgicas, portanto, s permitem verificar a adequao das proposies descritivas se tais proposies se refiram a um mesmo contexto. Assim, duas proposies da Cincia do Direito contraditrias podem ser verdadeiras se fizerem referncia a contextos diversos. As proposies descritivas (i) a norma que permite portar arma de fogo vlida e (ii) a norma que permite portar arma de fogo invlida no podem ser, num mesmo contexto, verdadeiras. Todavia, podem ser ambas verdadeiras se houver, ao menos uma modificao de coordenada contextual. Por exemplo, uma modificao temporal: (i) a norma que permite portar arma de fogo vlida em 2000 e (ii) a norma que permite portar arma de fogo invlida em 2008; ou uma alterao espacial: (i) a norma que permite portar arma de fogo vlida nos Estados Unidos da Amrica e (ii) a norma que permite portar arma de fogo invlida no Brasil. As formulaes lgicas pressupem a manuteno das coordenadas contextuais; do contrrio so inteis, ou melhor, sua aplicao a proposies enunciadas em contextos diversos redunda em erro, exceto se as prprias coordenadas contextuais forem moldadas como variveis lgicas (o tempo, o espao, etc); este caso, contudo, extrapola as pretenses deste trabalho. Nesse passo, importante destacar que as proposies devem todas pertencer a um mesmo contexto para ser vlido aplicar formulaes lgicas.
154 6.6.3. Direito: dois planos de linguagem, duas Lgicas Reiteramos: a Lgica aplicada ao estudo das condies formais do discurso da Cincia do Direito a Altica. Ela visa formalizar proposies que podem apresentar o valor verdadeiro ou falso e est apta a afirmar quais estruturas so formalmente condizentes ao preenchimento com contedos de significao verdadeiros. Podemos, assim, constatar que a Lgica Altica igualmente til para a Cincia do Direito, quanto para qualquer outra Cincia. Suas formulaes so de idntica compostura. No caso das Cincias Naturais Fsica, Qumica, Biologia, etc os Estudos de Lgica se restringem investigao da estrutura formal do prprio discurso cientfico, pois o nico nvel discursivo de interesse. No entanto, a Cincia Jurdica expe sobre um objeto, ele prprio, constitudo por linguagem o direito positivo. Linguagem esta empregada com uma funo pragmtica diversa, a prescritiva. Dessarte, cabe a seguinte indagao: no seria possvel a proposta de uma Lgica dirigida ao estudo das estruturas formais dos prprios enunciados prescritivos? Cremos que sim. Num exemplo, se a funo pragmtica do direito positivo a de conformar condutas humanas, mais especificamente, a de prescrever como os homens devem agir em relao a outros homens e no isoladamente considerados, como em parte nas regras da moral e da religio , deve estabelecer modalizaes intersubjetivas. O dever no concebido, em termos lgicos, como de algum, mas sim de algum em face de outrem. O outrem aspecto necessrio. Assim, todas as formulaes lgicas relativas a normas jurdicas devem apresentar no apenas uma varivel pessoal, mas sim duas e necessariamente distintas entre si: um S e um S. Tal estrutura no da Cincia do Direito, mas sim do prprio direito positivo. Sem enunciados prescritivos que apresentem essa forma, o direito positivo no est apto a cumprir sua funo pragmtica: a de conformar condutas intersubjetivas. O exemplo, acima, contudo, apresenta apenas um dos aspectos da multiplicidade lgico-estrutural do discurso prescritivo, que pode ser investigada mediante um paralelo com as formulaes j sobremaneira desenvolvidas na Lgica Altica. Os discursos, que visam descrever, devem ser constitudos por enunciados que apresentem uma dada forma, sem a qual, no esto aptos, ou sua aptido reduzida, 155 para cumprir a funo pragmtica declarativa. Se um dado discurso apresenta enunciados tais, segundo um mesmo contexto, que apresentam a forma A > B, B > C e C > A, necessariamente um de seus enunciados ser falso e, assim, no cumprir sua funo pragmtica de descrever, mais precisamente, informar um contedo de significaes verdadeiras.
6.6.4. Valor semntico e conformao lgica O contedo verdadeiro (ou falso) um valor de natureza semntica. A funo pragmtica, assim, estipula o valor semntico, o qual exige uma dada formulao sinttica (e, mais especificamente, lgica) para ser verificado. Um enunciado a casa no , do ponto de vista sinttico, completo para receber o valor semntico verdadeiro ou falso. J o enunciado a casa minha sintaticamente completo. Est apto a cumprir a funo pragmtica de descrever e a receber os valores semnticos verdadeiro ou falso (verdadeiro se a casa realmente for minha; falso se no for). As linguagens descritiva e prescritiva divergem entre si em razo de suas distintas funes, aspecto caracteristicamente pragmtico. A descritiva, em razo de sua funo pragmtica, impe especficos valores semnticos (verdadeiro ou falso) a todos os seus enunciados de significao completa. Assim, para prosseguirmos na investigao dos aspectos lgicos da linguagem prescritiva, mister se faz perquirirmos se h tambm especficos valores semnticos que possam ser atribudos aos contedos de significao dos enunciados prescritivos; e quais so, caso existam. A Lgica Jurdica se desenvolveu no sentido de formalizar os enunciados prescritivos em razo do valor validade (e no validade ou invalidade). Validade, aqui, corresponde a um valor relacional entre o enunciado e o sistema, no caso, uma relao de pertinncia. Se pertence ao sistema, vlido; se no pertence, invalido. Validade, pois, equivale existncia; se existe para um dado sistema lingstico. Uma norma vlida se existe numa determinada ordem jurdica; por outras palavras, se guarda relao de pertinncia com esta ordem. 156 No descartamos a possibilidade de construir uma Lgica com tais premissas e nem desdenhamos das enormes contribuies que uma investigao dessa natureza capaz de realizar. Contudo, cremos ser de extrema relevncia a investigao dos aspectos semiticos destas formulaes lgicas. Na Lgica Altica, formalizam-se discursos com a inteno de estarem aptos para serem constitudos por enunciados verdadeiros, vale dizer, para serem preenchidos com contedos de significao dotados de um dado valor de natureza semntica. J a validade dos enunciados do direito positivo corresponde ao valor que se atribui a existncia ou no existncia de uma relao de pertinncia do enunciado com um dado discurso. Tal valor, assim, no apresenta natureza semntica, mas sim fundamentalmente pragmtica. Para analisar um dado enunciado, sua coerncia com um certo texto, devemos, em primeiro lugar, verificar se ele de fato est contido no corpo de linguagem. Assim, por exemplo, s podemos investigar um enunciado de Biologia se antes verificamos que est escrito num livro desta Cincia. Tal verificao tem natureza tipicamente pragmtica. O mesmo procedimento deve ser adotado na investigao dos enunciados prescritivos; primeiramente, deve ser verificado se o enunciado vlido, ou seja, se pertence ordem jurdica. A validade de um enunciado prescritivo valor relacional equivalente do ponto de vista semitico, em razo de sua natureza pragmtica, existncia de enunciados descritivos. A verificao da existncia de enunciados descritivos, contudo, sobremaneira simples; basta abrir o livro e constatar se o enunciado est l escrito. Neste trabalho, fizemos citaes de diversos autores e indicamos a respectiva fonte. Assim, qualquer leitor pode entrar em contato com a obra, abrir na pgina indicada e verificar se a citao realmente pertence ao trabalho indicado. No direito positivo, contudo, a qualidade da validade de enunciados mais complexa. Exige que o enunciado tenha sido proferido no s por uma dada pessoa, mas tambm mediante um certo procedimento. A pessoa deve ser aquela autorizada pelo prprio ordenamento, pelo mesmo corpo de linguagem, no qual pretende incluir mais enunciados. Tal pessoa, ademais, deve apresentar qualificao objetiva. No so autorizados a enunciar decretos esta ou aquela pessoa singular, mas sim os chefes do poder 157 executivo, ou seja, aqueles qualificados como tal. Alm disso, devem seguir o rito tambm previsto pela ordem. Um enunciado lingstico proferido pelo Chefe do Executivo no ser considerado includo na ordem como Decreto, se proferido num pedao de papel deixado em sua mesa, ou mesmo afixado na porta de seu gabinete. Est previsto no ordenamento, dentre outras exigncias, que seja publicado em jornal oficial de circulao pblica. Pois bem, uma vez que a qualificao da pessoa autorizada a introduzir enunciados, bem como o procedimento para assim proceder, so estabelecidos por enunciados pertencentes prpria ordem jurdica, podemos dizer que a validade, a qualificao relacional de um enunciado prescritivo com o corpo de linguagem do direito positivo, apresenta diversos aspectos tipicamente sintticos. A validade jurdica sobremaneira mais complexa que a existncia altica. Esta no exige relaes sintticas para um novo enunciado pertencer a um dado corpo de linguagem a relao meramente pragmtica; j aquela, a par de guardar prioritariamente a natureza pragmtica, exige relaes de cunho sinttico. De toda sorte, a validade dos enunciados normativos no valor similar verdade dos enunciados prescritivos. A validade, assim como a existncia, corresponde condio semitica para anlise dos enunciados. Se um enunciado descritivo no pertence a um dado texto cientfico, a sua anlise pra imediatamente. Se ao discorrer sobre Fsica Quntica desenvolvida por Max Planck e Niels Bohr, afirmamos algo que contestado e comprovado no ter sido proferido pelos referidos fsicos, a discusso se encerra. No haver verificao da coerncia com os demais enunciados da Teoria. O mesmo deve ser dito dos enunciados prescritivos. Se no foram proferidos pela autoridade competente e pelo procedimento previsto, no vlida e, assim, no cabe mais qualquer perquirio acerca de quaisquer outros aspectos. Em suma, um determinado enunciado descritivo s pode ser assim qualificado se pertence a um dado corpo de linguagem com funo descritiva e, s a partir de ento, pode ser verificada a sua condio de verdade, sua qualificao semntica. De igual sorte, um enunciado prescritivo s pode ser considerado como tal, se for vlido, se pertencer a uma dada ordem em razo de ser produzido por uma certa autoridade segundo um preciso procedimento, ambos previstos pela prpria ordem. A partir da existncia de um enunciado descritivo, analisa-se o seu valor de verdade, cuja natureza semntica e suas relaes lgicas com os demais enunciados, em 158 razo deste valor, de cunho sinttico. As formulaes da Lgica Altica so estatudas para serem preenchidas por enunciados que guardem um certo valor semntico (verdadeiro ou falso). Em verdade, a Lgica Altica construda em face destas premissas de mbito pragmtico e semntico. Vale dizer, a Lgica Altica constituda por formalizaes relativas a um texto de cunho pragmtico descritivo, cujos enunciados apresentam valores semnticos verdadeiro ou falso. Dito com outras palavras, se um texto possui a funo pragmtica de descrever, seus enunciados devem ser verdadeiros (apesar de poderem ser falsos), qualidade de cunho semntico e, como tais, guardam relaes entre si de cunho sinttico, parte das quais so analisadas pela Lgica. A forma lgica, assim, pressupe tais aspectos pragmticos (ter finalidade informativa) e semnticos (possurem significado verdadeiro ou falso). Como o texto do direito prescritivo apresenta aspectos semiticos outros, a Lgica que formaliza suas proposies deve ser diversa da Altica. No entanto, a Lgica Jurdica tem sido desenvolvida com o fito de investigar as relaes sintticas do discurso do direito positivo sob o enfoque da validade, isto , do equivalente semitico da existncia e no da verdade. De certo, o estudo das relaes lgicas relativas a tal valor merece ateno. Todavia, a Lgica Jurdica, cujas formulaes so dirigidas investigao da forma estrutural das relaes entre normas segundo o paradigma da validade, no guarda correspondncia com a Lgica Altica. Dessarte, os enormes desenvolvimentos da Lgica Altica que, evidentemente, so empregados para investigar a Cincia do Direito, no podem ser adotados, sem enormes esforos adaptativos, investigao das formas lgicas do direito positivo; em realidade, so freqentemente descartados. Num exemplo simples, o princpio da no contradio inaplicvel Lgica Jurdica que formaliza o direito positivo no plano da validade. Duas normas podem possuir contedo contraditrio (permitir matar e proibir matar, por exemplo) e, ainda assim, serem ambas, num mesmo contexto, vlidas. Estipulamos, como conjectura 180 , que para haver correspondncia entre as formulaes da Lgica Altica e da Lgica Jurdica necessrio que suas premissas, a par
180 Trata-se de uma conjectura em razo de no termos demonstrado o que afirmamos e nem nos valemos de uma demonstrao elaborada em outro estudo cientfico. Nada obstante, todas as nossas observaes so congruentes conjectura formulada. 159 de distintas, tenham natureza semitica equivalente. Por isso nos empenhamos em encontrar o valor semntico que devem possuir os enunciados prescritivos para cumprirem a funo pragmtica do discurso a qual pertencem, vale dizer, a funo de conformar condutas intersubjetivas. Uma vez que os enunciados da Lgica Altica so estatudos pela formalizao de enunciados descritivos, cujo contedo de significao deve atender ao par semntico verdadeiro/falso, a Lgica Jurdica equivalente deve tambm ser edificada por formulaes decorrentes de enunciados prescritivos que devam possuir tambm pares de cunho semntico. Mas quais? A quais critrios semnticos devem atender os enunciados do direito positivo? Para cumprir a sua funo pragmtica, os enunciados descritivos devem ser verdadeiros; no suficiente que existam, que estejam contidos num texto informativo. De igual sorte, um enunciado prescritivo para cumprir sua funo pragmtica conformar condutas no suficiente que sejam vlidos, que tenham relao de pertinncia com a ordem jurdica, necessrio que sejam eficazes.
6.6.5. Eficcia: condicionante semntico para o desempenho pragmtico da linguagem prescritiva Um enunciado prescritivo que obrigue uma conduta impossvel ( obrigatrio ir Lua todos os sbados) ou que proba uma conduta necessria ( proibido respirar todos os domingos), apesar de vlido, no ser eficaz e, assim, no estar apto a cumprir a funo pragmtica do texto conformar condutas. Tais enunciados, em razo de aspectos semnticos, no esto aptos a cumprir a funo pragmtica do corpo de linguagem a qual pertencem. Como assevera Alar Caff Alves: ...uma norma jurdica somente pode ter sentido ou significado se for possvel de ser cumprida ou descumprida, o que equivale a consider-la segundo o critrio de adequao de sua produo ou de sua aplicao dentro de um determinado contexto 181 . E prossegue logo a seguir: H certas situaes em que a impossibilidade normativa se apresenta por limitaes objetivas que no podem ser alteradas, como, por exemplo, a promessa de pagamento de uma certa importncia quele que comprovar ter ficado sem respirar por um dia 182 .
181 ALVES, Alar Caff. Lgica pensamento formal e argumentao, p. 194-195. 182 Ibid. 160 Na primeira passagem, destaca-se o aspecto pragmtico da norma, qual seja, a sua relao de pertinncia e, portanto, existncia para um dado corpo de linguagem prescritiva; na segunda, se atende a critrios de natureza tipicamente semntica. Assim, um enunciado com o fito de cumprir uma dada funo pragmtica deve, em primeiro lugar, pertencer ao corpo de linguagem que apresente a suposta funo, bem como deve ser apto segundo caractersticas semnticas mnimas. Na linguagem descritiva, por exemplo, as asseres metafsicas no apresentam condies semnticas aptas a lhes conferir qualquer valor veritativo (verdadeiro ou falso), assim no esto aptas a cumprir a funo pragmtica. Os enunciados metafsicos esto para linguagem informativa, como os enunciados prescritivos que modulam comportamentos necessrios e impossveis.
6.6.6. Tipologia dos condicionantes lgicos Tais condies pragmticas e semnticas, contudo, no pertencem ao objeto da Lgica, pelo menos no da Lgica Formal. Esta se preocupa com as condies sintticas (necessrias) de um dado discurso. As condies podem ser classificadas em dois grandes grupos: (i) condies de edificao de enunciados e (ii) condies relacionais entre os enunciados. Na seara tributria, valiosa lio nos traz Paulo de Barros Carvalho acerca dos critrios mnimos estruturais da regra-matriz de incidncia; critrios sem os quais impossvel, do ponto de vista lgico, a conformao de condutas nesta seara especfica do direito. O destacado professor assinala cinco critrios: (i) material, (ii) espacial, (iii) temporal, (iv) pessoal e (v) quantitativo, os quais se desdobram em sub-critrios (o critrio pessoal formado pelo sujeito ativo e pelo sujeito passivo, por exemplo). Esses critrios so ditos essenciais ou eidticos, uma vez que a ausncia de qualquer um deles na sua compleio completa impe afirmar a inexistncia de norma instituidora do tributo. Em outras palavras, suficiente a ausncia de qualquer dos aspectos para o intrprete asseverar que no h enunciado lingstico prescritivo completo apto a desempenhar a funo pragmtica prescritiva de conformar condutas especficas de os particulares levarem dinheiro aos cofres do Estado. 161 Dessarte, por exemplo, a mera ausncia de alquota componente do critrio quantitativo da norma desnatura por completo a mensagem legislativa. Uma lei com o propsito de criar um determinado tributo no cumpre seu designo se a par de estabelecer a base de calculo, o sujeito passivo e os demais critrios necessrios para a configurao normativa deixa de fixar a alquota. Enquanto outro diploma legal no introduzir o percentual quantificador, a mensagem legislativa original permanecer como um nada, como um punhado de registros grficos destitudos de aptido sinttica para receber sentido prescritivo completo. Norma no poder ser erigida e, assim, no cabe nem sequer afirmar que a mensagem do legislador juridicamente ineficaz, pois mensagem, neste sentido, no h. Da mesma sorte que uma frase, num texto de Qumica, formada apenas por as molculas no verdadeira nem falsa; um texto legal destitudo dos enunciados lingsticos mnimos para a edificao de norma, tambm no pode ser eficaz ou ineficaz. Para o discurso prescritivo ser considerado eficaz, ou seu valor oposto (ineficaz), necessrio atender s regras sintticas de formao de enunciados completos.
6.6.7. Relaes lgicas entre enunciados semanticamente completos H ainda outros aspectos sintticos relacionais que devem ser investigados, os quais no impedem completamente a possibilidade de eficcia da norma, mas restringe a do ordenamento como um todo. Podemos afirmar com certeza apodictica que um texto descritivo, formado pelas proposies: I: A est contido em B; II: B possui a predicao C; e III: A no possui a predicao C. No possui as condies para ser totalmente verdadeiro. Por exemplo, um texto de Biologia que afirme os morcegos so (esto contidos na classe) mamferos, os mamferos so (possuem a predicao) homeotrmicos 183 e os morcegos so pecilotrmicos 184 , seguramente apresenta alguma informao incorreta. Pelo menos uma
183 Mantm a temperatura do corpo constante independentemente de variaes ambientais. 184 A temperatura corporal se altera em razo de variaes ambientais. 162 das trs proposies apresenta um contedo falso independentemente de verificaes empricas. Essa concluso no decorre da estrutura formal interna do enunciado, mas sim da sua relao com os demais pertencentes ao mesmo texto. Devemos observar que a verificao lgica relacional entre os enunciados no permite afirmar que o texto descritivo s traz informaes incorretas. No exemplo anterior, parte delas (at duas) pode ser verdadeira. Assim, a estrutura sinttica interna dos enunciados descritivos permite-nos avaliar a sua aptido formal para receber contedos de significao verdadeiros (ou falsos), enquanto a estrutura relacional entre os enunciados nos possibilita afirmar se o prprio texto est apto a ser preenchido completamente com contedos de significao verdadeiros (apesar de empiricamente poderem ser falsos). A mesma avaliao pode ser realizada em relao ao texto prescritivo. A anlise de suas frases permite-nos avaliar a sua aptido formal para a edificao de enunciados prescritivos completos as normas , ao passo que a anlise relacional das normas nos permite afirmar se esto formalmente aptas a efetivamente conformar condutas humanas. Uma ordem jurdica formada apenas por duas normas permitido matar e proibido matar no cumpre efetivamente sua funo pragmtica de conformar as condutas inter-humanas. O direito erigido para ser eficaz, para efetivamente conformar as condutas inter-humanas. Assim, reputamos essencial na anlise sinttica, em especial, na Lgica, focarmos o valor semntico da eficcia.
6.6.8. Eficcia e o sentido do ajuste Em Expresso e significado, John Searle elenca uma extensa taxonomia dos atos de fala segundo a sua fora ilocucionria ao eleger diversos critrios classificatrios. Dentre eles, est a direo do ajuste entre as palavras e o mundo. Segundo suas prprias palavras: Algumas elocues tm, como parte de seu propsito ilocucionrio, fazer as palavras (mais precisamente, seu contedo proposicional) corresponder ao mundo; outros, fazer 163 o mundo corresponder s palavras. As asseres esto na primeira categoria, as promessas e os pedidos, na segunda 185 . De igual sorte, o discurso do Jurista pertence primeira categoria de atos ilocucionrios, ao passo que o discurso do legislador pertence segunda. Para os enunciados descritivos cumprirem sua funo pragmtica de informar necessrio que se ajustem realidade. O ajuste se d do texto para o mundo. J, em relao ao discurso prescritivo, o ajuste promovido do mundo para o texto. Para cumprir a funo pragmtica descritiva, a letra deve se ajustar ao mundo; no prescritivo, o mundo deve se ajustar letra. Essa classificao relevante porque identifica uma precisa distino pragmtica entre o discurso das Cincias dentre as quais a da Cincia do Direito e o discurso do direito positivo. Mas por que razo trazer esse assunto neste ponto, em especial, num captulo dedicado ao estudo do plano sinttico, ao revs de trat-lo naquele dedicado investigao pragmtica? A razo est na circunstncia de essa classificao, alm de revelar uma importante distino pragmtica entre as duas camadas lingsticas, possibilitar tambm a identificao de uma caracterstica sinttica essencial do direito. O direito positivo pertence quela categoria de atos ilocucionrios cujo ajuste, para atender finalidade pragmtica, deve ser empreendido da realidade para o texto. Sob esse prisma, o discurso do legislador apresenta-se idntico no s moral, s regras de conduta social e s da religio, mas tambm s promessas, aos juramentos e aos pedidos. Todavia, o direito diferencia-se de todos os demais por no aguardar que o mundo se conforme s suas predies. Na lio de Paulo de Barros Carvalho: O ordenamento jurdico, como forma de tornar possvel a coexistncia do homem em comunidade, quer garantir, efetivamente, o cumprimento das suas normas, ainda que, para tanto, seja necessria a adoo de medidas punitivas que afetem a propriedade ou a prpria liberdade das pessoas. Da por que, ao criar uma prescrio jurdica, concomitantemente o legislador enlaa uma providncia sancionatria ao no- cumprimento do referido dever 186 . Os pedidos tero atingido sua finalidade pragmtica se o receptor agir em conformidade com a proposio lingstica; a promessa, por outro lado, atingir a sua
185 SEARLE, John R. Expresso e significado, p. 4. 186 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 756. 164 funo se o prprio enunciador realizar aquilo que comunicou. Num caso, o mundo deve se alterar como ao do receptor; noutro, como ao do emissor; mas em ambos, o ajuste sempre do mundo ao ato de fala e o mesmo se passa com o direito. Mas e se o mundo no se ajusta? Se o emissor de uma promessa no a cumpre, no ocorre o ajuste e a funo pragmtica do ato de fala se desnatura; o mesmo ocorre se o receptor de um pedido no o atende. A relao mundo-linguagem se esgota sem que a funo pragmtica tenha sido cumprida. Isso, contudo, no se passa em geral com os discursos prescritivos, dentre os quais, encontra-se o direito. Como regra, os discursos prescritivos so formados tambm por enunciaes relativas a conseqncias para o caso de o mundo no de ajustar s suas predies (uma exceo a Moral). A religio impe aos seus seguidores apresentar uma determinada conduta, cujo descumprimento (falta de ajuste mundo-texto) acarretar, por exemplo, o no acesso ao Paraso. Esta conseqncia tambm um ato de fala pertencente ao prprio corpo de linguagem prescritiva. De igual sorte, as regras do trato social estabelecem conseqncias para o caso de ausncia de ajuste. Se algum no cumprimenta os membros do seu condomnio, deixar de ser convidado para comemoraes, por exemplo. As linguagens prescritivas buscam alterar o mundo com mais intensidade que outros tipos de linguagens como os pedidos e as promessas. Dessarte, no so formadas por enunciados isolados, mas sim por uma cadeia de proposies aptas a cumprir ou a reforar a finalidade pragmtica de alterar o mundo. Dentro desse tipo de atos ilocucionrios, o direito guarda ainda mais particularidades em relao direo do ajuste. Na Moral, no h conseqncias para a falta de ajuste; na religio, o mundo alterado por uma entidade no-humana (Deuses, anjos, santos, etc), que impedir, por exemplo, o acesso ao Paraso; j, nas regras de trato social, a conseqncia de nova alterao empreendida por ao humana. So estas as regras do trato social que mais se assemelham ao direito positivo sob o aspecto do ajuste; afinal, em ambas as camadas lingsticas, o no-ajuste previsto em outros enunciados que determinam novos ajustes. Nada obstante, s o direito determina um ajuste empreendido por outrem equivalente quele que deveria ter sido promovido pelo destinatrio original da norma. 165 Se as regras do trato social determinam que ao final do ano se d uma prenda em dinheiro aos funcionrios do condomnio e algum no a cumpre, haver conseqncias, tais como o porteiro deixar de cumprimentar o morador infrator, no lhe prestar favores, etc, mas ningum poder tomar o valor do patrimnio do condmino. Se, por outro lado, o direito impe a um contribuinte que pague um tributo e ele descumpre esta norma, haver a conseqncia de um agente autorizado (no caso, do Judicirio) lhe tomar coercitivamente patrimnio equivalente. Se a linguagem humana fosse dotada de uma fora mgica de diretamente modificar a realidade ou de conformar as condutas de outros seres humanos como comandos cibernticos dirigidos a autmatos, no teriam qualquer funo enunciados prescritores de conseqncias para o caso de descumprimento. O direito sempre um fenmeno lingstico que se estabelece entre seres humanos e no entre aparatos eletromecnicos, organismos naturais ou entidades sobrenaturais e nem mesmo entre qualquer destes entes e o homem. No plo emissor e no receptor esto sempre presentes seres humanos. Dessa forma, um fenmeno semitico intencional. Est sempre presente a tentativa de uma conscincia tentar persuadir outra conscincia humana e, assim, indiretamente influir nas suas condutas. No h, porm, certeza do resultado. O dizer no muda necessariamente o ser. Mas o direito no se conforma com tal limitao da linguagem e, assim, estipula novas determinaes, que ao final so dirigidas a outras pessoas da comunidade: as sanes dotadas de carter coativo. Impe uma conseqncia desagradvel para aqueles que no se comportarem conforme suas estipulaes e essas conseqncias devem ser tais que possam ser cumpridas por outros membros da sociedade. Assim, torna mais provvel o ajuste mundo na direo da linguagem. Mas seria essa a nica conseqncia capaz de reforar a direo do ajuste? Seriam as conseqncias desagradveis dirigidas para aqueles que praticam condutas proibidas as nicas enunciaes prescritivas aptas a reforar o ajuste mundo-linguagem? Pensamos que no. H outros expedientes; todos, num sentido lato, englobados pelo conceito de sano. Sanes, assim, so todas as estratgias normativas adotados pelo legislador para reforar o ajuste do mundo, especificamente, das condutas humanas, s suas determinaes intencionais. Tais regras, contudo, devem guardar certas caractersticas 166 essenciais internas e relacionais com os demais enunciados do direito positivo; caractersticas estas decorrentes da forma como a eficcia reforada. Podemos, assim, estipular uma Lgica das Sanes, dentro da qual inserem-se, como ser discutido adiante, as regras tributrias dotadas de finalidade extrafiscal.
6.7. A LGICA DAS SANES Como nos adverte Bobbio, En la literatura filosfica y sociolgica el trmino sancin se usa en sentido amplio para incluir en l no slo las conseccuencias desagradables de la inobservancia de las normas, sino tambin las consecuencias agradables de la observacia, distinguindose en el genus sancin las dos species de las sanciones positivas y de las sanciones negativas. Es un hecho, sin embargo, que el trmino sancin en el lenguaje jurdico, si se usa sin ms preciciones, denota exclusivamente a las sanciones negativas 187 . Essa constatao do saudoso Jurista Italiano vale tambm para a Doutrina ptria. Villanova, por exemplo, afirmava: O que destaca a sano jurdica [...] a possibilidade do uso da coao organizada (atravs de rgo jurisdicional) para fazer valer as obrigaes principais e as obrigaes secundrias 188 . A mesma concepo encontramos na lio de Paulo de Barros Carvalho, pois, a par de identificar mais de um sentido para o termo, todos esto ligados idia de pena e ilcito; nas suas palavras: Sano pode experimentar mutaes semnticas que variam conforme o momento da seqncia prescritiva (direito positivo) ou expositiva (Cincia do Direito). Tanto sano a penalidade aplicada ao infrator quanto a relao jurdica que a veicula, tratando-se de norma individual e concreta. Tambm sano o conseqente da norma geral e abstrata, como a prpria norma que tem como antecedente a tipificao do ilcito. E participa do mesmo nome, ainda, o ato jurdico-administrativo que encerra o processo de elaborao de certas leis. Sobremais, recebe o nome de sano tambm a percentagem a ser aplicada na base de clculo da multa 189 . Esse conceito de sano tradicionalmente adotado pela Doutrina Ptria decorre das lies de Hans Kelsen, para quem o direito diferencia-se de todas as demais ordens sociais em razo do carter coativo das sanes negativas. Esse aspecto o considerado na Teoria Pura do Direito como o essencial para a prpria definio de ordem jurdica. A passagem abaixo bastante caracterstica da lio do ilustre pensador:
187 BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho, p. 372. 188 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relao no direito, p. 175-176. 189 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 758. 167 digno de nota o fato de que entre duas sanes aqui apresentadas como tpicas a ameaa de desvantagem em caso de desobedincia (punio, no sentido mais amplo do termo) e a promessa de vantagem no caso de obedincia (a recompensa) , a primeira desempenha um papel muito mais importante que o da segunda na realidade social 190 . Na acepo tradicional, sanes so regras que apresentam as seguintes caractersticas: (i) so conseqncias consideradas desagradveis para o destinatrio; (ii) decorrem de um ato ilcito, vale dizer, de uma conduta proibida; e (iii) podem ser coativamente impostas. A primeira caracterstica tem natureza pragmtica e no lgica. Desagradvel tudo aquilo que os indivduos de uma dada comunidade buscam evitar. No h, assim, uma estipulao absoluta de desagradvel. No possvel afirmar de forma categrica que uma dada conseqncia desagradvel para todas as pessoas, mas apenas para a maioria de uma dada comunidade. At a morte pode no ser considerada uma conseqncia desagradvel de forma absoluta. Do contrrio, no haveria suicidas. Deve a sano contemplar conseqncias, as quais a maioria das pessoas evitaria: a morte, a dor, o sofrimento moral, a supresso de bens e direitos, etc. A segunda caracterstica decorre de uma relao de natureza lgica. Se o ordenamento pune, por exemplo, a conduta de matar um ser humano, no necessrio estipular que tal conduta proibida. A norma implcita proibido matar pode perfeitamente ser identificada a partir da regra punitiva. H, desse modo, uma relao lgica entre conseqncias consideradas em termos pragmticos desagradveis e condutas semanticamente moduladas como ilcitas. Assim, o direito visa ao ajuste mundo-linguagem no apenas por intermdio da prescrio de condutas desejveis aquelas por ele moduladas como lcitas , mas tambm ao imputar para as condutas opostas (as ilcitas), uma conseqncia desagradvel. E, nesse passo, destaca-se a terceira caracterstica: a coatividade das sanes. De nada serviriam para reforar o ajuste sanes no passveis de exigncia coativa. A conseqncia desagradvel deve ser, pela sua prpria natureza, apta a imposio por outrem, isto , deve ser possvel a pessoa diversa daquela para a qual foi estipulada a conduta inicial aplicar fisicamente a resposta sancionatria. Por esse motivo, a pena alternativa de prestao de servios no corresponde a uma sano tpica, uma vez no ser passvel de imposio coativa. As nicas com tal
190 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 25. 168 caracterstica so as privativas de direitos, como a multa e o confisco que privam o infrator de patrimnio; a priso que lhe retira a liberdade; a repreenso que macula sua honra e imagem pblicas; a chibata que lacera o corpo; e todas as formas de supresso da vida (forca, guilhotina, cadeira eltrica, inoculao, fuzilamento, etc). Evidentemente, os ordenamentos modernos, pelo menos no mundo ocidental, no mais permitem imposies sancionatrias que atinjam a incolumidade fsica, exceto, em algumas raras hipteses, a prpria pena capital. Essas sanes, contudo, foram, ao longo de sculos, o principal expediente sancionador empregado para reforar a eficcia das mais diversas ordens jurdicas e, ainda hoje, so adotadas por pases cuja cultura no absorveu as evolues do processo civilizador ocidental. As sanes privativas de direitos apresentam a caracterstica comum de serem passveis de execuo por pessoa diversa do infrator. Em verdade, apesar de, em tese, todas poderem ser executadas pela prpria pessoa apenada (o infrator pode se desfazer de seus bens, confessar em pblico sua culpa, auto-flagelar-se, e at suprimir sua prpria vida), como tal comportamento no provvel, a deciso de sancionar um conduta ilcita , em geral, imediatamente acompanhada da execuo. Prescreve-se para o infrator a sano e, a um s tempo, tambm o dever de um agente estatal execut-la sem a oportunidade para cumprimento espontneo. A sano pecuniria a multa , porm, freqentemente estipulada de forma diversa. Em geral, estabelecida pela autoridade competente para ser cumprida pela prpria pessoa punida. Isso, contudo, no lhe retira a aptido para exigncia coativa. No caso de no cumprimento, nova norma expedida com o fito de outra pessoa tomar coercitivamente o direito patrimonial do infrator. Da a necessidade de o ordenamento apresentar inicialmente j um mnimo de eficcia, sem a qual no se instaura como ordem jurdica. essencial que os agentes, para os quais so dirigidas as normas finais da cadeia de positivao, cumpram espontaneamente as regras de coao, isto , as normas que determinam a imposio fsica de sanes sobre outrem. Deve, assim, haver um mnimo de ajuste do mundo na direo do discurso prescritivo. No h recurso lingstico capaz de conformar condutas humanas sem que certas conscincias se conformem espontaneamente ao discurso prescritivo e exeram de forma organizada fora superior s demais presentes na sociedade. Essa circunstncia pragmtica nem sequer pde ser deixada de lado por Kelsen, cuja Teoria seguiu rigorosa 169 linha de investigao do direito sob o prisma interno e, assim, analisou primordialmente os aspectos puramente formais da ordem jurdica; conforme suas prprias palavras: apesar de validade e eficcia serem dois conceitos inteiramente diversos, existe, contudo, uma relao muito importante entre os dois. Uma norma considerada vlida apenas com a condio de pertencer a um sistema de normas, a uma ordem que, no todo, eficaz. Assim, a eficcia uma condio de validade; uma condio, no a razo da validade. Uma norma no vlida porque eficaz; ela vlida se a ordem qual pertence , como um todo, eficaz 191 . Fixada essa premissa pragmtica essencial para prpria existncia da ordem jurdica, a eficcia, o ajuste conduta-norma, um atributo semntico da ordem jurdica pragmaticamente objetivado por seu enunciador (o legislador), mas no apenas pela conformao direta das condutas desejadas, mas principalmente pela punio das condutas desviantes atravs de conseqncias desagradveis passveis de serem coativamente exercidas por agentes autorizados. As sanes, na estrutura inicialmente formulada por Kelsen, exercem indiretamente a funo de reforar o cumprimento das condutas obrigatrias ao desestimular a prtica das proibidas. Nada obstante, outro dos maiores Juristas do Sculo XX (falecido no incio do novo milnio), seguidor do prprio Kelsen, deu um passo fundamental ao estudo das sanes. Bobbio identificou o fato de que as condutas podem ser estimuladas diretamente mediante a imputao de algo positivo, o que denominou por sanes premiais. Cremos que as sanes pela prtica de atos ilcitos mais as chamadas sanes premiais no esgotam o universo lgico das sanes. Assim, necessrio esclarecer o que significa espao lgico.
6.7.1. O espao lgico das sanes O direito positivo enunciado para conformar condutas, ou seja, para ser eficaz. As sanes so normas, cuja finalidade a de garantir ou reforar a eficcia de outras normas. So regras estabelecidas com o escopo de aumentar a possibilidade de ajuste mundo-linguagem.
191 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 58. 170 Do ponto de vista lgico, as condutas obrigatrias devem ser estimuladas e as proibidas desestimuladas. Em verdade, o direito, para se constituir como tal, no apenas desestimula as proibidas, elas so coibidas. A coibio se processa por meio de outras normas as coercitivas , as quais substituem a conduta e a vontade do sujeito originrio por conduta e vontade de outras pessoas os agentes pblicos. A princpio, no h que se falar da necessidade de estmulo ou de desestmulo das permitidas, uma vez que praticada ou no, o direito eficaz. O grau de eficcia do direito no se altera diante da prtica ou omisso de condutas permitidas. No entanto, o legislador pode optar por estimular ou desestimular condutas permitidas, sem que isso altere a sua modalizao dentica. A permitida no se torna obrigatria por ter sido estimulada por outra norma e nem sua oposta transforma-se em proibida. H assim a possibilidade de conseqncias positivas serem estabelecidas com o fito de se estimular diretamente condutas obrigatrias e permitidas, bem como conseqncias negativas serem institudas com a finalidade de inibir condutas obrigatrias e permitidas. Assim, o espao lgico relacional entre conseqncias e condutas pode ser representado pelo seguinte guadro:
Condutas Proibidas Obrigatrias Permitidas Positivas 0 X X Sanes Negativas X 0 X
Os X representam os espaos lgicos para a instituio de sanes. No faz sentido estabelecer normas que prescrevam conseqncias positivas uma vez praticada uma conduta proibida; de igual sorte, no faz sentido dentico instituir uma conseqncia negativa no caso de prtica de uma conduta obrigatria.
171 6.7.2. O reforo direto e indireto do ajuste e os pares denticos Fixado o espao lgico do estabelecimento de sanes, da instituio de regras que visam reforar a possibilidade do ajuste conduta-direito e, portanto, a eficcia da ordem jurdica, devemos analisar de que forma tal reforo realizado. Sempre que uma conduta for modulada como obrigatria, a conduta oposta estar necessariamente (por decorrncia lgica) modulada como proibida. Se obrigatrio pagar pedgio ao utilizar uma via, necessariamente proibido deixar de pagar na mesma hiptese; se proibido fumar num certo estabelecimento, por decorrncia lgica obrigatrio no fumar. Em face desta caracterstica relacional de natureza lgica dos pares denticos obrigatrio-proibido, as sanes (positivas e negativas) podem ser adotadas tanto para reforo direto como indireto. Uma sano positiva refora diretamente a obrigao e indiretamente a proibio. Um prmio institudo para aqueles que no fumarem ao permanecer num estabelecimento, refora diretamente a imposio de no fumar e, por via indireta, a proibio de fumar. Por outro lado, uma sano negativa refora diretamente a proibio e indiretamente a imposio. Uma pena dirigida diretamente para evitar a prtica de uma conduta proibida; assim adotada tambm para indiretamente alcanar o intento de reforar a prtica da conduta oposta, que obrigatria. Assim, o par dentico obrigatrio-proibido, em razo da sua relao necessria, possibilita o reforo do ajuste tanto por meio de sanes negativas, quanto positivas. As negativas so dirigidas diretamente s condutas proibidas e, por via de conseqncia, indiretamente s obrigatrias; as positivas so vinculadas diretamente s condutas prescritas como obrigatrias e, assim, indiretamente s proibidas. Outra caracterstica relevante do par dentico obrigatrio-proibido diz respeito determinao dos comportamentos desejados e indesejados pelo legislador. Aqueles obrigatrios so desejados, ao passo que os proibidos so indesejados. Kelsen, ao estipular a primazia das sanes (negativas) sobre as normas de conduta, afirmava serem aquelas regras determinadoras das condutas desejadas pelo legislador: As sanes so estabelecidas pela ordem jurdica com o fim de ocasionar certa conduta humana que o legislador considera desejvel 192 . De toda sorte, independentemente de qual norma primria, se a de conduta ou a sancionatria, tanto a sano negativa quanto as regras que
192 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 71. 172 estipulam condutas obrigatrias e proibidas apontam com preciso o comportamento desejado e o indesejado. Nessa modulao prescritiva, para cada comportamento desejado, o seu oposto indesejado e vice-versa. Uma regra que prescreve um comportamento como obrigatrio significa que a referida conduta desejada pelo legislador (modelo), ao passo que a conduta oposta proibida e, pois, indesejada. Se o legislador (modelo) opta por proibir uma dada conduta, o resultado absolutamente o mesmo; apenas as formas no plano da expresso so diversas. No entanto, o binmio permitido-permitido no permite tal afirmao. Sempre que o legislador (modelo) prescreve como permitida uma conduta, a sua oposta tambm o . Se permitido fumar, tambm necessariamente permitido no fumar. Assim, no podemos, a princpio, afirmar que qualquer das condutas indesejada. No entanto, as condutas, apesar de desejadas, podem guardar graus diversos de intencionalidade, ou seja, podemos afirmar que h condutas mais ou menos desejveis entre si e, na impossibilidade de ambas serem praticadas simultaneamente, pode o legislador optar pela estimulao de uma em detrimento da oposta. Enquanto o par dentico obrigatrio-permitido, por si s, independentemente das sanes que lhe so acopladas, permite identificar com preciso quais condutas so desejadas e quais no o so; o par permitido-permitido no possibilita firmar qual das condutas a preferida pelo legislador (modelo), e, portanto, da sociedade a quem representa; isso s possvel pela verificao das sanes a elas acopladas. Dessarte, para sermos mais precisos em relao ao par obrigatrio-proibido, necessrio asseverar que a mera imposio de regra sancionatria negativa no suficiente para afirmar que o comportamento em relao ao qual ela est acoplada indesejado e, conseqentemente, proibido, porque h sanes negativas aplicadas a comportamentos permitidos. Assim, no caso do par obrigatrio-proibido, no so as regras sancionatrias (positivas e nem negativas) que apontam a direo do ajuste e, assim, as condutas desejadas e indesejadas. Tais comportamentos so indicados pelas prprias regras impositivas, vale dizer, as que modulam as condutas como obrigatrias ou proibidas. Uma vez estabelecido expressamente um comportamento como obrigatrio, por necessidade lgica (no plano da eficcia, repisamos) o comportamento oposto deve ser proibido; de igual sorte, prescrita uma conduta como proibida, a no-conduta implicitamente obrigatria. Pelas mesmas razes lgicas, a fim de reforar a eficcia de tais prescries, sanes negativas s devem ser imputadas ao comportamento proibido (e no ao 173 obrigatrio), enquanto sanes positivas devem ser imputadas ao comportamento obrigatrio (e no ao proibido). Todavia, as regras sancionatrias, nesse caso, no determinam a prpria direo do ajuste; elas apenas o reforam. As positivas estimulam diretamente os comportamentos obrigatrios e, conseguintemente, desestimulam indiretamente os proibidos; j as sanes negativas desestimulam diretamente os proibidos e, indiretamente, estimulam os obrigatrios. No caso de normas de permisso, no h que se cogitar, a princpio, acerca de direo de ajuste. Se uma conduta permitida, a sua oposta tambm o e, assim, em qualquer caso, o ordenamento eficaz. Nada obstante, tambm a regras de permisso podem ser acopladas normas de sano, vale dizer, regras que estimulem a sua prtica ou omisso. Nesse caso, a direo do ajuste estabelecida pelas regras sancionatrias e no pelas normas de comportamento. So as sanes deonticamente vinculadas a regras de permisso que estipulam a direo de ajuste intentado pelo legislador. As regras de permisso, a princpio, indicam uma posio de indiferena do legislador; o que necessariamente no pode ser dito em relao s normas que obrigam e probem. Em relao ao binmio obrigatrio-proibido, o legislador toma posio sobre o comportamento regrado, independentemente das sanes imputadas; ao passo que no tocante ao par permitido-permitido o possvel interesse jurdico pela pratica de uma conduta em detrimento da oposta s pode ser estabelecida e, portanto, posteriormente aferida, pela imputao de sanes (positivas ou negativas).
6.7.3. O positivo e o negativo O comportamento obrigatrio abriga um valor positivo o ordenamento prescreve tal conduta como positivamente valiosa , ao passo que a proibio abarca um desvalor ou um valor negativo. Sob esse aspecto, as normas que estabelecem obrigaes podem ser consideradas positivas; enquanto aquelas que estatuem proibies podem ser concebidas como negativas. Tal acepo de positivo e negativo, contudo, no apresenta o mesmo significado ao qualificarmos as sanes positivas e as negativas. Na lio de Bobbio, ...conviene no confundir, desde um punto de vista analtico, la distincin entre normas positivas y normas negativas sanciones positivas y sanciones negativas. En 174 trminos de uso ms comn, una cosa es la destincin entre mandatos y prohibiciones y otra la distincin entre premios y castigos. Las dos distinciones no se superponen. Aunque de hecho las normas negativas vienen habitualmente reforzadas por sanciones negativas, mientras que las sanciones positivas vienen previstas y aplicadas fundamentalmente para reforzar normas positivas, no hay ninguna incompatibilidad entre, por un lado normas positivas y sanciones negativas y, por otro lado, normas negativas y sanciones positivas. En un sistema jurdico muchas de las normas reforzadas por sanciones negativas son normas positivas (mandatos de da aou de hacer). Las tcnicas de alentamiento del Estado asistencial contemporneo se aplican tambin, aunque ms raramente, a normas negativas. En otras palabras, se puede desalentar a hacer como se puede alentar a no haver. De hecho, portanto, se pueden dar cuatro situaciones distintas: a) mandatos reforados por premios; b) mandatos reforzados por castigos; c) prohibiciones reforzadas por premios; d) prohibiciones reforzadas por castigos 193 . Assim, regras positivas (que estipulam permisses e obrigaes e, portanto, abrigam valores positivos) podem ser reforadas tanto por sanes positivas (prmios) como negativas (penas). A mesma sorte de reforo (sanes negativas e positivas) pode ser igualmente dirigido s normas negativas (estipuladoras de proibies e, assim, de valores negativos).
6.7.4. Sanes e os vrios graus hierrquicos do positivo Apesar de regras positivas (obrigaes e permisses) e negativas (proibies) poderem ser reforadas tanto por sanes negativas quanto positivas, podemos afirmar, a princpio, que as direes de reforo so distintas. As regras positivas so reforadas diretamente por sanes positivas e indiretamente pelas negativas (ao estimularem diretamente a absteno da conduta oposta). Ao revs, as regras negativas so diretamente reforadas por sanes negativas e indiretamente pelas positivas. Tal afirmao, contudo, s perfeitamente vlida para o par obrigatrio- proibido. O direito, contudo, no s impe e cobe condutas, ele tambm estimula e tolera as moduladas pelo terceiro functor dentico: a permisso. O direito ao modalizar condutas como permitidas no as coloca no mesmo patamar intencional. Como j asseverado no tema sobre pragmtica, onde houver direito, haver valores; e prprio dos valores sua distribuio hierrquica.
193 BOBBIO, Norberto. Contribucion a la Teoria del Derecho, p. 370-371. 175 Dessa sorte, o direito no pode ser reduzido a uma camada lingstica intencionalmente bi-polar, no qual, de um lado, esto as condutas obrigatrias com seus valores positivos e, de outro, as proibidas com seus valores negativos. Essa concepo do direito leva incorreta reduo das sanes jurdicas a um s tipo: as negativas decorrentes de condutas proibidas. As condutas obrigatrias e as permitidas comportam valores de polaridade positiva, mas que devem se distribuir segundo uma dada ordem de prevalncia. Aqueles abarcados por condutas obrigatrias so os que se encontram nos patamares superiores em relao aos abarcados por condutas permitidas. Todavia, h tambm distribuio hierrquica interna entre esses dois grupos de regras, especialmente, as de permisso. Serem duas condutas permitidas no significa que o legislador e a sociedade as consideram igualmente valiosas. Como as regras guardam valores e estes se distribuem hierarquicamente, condutas igualmente permitidas podem ser mais desejadas que outras e tal relao pode redundar em conseqncias jurdicas. Enquanto algumas so fomentadas, outras so meramente toleradas e umas terceiras so at desestimuladas; apesar de todas serem permitidas. O grau hierrquico valorativo e, portanto, a intencionalidade legal, revel-se por meio do grau de intensidade das regras sancionatrias. H, desse modo, uma relao lgica entre regras sancionatrias e a intencionalidade jurdica que se manifesta por meio de valores. Sempre que o legislador prescrever uma reao mais positiva em relao prtica de uma conduta permitida, ter estabelecido uma posio hierrquica superior do ponto de vista valorativo em relao a outra conduta igualmente permitida, mas cuja prtica sancionada com uma reao menos positiva. O direito no se porta indiferente em relao s condutas por ele permitidas. Pelo contrrio, como elas guardam valores positivos, mas hierarquicamente distintos, inato do discurso prescritivo estabelecer sanes com graus diversos de intensidade, o que permite ao Jurista identificar o patamar hierrquico de cada valor tutelado. Ademais, como prpria da axiologia a historicidade, o que implica dizer que a distribuio hierrquica dos valores no temporalmente imutvel, toda vez que o legislador altera a intensidade de uma resposta sancionatria, ter modificado a hierrquica entre os valores jurdicos. 176 H uma relao lgica entre intensidade sancionatria e distribuio hierrquica de valores e, por meio dessa relao, o intrprete capaz de identificar a intencionalidade do legislador impregnada no produto legislado.
6.8. EXTRAFISCALIDADE: O TRIBUTO COMO SANO H dois tipos de sano isoladamente considerados: (i) as positivas que estimulam a prtica de condutas em relao s quais esto deonticamente acopladas e (ii) as negativas, as quais so imputadas pela prtica de comportamentos que o legislador intenta desestimular. Ao agregarmos mais um critrio classificatrio, desta vez relacional entre as regras impositivas e as sancionatrias, so quatro os tipos: (i) sanes positivas vinculadas a condutas obrigatrias, (ii) sanes positivas vinculadas a condutas permitidas, (iii) sanes negativas vinculadas a condutas proibidas e, por fim, (iv) sanes negativas vinculadas a condutas permitidas. Como vimos em tpico prprio, no concebvel, segundo uma aferio lgica no plano da eficcia, sanes positivas acopladas a condutas proibidas, nem sanes negativas vinculadas a condutas obrigatrias. Se as sanes so expedientes normativos dirigidos a reforar o ajuste condutas-direito, e a extrafiscalidade definida como o emprego do tributo com essa mesma finalidade, o tributo ao exercer funo extrafiscal caracteriza-se tipicamente como uma regra sancionatria, a qual pode apresentar um carter positivo (ao estimular) ou negativo (ao desestimular).
6.8.1. Extrafiscalidade como sano negativa Para aventarmos a possibilidade do tributo exercer a funo de sano negativa, devemos, desde logo, enfrentar e resolver o aparente conflito com a expressa definio de tributo estampada no art. 3 do CTN, segundo o qual toda prestao (...) que no constitua sano de ato ilcito. A soluo afastar as regras tributrias da possibilidade (por um imperativo dentico e no lgico) de exercer a funo de um dos tipos de sano. O tributo pode exercer a funo sancionatria, exceto a relativa sano negativa pela prtica de conduta proibida. A regra tributria pode premiar condutas obrigatrias e permitidas, bem como 177 igualmente desestimular comportamentos permitidos, mas no os proibidos. O tributo s pode ser empregado com funo extrafiscal negativa para desestimular condutas permitidas, jamais as proibidas. Isso, contudo, significaria que tributos no podem ser exigidos de condutas ilcitas? Em princpio, no; pois seu antecedente deve ser sempre configurado como uma hiptese lcita 194 ; permitida ou obrigatria, portanto. Nada obstante, os fatos-em-si ou eventos podem ser recortados pela linguagem de infinitas formas e, assim, contemplarem incontveis fatos lingsticos. Cada evento pode configurar inmeros fatos. Um mesmo acontecimento do mundo ser para o Economista, um fato econmico; para o Psiclogo, um fato psicolgico; e para o Jurista, um fato jurdico. A supresso de patrimnio de um ser humano por outro pode ser considerado um fato econmico, merecedor de investigao das causas econmicas que levaram algum a subtrair bens alheios; um fato psicolgico apto anlise dos aspectos subjetivos que levam alguns, sob mesmas condies, a praticarem essa conduta, enquanto outros no; e um fato jurdico que caracteriza um crime e impe uma sano. Ao intelecto humano no possvel dominar os fatos-em-si em sua integralidade. O Homem se apercebe de apenas alguns aspectos, considerados relevantes, dos acontecimentos-em-si e a linguagem edifica para a sua conscincia tais acontecimentos em fatos. Os acontecimentos-em-si permanecem l no mundo, intocveis. O direito, como linguagem prescritiva, tambm constitui fatos lingsticos, ora como classes de fatos (as hipteses conotativamente configuradas no antecedente das regras gerais e abstratas), ora como fatos-espcime (os fatos jurdicos denotativamente prescritos como antecedentes das normas individuais e concretas). Como toda linguagem inclusive, evidentemente, a prescritiva apenas seleciona aspectos dos eventos a fim de constituir fatos, um mesmo evento pode ser, e freqentemente , relatado como mais de um fato, no s em searas lingsticas diversas (por exemplo, um mesmo evento relatado como fato econmico, psicolgico e jurdico), mas tambm pelo mesmo corpo de linguagem. O direito positivo apresenta marcantemente essa caracterstica.
194 No mesmo sentido, MORAES em Interpretao no direito tributrio, p. 335: Na interpretao das leis tributrias, devemos ter em mente, o legislador no pode, como elemento constitutivo da hiptese de incidncia, tomar a atividade ilcita. No seria norma tributria.[...] O aplicador da lei, ao ver que os pressupostos da hiptese de incidncia se concretizaram, lanar o tributo, sem indagar da licitude ou ilicitude do ato. Pouco importando a nulidade ou no do ato tributado. 178 As normas gerais e abstratas, em seu antecedente, albergam classes de fatos jurdicos definidas de forma conotativa; so as hipteses. Tais hipteses so configuradas por meio de determinadas caractersticas e a imputao de licitude ou ilicitude promovida em relao a estas caractersticas. Assim, um mesmo evento pode ser relatado como fatos jurdicos diversos, os quais podem ser, sem contradio, lcitos e ilcitos. Um evento um fato-em-si de algum entregar a outrem um pacote de cocana e receber em troca dinheiro, pode ser relatado como um fato jurdico ilcito ao apresentar todas as caractersticas configuradoras da hiptese delitiva do crime de trfico de entorpecente. Todavia, aquele que recebeu o dinheiro teve o seu patrimnio aumentado. Dessa forma, esse mesmo evento pode ser relatado tambm como fato imponvel de auferir renda por possuir todas as caractersticas configuradoras da hiptese de incidncia tributria e, portanto, a ele ser imputada a conseqncia de pagar o respectivo imposto. As hipteses lcitas no podem ser, ao mesmo tempo, ilcitas; o mesmo se diga dos fatos jurdicos. Isso no significa, contudo, que um mesmo evento s possa ser relatado como fato lcito ou ilcito. Pode, em verdade, ser relatado como ambos, os quais se subsumem s regras gerais e abstratas compostas pelas respectivas hipteses lcitas e ilcitas e, assim, desencadeiam as conseqncias de ambos os tipos normativos. A hiptese de um juiz na ativa exercer a atividade advocatcia ilcita e configura o antecedente de diversas regras sancionatrias negativas. J a hiptese de algum prestar servios lcita e compe a regra-matriz de incidncia do imposto sobre servios. O evento de Pedro, recentemente empossado como juiz de direito, exercer posteriormente nomeao no cargo uma atividade de advogado, pode ser relatado como um ato ilcito e desencadear todas as sanes previstas, mas no dispensar a conseqncia tributria, uma vez que o mesmo evento pode tambm ser relatado como um fato jurdico tributrio que se subsume hiptese de incidncia. No pode, contudo, o antecedente da regra-matriz de incidncia do ISS ser composto pela hiptese prestao de servio por juzes de direito, especialmente para agravar a exigncia, pois tal hiptese ilcita. A hiptese de incidncia tributria deve apresentar critrios essenciais sem os quais a prpria regra-matriz se desnatura. Todavia, podem ser adotados pela lei inmeros critrios (no eidticos) de forma a diferenciar a tributao entre diversas condutas. A hiptese de incidncia do IPI adota como critrio material industrializar produtos. Tal expresso seria suficiente para configurar, junto com os demais critrios, a regra-matriz 179 desse imposto e desencadear infindveis cadeias de positivao at a exigncia concreta do imposto. No entanto, em razo da funo extrafiscal desse tributo caracterizada pela seletividade, devem ser agregados mais critrios hiptese. Para estabelecer a seletividade e, portanto, a extrafiscalidade, necessrio complementar o aspecto material com qualificaes mais especficas (industrializar alimentos, industrializar eletrodomsticos, industrializar cigarros de tabaco, etc). Assim, para estabelecer regras de incidncia tributria, que exeram a funo extrafiscal (o papel de sano) necessrio ampliar a qualificao da hiptese de incidncia. Nada obstante, tal ampliao no pode redundar na configurao de hipteses ilcitas. Qualquer tipo de manipulao de entorpecentes qualificada por normas do ordenamento ptrio como fatos jurdicos ilcitos (ressalvadas algumas especficas excees), assim no pode ser estabelecida uma hiptese de incidncia de IPI que se caracterize como industrializar cigarros de maconha e a ela vincular um critrio quantitativo mais oneroso. Neste caso, a prpria hiptese ilcita e o tributo exerceria a funo de sano negativa para coibir atividade proibida. Isso no ocorre no caso de se exigir imposto sobre a renda, ainda que, concretamente, a atividade mediante a qual foi obtida a renda seja ilcita. Nesse caso, o imposto no exerce qualquer funo sancionatria.
6.8.2. Extrafiscalidade como sano positiva Se a imposio tributria sempre uma desvantagem, como afirmar que regras tributrias podem exercer a funo de sano positiva? Com efeito, se consideramos uma situao no regrada, as normas tributrias s so aptas a impor nus, desvantagens, quase castigos. Nesse passo vale destacar uma classificao formulada por Bobbio e que aplicvel tanto a sanes negativas, quanto a positivas. Nas palavras do saudoso jurista italiano, As como el mal del castigo puede cosistir tanto en la atribuicin de una desventaja como en la privacin de una ventaja, el bien del premio puede cosistir tanto en la atribucin de una ventaja como en la privacin de uma desvantaja. Desde este punto de vista tanto las sanciones negativas como las positivas pueden ser atribututivas o privativas 195 (destaques originais).
195 BOBBIO, Norberto. Contribucion a la Teoria del Derecho, p. 384. 180 A extrafiscalidade de desestmulo se caracteriza como uma sano negativa atributiva, enquanto a extrafiscalidade de estmulo se perfaz como sano positiva de privao. No h regras tributrias que exeram a funo de sano negativa privativa, nem de sano positiva atributiva. O subsdio um tpico instituto que assume o carter de sano positiva atributiva, mas pertence seara do Direito Financeiro. Nem a concesso de crdito presumido pode ser caracterizada como tal, uma vez que apenas promove a reduo do tributo que deveria ser pago. Caso ultrapasse tal valor, por definio, assume a natureza prpria das regras financeiras e no tributrias.
6.9. O TEMPO CARACTERIZADOR DA EXTRAFISCALIDADE O tempo aspecto essencial para caracterizar a natureza dos enunciados lingsticos segundo a funo pragmtica. aspecto de natureza lgica decorrente da funo pragmtica prpria do enunciado. A sinalizao do trnsito pode apresentar carter meramente informativo; pode se caracterizar como um simples enunciado altico; por exemplo, uma placa que sinalize dobre esquerda no quilmetro x para entrar no Municpio tal apresenta o carter informativo, mais especificamente de um aviso. Mas e se, por equvoco, tiver sido posicionada aps a entrada, de tal forma que o condutor s possa v-la logo depois de passar o referido quilmetro? Como a comunicao s se estabelece para o destinatrio aps o momento em que ele poderia ter adotado o caminho desejado, perde a sinalizao o carter de aviso, para assumir a natureza de notcia. Ambos, aviso e notcia so enunciados descritivos, mas se distinguem em razo do aspecto temporal da comunicao em relao ao comportamento descrito. O mesmo se diga das placas de carter normativo, tais como proibido ultrapassar, trafegue abaixo de tal velocidade, etc. Caso sejam posicionadas aps o trecho em relao ao qual pretendia a autoridade conformar as condutas automobilsticas, perdem totalmente essa aptido; deixam de ser eficazes. O tempo , assim, aspecto essencial para a caracterizao dos enunciados lingsticos e das normas como tal. O mesmo deve se creditar quelas que cumprem funo extrafiscal, como j observou SCHOUERI, Tendo elas a funo de modificar 181 comportamentos do contribuinte, no podem elas atingir situaes sobre as quais o contribuinte j no tem mais qualquer controle ou influncia 196 . Se a extrafiscalidade o emprego de tributo com a funo de sano e as sanes so normas destinadas ao estmulo e desestimulo de condutas (o estimulo de uma conduta implica necessariamente o desestmulo da conduta oposta); ento, devem ser validas antes da ocorrncia do comportamento. dito que as sanes negativas no podem ser aplicadas em relao a fatos pretritos, porque assim se feriria o primado da irretroatividade. A no retroatividade de sanes negativas decorreria, dessarte, de uma vedao prpria do nosso ordenamento; sua natureza seria dentica. No exemplo anterior, a autoridade de trnsito no poderia aplicar a multa pelo descumprimento da sinalizao em razo de o motorista s ter tomado dela conhecimento aps a prtica do comportamento. Em verdade, a no retroatividade de sanes negativas tem contornos mais estritos; pois sua impossibilidade de natureza lgica. No queremos dizer que a Lgica impede a retroatividade da imposio de conseqncias negativas a comportamentos passados. Evidentemente, nenhuma formulao lgica impede tal imposio. Note-se que, por razes lgicas, impossvel existir um cavalo maior que um co maior que um gato que seja menor que o prprio gato; mas no impossvel que a autoridade de trnsito aplique a multa, mesmo tendo sido a placa posicionada de forma equivocada. Em suma, no h impossibilidade lgica da aplicao retroativa de conseqncias negativas; o que, de fato, impede a retroatividade de tais conseqncias uma determinao de carter dentico. Como podemos, ento, afirmar que a retroatividade de sanes negativas decorre de impossibilidade lgica e no dentica? As sanes foram definidas como enunciados aptos a estimular ou desestimular condutas; assim, independentemente de serem negativas ou positivas; necessariamente devem ser anteriores ao comportamento que se deseja conformar. Enunciados negativos podem ser vinculados a comportamentos pretritos, mas no se caracterizam como sanes em razo da premissa pragmtica concebida.
196 SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 271. 182 Isso fica claro justamente ao analisarmos as sanes de carter positivo. O ditame, de natureza dentica, da irretroatividade no abarca sanes positivas. Uma lei publicada aps uma guerra pode premiar combatentes por atos de bravura. Esses prmios, contudo, no apresentam a natureza de sano, pois no foram institudos com o fito de estimular a prtica de tais atos. Para uma regra ser caracterizada como sancionatria, diante da premissa pragmtica adotada, necessrio ser pretrita em relao s condutas para as quais pretende vincular conseqncias. A extrafiscalidade, por corresponder funo sancionatria de regras de natureza tributria, deve atender mesma premissa.
6.10. ENUNCIADOS DE BLOQUEIO FUNO EXTRAFISCAL Se, por um lado, as regras tributrias podem ser empregadas com a finalidade de promover ou desestimular comportamentos; por outro, deve-se conjecturar a presena de regras no ordenamento que probam o estabelecimento de regra tributria com essa finalidade. A tais regras, denominaremos enunciados de bloqueio. Os enunciados de bloqueio, os quais podem se configurar como princpios ou regras no sentido especfico do termo (conjugao de um antecedente e um conseqente), so emanaes lingsticas prescritivas dirigidas para impedir que a regra tributria seja empregada com o fito de influir no comportamento, seja veiculada com funo extrafiscal. Tais enunciados se quadram na categoria das normas de estrutura. Todavia, devem se localizar em patamares superiores do ordenamento: na Constituio, bem como na Lei Complementar que estabelea regras gerais. As regras de bloqueio podem ser amplas ou parciais. As amplas impedem que o tributo seja empregado em ambos os sentidos: estimular e desestimular comportamentos; ao passo que as parciais visam impedir a extrafiscalidade num s dos sentidos. Assim, podem ser parciais de bloqueio ao estmulo ou de bloqueio ao desestmulo. De fato, encontramos no ordenamento ptrio exemplos de cada um desses tipos possveis de regras de bloqueio. A no-cumulatividade caracteriza-se como um princpio de bloqueio ao emprego de regras de tributao com finalidade extrafiscal em ambos as direes. O manejo, por exemplo, das regras de apropriao e transferncia de crditos do IPI no pode 183 resultar no desestmulo de um modo de produo ou produto em detrimento dos demais, nem o contrrio, vale dizer, estimular uma determinada organizao produtiva ou a produo de determinados bens. A no-cumulatividade, como ser minuciado no captulo nono, visa garantir a neutralidade da tributao, valor componente do iderio liberal 197 . Como regras de bloqueio ao estmulo, o 2, do art. 173, da Constituio Federal, probe a concesso de incentivos para empresas pblicas e sociedades de economia mista em detrimento do setor privado. Por outro lado, a imunidade dos templos de qualquer culto tem a finalidade de impedir que o Estado tribute uma religio com a finalidade de a desestimular em relao s demais religies.
6.11. EXTRAFISCALIDADE RETRIBUTIVA E REPARADORA Um meio sobremaneira eficaz de se produzir conhecimento novo o de verificar se descobertas relativas a um outro ramo ou instituto podem tambm ser aplicadas a outro objeto de estudo. O mesmo procedimento pode ser adotado em relao s sanes. Indiscutivelmente, as sanes negativas a condutas proibidas so as que possuem a Teoria mais desenvolvida. Adotar essa Teoria como ponto de partida para estudar os demais tipos de sano e, como isso, a extrafiscalidade (o emprego do tributo na funo sancionatria) requer apreciao acurada, mas que deve ser empenhada, pois seus resultados podem ser surpreendentes. Um exemplo de destaque foi adotado por Marrati Ma Gandi. O famoso lder indiano pregava a resistncia pacfica. Aps uma guerra entre castas, um popular entrou em seu recinto, desesperado, com total desesperana, e lhe indagou o que poderia fazer; como poderia viver em paz, aps ter tido seu nico filho assassinado e, como vingana, ter matado uma criana de igual idade da casta rival. O popular no buscava, realmente, uma soluo, pois certamente achava no haver uma. Buscou confrontar irracionalmente seu maior cone Gandi. Nesse momento, o Lder Indiano disse-lhe que deveria encontrar criana da casta rival, rf da mesma batalha, e acolh-la como se fosse seu prprio filho, mas o criasse segundo a cultura dos seus pais falecidos. Nesse exato instante, o popular se ajoelhou, agradeceu, e se retirou com o esprito pacificado. Belo exemplo de sano positiva anloga pena de talio; o princpio inaugurado por escrito no Cdigo de
197 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Tributrio Brasileiro, p. 633, A expanso do Estado Econmico leva superao da tese da neutralidade tributria, to defendida no liberalismo. 184 Hamurabi olho por olho, dente por dente empregado, no para punir, para sangrar, para ferir, mas para apaziguar, para remir, para curar. Gandi, usou um princpio relativo a penas, mas com um propsito diverso. Em seara, desta vez jurdica, Bobbio aventou a possibilidade de as sanes premiais tambm poderem apresentar funes equivalentes s das sanes negativas: [...] las sanciones negativas se distinguen habitualmente en medidas retributivas o penas propiamente dichas y en medidas reparadoras, como el resarcimiento del dao: las primeras afectan a la accin no conforme en s misma y las segundas tratan de poner remedio a las consecuencias de la accin no conforme. Esta distincin puede ser tambin aplicada a la sanciones positivas. Hay sanciones positivas, como los premios, que tienen funcin exclusivamente retributiva: son una reaccin favorable a un comportamiento ventajoso para la sociedad. Pero puede haber tambin saciones positivas que tienden a compensar al agente de los esfuerzos y trabajos hechos ou de los gastos sufridos para procurar una ventaja a la sociedad; estas sanciones tienen valor no de mero reconocimiento sino (tambin) de compensacin. Se pueden llamar, mejor que premios, indemnizaciones 198 . Uma vez concebida a extrafiscalidade como o emprego de tributo na funo de sano e acolhida a proposta realizada pelo saudoso jurista italiano em classificar as sanes premiais tambm entre retributivas e reparadoras, cumpre verificar a extrafiscalidade com a funo retributiva e com a funo reparadora. Essa investigao no deve ser realizada, contudo, apenas de forma especulativa. S faz sentido diferenciar institutos jurdicos sob qualquer aspecto se houver distino entre seus regimes jurdicos. A diferenciao entre sanes negativas retributivas e reparadoras sobremaneira importante, porque seus regimes so distintos. Num exemplo, as sanes reparadoras so passveis de transmisso a terceiros, ao passo que as retributivas no podem 199 , como assinala Regis de Oliveira: Transmitem-se apenas as sanes reparatrias. J as punitivas, como objetivam apenas castigar o infrator, para que no torne a descumprir o comando normativo, aplicam-se apenas ao prprio infrator... 200 . Assim, no basta cogitar a existncia de extrafiscalidade retributiva e reparadora. necessrio tambm verificar se as duas so legitimadas pela nossa ordem
198 BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho, p. 385. 199 Numa investigao mais acurada, constatamos a possibilidade de transmisso na sucesso empresarial (Mendes. A estrutura lgico-formal da sano pecuniria no direito tributrio, p. 206-208). 200 OLIVEIRA, Regis Fernandes. Infraes e sanes administrativas, p. 15. 185 jurdica, localizar exemplos, e, principalmente, apontar as distines (se houver) entre seus regimes jurdicos. A principal distino entre seus regimes jurdicos diz respeito possibilidade de revogao. As reparadoras no podem ser revogadas, uma vez que o particular tenha incorrido em gastos decorrentes do estmulo da norma. Um exemplo o drawback- suspenso. A norma que cria tal incentivo, caso revogada no nterim entre a importao com a suspenso de tributos aduaneiros e a exportao dos bens confeccionados com tais insumos, no pode impedir que tal benefcio se consolide como uma iseno. Essa posio fundamenta o que dispe o art. 178 do CTN: A iseno, salvo se concedida por prazo certo e em funo de determinadas condies, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo.
6.12. RELAES LGICAS ENTRE FINALIDADE FISCAL E EXTRAFISCAL Por razes lgicas, na medida que se ampliam os fins extrafiscais de uma exao, so reduzidos os fins fiscais e vice-versa. Se um comportamento indesejado, o meio extrafiscal para inibi-lo o aumento do nus fiscal. Todavia, tal aumento no implicara em inteno de incrementar a arrecadao justamente por que se intenta a reduo da prtica da conduta. Por outro lado, se a finalidade a do incentivo de uma prtica, o meio extrafiscal o da desonerao. Essa relao entre finalidades fiscais e extrafiscais fica evidente nas hipteses-limite. O mecanismo mais eficiente para incentivar uma determinada atividade por meio de norma tributria desoner-la totalmente do nus fiscal atravs de isenes. Evidentemente, nesse caso, a arrecadao ser nula e, conseqentemente, a finalidade fiscal tambm. No existe, a princpio, exemplo de regra tributria no extremo oposto, ou seja, no qual a mxima finalidade extrafiscal de desestimular implique nenhuma finalidade fiscal, uma vez que o tributo no pode exercer (por definio legal) a funo de sano negativa vinculada a condutas proibidas. So as multas que se situam nessa posio, mas valem para demonstrar a formulao lgica. Se o intento jurdico for o de impedir totalmente as prticas de uma determinada conduta, ela ser modulada como proibida e lhe ser imputada uma multa. Se concretamente fosse cumprido o intento jurdico, nenhuma conduta ser praticada e no haveria incidncia de multas. Logo, o escopo jurdico jamais poder ser arrecadador. 186 Em suma, quo mais intensas as finalidades extrafiscais independentemente da direo (estimular ou desestimular), menores as finalidades fiscais. Um exemplo tpico o do imposto de exportao. Exceto em raras situaes, intensamente desejvel estimular as exportaes; desta forma, esse imposto simplesmente no institudo. Por ser um tributo tipicamente extrafiscal, a sua funo fiscal fica sobremaneira esvaecida. Outro exemplo diz respeito ao ITR. A Emenda Constitucional n 42/03 atribuiu a faculdade aos Municpios de assumirem as funes de arrecadar e fiscalizar esse imposto e, com isso, ficarem como receita prpria a totalidade dos valores arrecadados. Todavia, manteve a competncia tributria privativa da Unio. Ora, se todos os Municpios exercessem a faculdade concedida, nenhum valor se constituiria como receita da Unio. Para ela, nesse limite, o tributo no teria qualquer finalidade fiscal. Para que ento manter com a Unio o poder legiferante? Para que o ITR cumpra a sua funo extrafiscal de forma uniforme em todo o Territrio Nacional de desestimular a manuteno de propriedades improdutivas.
6.13. RELAES SINTTICAS ENTRE REGRAS E PRINCPIOS Princpios so preceitos irradiadores de valor; seu propsito o de imantar grandes blocos de regras, atra-los numa certa direo. So os enunciados tpicos para se introduzirem no direito positivo os valores considerados relevantes pelo legislador; no znite de nosso ordenamento, pelo prprio constituinte. Como bem observa Paulo de Barros Carvalho, os princpios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreenso de setores normativos, imprimindo-lhes carter de unidade relativa e servindo de fator de agregao num dado feixe de normas. Exercem eles uma reao centrpeta, atraindo em torno de si regras jurdicas que caem sob seu raio de influncia e manifestam a fora de sua presena 201 . No seria, assim, prprio dos princpios governar situaes especficas; no lhes competiria disciplinar diretamente a conduta social. Tal papel seria nsito s regras, isto , s normas em seu sentido estrito. Haveria, dessa sorte, segundo destacados juristas dentre eles, Eros Grau uma distino lgica entre esses dois tipos de enunciados
201 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 257. 187 prescritivos. Enquanto as regras seriam aplicadas ou no aplicadas, num modelo tudo-ou- nada; aplicar princpios importa faz-lo em doses: maiores num caso, menores noutros 202 . Para Grau, H, em primeiro lugar, uma distino lgica apartando os princpios das regras jurdicas [...] As regras jurdicas so aplicveis por completo ou no so, de modo, aplicveis. Trata-se de um tudo ou nada. [...] J os princpios jurdicos atuam de modo diverso: mesmo aqueles que mais se assemelham s regras no se aplicam automtica e necessariamente quando as condies previstas como suficientes para sua aplicao se manifestam 203 . Essa definio inspira-se na concepo pontiana de que a incidncia fenmeno que se processa inapelavelmente, como se fosse um raio provindo dos cus, onde pairam as nuvens normativas, e atingissem a terra, plano das realizaes humanas. No compartilhamos, contudo, dessa viso. Para ns, na linha da Teoria desenvolvida por Paulo de Barros Carvalho, a incidncia uma marcha de positivao em que a interveno humana na produo de cada um dos seus passos ingente. Assim, a diferena que Grau faz entre princpios e regras no nos atende. Apesar disso, indicativa. Os princpios, por si s, no possibilitam a realizao da marcha de positivao. S as regras apresentam essa atribuio. A est a marca lgica dentica essencial entre regras e princpios. Os princpios imprimem direo interpretao das regras jurdicas, mas tambm so edificados por meio dessas mesmas regras. Verificamos, no captulo relativo investigao semntica que, a significao edificada num processo de cunho dialtico: partes menores de significao determinam a interpretao do todo, mas a significao do todo tambm determina a interpretao das partes. Princpios expressos determinam a formulao e a interpretao das regras, mas as prprias regras determinam a interpretao destes princpios. Num processo ainda mais complexo, as regras se constituem do material lingstico para a formulao dos princpios implcitos; e estes retornam para fixar a direo interpretativa das prprias regras que o constituram.
202 Mesmo entendimento apresenta SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 11: na hiptese de se entrecruzarem vrios princpios, sua resoluo se pondera a partir do peso relativo de cada um deles, o que, naturalmente, no se d de modo exato. Esta dimenso no est presente nas regras, seno necessrio, na hiptese de confronto de regras, determinar qual delas prevalece e se aplica, no lugar de outra, que fica afastada. 203 GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988, p. 97-98. 188 As regras jurdicas so o ponto de partida para, num processo indutivo, serem edificados os princpios implcitos do ordenamento. A partir de sub-conjuntos de significantes prescritivos, h vrias possibilidades de edificao de regras jurdicas; cada qual apontada numa direo. Abaixo, segue um esquema com cinco sub-grupos em relao aos quais foram edificadas trs normas distintas:
Observadas isoladamente, no h como o intrprete estabelecer qual das trs regras (dos trs significados) deve prevalecer. 189 Todavia, s um significado de cada sub-grupo de significantes apresenta algo em comum (um ponto de convergncia) com significados dos demais sub-grupos.
190 Esse ponto de convergncia o princpio recm erigido, o qual determina a interpretao (a regra jurdica) que deve prevalecer para cada sub-grupo de significantes:
191 Esse processo de interpretao similar quele que o Fsico realiza para determinar a lei que governa fenmenos naturais. A queda de uma maa, a rotao da Lua ao redor da Terra e o movimento de planetas em torno do Sol, cada qual com suas particularidades, poderiam ser interpretados isoladamente de diversas formas. As formulaes de Kepler eram vlidas para interpretar o movimento dos planetas, mas no para explicar a queda de uma ma. Foi Newton quem identificou o princpio nico (a lei da gravitao universal) que determina cada um desses fenmenos aparentemente distintos. Nesse caso, podemos dizer que as leis de Kepler estavam erradas? E as do prprio Newton depois da Relatividade de Einstein? No houve erros, mas apenas uma sucesso de interpretaes, cada qual mais desenvolvida que a anterior. E sempre ser possvel a elaborao de mais uma a partir da atual. O mesmo pode ser dito em relao interpretao jurdica. Aquela que edifica princpios implcitos capazes de unificar sistematicamente conjuntos maiores de normas mais desenvolvida e supera a anterior. O Fsico, contudo, no se indaga com qual inteno foi formulada a lei natural. A ma cai por qu? Os planetas giram ao redor do Sol com qual finalidade? So perguntas que no faz sentido, pois estes fenmenos so signos naturais, destitudos, pois, de intencionalidade. J a interpretao jurdica deve sempre se focar no escopo do discurso prescritivo, uma vez corresponder a um signo convencional e, porquanto, intencional.
6.13.1. O lugar sinttico das regras e dos princpios Por razes de natureza sinttica decorrentes de suas caractersticas semnticas diversas, os princpios devem se situar em patamares lingsticos hierarquicamente mais elevados que as regras no sentido estrito. No ordenamento ptrio, aqueles devem partilhar o patamar hierrquico do texto constitucional, enquanto as regras a seara das manifestaes legislativas. Num processo de semiose, a lei o significante de um signo mais desenvolvido que a Constituio e as regras tambm so mais desenvolvidas que os princpios. Na semiose jurdica, necessariamente um signo mais desenvolvido deve ser de hierarquia inferior ao de menor desenvolvimento semntico.
192
6.13.2. O consenso principiolgico e a dissenso normativa Ao afirmar que devemos cuidar bem de nossos filhos, que uma boa morada deve sempre ter temperatura amena e que a leitura enobrece o homem, dificilmente algum ir se opor a tais colocaes. No entanto, ao dizer que conveniente obrigar nossos filhos a estudar 4 (quatro) horas por dia, mesmo durante as frias, que um ambiente a 10 Celsius aconchegante e que ler folhetins erticos de banca de jornal aumenta nosso arcabouo cultural, provavelmente vamos ser contraditados pelo menos quanto a uma dessas posies pela maioria das pessoas. Podemos reparar que os dois pargrafos anteriores trazem trs afirmativas sobre idnticos assuntos. Por que razo ento o primeiro grupo mais consensual que o segundo? Seriam as primeiras colocaes mais razoveis que as segundas? Cremos que no. O primeiro grupo de colocaes mais consensual apenas por ser mais vago que o segundo. Assim, em razo de sua maior vagueza, cada um dos participantes do processo comunicativo pode enquadrar suas expectativas. consenso que devemos tratar bem nossos filhos, mas uns podem considerar que assim procedem se os deixam livres para agir com bem entenderem, ao passo que outros consideraro que devem atuar com mais firmeza na conduo das aes de seus rebentos. Em todas as searas sociais e, portanto, lingsticas, essa questo est presente. No plano internacional, atualmente, no h dissenso relevante que o aquecimento global um grave risco para toda a humanidade para povos ricos e pobres, para naes desenvolvidas, emergentes ou subdesenvolvidos e que medidas devem ser adotadas para restringir esse efeito decorrente das emisses de carbono pela queima de combustveis fsseis. Mas, quais medidas? Em que prazo? Por quem? Toda e qualquer resposta a essas indagaes decorrentes de uma posio consensual no ser nada consensual por um s motivo: so especficas, guardam menor grau de vagueza. O mesmo se diga dos enunciados jurdicos. Quo mais vagos, mais consensuais o so; medida que se tornam especficos, aumenta o dissenso. 193 Os princpios so os enunciados normativos que atingem o maior grau de vagueza. , por isso, que no h grandes divergncias acerca de colocaes sobre este ou aquele princpio. E o discurso doutrinrio a eles relativos alcana o mais alto grau de aceitao e, num certo aspecto, popularidade. O mesmo no se diga acerca da edificao das unidades normativas aptas para conformar as condutas intersubjetivas. Quantas no so as discusses se tal ou qual regra pode, de fato, ser edificada a partir do texto legislado; se um dado fato se subsume norma; etc. medida que a cadeia de positivao marcha das camadas mais altas do ordenamento (mais vagas, portanto) para os nveis hierrquicos inferiores (mais especficos, pois), maiores so as controvrsias, as discordncias, os dissensos judiciais e doutrinrios. Os princpios so preceitos normativos mais vagos, mais consensuais e, assim devem se localizar nos patamares superiores da ordem jurdica. As regras, mesmo as gerais e abstratas, so, por seu turno, preceitos mais especficos, menos consensuais e devem se localizar nos nveis inferiores do ordenamento. interessante notar que raramente os princpios so revogados; o mesmo no se diga das regras jurdicas. Numa mesma ordem jurdica, geralmente h acrscimos de princpios e no revogaes, como a incluso do Primado da Eficincia no art. 37 da Constituio Federal pela EC n 19/98. O ordenamento se consubstancia como uma estrutura em que texto edificado sobre texto. A viso piramidal tem a finalidade de ilustrar a relao hierrquica entre as regras que o compem. Nada obstante, tambm pode ser representado por uma estrutura submetida a foras que tendem a modific-lo, como a gravidade ao agir sobre uma construo, de tal forma que as regras sustentadoras devem se situar na base e possuir uma substncia mais slida e firme. Tais normas devem assumir um carter mais consensual e, para isso, so mais vagas.
6.14. ESTRUTURA SINTTICA DA NORMA EXTRAFISCAL Todo tributo pode ser adotado com finalidades diversas daquela de levar dinheiro aos cofres pblicos. Assim, consideramos no haver qualquer aspecto essencial do ponto de vista sinttico que possa ser atribudo s normas tributrias extrafiscais. 194 A finalidade no altera a homogeneidade sinttica interna da norma. A extrafiscalidade aspecto inter-normativo (entre normas) e no intra-normativo. 195
PARTE III: EXTRAFISCALIDADE E REGIME JURDICO
196 CAPTULO VII: REGIME CONSTITUCIONAL DA EXTRAFISCALIDADE A interpretao jurdico-cientfica tem de evitar, com o mximo cuidado, a fico de que uma norma jurdica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma s interpretao: a interpretao correta. KELSEN, Hans; Teoria Pura do Direito, p. 396.
Como j estipulamos no primeiro captulo, a semiose sem fim. Esto sempre presentes novas possibilidades de interpretao do texto do direito positivo. Esse atributo da semiose designado por Paulo de Barros Carvalho como axioma da inesgotabilidade de sentido 204 . Todavia, tal processo no se consubstancia num eterno reiniciar. Em geral, cada re-interpretao est esteada no s no texto de base nas dices legislativas mas tambm e, em especial, est atrelada s interpretaes que lhe precederam, ainda que para contest-las. Dessa sorte, ao investigarmos o regime jurdico tributrio e os aspectos extrafiscais de sua configurao no pretendemos exaurir o tema por ser uma tarefa cognoscitiva impossvel. Ademais, nos dedicaremos precipuamente investigao do regime no nvel das disposies constitucionais. Mesmo a anlise da extrafiscalidade no nvel das formulaes infraconstitucionais, empreendida nos captulo seguintes ao atual, ser, preferencialmente, exemplificativa e esteada no plano das normas localizadas no pice de nossa ordem jurdica. Essa deciso metodolgica decorre da prpria extenso do tema, que nos obriga a realizar um preciso corte no enorme feixe de disposies legais veiculadoras de mensagens extrafiscais. Optamos, assim, por tratar daquelas disposies dotadas de maior estabilidade temporal e, principalmente, superioridade hierrquica, o que as coloca num patamar de maior relevncia.
204 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 193-194. 197
7.1. REGIME JURDICO TRIBUTRIO Devemos atentar para o alerta de Paulo de Barros Carvalho: Considerando a extrafiscalidade no uso de frmulas jurdico-tributrias para a obteno de metas que prevalecem sobre os fins simplesmente arrecadatrios de recursos monetrios, o regime que h de dirigir tal atividade no poderia deixar de ser aquele prprio das exaes tributrias. Significa, portanto, que, ao construir suas pretenses extrafiscais, dever o legislador pautar-se, inteiramente, dentro dos parmetros constitucionais, observando as limitaes de sua competncia impositiva e os princpios superiores que regem a matria, assim entendidos tanto os dispositivos expressos quanto os implcitos. No tem cabimento aludir-se a regime especial, visto que o instrumento jurdico utilizado invariavelmente o mesmo, modificando-se to- somente a finalidade do seu emprego 205 . Cnscios do alerta 206 , no podemos, contudo, deixar de apontar algumas outras sutilezas acerca da extrafiscalidade e sua relao com o regime jurdico-tributrio. Em primeiro lugar, pretenses extrafiscais podem advir no s do legislador, mas tambm diretamente do prprio Constituinte. Assim o faz direta e expressamente ao determinar s Pessoas Polticas que dispensem s empresas de menor porte tratamento tributrio simplificado e favorecido (art. 179, CF). Alis, ainda sob a gide da Constituio anterior, Fbio Fanucchi j alertava do status constitucional da extrafiscalidade: H, inclusive, manifestaes de extrafiscalidade na prpria Constituio brasileira e relativas a determinados impostos (...) podendo-se dizer, ento, que existem tributos extrafiscais j por origem constitucional 207 . Em segundo lugar, ao estatuir os valores superiores a serem perseguidos pelo legislador, impe, mesmo de forma implcita, que as exaes tributrias, criadas com o fito de diretamente influir nas condutas sociais, estimulem aquelas que mais se adeqem aos valores proclamados e desestimulem s opostas. Dessarte, as finalidades extrafiscais, de fato, longe de possurem a aptido para caracterizarem um regime jurdico tributrio especial, estipulam o prprio desenho do regime tributrio geral, vale dizer, daquilo que o prprio Constituinte designou por Sistema Tributrio Nacional.
205 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributrio, linguagem e mtodo, p. 241. 206 A mesma advertncia feita por TORRES, Ricardo Lobo em Tratado de direito tributrio brasileiro, v. II, tomo II, p. 635-636. 207 FANUCCHI, Fbio. Curso de direito tributrio brasileiro, p. 56. 198 O Sistema Constitucional Tributrio no s est repleto, mas principalmente sortido de regras enunciadas com ntida pretenso extrafiscal. As regras constitucionais de natureza extrafiscal alm de abundantes, so sobremaneira variegadas, tanto em relao sua natureza sinttica, quanto no tocante sua especfica finalidade: normas que autorizam a edio de outras normas com o intento extrafiscal; normas que determinam e at normas que probem. Ademais, as finalidades so as mais diversas: de natureza setorial e regional; normas que podem ser adotadas por todos os Entes Federados ou por apenas um deles; etc.
7.2. OS ESCOPOS CONSTITUCIONAIS Conforme leciona Jos Afonso da Silva 208 , a Constituio Brasileira adota o modelo dirigente. sobremaneira minuciosa ao conduzir o Legislativo e os demais Poderes a adotar medidas conforme finalidades estatudas. Tece no s escopos, mas tambm diretrizes, limites, condies e at, no raro, os meios a serem adotados para a consecuo dos fins pretendidos. Tantos pormenores no patamar superior da ordem jurdico-nacional decorrem do momento histrico em que se situou o constituinte para edificar um ordenamento jurdico capaz de atender, a um s turno, o clamor por novas e vastas conquistas sociais, sem deixar de firmemente garantir direitos individuais prprios da concepo poltico- liberal. no equilbrio entre o modelo liberal-clssico, que conclama a presena mnima estatal a fim de possibilitar a realizao mxima da personalidade humana por meio de sua liberdade de escolha e de ao, e o social-intervencionista, segundo o qual o Estado a nica organizao social capaz de saciar as necessidades bsicas daqueles incapazes de se auto-prover, bem como de conter as foras destrutivas internas do modo produtivo capitalista, que se assentam os ditames de nossa Constituio; e para se manter eqidistante entre ideologias aparentemente antagnicas, necessariamente precisa ser minuciosa. O compromisso entre duas concepes ideolgicas, supostamente irreconciliveis, imps ao constituinte um enorme esforo enunciativo. Exigiu a adoo de uma moldura constitucional dirigente; repleta, assim, de ditames que governam a atuao dos Poderes Pblicos, pormenor a pormenor.
208 SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 135-166. 199 O Capitalismo o modelo jurdico-econmico contemplado pela Constituio e, assim, bens produtivos e modo de produo devem essencialmente ficar sob domnio privado. Essa opo se esteia na premissa de a liberdade econmica viabilizar a ao da lei causal da competio, que estimula agentes privados a produzir mais, melhor e com menos recursos materiais e humanos, o que conduz ao contnuo incremento quantitativo e qualitativo das utilidades disponveis para toda sociedade. Essa viso sobremaneira otimista acerca do liberalismo econmico foi rechaada pela Histria, apesar de retornar periodicamente como doutrina dominante por meio de contornos tericos mais rebuscados, como no atual Neoliberalismo, cuja apregoada desregulamentao financeira levou quase desintegrao do sistema financeiro mundial neste ano de 2008. Alm do Capitalismo, nos moldes do Liberalismo Clssico, no promover a alocao econmica da forma mais condizente com os anseios do grosso das naes e suas populaes, a concepo da liberdade exacerbada, a total ausncia de regulao das foras produtivas, resultam, no raro, na prpria destruio das bases capitalistas. A experincia humana comprovou que o Estado no a nica forma de organizao social repressora; os prprios detentores privados do capital sem os controles adequados reprimem o desenvolvimento alheio e destroem, de tempos em tempos, a si mesmos. O Capitalismo, numa moldura jurdica liberal clssica, pode ser comparado a um alazo selvagem, dotado de tamanha fora motora, que num irrefreado impulso a galope pode no s esmagar criaturas menores, mas at mesmo fraturar suas prprias pernas. Deve, portanto, ser guiado rdea-curta, sob pena de derrubar e ferir de morte seu prprio condutor o Estado. Dessa forma, o modelo constitucional brasileiro compromete-se, a par de configurar-se economicamente capitalista, com o determinante papel regulamentar tendo por escopo mitigar as fraquezas desse modelo, em especial, pela manuteno de suas bases, isto , a liberdade concorrencial e a re-alocao produtiva; ademais, apresenta destacada inspirao social. Busca prover a populao dos meios mnimos necessrios para uma vida digna. Elege igualmente o compromisso de dotar a populao em geral de inmeros direitos considerados, ao lado da liberdade, essenciais: a sade, a educao, a cultura, etc. O equilbrio entre esses dois modelos o Capitalista-liberal e o Intervencionista-social informa toda a ordem jurdico-constitucional e, portanto, seus 200 setores, como o Sistema Tributrio Nacional. Ao lado de enunciados constitucionais tpicos do primeiro modelo, como os princpios da legalidade tributria, da anterioridade, do no-confisco, as imunidades dos templos de qualquer culto e dos partidos polticos, a vedao a concesso de incentivos fiscais a empresas pblicas e sociedades de economia mista em detrimento do setor privado, h um sem nmero de outros que buscam, mediante regras tributrias, cumprir as funes regulatrias e assistenciais, tais como a seletividade do IPI, a diferenciao das alquotas do ITR em razo da produtividade da terra, a progressividade no tempo do IPTU, as excees aos princpios da estrita legalidade na fixao das alquotas dos impostos regulatrios (II, IE, IPI e IOF), dentre tantos outros.
7.3. A EXTRAFISCALIDADE CONSTITUCIONAL O emprego do tributo com o fito de influir nas condutas sociais atividade legiferante no s autorizada pela Constituio Federal ora implcita, ora explicitamente , como tambm, em algumas hipteses, obrigatria. A maioria das disposies constitucionais franqueia ao legislador o poder para estatuir exaes tributrias com finalidades extrafiscais. O artigo 151, inciso I, por exemplo, traz uma hiptese explcita ao proibir a Unio de instituir tributo que no seja uniforme em todo o territrio nacional ou que implique distino ou preferncia em relao a Estado, ao Distrito Federal ou a Municpio, em detrimento de outro, admitida a concesso de incentivos fiscais destinados a promover o equilbrio do desenvolvimento scio-econmico entre as diferentes regies do Pas, vale dizer, com a exceo ao princpio da uniformidade geogrfica, permite expressamente Unio fomentar, por meio de desoneraes tributrias, o desenvolvimento social e econmico de rinces menos favorecidos do Pas. Encontramos outras autorizaes explcitas para adoo da extrafiscalidade na seletividade do ICMS (art. 155, 2, III), na possibilidade de diferenciao de alquotas do IPTU em razo da localizao e do uso do imvel (art. 156, 1, II), e do IPVA em funo do tipo e utilizao do veculo (art. 155, 6, II), dentre outras. No mesmo sentido, mas implicitamente, o art. 152, permite Unio diferenciar produtos e servios em razo da sua origem e destino, uma vez que s probe Estados, Distrito Federal e Municpios de estabelecer diferena tributria entre bens e servios, de qualquer natureza, em razo de sua procedncia ou destino. Assim, por 201 exemplo, pode a Unio, por meio do imposto de importao, impor uma tributao mais onerosa no ingresso de produtos chineses em relao ao ingresso de produtos argentinos. De igual forma, pode onerar a importao e a exportao de servios de forma diferenciada em razo o Estado de origem e de destino mediante a imposio de uma contribuio de interveno no domnio econmico. A extrafiscalidade constitucional no se esgota nas disposies que autorizam o legislador a empregar tributos com fins outros que no meramente fiscais. Vrias so as imposies. Alm da regra prevista no art. 179 que determina s Pessoas Polticas dispensar tratamento tributrio favorecido e diferenciados s empresas de menor porte, outras tantas estabelecem o dever para o legislador edificar exaes tributrias que atendam a intuitos de natureza extrafiscal, tais como a seletividade do IPI (art. 153, 3, I) e a fixao das alquotas do ITR de forma a desestimular a manuteno de propriedades improdutivas (art. 153, 4, I). Em suma, o Sistema Tributrio Nacional repleto de normas permeadas por intensos pressupostos extrafiscais. Essa intencionalidade originria e, assim, no pode ser considerada como atributo estranho do Regime Jurdico Tributrio. As determinaes extrafiscais so preceitos conformadores e essenciais para a correta compreenso do Regime Jurdico Tributrio.
7.4. REGRAS MODULADORAS DA EXTRAFISCALIDADE As regras constitucionais podem ser segregadas em trs tipos de em razo da modulao dentica: (i) regras que autorizam o emprego do tributo com finalidade extrafiscal, (ii) regras que determinam esse emprego e (iii) regras que probem. Como os tributos podem ser empregados (a) para estimular, (b) para desestimular, e (c) com ambas finalidades; teoricamente, pode haver nove tipos de regras constitucionais. Cumpre-nos verificar se h exemplos de cada um desses tipos.
7.4.1. Regras autorizadoras H diversas regras dirigidas especificamente com a finalidade de autorizar as pessoas polticas a empregar tributos de sua competncia com o escopo de conformar condutas humanas: umas para desestimular, algumas para estimular, outras em ambos os sentidos sancionatrios. 202 O art. 155, 2, inciso III, autoriza ao legislador adotar o critrio da seletividade para fixar as alquotas do ICMS, o qual pode ser adotado tanto para estimular a produo e o comrcio de determinados bens, quanto para desestimular. A Unio pode estabelecer incentivos regionais (art. 43, 2, inciso III). Destaque-se que essa autorizao apenas para o estabelecimento de extrafiscalidade positiva. No pode ser estabelecida uma tributao maior para a regio mais desenvolvida do Pas. J o artigo 182, 4, inciso II, faculta ao Poder Pblico municipal estabelecer o IPTU progressivo no tempo do proprietrio de solo urbano no edificado, subutilizado ou no utilizado, nos termos do plano diretor. Evidentemente, h uma faculdade de emprego negativo de tributo.
7.4.2. Regras impositivas So aquelas que determinam o emprego do tributo com finalidade extrafiscal. Tambm podem ser segregadas em trs tipos, os quais tambm so representados em nossa Carta Suprema. Se por um lado, o art. 163, 4, inciso I, impe que o imposto territorial rural tenha suas alquotas estabelecidas de forma a desestimular a manuteno de propriedades improdutivas, o que implica um reforo negativo; por outro, o art. 179 determina que as Pessoas Polticas estabeleam um tratamento tributrio diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte visando a incentiv-las. Por ltimo, o rt. 153, 3, inciso I, determina a adoo da seletividade para a instituio do IPI, o que impe extrafiscalidade positiva para certas situaes e negativas para outras.
7.4.3. Regras bloqueadoras As imunidades so, em geral, regras que impedem as Pessoas Polticas de empregar tributos com finalidade extrafiscal. No faz sentido afirmar que um estado laico ao imunizar os templos de qualquer culto, o faz com a finalidade de fomentar a religiosidade de seus cidados. Parece-nos evidente que a sua finalidade a de impedir a instituio de impostos que se destinem a desestimular uma religio em detrimento de outra. Esse caso de bloqueio da extrafiscalidade negativa. 203 O art. 173, 2, ao estipular que as empresas pblicas e as sociedades de economia mista no podero gozar de privilgios fiscais no extensivos s do setor privado determina um bloqueio do uso da extrafiscalidade positiva em favor de entidades estatais que atuem no domnio econmico. Por fim, a no-cumulatividade dirigida como um critrio obrigatrio para a instituio do IPI e do ICMS, impe que estes impostos sejam neutros no que diz respeito ao modo produtivo. Impede, assim, o estmulo e o desestmulo.
7.5. EXTRAFISCALIDADE E REGRAS DE EXIGNCIA FORMAL As regras analisadas no tpico precedente foram classificadas em razo do contedo. So regras de estrutura que determinam o tipo de contedo das regras de condutas veiculadoras em funo de finalidades extrafiscais. Todavia, h ainda um tipo de regras que determinam a forma em razo do contedo de natureza extrafiscal. Na Constituio Federal, h trs regras com essa caracterstica. Duas so relativas ao ICMS e ao ISS. O art. 155, 2, inciso XII, alnea g atribui lei complementar, relativamente ao imposto estadual, a funo de regular a forma como, mediante deliberao dos Estados e do Distrito Federal, isenes, incentivos e benefcios fiscais sero concedidos e revogados. Similarmente, o art. 156, 3, inciso III, relativamente ao imposto municipal, tambm atribui competncia lei complementar para regular a forma e as condies como isenes, incentivos e benefcios fiscais sero concedidos e revogados. Essas duas regras impem exigncia formal para a concesso de favores desses dois impostos com a finalidade de evitar o emprego de regras tributrias para atrair investimentos a um Estado ou Municpio em detrimento dos demais e, com isso, se implante no Pas a denominada Guerra Fiscal. O outro dispositivo o art. 150, 6, segundo o qual, 6. Qualquer subsdio ou iseno, reduo de base de clculo, concesso de crdito presumido, anistia ou remisso, relativos a impostos, taxas ou contribuies, s poder ser concedido mediante lei especfica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matrias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuio, sem prejuzo do disposto no art. 155, 2., XII, g. 204 Esse recurso visa garantir que a inteno jurdica seja mais fiel inteno subjetiva dos legisladores.
7.6. PRECEITOS LIMITANTES E ESCOPOS EXTRAFISCAIS Como j estipulamos anteriormente, a extrafiscalidade no deve ser interpretada como uma carta em branco ao legislador, como um atributo, de tal forma vago, que possibilite a legitimao de toda e qualquer sorte de medida legal e, especialmente, infra-legislativa. O legislador encontra na Constituio Federal demarcaes, em geral, minuciosas para o exerccio do Poder de Tributar, as quais no podem ser maculadas, nem mesmo mitigadas em razo de finalidades extrafiscais. Nada obstante, as prprias finalidades extrafiscais conformam o regime jurdico tributrio e, portanto, os preceitos que o compem. Dessa forma, necessrio investigarmos a relao entre os ditames constitucionais tradicionalmente apontados pela Doutrina e os escopos extrafiscais. H trs tipos de relaes: (i) imposio de limites extrafiscalidade; (ii) a funo extrafiscal colabora para demarcar as fronteiras dos preceitos constitucionais, e (iii) o escopo extrafiscal impe limites no apresentados pela Doutrina tradicional. Com o fito de investigarmos os dois primeiros tipos de relao, valiosa a classificao dos princpios empreendida por Paulo de Barros Carvalho, segundo o qual os princpios podem ser segregados em dois tipos em razo do seu grau de objetividade em (i) princpios como limites objetivos e (ii) aqueles veiculadores de valores. Os primeiros no poderiam ser afetados em razo de escopos extrafiscais; so exemplos: a legalidade tributria; a anterioridade e a noventena. J os segundos seriam conformados pelos prprios escopos extrafiscais; so exemplos: a capacidade contributiva e o no-confisco. O renomado autor, porm, adverte: Apesar a aparente simplicidade operativa, o critrio que anima essa classificao procura transmitir uma objetividade que os valores no tm nem podem ter. A natureza eminentemente subjetiva desses ncleos significativos jamais poder ser aprisionada, como se fora mero fato cosmolgico insularmente levado anlise 209 .
209 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 260. 205 Essa mesma advertncia tambm vale acerca das relaes entre os princpios tradicionalmente consagrados e os escopos extrafiscais. Mesmo aqueles que se apresentam como limites objetivos sofrem, na interpretao de seus lindes demarcatrios, a influncia dos valores cunhados pela extrafiscalidade.
7.7. PRINCPIOS DEMARCATRIOS DA EXTRAFISCALIDADE Respeitado o alerta de que no h preceito constitucional cujo significado pudesse estar imune a sofrer influncia de escopos extrafiscais; h princpios que, de to precisos, demarcam com intensidade as possibilidades de emprego do tributo com o escopo sancionatrio, como a Legalidade Tributria, a Irretroatividade, a Anterioridade e a Noventena.
7.7.1. A Legalidade tributria Diversos so os princpios demarcadores da moldura constitucional do Sistema Constitucional Tributrio, mas a Legalidade Tributria um dos seus pilares mais relevantes. cedio que nossa ordem jurdica est esteada no Primado da Legalidade, o qual foi estampado pelo Constituinte num dos primeiros dispositivos da Carta Suprema, mais especificamente, no art. 5, inciso II: ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei. Em relao s regras disciplinadoras de condutas tributrias, a Constituio foi ainda mais especfica ao prescrever no art. 150, inciso I, que os Entes Polticos esto proibidos de exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabelea. Esse dispositivo no uma mera lembrana para aqueles que devam interpretar o direito positivo no que se refere criao e aumento de tributos, que devem se ater ao primado da legalidade dirigido ordem jurdica como um todo. No se trata de um simples reforo com finalidade apenas de mbito pragmtico. Suas diretrizes so mais rgidas que as passveis de inferncia a partir to-somente da dico do preceito geral. Na seara tributria, a legalidade deve ser interpretada como um ditame sobremaneira rgido para a Administrao Pblica. Em poucas palavras, podemos afirmar que o tributo no deve ser criado apenas em virtude de lei, mas sim na prpria lei. Todos os seus critrios 206 essenciais tudo aquilo que for indispensvel para edificar a mensagem prescritiva completa devem ser veiculados por meio de instrumentos dotados de hierarquia legal. A lei no pode delegar essa funo (a fixao de alquotas, por exemplo) a um diploma a ela inferior, como um decreto, uma instruo ministerial, etc. A rigidez dessas estipulaes no pode ser maleada sob qualquer preceito de natureza extrafiscal, salvo se a prpria Constituio excepcionar o referido princpio, como no caso da fixao de alquotas de quatro impostos federais pelo Executivo, que sero analisados em tpico prprio. Dessa sorte, no pode uma lei estipular uma alquota maior para os produtos que produzam impacto ambiental, atribuindo ao Executivo a competncia para estipular quais produtos causam tal efeito malvolo. Nesse aspecto, a Legalidade Tributria atinge um patamar ainda mais rgido que a Legalidade Penal. Tipificado o crime de trfico de entorpecentes, pode uma autoridade administrativa estipular em cada momento, qual substncia deva assim ser qualificada e o seu comrcio se submeter s conseqncias criminais. No podem, porm, autoridades administrativas fixar o contedo das normas impositivas tributrias sob qualquer justificativa extrafiscal, por mais valiosa que possa ser. Tal atribuio da lei. Normas penais em branco podem ser estatudas; normas tributrias, no.
7.7.2. A Irretroatividade preceito ainda mais rgido que a estrita legalidade. Na precisa lio de Paulo de Barros Carvalho, Lei retroativa aquela que rege fato ocorrido antes de sua vigncia 210 . Ora, se a extrafiscalidade o emprego do tributo com a finalidade de influir no comportamento, no h como escopos de natureza extrafiscal determinarem qualquer tipo de mitigao ao preceito constitucional da irretroatividade. A Irretroatividade, a Estrita Legalidade, a Anterioridade e a Noventena, so primados sobremaneira relevantes de compostura do Sistema Tributrio Nacional. No entanto, os trs ltimos submetem-se a algumas excees, enquanto a Irretroatividade, no. Tais excees decorrem do carter extrafiscal de alguns impostos. Ou seja, entendeu o Constituinte s ser justificvel excepcionar primados to relevantes em razo de escopos extrafiscais considerados ainda mais valiosos. Por meio de
210 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo; p. 292. 207 mitigaes ou excees ao Primado da Irretroatividade, contudo, no possvel atender finalidades extrafiscais (s fiscais poderiam ser atendidos). Em razo disso, esse princpio no enfraquecido por qualquer exceo.
7.7.3. A Anterioridade e a Noventena Conforme a dico constitucional: Art. 150. Sem prejuzo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: (...) III - cobrar tributos: (...) b) no mesmo exerccio financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alnea b;
A alnea b corresponde ao significante do Princpio da Anterioridade, j a alnea c ao da Noventema. Este, porm, s foi dirigido aos tributos em geral pela Emenda Constitucional n 42/03. Antes, a Noventena era princpio especfico relativo s contribuies a seguridade social (Art. 195, 6, da CF). Conforme lio de Carrazza, por traz do princpio da anterioridade est o princpio da segurana jurdica 211 . um princpio com firmes esteios na ideologia liberal e primordial para as bases capitalistas. Um dos aspectos econmicos que inibem o investimento produtivo o risco. A insegurana jurdica, sob o cunho econmico, um dos elementos que afetam essa varivel. Em razo disso, as ordens jurdicas capitalistas devem ser informadas por princpios que prestigiem o valor da segurana. A Anterioridade um princpio que visa garantir a estabilidade e, em especial, a previsibilidade das relaes econmicas no que toca a exigncia tributria. Esse valor, contudo, era freqentemente afetado sempre que uma lei, editada no final do ano, criava ou aumentava um tributo. O Primado da Anterioridade era
211 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 169. 208 objetivamente atendido, mas o valor por ele protegido era maculado. Em razo disso, a Noventena foi dirigida tambm aos tributos em geral. A Anterioridade, porm, tambm excepcionada por alguns tributos; dentre os quais, o imposto de importao, o imposto de exportao, o imposto sobre produtos industrializados e o imposto sobre operaes financeiras; os mesmos que excepcionam em parte o primado da Estrita Legalidade. As razes destas excees so as mesmas, vale dizer, extrafiscais. Assim, seria de se prever que os mesmo impostos no atendessem a Noventena. De fato, trs deles tambm no precisam respeitar o referido princpio. Nada obstante e de forma totalmente incoerente o imposto sobre produtos industrializados no est abrigado por qualquer ressalva. Deve, pois, atender o referido preceito. Por outro lado, o imposto sobre a renda, que se submete ao Preceito da Anterioridade, foi ressalvado da Noventena. Tais excees no guardam qualquer coerncia com a ordem constitucional, a qual, apesar de compromissada com o modelo liberal, mitiga sua moldura sempre que for mais valiosos escopos de cunho interventivo regulatrio ou social, o que no se caracteriza nas excees prescritas na Emenda n 42/03.
7.8. PRINCPIOS DEMARCADOS PELA EXTRAFISCALIDADE Alm dos princpios de demarcao objetiva de limites, h os que estatuem valores e cujas fronteiras so significativamente largas; dentre os quais, a Isonomia, a Capacidade Contributiva e o No-confisco.
7.8.1. A Isonomia Humbeto vila, ao promover um profundo estudo acerca da Igualdade Tributria, assevera que os tributos institudos em razo de fins extrafiscais afastam-se, numa certa medida, do primado da isonomia. Nesse caso, o controle deve ser empreendido por meio do Preceito da Proporcionalidade, o qual se caracteriza como a medida cuja utilizao provoque mais efeitos positivos do que negativos promoo dos princpios constitucionais 212 . Discordamos, contudo, dessa posio. Como nos lembra Tilbery,
212 VILA, Humberto. Igualdade tributria, p. 182. 209 Na idade mdia, amplos privilgios fiscais eram concedidos, ao clero e s classes nobres, no estado feudal, sendo que a concesso de favores a esses grupos estava em perfeita harmonia com a estrutura social e econmica, como tambm com a mentalidade vigente naquela poca. A revoluo francesa, pondo fim s prerrogativas de classes, trouxe o princpio da generalidade dos impostos. No moderno Estado de Direito no h mais lugar para favores fiscais, que um ditador poderia conceder aos seus amigos e partidrios 213 . E mais adiante conclui: As isenes fiscais, quando institudas por interesse coletivo, no violam o princpio constitucional da isonomia. Exige-se somente, que a discriminao tenha uma justificativa real 214 . No mesmo sentido as palavras de Paulo de Barros Carvalho, O intuito garantir a tributao justa (sobrevalor). Isso no significa, contudo, que todos os contribuintes devam receber tratamento tributrio igual, mas, sim, que as pessoas, fsicas e jurdicas, encontrando-se em situaes econmicas idnticas, ficaro submetidas ao mesmo regime jurdico, com as particularidades que lhe forem prprias 215 . Assim, a Isonomia igualmente atendida ainda que haja diferenciao tributria, desde que tal diferenciao seja justificvel e as principais so as de cunho extrafiscal que persiga valores tambm consagrados pela Carta Constitucional, independentemente da colorao ideolgica, tais como o desenvolvimento econmico (liberal-capitalista), a educao, a sade, o meio ambiente, etc. Dessa forma, a isonomia sobremaneira malevel e permite o manejo das normas tributrias de forma que se amoldem aos vrios escopos constitucionais. Nesse ponto, merece destaque deciso do STF que analisou a constitucionalidade da lei paulista n 9.085/85, a qual concedia incentivos fiscais para empresas que possussem pelo menos 30% de seus empregados com idade superior a 40 (quarenta) anos. Apesar de ter declarado inconstitucional a lei em relao ao ICMS por descumprimento do requisito da deliberao entre os Entes Federativos (conforme determina o art. 155, 2, inciso XII, alnea g, da Constituio Federal), a composio plenria de nossa mais alta corte, por unanimidade, assim aduziu: Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assemblia Legislativa Paulista usou o carter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para
213 TILBERY, Henry. Base econmica e efeito das isenes, p. 17. 214 Ibid., p. 19. 215 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributrio, linguagem e mtodo, p. 266. 210 estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princpios da igualdade e da isonomia (STF, Tribunal Pleno, unanimidade, ADI 1276/SP, agosto/2002) e, assim, manteve os incentivos relativos ao IPVA.
7.8.2. Capacidade contributiva Segundo Paulo de Barros Carvalho, mesmo se a atual Constituio nada previsse expressamente sobre o princpio da capacidade contributiva, tal como o fez a Constituio de 1967, este persistiria no direito brasileiro como formulao implcita nas dobras do primado da igualdade 216 . Em sentido similar, Carrazza afirma, O princpio da igualdade exige que a lei, tanto ao ser editada, quanto ao ser aplicada: a) no discrimine os contribuintes que se encontrem em situao econmica equivalente; b) discrimine, na medida de suas desigualdades, os contribuintes que no se encontrem em situao jurdica equivalente. No caso dos impostos, estes objetivos so alcanados levando-se em conta a capacidade contributiva das pessoas (fsicas e jurdicas). A lei deve tratar de modo igual os fatos econmicos que exprimem igual capacidade contributiva e, por oposio, de modo diferenado os que exprimem capacidade contributiva diversa 217 . Indiscutivelmente, h uma intrnseca relao entre isonomia e capacidade contributiva. No entanto, cremos que os contedos de significao dos dois princpios so diferentes e, assim, complementam-se. Alis, no s so diferentes, como no apresentam sequer relao do tipo gnero-espcie. A capacidade contributiva 218 no se caracteriza como a isonomia projetada no sub-domnio das regras tributrias. Exigir de duas pessoas pauprrimas entregar ao Estado seus nicos bens pode ser considerado, num certo sentido, tratamento igualitrio. Afinal, sujeitos em situaes idnticas foram tratados da mesma forma. A nossa sociedade, contudo, no igualitria do ponto de vista econmico; pelo contrrio. O Brasil est entre os pases com pior distribuio de riqueza. Dessa forma,
216 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributrio, linguagem e mtodo, p. 302. 217 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 77. 218 So precisas sobre o tema as palavras de SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 291: A igualdade no se mede apenas a partir da capacidade contributiva: possvel haver efeitos indutores diversos, impostos pela mesma lei, a contribuintes com idntica capacidade contributiva. Nesse caso, importar examinar se h fator (diverso da capacidade contributiva) que justifique a discriminao. Tambm vale referncia a observao de ATALIBA, Geraldo. IPTU progressividade, p. 77: No estando presentes, destarte, intuitos extrafiscais, o fato imponvel revela capacidade contributiva. 211 o Constituinte expressamente consagrou a igualdade por meio do tratamento diferenciador em funo da riqueza. Quo maior a riqueza, quo mais intenso o aspecto econmico do antecedente normativo de uma regra tributria, maior deve ser o valor a ser recolhido ao Estado. Nas precisas palavras de Paulo de Barros Carvalho, Realizar o princpio da capacidade contributiva quer significar, portanto, a opo a que se entrega o legislador, quando elege para antecedente das normas tributrias fatos de contedo econmico que, por terem essa natureza, fazem pressupor que as pessoas que deles participam apresentem condies de colaborar com o Estado mediante parcelas de seu patrimnio 219 .
A capacidade contributiva assim um critrio material fundamental que determina a igualdade por meio do tratamento desigual dos desiguais na medida de suas desigualdades. Um tributo em especial, um imposto , que no guarde relao com a capacidade contributiva, com o contedo econmico dos antecedentes normativos tributrios estar inquinado de inconstitucionalidade. Nada obstante, apesar de a capacidade contributiva ser critrio discriminador essencial para o cumprimento do primado da igualdade, no pode ser considerado o nico 220 . Outros tantos critrios discriminadores, muitos dos quais de escopo extrafiscal, podem (ou mesmo devem) ser adotados sem que se fira a Capacidade Contributiva e a prpria Isonomia. Tais critrios estabelecem tratamentos diferenciados em razo de desigualdades outras, que no apenas a de contedo econmico. A capacidade contributiva assim impe ao legislador que prescreva como antecedente das normas tributrias, signos representativos de expresso econmica 221 , e que o seu conseqente guarde relao com essa dimenso. Isso, contudo no impede que o prprio ndice relacional possa variar segundo critrios de escopo extrafiscal.
219 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 307. 220 Em sentido oposto, XAVIER, Alberto. IOC Princpio da Legalidade Discriminao Arbitrria, p. 68: A particularidade do princpio da igualdade em matria tributria reside em que a prpria Constituio estabeleceu que o nico fator de discriminaes legtimas reside na capacidade contributiva. 221 Nesse sentido, as palavras de SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 197: o fato gerador de qualquer tributo deve ter um contedo econmico. 212 Dessa sorte, dois fatos idnticos, sob o aspecto extrafiscal, no devem ensejar o mesmo nus tributrio, se suas dimenses econmicas forem diversas. Por outro lado, dois fatos idnticos sob o aspecto econmico no necessariamente devero sofrer a mesma tributao, se apresentarem distines relevantes de mbito extrafiscal. Em razo disso, discordamos da posio de Sacha Calmon Navarro Coelho 222 , o qual, valendo-se das lies de Fonrouge, entende que a funo extrafiscal incompatvel com a capacidade contributiva e cita como exemplos a concesso de incentivos fiscais para fomentar determinadas atividades econmicas a grupos empresariais de comprovada capacidade econmica e a necessria exacerbao da tributao para tornar proibitivas certas situaes.
7.8.3. O No-confisco Para Carrazza 223 o Princpio da vedao ao confisco derivado do Primado da Capacidade Contributiva, com o que concordamos plenamente. No entanto, da mesma forma como no se pode confundir a Isonomia com a Capacidade Contributiva, este primado no sinnimo de No-confisco. A Capacidade Contributiva se caracteriza como um critrio essencial de discriminao entre sujeitos e define uma dimenso que obrigatoriamente deve ser adotada para quantificar a imposio tributria. J o Primado do No-confisco impe um limite 224 . Tributar toda a riqueza de duas pessoas atende, de um certo modo, a Isonomia, pois o tratamento ter sido igualitrio. Tambm respeita a capacidade contributiva, uma vez que sujeitos com riquezas diversas sero tributados na mesma proporo. Nada obstante, ferir vigorosamente a Vedao ao Confisco. Desse nodo, Isonomia, Capacidade Contributiva e No-confisco so preceitos relacionados e se complementam, mas no possuem a mesma significao. Uma disposio legal pode atentar contra um preceito, mas no necessariamente contra os outros. Um dispositivo legal que conceda uma iseno de taxas
222 COLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributrio brasileiro, p. 83-84. 223 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 86, Estamos convencidos de que o princpio da no-confiscatoriedade [...] deriva do princpio da capacidade contributiva (destaques originais). 224 No mesmo sentido, SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 301: O princpio da proibio de efeito de confisco exterioriza a necessidade de um limite mximo para pretenso tributria. 213 para membros do Ministrio Pblico, inclusive aposentados, viola indiscutivelmente o Preceito da Isonomia, mas no h dvidas de que no macula o No-confisco. O Primado do No-confisco estabelece um limite acima do qual a regra tributria no pode transferir o patrimnio do particular para o Fisco. Essa fronteira, contudo, no foi estabelecida na Constituio por meio de um enunciado formal (um percentual, por exemplo) capaz de estabelecer uma certeza apodctica; pelo contrrio, o preceito sobremaneira vago, o que nos autoriza afirmar que os escopos extrafiscais so sobremaneira relevantes para definir seus lindes. Os valores, que informam as regras tributrias com intuito sancionatrio, compem um relevante material persuasivo para ora distender, ora para conter as fronteiras da tributao confiscatria.
7.9. A COMPETNCIA TRIBUTRIA Nas precisas palavras de Paulo de Barros Carvalho, A competncia tributria, em sntese, uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que so portadoras as pessoas polticas, consubstanciada na possibilidade de legislar para a produo de normas jurdicas sobre tributos 225 .
E como observa Carrazza, as pessoas polticas, sendo simples delegatrias, no tm poderes para alterar as faculdades tributrias que lhes foram atribudas pela Carta Suprema 226 . Numa certa medida, a competncia tributria, em razo de seu carter taxativo, consubstancia ditames limitadores dos escopos extrafiscais ainda mais rigorosos que os prprios princpios. Se a Pessoa Poltica (Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios) for dotada de competncia legiferante para regular uma determinada seara da convivncia social, mas destituda de competncia tributria especfica para criar tributo que onere a sua especfica dimenso econmica, no ter como se valer de instrumentos tributrios extrafiscais.
225 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 235. 226 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 434. 214 S restar entidade, tornar a conduta proibida e assim acoplar uma exao de natureza jurdica diversa do tributo: a multa. A instituio de multas, assim, mais ampla que as de tributos. Para todas as condutas ilcitas podem ser estabelecidas sanes pecunirias. J as condutas moduladas como lcitas s podem ser desestimuladas por exaes, se a entidade poltica detiver expressamente a competncia tributria para cri-las.
7.9.1. Competncia condicionada a fins extrafiscais Se, por um lado, a competncia estipula precisos limites a atuao extrafiscal; por outro, h vrias hipteses de condicionamento do exerccio do Poder de Tributar ao cumprimento de escopos no-fiscais. Se o imposto sobre produtos industrializados for estabelecido com alquotas uniformes para todos os produtos, seguramente sua lei instituidora ser inconstitucional por ferir o critrio da seletividade, de cunho extrafiscal. Sorte diferente no ter o imposto territorial rural, se forem estabelecidas alquotas que no se diferenciam em razo do grau de produtividade do imvel rural. Desse modo, podemos afirmar com segurana que os escopos extrafiscais, ao revs de se configurarem como uma exceo, vale dizer, como algo colateral moldura constitucional de competncias; constituem o seu prprio ncleo constitutivo.
7.10. EXTRAFISCALIDADE E COMPETNCIAS REGULATRIAS Para um ente poltico empregar um determinado tributo com finalidade extrafiscal condio necessria que a Constituio lhe outorgue a respectiva competncia legiferante para cri-lo, mas no suficiente. necessrio tambm que a Carta Suprema lhe atribua a competncia para agir sobre a especfica seara de convivncia coletiva. J de longa data, a Doutrina Nacional aponta a relao entre o uso extrafiscal da competncia tributria e as competncias regulatrias, conforme podemos verificar na Tese de Livre Docncia de Antnio Roberto Sampaio Dria 227 de 1964, bem como no
227 DRIA, Antnio Roberto Sampaio. Princpios Constitucionais Tributrios e a Clusula Due Process of Law, p. 255, Cabendo Unio, e supletivamente aos Estados, legislar sobre a produo e o consumo, esto os Municpios absolutamente inibidos de regular, atravs de tributaes oneosas ou destrutivas, a produo 215 Curso de Direito Tributrio do saudoso professor Ruy Barbosa Nogueira 228 . Recentemente, SCHOUERI dedica todo um captulo para analisar o tema em sua obra Normas Tributrias Indutoras e Interveno Econmica. Muitas so os domnios de interesse sobre os quais podem agir todos os Estes Polticos. Uma dessas reas o meio-ambiente em razo de pertencer competncia comum, conforme art. 23, inciso VI, da Constituio Federal. Assim, a Unio, bem como :Estados, Distrito Federal e Municpios podem estabelecer tributos de sua competncia moldados de forma a estimular a preservao de um meio-ambiente equilibrado. Assim, tributos de todas as espcies, das mais variadas esferas de competncia, podem ser moldados com base nesse escopo. No entanto, conforme reza no artigo 22, inciso IV, da Constituio Federal, privativo da Unio legislar sobre energia, vale dizer, a poltica energtica da competncia exclusiva da Unio. Desse modo, entendemos que seria inconstitucional se os Estados institussem alquotas do ICMS diferenciadas para a energia eltrica em razo de sua fonte produtora, como por exemplo, uma alquota maior para a produzida por hidreltricas, uma intermediria para as Centrais nucleares e uma maior para as termoeltricas. Nada obstante, a Unio poderia estabelecer uma contribuio de interveno no domnio econmico com essa caracterstica.
7.11. AS IMUNIDADES Conforme concisa lio de Carrazza, as regras de imunidade tambm demarcam (no sentido negativo) as competncias tributrias das pessoas polticas 229 . J nas precisas palavras de Paulo de Barros Carvalho, a imunidade corresponde a classe finita e imediatamente determinvel de normas jurdicas, contidas no texto da Constituio da Repblica, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetncia das
de bebidas alcolicas, tabaco, narcticos, ou qualquer outra utilidade, cujo consumo se repute menos aconselhvel sade pblica. 228 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributrio, pg. 185: O imposto deixa de ser conceituado como exclusivamente destinado a cobrir as necessidades financeiras do Estado. tambm, conforme o caso e o poder tributante, utilizado como instrumento de interveno e regulamentao de atividades. o fenmeno que hoje se agiganta com a natureza extrafiscal do imposto. Mas esse conceito moderno de finanas pblicas que tem no imposto seu mais eficaz instrumento de atuao poder e dever ser aplicado indistintamente por todas as categorias de Governo da Federao e em relao a quaisquer impostos? Em um Estado federativo como o nosso competir aos entes menores, Estados-Membros e Municpios, a tarefa de regular e controlar a economia nacional? Parece evidente que essa funo meramente supletiva e limitada a aspectos regionais ou locais e em harmonizao coadjuvante. 229 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 623. 216 pessoas polticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situaes especficas e suficientemente caracterizadas 230 . As imunidades so assim regras de competncia, mas sob o aspecto negativo. Desse modo, como a competncia tributria corresponde ao prprio limite para a instituio de tributos com finalidade extrafiscal, as imunidades devem ser concebidas como regras de bloqueio extrafiscalidade. Ditam um proibido empregar o tributo com essa ou aquela finalidade, uma vez que o prprio tributo no poder ser estabelecido. As imunidades dos templos de qualquer culto, por exemplo, tornam as Pessoas Polticas incompetentes para criarem impostos sobre renda, servios e patrimnio dessas entidades e, porquanto, para empregarem essas exaes com o escopo de privilegiar uma religio em detrimento de outra. O Estado Brasileiro laico como podemos aperceber da leitura do art. 19, inciso I: Art. 19. vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los, embaraar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana, ressalvada, na forma da lei, a colaborao de interesse pblico. Dessarte, no visa desestimular, como fazia o Sovitico, nem tampouco estimular. Apenas protege, sem qualquer inclinao de fomento negativo ou positivo, como tambm podemos percebemos pela dico do art. 5, inciso VI: inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo aos locais de culto e a suas liturgias. Assim, a imunidade tem a finalidade justamente oposta extrafiscalidade. Ela visa manter a tributao, mediante seu absoluto bloqueio, de forma neutra entre as mais diversas manifestaes de cunho religioso. Nada obstante, evidentemente o carter extrafiscal de certas imunidades, vale dizer, sua finalidade jurdica de fomentar determinadas atividades. Apesar das imunidades corresponderem a significantes que colaboram negativamente com outros significantes para formar o signo da regra de competncia, so tambm passveis de significao prpria, mediante a qual podem ser aferidas marcas de cunho exstrafiscal. Exemplo tpico diz respeito imunidade das instituies de assistncia social relativamente s contribuies da seguridade social prevista no art. 195, 7.
230 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 341. 217 Assim, em termos extrafiscais, h dois tipos de imunidades: (i) as de fomento positivo e (ii) as de bloqueio; e, nisso, se diferenciam das isenes, que sero analisadas no prximo captulo, pois no h isenes bloqueadoras, so todas de induo positiva.
7.12. BITRIBUTAO EXTRAFISCAL A bitributao corresponde incidncia de dois tributos criados por Pessoas Polticas diversas sobre um mesmo fato jurdico e, assim, se diferencia do bis in idem, cujo ente instituidor de ambas exaes nico. A Doutrina , em geral, relativamente tolerante com este ltimo, mas severamente restritiva acerca da constitucionalidade do primeiro. Paulsen, valendo-se em parte das lies de Bernardo Ribeiro de Moraes, assim assevera, no se pode confundir o bis in idem com a bitributao. Fala-se naquele quando se verifica a exigncia de impostos iguais pelo mesmo poder tributante, sobre o mesmo contribuinte e em razo do mesmo fato gerador, embora em razo de duas leis ordinrias; fala-se neste quando h dois entes federados tributando a mesma causa jurdica e contribuinte. A bitributao, pois, envolve, normalmente, um conflito de competncias. Salvo hipteses excepcionais admitidas pela prpria Constituio (e.g., art. 155, 3), a bitributao vedada, no tendo lugar no nosso sistema tributrio em funo, principalmente, de que a competncia relativa a impostos distribuda de forma privativa a cada Poder tributante 231 . O dispositivo citado por Paulsen apresenta a seguinte redao: 3 exceo dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poder incidir sobre operaes relativas a energia eltrica, servios de telecomunicaes, derivados de petrleo, combustveis e minerais do Pas. No consideramos, contudo, essencial que a autorizao constitucional para a bitributao dependa necessariamente de dispositivo nico e expresso. Tal permissivo pode decorrer de escopos extrafiscais erigidos pelo intrprete a partir da coleo e conjugao de um enorme conjunto de enunciados. O princpio da no-bitributao s encontrava amparo expresso na Constituio de 1934, art. 11 232 . Desde ento, nenhuma das Cartas Supremas, inclusive a
231 PAUSEN, Leandro. Direito tributrio, p. 359. 232 Art 11 - vedada a bitributao, prevalecendo o imposto decretado pela Unio quando a competncia for concorrente. Sem prejuzo do recurso judicial que couber, incumbe ao Senado Federal, ex officio ou 218 atual de 1988, o repudia expressamente. Apesar disso, reconhecido pela Doutrina 233
como um relevante ditame implcito, com o que concordamos. Ademais, consideramos que esse primado informa tanto a atividade do legislador, quanto a do aplicador. Os enunciados de discriminao de competncia prprios da Carta Constitucional , os definidores de aspectos essenciais de impostos (fatos geradores, bases de clculo e contribuintes) prprios da lei complementar da Unio , e finalmente, os enunciados instituidores dos tributos prprios das leis ordinrias das Entidades Tributantes (Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios), apresentam todos natureza conotativa. Em cada um desses patamares normativos, o legislador busca minudenciar, isto , precisar a linguagem do patamar superior; e, no exerccio dessa funo, deve seguir o princpio de que tributos, em especial, os impostos, das mais diversas Entidades Tributantes, devem incidir sobre fatos sociais diversos. A lei complementar exerce tipicamente essa funo conforme dico do art. 146, inciso I (Art. 146. Cabe lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competncia, em matria tributria, entre a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios); mas no s esse diploma; a lei ordinria que cria e as normas individuais e concretas editadas pela prpria Administrao Pblica e pelo Poder Judicirio devem atender tal preceito. Em razo da prpria natureza conotativa das regras gerais e abstratas, por mais minuciosos que possam ser seus enunciados, haver sempre possibilidade de conflitos. S a enunciao denotativa, vale dizer, a veiculao de regras individuais e concretas, capaz de dar cabo a entrechoques normativos. Se dissermos para algum comparecer a uma certa festa, no haver conflito; ela saber exatamente aonde dever ir. Por outro lado, se estatuirmos que as pessoas devem comparecer s comemoraes natalinas com suas famlias, os solteiros s tero uma festa para ir; enquanto os casados entraro em conflito, pois tero que comparecer a casa de seus pais, bem como a dos parentes de seu cnjuge; s uma deciso, isto , uma enunciao denotativa dar fim ao embate: vou a uma festa e no a outra. O mesmo fenmeno ocorre com as normas de competncia, com as de definio, bem como com as regras matrizes de incidncia. O caminho da positivao
mediante provocao de qualquer contribuinte, declarar a existncia da bitributao e determinar a qual dos dois tributos cabe a prevalncia. 233 Vide BALEEIRO, Aliomar. Uma introduo Cincia das Finanas, p. 239. 219 configura-se como um processo de enunciao tendente a reduzir a vaguidade do patamar imediatamente superior. Com isso, em razo do ditame da no-bitributao, deve minimizar os conflitos, isto , a incidncia de mais de uma regra impositiva tributria sobre o mesmo fato social. As leis complementares de definies do ISS e do ICMS, por exemplo, expressamente dirimiram a competncia para instituir esses impostos sobre o arrendamento mercantil de forma a evitar a dupla-incidncia. Conforme o item 15.09 da lista de servios constante da Lei Complementar n 116/03, pode ser institudo o imposto municipal; ao passo que o art. 3, inciso VII, da Lei Complementar 87/96 afasta essas operaes do alcance do imposto estadual. Nada obstante, em um sem nmero de outras situaes, s a ltima enunciao (a edio da norma individual e concreta) capaz de eliminar por completo a bitributao. Assim, essencial que o primado da no-bitributao seja considerado tambm pelo aplicador. A no-bitributao, contudo, alm de no se configurar como um princpio expresso, tambm no pode ser considerado absoluto. Pelo contrrio, a Constituio est repleta de dispositivos indicativos da constitucionalidade da incidncia de mltiplos tributos, mesmo impostos, sobre os mesmos fatos sociais. Para ficarmos, por enquanto, com um nico exemplo, o inciso IX, 2, art. 155, ao estatuir que o ICMS no compreender, em sua base de clculo, o montante do imposto sobre produtos industrializados, quando a operao, realizada entre contribuintes e relativa a produto destinado industrializao ou comercializao, configure fato gerador dos dois impostos, seguramente prescreve, ainda que de forma implcita, uma autorizao constitucional para a dupla-incidncia do imposto federal e do estadual. A bitributao, assim, encontra amparo constitucional sempre que estiverem presentes razes de cunho extrafiscal. So exemplos tpicos a bitributao entre o IPI e o ICMS; e a mltipla incidncia do imposto de importao com os demais tributos que recaem sobre as operaes internas, como o IPI e o ICMS 234 .
234 No mesmo sentido, LOPES FILHO, Osris A. Impostos intervenientes no comrcio exterior, p. 147: Com relao ao IPI de se lembrar que nas importaes ele incide, que um caso de bis in idem. Sob o fenmeno econmico da importao incide o imposto de importao e incide o IPI, ainda que o IPI, no caso, seria apenas um imposto compensatrio para igualar a carga tributria incidente sobre o produto nacional. Em sentido oposto, MELLO, Jos Eduardo Soares de Mello. ICMS e IPI na importao questes polmicas, p. 177: no h embasamento jurdico na exigncia de IPI, na importao de produtos, pela absoluta impossibilidade de realizar-se sua materialidade no territrio nacional. 220 CAPTULO VIII- INSTRUMENTOS EXTRAFISCAIS INFRACONSTITUCIONAIS Uma interpretao , por natureza, o relato de um propsito; ela prope uma forma de ver o que interpretado uma prtica social ou uma tradio, tanto quanto um texto ou uma pintura como se este fosse o produto de uma deciso de perseguir um conjunto de temas, vises ou objetivos, uma direo em vez de outra. DWORKIN, Ronald; O imprio do direito, pg. 71.
8.1. CRITRIOS JURDICOS DE AFERIO DA EXTRAFISCALIDADE Evidentemente, esse tema j poderia ter sido tratado no captulo precedente. Nada obstante, deixamos de faz-lo em razo de haver critrios de aferio tpicos da seara das normas de incidncia tributria. Todo critrio jurdico deve sempre tomar por base o prprio texto do direito positivo. A premissa de partida ento o suporte de significao expedido pela autoridade competente mediante o procedimento normativamente estabelecido. Nada obstante, nunca se pode falar de texto sem contexto. Nesse caso, porm, no h algo externo ao texto por- si-s, mas sim com ele relacionado. Mesmo critrios, que adotam aspectos marcadamente contextuais, no consideram isoladamente elementos externos ao texto, no caso, ao direito positivo, mas sim em relao ao direito posto pelo legislador. H assim, critrios intra-textuais e inter-textuais, mas nenhum extra-textual. Os critrios jurdicos devem ser todos aqueles que consideram o discurso do direito positivo, bem como suas relaes contextuais, mas nunca algo sem conexo com os enunciados prescritivos. No interessa a inteno do legislador (mesmo unipessoal) se no foi veiculada em palavras mediante o procedimento previsto pela prpria ordem jurdica. Dentre os diversos critrios de aferio, trs se destacam: (i) as palavras de significao intencional, (ii) a relao geral-especial e (iii) o emprego de critrios no eidticos na configurao da regra matriz de incidncia tributria.
221 8.1.1. O uso de palavras de significado intencional Esse o de aferio mais simples. Ocorre quando prprio direito positivo adota termos, cuja prpria significao indica a inteno do enunciador, no caso, do legislador, de encorajar ou desencorajar condutas. So prprias das regras constitucionais atributivas de competncia. So comuns tanto a extrafiscalidade estimuladora, quanto a desecorajadora. Podem ser empregados tanto verbos, quanto adjetivos. O art. 179, por exemplo, prescreve uma regra programtica encorajadora ao estatuir que devem ser estabelecidos regimes jurdicos favorveis para as microempresas e empresas de pequeno porte; ao passo que o art. 153, 4, traz uma regra que determina o desencorajamento ao estabelecer que o ITR deve ser institudo com a finalidade de desestimular a manuteno de propriedades improdutivas.
8.1.2. Extrafiscalidade por especialidade Uma outra forma de aferio da inteno extrafiscal diz respeito relao entre normas gerais e especiais. Diversos tributos so estabelecidos por normas gerais, ao passo que normas especiais determinam frmulas extrafiscais de tributao para incentivar, quando reduzem a exigncia tributria, bem como desestimular, quando a amplificam. Assim, se sobre a renda for estatuda uma alquota geral (por exemplo de 20%), sempre que uma norma especial aumenta ou reduz o percentual para uma hiptese especfica, provavelmente estaremos diante de uma norma estabelecida com finalidade extrafiscal, encorajadora se a alquota for menor ou desecorajadora se for maior. O mesmo pode ocorrer com a definio da base de clculo. Desse modo, qualquer regra especial relativa ao critrio quantitativo da regra de incidncia poder possuir escopo extrafiscal, cuja direo aferida pelo aumento ou reduo do valor em relao regra geral. Assim, no s as regras de mutilao completa, como a de iseno ou de alquota zero (fizemos esse destaque para aqueles que consideram a iseno e alquota zero, institutos diferentes, com o que, contudo, no concordamos) apresentam finalidade extrafiscal, mas sim todas aquelas que alteram o critrio quantitativo em relao ao estabelecido pela norma geral. A princpio, poderamos afirmar que esse critrio no aplicvel anlise do IPI, uma vez que este imposto no apresenta uma alquota estabelecida por norma geral. 222 evidente que o IPI ao ser institudo por meio de alquotas diversas, apresenta finalidade extrafiscal, at em razo da prpria regra constitucional de estrutura a qual determina a sua seletividade em razo da essencialidade. O conjunto de alquotas extrafiscal, mas uma dada alquota apresenta uma direo positiva ou negativa? Nesse caso, no h um nvel jurdico que possa ser definido como o normal ou o geral. A extrafiscalidade , assim, puramente relacional. O estmulo ou desestimulo no deve ser aferido isoladamente, mas sim em comparao com as condutas similares. Se uma alquota para eletrodomsticos superior que a para alimentos significa que a produo de eletrodomsticos menos prefervel que a de alimentos e, portanto, em relao aos gneros alimentcios, desencorajada; j em relao a bebidas alcolicas, como a alquota destes produtos maior, a fabricao dos eletrodomsticos incentivada.
8.1.3. Extrafiscalidade em razo de critrios no-eidticos da regra de incidncia O carter extrafiscal da lei instituidora do IPI mais bem aferida por meio da presena de critrios no-essenciais na regra de incidncia. Evidentemente, a regra de estrutura que outorga competncia Unio para instituir esse imposto apresenta ntido carter extrafiscal em razo da simples significao do critrio da seletividade em funo da essencialidade. O primeiro critrio (emprego de palavras com significado intencional) o adequado para se aferir a extrafiscalidade que compe o prprio contedo da regra de competncia. Devemos, assim, aferir se efetivamente a lei editada com base nessa competncia atende ao preceito constitucional. Na configurao da regra de incidncia tributria, a introduo de critrios no-essenciais um indicativo da funo extrafiscal do tributo. Trata-se, contudo, apenas de um indcio, de um ponto de partida para verificao do intuito extrafiscal e no de uma garantia de sua presena jurdica. H diferenciaes por razes fiscais, bem como tributos, cuja regra-matriz bsica, por si s, indica o fito extrafiscal. Na tributao do imposto de renda pessoa jurdica pelo regime do lucro presumido, h percentuais diversos, conforme a atividade econmica, para a quantificao da base de clculo (do lucro presumido) a partir da receita. No entanto, tal diversidade jurdica busca uma relao com a margem presumvel de lucro que sobremaneira 223 diferente de atividade para atividade. O intuito da diferenciao, a princpio, no extrafiscal, mas sim fiscal. Por outro lado, ainda que o imposto sobre importaes abarcasse toda a sorte de ingresso de bens e vinculasse o mesmo critrio quantitativo (alquota e base de clculo), este tributo no perderia o carter extrafiscal, pois ele mesmo diferenciador entre as operaes internas e as internacionais.
8.2. OS INSTRUMENTOS EXTRAFISCAIS Toda reduo de obrigao tributria resulta, numa certa medida, um incentivo para a prtica da conduta especificamente regrada em relao s demais que se submetem disciplina geral. Paulo de Barros Carvalho, ao conceituar extrafiscalidade, assim se expressa: A experincia jurdica nos mostra, porm, que vezes sem conta a compostura da legislao de um tributo vem pontilhada de inequvocas providncias no sentido de prestigiar certas situaes, tidas como social, poltica ou economicamente valiosas, s quais o legislador dispensa tratamento mais confortvel ou menos gravoso. A essa forma de manejar elementos jurdicos usados na configurao dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatrios, d-se o nome de extrafiscalidade 235 . H, porm, expedientes empregados com o fito de tornar a conduta menos confortvel ou mais gravosa. As regras tributrias se prestam tambm a desestimular os comportamentos que guardam valores, ainda que positivos, concorrentes com outros de posio hierrquica superior. H valores mais valiosos que outros e, desta forma, podem ser desestimulados para que outros superiores prosperem mais intensamente. A tributao mais elevada do fumo representa claro exemplo disso. Fumar no proibido em razo do valor liberdade individual atribudo a essa conduta. Nada obstante, com o fito de se conferir maior realizao ao valor sade, a prtica de fumar desestimulada. Tal emprego do tributo tambm se quadra no conceito de extrafiscalidade, mas sob o aspecto negativo. A reduo e o aumento da imposio tributria so expedientes, que esto disposio do legislador para, respectivamente, fomentar ou estimular atividades. Mas seriam os nicos?
235 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 240. 224 Na seara tributria, as obrigaes so de dois tipos: (i) a principal, na qual se enquadra o tributo e (ii) a acessria numa designao mais precisa: dever formal ou instrumental. Aquela se caracteriza como um dever de dar dinheiro; esta como um dever de fazer ou deixar de fazer no interesse da administrao tributria. Assim, o manejo da intensidade (pecuniria e instrumental) dessas obrigaes (no s das principais, mas tambm das formais) possibilita o incentivo ou o desestmulo da classe de condutas que so selecionadas pelo legislador para compor os antecedentes normativos. Tanto a reduo da alquota de um tributo pode representar um estmulo, quanto a eliminao do preenchimento de livros fiscais e da apresentao de complexas declaraes. Dessa sorte, as regras tributrias apresentam um amplo espectro de possibilidades para incentivar e desestimular as condutas coletivas, e podem ser classificadas em dois tipos: (i) instrumentos pecunirios e (ii) instrumentos formais. No primeiro tipo, enquadramos as regras impositivas de obrigaes principais; no segundo, as normas estipuladoras de deveres instrumentais. E ambos podem ser ainda segregados em positivos e negativos. Necessariamente as regras relativas a obrigaes principais fomentam ou desestimulam por meio de critrios quantitativos de cunho pecunirio, que resultam num maior ou menor valor a pagar, ou mesmo a integral supresso. Mesmo uma iseno de carter subjetivo (por exemplo, uma iseno de contribuies federais para entidades de educao), consubstancia uma regra de cunho extrafiscal pecuniria. Sob esse ponto de vista extrafiscal, a reduo da alquota dirigida a uma determinada classe de pessoas equivale a uma iseno; s h diferena na intensidade do estmulo; nada mais. Na mesma medida, o incremento de deveres formais, bem como o aumento de complexidade, tm o condo de desestimular condutas; ao passo que sua reduo e simplificao resultam em fomento. Resta-nos verificar, contudo, se tais expedientes podem ser adotados pelo legislador com o fito de atender a escopos extrafiscais.
225 8.2.1. Instrumentos pecunirios Como vimos, a extrafiscalidade poder se manifestar por meio de regras de incremento, bem como da reduo da tributao sobre uma determinada situao em relao imposio tributria de cunho geral. H, contudo, tributos (como o IPI) cujas obrigaes so estipuladas por meio de regras especficas que no guardam relao de especialidade com uma norma geral. Nesse caso, a direo da induo sempre relativa s demais condutas; mas, nem por isso, pode ser desconsiderada. Se a alquota do IPI para eletrodomsticos maior que a relativa a alimentos e menor que a dirigida a bebidas alcolicas; em relao s bebidas alcolicas, a tributao fomenta a produo de eletrodomsticos; em relao a alimentos, desestimula. Dessa forma, a alterao de alquota de um produto permite-nos inferir a modificao do interesse jurdico na sua fabricao em relao ao conjunto dos demais bens, cujas regras- matrizes de incidncia no sofreram alterao. No , assim, essencial haver uma relao gnero-espcie ou geral-especial entre normas de incidncia tributria para constatarmos escopos extrafiscais. necessrio, porm, diferenciao quantitativa pecuniria do dever, para mais ou para menos, em relao a outras condutas comparveis num dado sistema de referncia (produo de alimentos em relao fabricao de produtos suprfluos; importao versus produo nacional; investimentos em processos mecanizados em oposio a atividades intensivas em mo-de-obra, etc). Nesse passo, cumpre-nos indagar de que forma podem ser introduzidas essas diferenciaes pecunirias. Paulo de Barros Carvalho, ao considerar no modelo jurdico-nacional ser inconstitucional a adoo de tributos fixos 236 , assevera ser da essncia da regra de incidncia a configurao do critrio quantitativo em dois fatores: a base de clculo e a alquota; o primeiro de intrnseca relao com o aspecto material da hiptese e, portanto, apto a aferir a intensidade factual; o segundo para, em correspondncia dimenso da base de clculo, resultar numa dvida em expresso numrica. Se a base definida em termos monetrios, a alquota ser necessariamente uma frao, um nmero, um enunciado formal (nem denotativo, nem conotativo, portanto). Por outro lado, se a base estiver expressa em outra unidade (quilos de acar, metros de tecido, etc), impe-se que a alquota corresponda a um valor por unidade da base de clculo.
236 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 357. 226 A base de clculo essencial em razo de, em conjunto com a hiptese de incidncia, ter sido constitucionalmente eleita para a distribuio da competncia tributria entre as diversas pessoas polticas; e a alquota o fator necessrio para, por meio da base, determine-se o montante da dvida. Podemos afirmar, portanto, que ambas decorrem do modelo constitucional de discriminao de competncias e, assim, qualquer manejo pecunirio deve passar necessariamente pelos enunciados desses fatores. Um desestmulo dever ser empreendido pelo aumento da base, da alquota ou de ambos; um fomento, pela reduo, isolada ou em conjunto, de qualquer destes dois fatores. Logo de incio podemos perceber que o incremento da base de clculo est submetido a limites relativos prpria competncia tributria. A base s pode incorporar valores e quantias que guardem relao com a competncia material constitucionalmente atribuda pessoa poltica. Dessa sorte, no poderia uma lei federal, por exemplo, determinar que os investimentos de uma empresa nacional, em pas com o qual o Brasil tenha rompido relaes diplomticas, devam ser acrescidos base de clculo do imposto de renda, uma vez que tais valores no se quadram no conceito de renda. Tambm no poderia impedir a deduo de gastos com atividades que pretende desestimular, o que de igual sorte desvirtuaria o ncleo conceitual de lucro e, portanto, de renda. Um exemplo concreto de ampliao de base de clculo de imposto com finalidades extrafiscais foi a proibio de se deduzir da base de clculo do IPI os descontos incondicionalmente concedidos, conforme estabelecido pela Lei n 7.798/89, art. 15. A finalidade dessa vedao foi a de inibir, ao aumentar o imposto a ser pago, que os produtores trabalhassem com tabelas de preos a nveis mais elevados que os praticados pelo mercado e manejassem o valor da operao por meio de descontos, o que permitiria burlar eventual congelamento de preos, nos moldes daquele, ainda recente, tabelamento estabelecido pelo art. 35 do DL n 2.284/86, que configurou uma das principais medidas do chamado plano cruzado. Inmeros foram os pronunciamentos do STJ para afastar essa disposio por considerar que ela viola a definio da base de clculo estampada no art. 47 do CTN. Abaixo, transcrevo um acrdo recente: TRIBUTRIO - IPI - DESCONTOS INCONDICIONAIS - BASE DE CLCULO - EXCLUSO - CTN, ART. 47 - PRINCPIO DA HIERARQUIA DAS LEIS - PRECEDENTES. 227 - Fere o princpio da hierarquia das leis a disposio de lei ordinria que amplia o conceito de "valor da operao" disciplinado por Lei Complementar (CTN). - A base de clculo do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI o valor da operao, definido no momento em que esta se concretiza. - Os descontos incondicionalmente concedidos no integram a base de clculo do IPI porque no fazem parte do "valor da operao" da qual decorre a sada da mercadoria. (STJ, Segunda Turma, unanimidade, REsp 318639/RJ, set/2005)
bem verdade que a Corte Superior no considerou o escopo extrafiscal da medida tal qual afirmamos. No entanto, estamos seguros para sustentar que mesmo claros escopos extrafiscais no validariam a ampliao da base de clculo para alm das fronteiras conceituais demarcadas pela Constituio ou, no caso de impostos, por lei complementar de definies. O contrrio, porm, permitido pelo menos sob o ngulo de anlise da competncia tributria. Medidas que reduzam a base de clculo podem, por exemplo, ser consideradas inconstitucionais por violar o Primado da Isonomia, mas no por macularem o poder legiferante constitucionalmente conferido s pessoas polticas para criar tributo. Alis, essa uma medida sobremaneira comum de fomento. O DL n 1.096/70, por exemplo, com a finalidade de incentivar mineradoras, permitia a deduo da base de clculo do imposto de renda das empresas de minerao, cota de exausto de recursos minerais equivalente a vinte por cento da receita bruta auferida nos dez primeiros anos de explorao de cada jazida. importante notar que no se tratava de mera antecipao de despesas, uma vez que o total desses valores poderia suplantar o prprio custo de aquisio da jazida. Por outro lado, se o intento fosse desestimular essa atividade, no poderia o legislador proibir a deduo como despesa das quotas normais de exausto, pois violaria o conceito de renda para agravar a situao do contribuinte. Uma outra forma terica de manejar a tributao faz-lo diretamente. Em tese, o valor do tributo que dever ser pago pode ser incrementado ou reduzido de certas quantias, sem qualquer modificao de sua base de clculo e alquota. Cumpri-nos, contudo, averiguar a constitucionalidade deste expediente. As concluses acerca desse expediente so similares ao manejo da base de clculo. Da mesma forma que a base no pode ser aumentada por quantidades sem relao com a hiptese de incidncia constitucionalmente discriminada, o resultado da aplicao da 228 alquota pela base de clculo, isto , o tributo, tambm no pode ser acrescido de qualquer quantia que no se submeta ao crivo da dade base-hiptese. De igual sorte, tanto a reduo da base de clculo, quanto do tributo, no ferem as regras constitucionais de discriminao de competncia (apesar de poderem violar a Isonomia). A reduo do critrio quantitativo como um todo empreendida por meio de dedues diretas do montante apurado do tributo. Um tpico exemplo pode ser encontrado no art. 12, da Lei n 9.250/95, o qual autoriza s pessoas fsicas deduzirem do imposto de renda devido contribuies feitas aos fundos controlados pelos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente, contribuies em favor de projetos culturais, e investimentos em atividades audiovisuais. Por outro lado, no consideramos a concesso de crditos como medida de carter tributrio, exceto se os valores concedidos no forem passveis de ressarcimento pelo Poder Pblico no caso de superarem o montante da dvida tributria. Quando reembolsveis, assumem o carter de subsdio. Equivalem ao Estado entregar recursos financeiros provindos de suas receitas s empresas; as quais no esto obrigadas a empreg-los exclusivamente, mas apenas preferencialmente, na quitao de suas dvidas tributrias. Uma outra forma de reduo do tributo a fracionria, isto , dispensar uma determinada frao ou parcela percentual do tributo em razo da realizao de alguma conduta que se pretende estimular. Poderamos, porm, afirmar que essa medida equivale prpria reduo da alquota. Ora, reduzir em 50% o imposto sobre a renda devido por empresas exportadoras no equivaleria a reduzir a alquota, por exemplo, de 20% para 10%? De fato, no plano proposicional, as medidas so idnticas. Todavia, no plano da expresso, a reduo de alquota poderia ser medida apesar de no invivel desnecessariamente trabalhosa quando em comparao com a diminuio percentual direta do tributo. Por exemplo, o art. 5 da Lei 10.182/01 reduziu, em quarenta por cento, o imposto de importao de partes e peas destinadas produo de nibus, caminhes, tratores, dentre outros veculos. Medida legislativa equivalente poderia ter sido empreendida por meio da fixao de alquotas diferenciadas para cada tipo de pea destinada fabricao dos mesmos veculos. Um dispositivo, que fixasse em 10% a 229 alquota para parafusos, viria acompanhado de um outro que estabeleceria o percentual de 6% no caso da destinao incentivada e assim por diante em relao a cada possvel componente. Evidentemente, seria uma estratgia legiferante muito pouco sagaz.. Podemos, assim, afirmar que h trs tipos de medidas legislativas capazes de imprimir escopos extrafiscais por meio da quantificao pecuniria: modificaes (i) da alquota, (ii) da base de clculo, ou (iii) diretamente do prprio tributo. O aumento da base de clculo pode ser admitido, tendo-se o cuidado de no ultrapassar a atribuio de competncia. J o aumento direto do tributo jamais poder ser considerado compatvel com o nosso Sistema Tributrio Constitucional. H, desse modo, limites mais severos para a extrafiscalidade desestimuladora. Havamos afirmado anteriormente que a supresso total, vale dizer, a iseno, corresponde tambm a um meio quantitativo apto a impingir marcas extrafiscais. Do ponto de vista de influir nas condutas coletivas, reduzir uma alquota s difere em intensidade (e no em qualidade) de uma regra de iseno. Nada obstante, a natureza jurdica da iseno foi (e ainda ) tema de intensos debates doutrinrios, diferentemente da regra que meramente reduz a alquota a um patamar no nulo. Em razo disso, apesar de mais adiante dedicarmos um tpico especfico para o estudo da iseno, verificaremos aqui uma de suas mais importantes Teorias com o propsito de aprofundarmos o estudo dos instrumentos pecunirios em geral. Para Paulo de Barros Carvalho, a iseno pertence classe das regras de estrutura, a qual introduz alteraes na norma de incidncia tributria. A iseno se consubstancia, assim, como uma mutilao parcial de qualquer dos critrios essenciais da regra-matriz. Com isso, pode ser implementada de oito formas diversas. Nas palavras do destacado Professor: O que o preceito de iseno faz subtrair parcela do campo de abrangncia do critrio do antecedente ou do conseqente, podendo a regra de iseno suprimir a funcionalidade da regra-matriz tributria de oito maneiras distintas: (i) pela hiptese: i.1) atingindo-lhe o critrio material, pela desqualificao do verbo; i.2) mutilando o critrio material, pela subtrao do complemento; i.3) indo contra o critrio espacial; i.4) voltando-se para o critrio temporal; (ii) pelo conseqente, atingindo: ii.1) o critrio pessoal, pelo sujeito ativo; ii.2) o critrio pessoal, pelo sujeito passivo; ii.3) o 230 critrio quantitativo, pela base de clculo; e ii.4) o critrio quantitativo, pela alquota 237 .
Apesar da potncia dessa formulao ao penetrar em mincias analticas a regra isencional, cremos ser ainda necessrio tecer mais algumas consideraes com o fito de encampar numa mesma Teoria todas as regras que imprimem escopos extrafiscais por meio de variaes de cunho pecunirio. Entendemos, mesmo no caso de isenes, que sempre deve haver uma relao entre os critrios quantitativos e os demais referidos pela lei. Por exemplo, uma iseno no pode ser concedida pela mutilao da alquota sem que a lei expresse a qual alquota se refere. Se o legislador simplesmente reduzir a alquota a zero, sem mais nada prescrever, ter revogado o tributo e no concedido uma iseno. necessrio que reduza a alquota para determinados sujeitos ou para determinadas hipteses. No caso do IPVA, por exemplo, pode ser reduzida a alquota a zero para deficientes fsicos, para veculos a lcool, etc; mas nunca uma anulao sem qualquer referncia; porque, neste caso, o imposto ter sido revogado. De igual sorte, a mutilao dos demais critrios sempre est referida ao critrio quantitativo. Na iseno, isso est acobertado pela prpria fora semntica do instituto, a qual impe a supresso total do quantum que seria devido. Assim como na Teoria Matemtica houve ao longo de sculos uma enorme dificuldade para se lidar com o conceito de nmero zero ou para a Fsica (na verdade, os primrdios da Filosofia) conceber o vazio 238 , a Teoria do Direito Tributrio ainda sofre para definir iseno. O zero um nmero natural, como o um, o dois, etc; o vazio espao ainda que destitudo de matria e energia; de igual sorte, a iseno norma, mesmo destituda de contedo obrigacional. Para o Sistema Matemtico, o zero no equivale a uma ausncia numrica; para o universo fsico, o vazio no equivale a uma ausncia de espao, vale dizer, de uma grandeza fsica; de igual sorte, a iseno no equivale a uma ausncia de norma e possui a mesma natureza de toda norma tributria permeada por contedo obrigacional. Ao revs de apresentar natureza distinta das demais normas de
237 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 521. 238 Aristteles, por exemplo, julgava no haver vazio, conforme RUSSELL, Bertrand. Histria do pensamento ocidental, p. 125. 231 contedo, a iseno uma exigncia para o fechamento do sistema jurdico-tributrio no que se refere fenomenologia da incidncia. Suponhamos uma lei que cria o IPVA para os veculos em geral; estabelece sua hiptese de incidncia, contribuinte, base de clculo e alquota. A seguir, vamos supor trs formas de incentivar a aquisio de veculos a lcool, seja por meio de um dispositivo da prpria lei, seja pela edio de outra lei: (i) concesso de iseno; (ii) reduo da alquota a um patamar no-nulo; (iii) reduo da alquota a um patamar nulo. Ora, em todos os casos, estamos apenas diante de uma regra especial em relao geral, que visa incentivar a aquisio de um determinado tipo de veculo. Os mecanismos lingsticos diversos empregados para alcanar o mesmo fim no implicam alterao de regime jurdico, uma vez que se diferenciam apenas de intensidade e no de qualidade. O nulo causou diversas controvrsias at que fosse considerado um nmero como o um e o dois; o vazio tambm para ser considerado uma realidade fsica palpvel. Hoje, a iseno e a alquota zero causam a mesma espcie de perplexidade, mas no diferem em nada da mera reduo de alquota para uma sub-classe de ocorrncias que se pretende estimular em relao s demais abarcadas pela regra geral de criao do tributo. De volta ao exemplo do IPVA, se uma nova lei aumentar a alquota dos veculos a lcool, no resta dvida que dever atender ao Primado da Anterioridade, pois, conforme dico do art. 150, inciso III, alnea b, as Pessoas Polticas esto proibidas de cobrar tributos [...] no mesmo exerccio financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (nosso destaque). E, se a lei, ao revs de aumentar a alquota para um patamar maior que aquela prevista em norma especial, simplesmente revogasse a disposio especfica? Nesse caso, aplicar-se-ia a regra geral, o que redundaria para os veculos a lcool num aumento de alquota e, portanto, num aumento de tributo, que tambm deve se submeter ao ditame da Anterioridade. Ora, por que razo deveria ser diferente em relao revogao de iseno? Nada obstante, o STF, de longa data, como podemos aferir pela redao da Smula n 615 o principio constitucional da anualidade (par-29 do art-153 da CF) no se aplica revogao de iseno do ICM , vem decidindo em contrrio, como se a iseno tivesse o condo de deixar a tributao apenas em suspenso; pairada no ar. Em sntese, toda e qualquer modificao nos critrios quantitativos com fins extrafiscais seja pela alquota, seja pela base de clculo, seja diretamente atuando sobre o produto dos dois fatores, inclusive para aniquilar integralmente o quantum, o que 232 chamado de iseno sempre deve se reportar a uma classe especial de um dos demais critrios essenciais de regra de incidncia. O manejo do critrio quantitativo indica a direo extrafiscal redues incentivam; aumentos desestimulam , ao passo que a referncia aos demais critrios indica o que se pretende fomentar ou inibir. Todos os incentivos (inclusive as isenes) e os desestmulos se prendem a essa lgica. Assim, podem ser classificados conforme os critrios. Em relao ao aspecto quantitativo, podem ser: i) pela manipulao da base de clculo, ii) pela manipulao da alquota, ou iii) pela manipulao do prprio tributo, isto , do resultado da operao base de clculo versus alquota. Cada um desses critrios pode ser acoplado aos demais: i) verbo do critrio material, ii) complemento do critrio material, iii) critrio espacial, iv) critrio temporal, v) critrio pessoal em relao ao sujeito passivo (a mutilao do sujeito ativo implicaria a revogao do prprio tributo, exceto que se referisse a outro critrio; esse caso, porm, pode ser reduzido ao outro critrio). Desse modo, pode haver 15 (quinze) tipos de instrumentos extrafiscais (trs vezes cinco). Se desmembrarmos os positivos dos negativos, os tipos so multiplicados por dois e passam a ser de 30 (trinta). Muitos apresentam denominaes especficas consagradas como, por exemplo, redues do critrio quantitativo relacionado ao critrio espacial so chamadas de incentivos regionais. A princpio, aumentos em razo do critrio espacial devem ser repudiados. Deveriam pertencer apenas ao espao-lgico de possibilidades e no ao plano emprico dos enunciados prescritivos. No entanto, com claro escopo extrafiscal, o art. 156, 1, inciso II, autoriza a diferenciao de alquotas do IPTU, em razo da localizao do imvel, o que autoriza evidentemente tanto reduo, quanto aumento. Consideramos que essa classificao um potente instrumento para aferio da multiplicidade dos instrumentos extrafiscais, bem como suas especficas peculiaridades de regime jurdico. Nada obstante, no nos embrenharemos em tal empreitada por extrapolar sobremaneira o escopo desta monografia.
233 8.2.2. Instrumentos formais O direito tributrio positivo composto por um conjunto de regras impositivas, as quais no se limitam ao estabelecimento do dever de dar dinheiro. H ainda os deveres de cunho formal ou instrumental, como preencher declaraes, livros e documentos, submeter-se a regimes especiais de fiscalizao, dentre outros. evidente que o incremento de deveres, mesmo destitudos de cunho patrimonial, desestimula o agente para a realizao de atividades. O contrrio tambm verdadeiro, isto , a reduo de deveres tem o condo de aumentar o nmero de pessoas dispostas a adotar uma determinada prtica. Assim, por exemplo, a mera exigncia de visto (especialmente, se for necessria a apresentao de muitos documentos e a espera em longas filas de atendimento) tem o condo de reduzir o nmero de pessoas interessadas em viajar para o pas que impe essa obrigao. Provavelmente, aps a introduo da medida, muitos alteraro seus projetos para passear em outras localidades. No plano do comrcio internacional, o desestmulo s importaes pode ser obtido no s por meio de elevao tarifria, mas tambm pela imposio de exigncias administrativas, dentre as quais, as fito-sanitrias. Nada obstante, os deveres instrumentais raramente tm sido citados como instrumentos capazes de atender escopos extrafiscais. Geralmente, so considerados como deveres impostos aos particulares com a finalidade de dotar a Fazenda Pblica de instrumentos mais eficientes para o desempenho de suas atividades de fiscalizar e arrecadar. Desse modo, uma reduo quantitativa (a supresso da obrigao do preenchimento de um livro, por exemplo) ou qualitativa (a simplificao de uma declarao) deveria ser dirigida apenas a pessoas, cujo interesse fiscal fosse menor. Todavia, no entendemos assim. A reduo de deveres instrumentais pode possuir ntido carter extrafiscal. Um exemplo contundente o artigo 26 da Lei Complementar n 123/06, que estipula deveres formais simplificados para as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo simples nacional e, principalmente, seu pargrafo 4, que probe o estabelecimento de regras unilaterais pelas unidades polticas partcipes do sistema. Em detrimento de maiores controles formais, o que conduz ao incremento das dificuldades e, portanto, dos gastos da Fazenda Pblica na gesto administrativo-tributria, privilegia-se a simplificao instrumental que leva, em contrapartida, reduo de gastos 234 para o particular gerir sua atividade. Nesse caso, contudo, no poderamos falar em violao ou mesmo mitigao do Princpio da Supremacia do Interesse Pblico sobre o Particular, pois os escopos extrafiscais que conduzem a essa simplificao devem apresentar ntido carter coletivo. No privilegiar poucos em detrimento de muitos, mais sim incentivar muitos em benefcio de todos. Mas e quanto ao incremento de deveres instrumentais com o fito de se atender a escopos de desestmulo? Numa resposta apressada, poderamos asseverar como legtima medidas dessa ordem. Afinal, produtores de cerveja submetem-se a controles de vazo; e, a fabricantes de cigarros, so impostos rgidos regimes de comercializao de seus produtos, com precisas especificaes de tamanho, quantidade por embalagem, bem como aplicao de selos fiscais. E no so justamente esses os produtos que mais intensamente devem ser desestimulados? Numa escala de essencialidade, devem ser privilegiados os bens necessrios sobrevivncia humana, como remdios e alimentos; em posio intermediria, vem os bens no essenciais, mas teis, como eletrodomsticos; depois os suprfluos, como jias e perfumes; por fim, os nocivos, apesar de permitidos, como bebidas e tabaco. Nada mais razovel, portanto, do que impor deveres instrumentais mais severos aos produtores destes ltimos bens. Essa concluso, porm, enganosa. No h a menor razoabilidade em se estabelecer deveres instrumentais com a finalidade de tornar mais rdua e difcil uma atividade lcita; fere o princpio da livre iniciativa estampado no art. 4, inciso IV, da Constituio Federal. Isso, porm, no significa que os deveres instrumentais especficos e mais rgidos para os fabricantes de bebidas e cigarros, anteriormente citados, ferem a razoabilidade. Tais deveres devem guardar relao com a obrigao principal e se esta quantitativamente mais elevada que as devidas pelas empresas em geral, legitima-se a imposio de deveres formais at espartanos. Em outras palavras, a tributao mais elevada para determinadas atividades produz a disfuno de estimular o agente privado a evadir, o que legitima a imposio de maiores e mais rigorosos controles.
235 8.2.3. O manejo do prazo de pagamento Deixamos para um tpico especfico a anlise das regras de fixao de prazo de pagamento com a finalidade de indagar: qual a sua natureza? Mais: em razo dessa natureza, elas poderiam ser empregadas com intuitos extrafiscais? Como nos referimos ao prazo para recolher tributos, no h dvidas de que esse lapso temporal diz respeito obrigao principal. Nada obstante, Paulo de Barros Carvalho no considera esse fator como essencial para o estabelecimento da regra de criao do tributo e, portanto, para desencadear a incidncia 239 . De fato, uma vez fixado o aspecto temporal do antecedente normativo de imposio tributria, o prazo para pagamento se configura apenas como uma dilao no necessria para a satisfao da obrigao. Apesar disso, no podemos negar a importncia de regras de estipulao de prazos para a liquidao da dvida no direito tributrio positivo nacional. Nenhuma limitao lgica ou prescritiva impede, por exemplo, que um Municpio, ao estabelecer a data da hiptese de incidncia do IPTU, fixe para este mesmo dia o termo para pagamento; mas, em geral, o momento do recolhimento no coincide com o aspecto temporal da regra de incidncia e, neste caso, necessariamente sempre posterior. Na rbita das relaes econmicas, ampliar prazo para pagar equipara-se, numa certa medida, concesso de crdito, ou seja, a emprstimo. Se a expanso do crdito para determinadas atividades (como consumo das famlias e investimento das empresas) as estimula mesmo com o nus da remunerao do capital, isto , a imposio de juros; o que dizer da mera ampliao de prazos para pagar sem qualquer contrapartida pecuniria? Evidentemente, a ampliao do prazo de pagamento de tributos produz o efeito de fomentar a atividade que sofre a sua incidncia; ao passo que a reduo desestimula. Tamanha a importncia das regras de fixao de prazo, que destacados juristas asseveram que tais prescries esto abarcadas pelo prprio Princpio da Legalidade Tributria. Geraldo Ataliba e Lima Gonalves, ao estudarem o tema, assim expuseram, matria legal, porque diz respeito quantificao da obrigao tributria do
239 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio, p. 259. 236 cidado diante do Estado. E isto se demonstra pela constatao de que o prazo, no clima inflacionrio, altera substancialmente o quantum 240 . No comungamos em parte com a opinio exposta, ou seja, de que o prazo matria reservada lei, uma vez que no se configura como critrio essencial da incidncia. Nada obstante, concordamos com o ponto, segundo o qual o manejo do tempo do pagamento produz efeitos quantitativos apesar de no nominais na dvida tributria, e mesmo em ambientes inflacionrios mnimos; deste modo, capaz de desempenhar funes encorajadoras e desestimulantes, respectivamente, no caso de aumento e reduo. Como no se trata de matria reservada lei, o prazo de pagamento o nico instrumento de cunho pecunirio apto a ser manejado pelo Executivo quanto a todo e qualquer tributo (exceto, em razo do Princpio da Supremacia Legal, se a lei diretamente o estabelecer) com propsitos extrafiscais. Uma vez que a Legalidade no mbito da regulao econmica no se assenta em critrios to estritos 241 , no h bices para o Executivo fixar prazos de recolhimento mais longos para atividades que busca estimular e mais curtos para aquelas que intenta desencorajar.
8.2.4. Sanes tributrias e extrafiscalidade Merece tambm anlise apartada a possibilidade das sanes serem graduadas em razo de escopos extrafiscais. Com o fito de estimular uma dada atividade (a comercializao de alimentos, por exemplo), poderia a multa pela omisso do recolhimento de tributos ser gravada com um percentual menor que aquele destinado s atividades em geral? Na outra direo, com o fito de desestimular, poderia ser estabelecido um patamar sancionatrio mais elevado? Ao desenvolvermos investigao especfica acerca das sanes pecunirias no direito tributrio 242 , estipulamos que o conseqente destas regras deve ser dimensionado, no caso do antecedente ilcito abarcar o descumprimento de obrigao principal, em funo de dois fatores: base de clculo e percentual. A base deve corresponder ao contedo
240 ATALIBA, Geraldo & Gonalves, J. A. Lima. Carga tributria e prazo de recolhimento de tributos, p. 27. 241 Conforme SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 240: o princpio da legalidade, tal como entendido em matria de Direito Econmico, exige que a atuao estatal tenha base em lei; no se exige desta, entretanto, que discipline em mincias o ato de interveno, cabendo- lhe, apenas, estabelecer as metas e limites autoridade delegada. 242 Vide MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. A estrutura lgico-formal da sano pecuniria no direito tributrio. 237 pecunirio do ato delitivo, ou seja, ao valor do tributo omitido. Desse modo, todas as sanes (moratrias e punitivas; qualificadas objetiva ou subjetivamente) devem apresentar a mesma base. Elas se diferem apenas em relao ao percentual, cujo patamar deve se ajustar s diferentes finalidades das sanes, que, em sntese, podem ser agrupadas em reparar e punir, nas quais no se enquadram finalidades de encorajamento nem desestmulo. Em razo disso, a Lei Complementar n 123/06, que estabelece um regime jurdico tributrio favorecido para as empresas de menor porte, apesar de ter reduzido significativamente diversas imposies tributrias, bem como ter limitado e simplificado deveres instrumentais, manteve os mesmos patamares sancionatrios destinados s empresas em geral, conforme disposto em seu artigo 35: Art. 35. Aplicam-se aos impostos e contribuies devidos pela microempresa e pela empresa de pequeno porte, inscritas no Simples Nacional, as normas relativas aos juros e multa de mora e de ofcio previstas para o imposto de renda, inclusive, quando for o caso, em relao ao ICMS e ao ISS.
8.3. A ISENO O instituto da iseno exige anlise especfica e sobremaneira acurada, pois muitos foram e ainda so os embates doutrinrios acerca da sua natureza jurdica e, conseqentemente, do seu regime jurdico. Nesse passo, merece destaque a lio de Paulo de Barros Carvalho que faz, em seu Curso de Direito Tributrio 243 , um histrico daquelas Teorias que gozaram de maior aceitao em nosso Pas: (i) a iseno como dispensa do pagamento do tributo; (ii) como favor legal; (iii) como hiptese de no-incidncia legalmente qualificada; e (iv) como fato impeditivo da norma de instituio do tributo. Contra a primeira Teoria tece o seguinte: insustentvel a teoria da iseno como dispensa do pagamento do tributo devido. Traz o pressuposto de que se d a incidncia da regra-matriz, surge a obrigao tributria e, logo a seguir, acontece a desonerao do obrigado, por fora da percusso da norma isentiva. O preceito da iseno permaneceria latente, aguardando que o evento ocorresse, que fosse juridicizado pela norma tributria, para, ento, irradiar seus efeitos peculiares, desjurisdicizando-o como evento ensejador de tributo, e transformando-o em fato isento. Essa qualificao factual seria obtida mediante a excluso do crdito, outra providncia logicamente impossvel. Traduz, na verdade,
243 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 518-21. 238 uma cadeia de expedientes imaginativos, para amparar uma inferncia absurda e contrria ao mecanismo da dinmica normativa.
Em posio crtica segunda afirma: A iseno como favor legal outro disparate que deve ser evitado. [...] A decretao de isenes ditada, primordialmente, pelo interesse pblico. Se acarretam vantagens ou benefcios aos sditos do Estado, algo que no interfere na estrutura ou nos efeitos do instituto.
Em relao terceira, assim se ope: Quando assevera que a regra de iseno incide para que a de tributao no possa incidir, outorga maior celeridade ao processo de percusso do preceito isencional, que deixa para trs a norma do tributo, na caa ao acontecimento do mundo fsico exterior. Inverte, como se v, a dinmica de juridicizao o evento que, ao invs de sofrer primeiramente o impacto da regra de tributao, como queria a tese tradicional, recebe a incidncia da norma isentiva. No curso do mesmo raciocnio, no entendemos que o conceito de iseno como hiptese de no-incidncia legalmente qualificada seja a mais adequada para exprimir o fenmeno de que tratamos. Padece do vcio da definio pela negativa e no explica como se d a harmonizao com a norma de incidncia tributria, ainda que saibamos que nos fundamentos dessa idia repouse a presteza da regra de iseno, que se antecipa de tributao, para impedir que, do fato, exsurja o dever de recolhimento do tributo. (destaques originais)
Por fim, contesta a quarta posio com a seguinte passagem: A teoria do fato impeditivo, de outra parte, desperta algumas observaes que a tornam isatisfatria. A premissa de que o antecedente da regra isencional mais complexo que o suposto da norma de incidncia tributria no se verifica. At, pelo contrrio, as hipteses dos preceitos de iseno apresentam mbito mais restrito, alcanando apenas certas pessoas, situaes ou coisas que esto genericamente previstas no descritor da norma que decreta o tributo. Alm disso, portadora de sria impropriedade terminolgica, na medida em que define uma entidade normativa pela aluso a um fato, misturando o plano da linguagem prescritiva do direito com a realidade social que ela visa a disciplinar. As normas jurdicas descrevem fatos e prescrevem a conduta de seres humanos, como linguagem transmissora de ordens. E as isenes, antes de tudo, so proposies normativas do direito posto, assumindo, nessa condio, a arquitetura lgica que lhes peculiar. 239
Por derradeiro, para Paulo de Barros Carvalho, As normas de iseno pertencem classe das regras de estrutura, que intrometem modificaes no mbito da regra-matriz de incidncia tributria. Guardando sua autonomia normativa, a norma de iseno atua sobre a regra-matriz de incidncia tributria, investindo contra um ou mais critrios de sua estrutura, mutilando-os, parcialmente. Com efeito, trata-se de encontro de duas normas jurdicas que tem por resultado a inibio da incidncia da hiptese sobre os eventos abstratamente qualificados pelo preceito isentivo, ou que tolhe sua conseqncia, comprometendo- lhe os efeitos prescritivos da conduta 244 . Assim, Para Paulo de Barros Carvalho, em apertada sntese, as isenes so regras de estrutura que mutilam, parcialmente, a regra-matriz de incidncia tributria. As lies do renomado Professor so sobremaneira valiosas e, por isso, mereceram destaque especial. Nada obstante, cremos ser relevante tecer algumas consideraes. O fenmeno da iseno deve ser analisado do ponto de vista dinmico (em relao marcha de incidncia), mas tambm esttico, vale dizer, como deve ser empreendida a interpretao das normas gerais e abstratas a partir do contato com os registros grficos do direito posto. De fato, uma vez edificado o plano das normas gerais e abstratas, no h que se falar em cronologia da incidncia. No h duas positivaes do plano abstrato ao concreto: (i) uma da regra de incidncia, (ii) outra da regra de iseno. Assim, no h qualquer cronologia identificvel entre elas. Nada obstante, h prioridades lgicas de construo de significao das regras gerais e abstratas. Se nossa lngua fosse dotada de palavras designativas de cada conjunto possvel de objetos (conjectura terica, mas de realizao emprica impossvel, pois o nmero de palavras deveria ser infinito), no haveria razes sintticas para isenes. Se o legislador pretende instituir o imposto sobre produtos industrializados para automveis movidos por qualquer tipo de combustvel, exceto lcool, como fazer, seno mediante a instituio do tributo sobre automveis e iseno para os movidos a lcool.
244 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. 521. 240 Por ausncia de uma palavra designativa dos veculos no a lcool, no possvel, por limitaes da linguagem, a criao dum tributo com tais caractersticas, seno mediante a enunciao de uma iseno. Talvez se poderia dizer que no seria natural haver uma palavra especfica para designar os veculos movidos por combustveis diversos do lcool. No seria natural uma palavra para designar um conjunto de elementos que no apresente uma dada qualidade. O natural seriam as palavras que predicam a existncia de qualidades. A linguagem, contudo, no constituda por palavras que apresentem uma relao natural com o mundo. Sua relao arbitrria. Nada impede uma palavra com tais caractersticas. Vamos a um exemplo. Dentre o universo das pessoas, podemos classific-las em brasileiros e no brasileiros de igual sorte classificamos os veculos em a lcool e no a lcool , mas para os no brasileiros, h uma palavra designativa: estrangeiro. Assim, uma taxa pode ser criada de duas formas sintticas diversas: (i) fica instituda a taxa tal sobre residentes estrangeiros ou (ii) fica instituda a taxa tal sobre residentes, mas so isentos os brasileiros. H alguma diferena entre as duas formas? No seriam apenas sentenas diversas, mas que significam proposies idnticas? No seriam signos com dois vrtices (significado e referente) idnticos, mas com significantes diversos? Assim, da mesma forma como a imunidade exerce a funo de colaborar, de uma forma especial, no desenho das competncias impositivas 245 , a iseno tambm colabora, de uma forma tambm especial, na construo do significado das regras de incidncia e, portanto, da moldura do campo de incidncia. Repetimos: se a lngua fosse dotada de palavras designativas de qualquer classe de objetos, no haveria necessidade de regras de iseno. Ao legislador bastaria a edio de regras-matrizes de incidncia para alcanar as desejadas classes de situaes e pessoas. As isenes se resumiriam a mero recurso lingstico, empregado na criao de tributos, apto a contornar as limitaes da prpria linguagem. Dessa sorte, as isenes
245 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 205. 241 seriam dotadas de significao, mas apenas nas camadas inferiores do processo gerativo de sentido. Nada obstante, no captulo cinco, discutimos a potencialidade semntica do direito. Acerca da linguagem em geral, h duas posies antagnicas. A primeira afirma que a linguagem sempre pode exprimir algo que intenta seu utente (Searle); a segunda, afirma o contrrio, vale dizer, h situaes no passiveis de ser expressas em uma dada linguagem (Eco). Independentemente da posio adota, conclumos que o direito, ao se dirigir a searas sociais j imersas em linguagem, jamais limitado. O direito, assim, s regula aquilo que considerado valioso pela sociedade e, assim, j versado em linguagem. Se nossa lngua atribui uma palavra especfica para designar os no- brasileiros (estrangeiros), porque provavelmente o aspecto de no ser brasileiro , de alguma forma, relevante. Se, por outro lado, no possui um termo para designar os veculos no movidos a lcool porque tal caracterstica no apresenta valor social. Desse modo, a necessidade lingstica para edificar uma regra de incidncia por meio de isenes, mais que uma limitao de cunho semitico, denota uma opo social no uso e construo de sua prpria linguagem, na qual esto contextualmente imersos o enunciador (legislador) e o destinatrio do direito positivo. A iseno, desse modo, implica uma opo intencional de no tributao, a qual representa um forte indicador jurdico (e no extra-jurdico) de escopos extrafiscais.
8.3.1. Iseno e imunidade Outro debate relevante no cenrio jurdico nacional a diferena entre iseno e imunidade. Paulo de Barros Carvalho, contudo, critica esse debate por considerar os institutos sobremaneira distintos e, apenas de forma muito oblqua, poderiam ser comparados. Nas suas palavras, So proposies normativas de tal modo diferentes na composio do ordenamento positivo que pouqussimas so as regies de contato. Poderamos sublinhar to- somente trs sinais comuns: a circunstncia de serem normas jurdicas vlidas no sistema; integrarem a classe das normas das regras de estrutura; e tratarem de matria tributria 246 .
246 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, p. 205. 242 Concordamos plenamente com a lio. Nem sequer em relao funo extrafiscal o instituto da iseno equipara-se ao da imunidade. Enquanto as regras de imunidade podem cumprir duas funes a de bloqueio e a de fomento positivo , as de iseno s podem exercer a funo de estmulo, jamais a de bloqueio.
8.3.2. Iseno e no-incidncia Para Carrazza, iseno no se confunde com a no-incidncia. [...]enquanto a iseno deriva da lei, a no-incidncia deriva da falta de lei (em alguns casos) ou da impossibilidade jurdica de tributar-se certos fatos, em face de a regra-matriz constitucional do tributo a eles no se ajustar 247 . De fato, a distino relevante. Como a extrafiscalidade, do ponto de vista jurdico, decorre das marcas de intencionalidade assentadas no discurso prescritivo, a iseno consubstancia-se num relevante indicativo teleolgico; ao passo que a ausncia de lei, no. Uma lei que cria o imposto sobre produtos industrializados e deixa de selecionar, dentre as hipteses definidas no Cdigo Tributrio Nacional, a arrematao, no indica que haja um escopo para fomentar esse tipo de atividade. Por outro lado, essa mesma lei ao isentar a fabricao de produtos farmacuticos, apresenta claros indicativos do intuito incentivador. O silncio legislativo representa, geralmente, apenas a falta de iniciativa (de vontade, portanto) para a execuo do ato de fala ou a ausncia de condies momentneas para a sua produo.
8.3.3. Iseno e alquota zero Tambm merece anlise a suposta distino entre iseno e alquota zero. O saudoso Professor Ruy Barbosa Nogueira afirmava para a ocorrncia do fato gerador imprescindvel que prvia e abstratamente a lei tenha descrito todos os aspectos do fato gerador (objetivo, subjetivo, temporal, quantitativos: alquota e base de clculo). Enquanto reduzida a zero a alquota, no
247 CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de direito constitucional tributrio, p. 781-82. 243 existir tributao, por falta de um dos elementos do fato gerador. O efeito da alquota zero ao suspender a tributao assemelha-se ao da iseno. Entretanto, enquanto a iseno suspende todos os elementos do fato gerador, a alquota zero apenas nulifica um dos elementos do fato gerador 248 . Todavia, no podemos acatar essa distino. Afinal, alquota no compe o fato gerador (nem a hiptese de incidncia). O mais relevante, porm, destacar que a iseno no suspende todos os critrios da norma de incidncia. Se assim o fizesse, teria o condo de revog-la. Desse modo, alquota zero nada mais que iseno e, portanto, passvel de portar os mesmos escopos extrafiscais e de persegui-los com idntica intensidade.
8.4. EXTRAFISCALIDADE E AS ESPCIES TRIBUTRIAS Em face de cristalina dico constitucional, no resta qualquer dvida de que todo e qualquer tributo pode ser empregado com finalidade extrafiscal, conforme dispositivos abaixo reproduzidos: Art. 43. Para efeitos administrativos, a Unio poder articular sua ao em um mesmo complexo geoeconmico e social, visando a seu desenvolvimento e reduo das desigualdades regionais. (...) 2 - Os incentivos regionais compreendero, alm de outros, na forma da lei: (...) III - isenes, redues ou diferimento temporrio de tributos federais devidos por pessoas fsicas ou jurdicas;
Apesar desse comando Constitucional de evidente intencionalidade extrafiscal ser expressamente dirigido aos tributos federais e com um preciso intento (a promoo do equilbrio regional), aponta nitidamente que toda e qualquer espcie tributria pode ser utilizada com finalidades outras que no a de levar recursos aos cofres pblicos. Tal caracterstica no reservada para esta ou aquela espcie, mas sim atinente a todas. Nesse passo, contudo, necessrio discorrermos acerca das espcies tributrias. Com esse fito, devemos fixar qual (ou quais) critrio deve ser adotado para
248 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributrio, p. 167-68. 244 efetuarmos precisos cortes na classe das exaes que se quadram no conceito de tributo e, como isso, segreg-la em sub-classes. As classificaes no so verdadeiras ou falsas, vlidas ou invlidas. O ato de classificar uma atividade lingstica que visa contribuir de forma mais ou menos til com o especfico intento pragmtico da linguagem. O legislador classifica com o fito de prescrever condutas de forma mais eficiente. O Jurista classifica com a finalidade de melhor descrever o direito positivo. Nada obstante, quando o jurista fala acerca da classificao adotada pelo legislador no executa um ato de classificar. Ele enuncia uma proposio descritiva completa e, como tal, passvel de aferio veritativa; apta, pois, de ser verdadeira ou falsa. O legislador seleciona um conjunto de normas a partir de caractersticas consideradas relevantes e nomeia a classe. A partir desse nome acopla toda a classe aos demais enunciados do ordenamento com o fito de estabelecer seu regime jurdico. Ao jurista compete reconstruir essas vinculaes. Especificamente quanto s espcies tributrias, duas Teorias se destacam: a Tricotmica e a Quinqipartite. A primeira afirma que o nico critrio relevante o fato gerador (confirmado pela base de clculo). A natureza do aspecto material do antecedente da norma tributria (confirmado pelo aspecto quantitativo, especificamente, pela base de clculo) o nico critrio relevante. Essa Teoria, portanto, adota assim uma avaliao intra-normativa. Basta analisar estritamente a norma que impe o dever de pagar um tributo para se aferir com preciso qual o seu regime jurdico. J a Teoria Quinqipartite faz parte do conjunto de todas as demais Teorias que consideram tambm relevantes critrios inter-normativos. Para se identificar o regime jurdico a que se deve submeter uma norma de imposio tributria, no bastaria verificar os seus componentes constitutivos, mas tambm certas relaes com outras normas do sistema. A Teoria das Cinco Espcies considera relevante a relao com regras de destinao dos recursos arrecadados. Essa distino entre as Teorias fundamental para a interpretao de diversos enunciados constitucionais. A Doutrina que adota a Teoria Tricotmica afirma que as imunidades dirigidas a impostos impedem tambm as contribuies seguridade, cuja hiptese de incidncia se caracterize como a descrio de uma conduta do prprio contribuinte; ao passo que os adeptos da Teoria das Cinco Espcies afirmam que tais contribuies no se incluem na classe dos impostos e, assim, caracterizam-se como uma 245 espcie autnoma, em razo da destinao constitucional dos recursos arrecadados em razo da sua exigncia. Dessa forma, podem ser exigidas em relao aos fatos, pessoas e bens protegidos por regras imunizantes de impostos. Adotamos a Teoria das Cinco Espcies por consider-la a mais adequada anlise do fenmeno extrafiscal.
8.4.1. Impostos Em relao definio das espcies tributrias, no podemos deixar de considerar a competncia estatuda na Constituio (art. 146, III, a) para a Lei Complementar de estabelecer a definio de tributos e de suas espcies e o Cdigo Tributrio Nacional que define, em seu art. 16, o que deve ser compreendido como imposto: o tributo cuja obrigao tem por fato gerador uma situao independente de qualquer atividade estatal especfica, relativa ao contribuinte, ou seja, o tributo, cujo fato gerador praticado pelo prprio particular. Em retorno ao plano superior das normas constitucionais, pode ser verificado que os impostos esto precisamente discriminados. A Constituio atribui aos Entes Polticos precisas competncias para criar impostos sobre hipteses determinadas. Ademais, todas guardam entre si um fator em comum, representam dimenses econmicas relevantes. No h impostos que possam ser institudos sobre fatos sociais, cujo aspecto econmico no seja relevante. Mesmo os impostos residuais, em razo do necessrio respeito ao primado da capacidade contributiva estampado no art. 145, 1, da Constituio Federal 249 , devem apresentar essa caracterstica. Dessarte, podemos afirmar com segurana que os impostos, justamente por onerar fatos sociais de relevante aspecto econmico, prestam-se por excelncia a finalidades extrafiscais 250 . Em realidade, para cada um dos grandes grupos de atividades econmicas, h discriminao ordinria (no residual) de impostos. O ICMS, de competncia estadual, alcana a mercancia; mas alm deste imposto, sobre bens elaborados de maior valor agregado, h a sobreposio do IPI de competncia federal. Sobre os
249 Sempre que possvel, os impostos tero carter pessoal e sero graduados segundo a capacidade econmica do contribuinte 250 Com o mesmo entendimento: SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 168. 246 servios em geral pode incidir o ISSQN de competncia Municipal. Sobre operaes de comrcio exterior, h a incidncia do imposto de importao no ingresso ao Pas de produtos estrangeiros e o imposto de exportao na sada de bens nacionais; dentre outros exemplos. A discriminao constitucional de competncias para a criao de impostos no indica fatos sociais relevantes economicamente apenas em razo de serem estes os mais adequados para se obter os recursos necessrios para a gesto pblica. Parece-nos evidente que este aspecto est presente, ou seja, a Constituio distribui s Pessoas Polticas os fatos sociais economicamente relevantes sobre os quais podem instituir impostos e, assim, atender s suas finalidades fiscais de obteno de recursos. Todavia, tambm presente est a funo extrafiscal de tais exaes. da competncia da Unio legislar privativamente sobre comrcio exterior (art. 22, inciso VIII), logo desta mesma Pessoa Poltica a competncia para instituir impostos sobre estas condutas, isto , o imposto de importao e o de exportao. Tambm privativo da Unio legislar sobre direito agrrio (art. 22, inciso I), bem como desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social (art. 184), logo o importo territorial rural de sua competncia tributria. Alis, a Emenda Constitucional 42/03 atribuiu aos Municpios a faculdade de assumirem as funes de arrecadar e fiscalizar o referido imposto e assumirem integralmente a arrecadao, mas sem macular em nada a competncia legislativa federal. Por outro lado, como a poltica de desenvolvimento urbano de competncia municipal (art. 182), o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana tambm o . No podemos deixar de constatar ser igualmente da Unio a competncia administrativa para fiscalizar as operaes de natureza financeira (art. 21, inciso VIII), bem como a legislativa para disciplinar o sistema financeiro nacional mediante lei complementar, conforme disposio do art. 192: O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do Pas e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compem, abrangendo as cooperativas de crdito, ser regulado por leis complementares. Logo, tambm da Unio a competncia tributria para estabelecer o imposto sobre operaes de crdito, cmbio e seguro, ou relativas a ttulos ou valores mobilirios. Seria muita coincidncia que as Entidades Polticas a quem a Constituio Federal atribui competncia para regrar determinadas reas serem as mesmas a quem tambm atribui competncia tributria para instituir impostos sobre os respectivos fatos 247 econmicos. H uma ntida inteno constitucional para que tais impostos sirvam tambm de expedientes capazes de direcionar as condutas. Alis, a Doutrina ptria j de longa data constata a relao entre competncia tributria e competncia regulatria, especialmente quanto aos impostos. Ruy Barbosa Nogueira assim afirmou: quando o legislador constituinte desejou proceder reforma agrria deu Unio, como um dos instrumentos efetivos para implant-la e regul-la, competncia para legislar sobre o imposto territorial rural, competncia essa que se conserva at hoje no 4, do art. 153 da Constituio vigente 251 . Isso refora nossa convico anteriormente posta de que as Pessoas Polticas no podem manejar seus tributos para influir na prtica de condutas que no se incluam na sua competncia regulatria. Um tema que tambm merece investigao o da possibilidade de lei complementar que define fatos geradores, bases de clculo e contribuintes poder possuir escopo extrafiscal. Os impostos so os nicos tributos para os quais a Constituio exige complementao em relao a esses critrios, conforme art. 146, inciso III, alnea a. Poderia, assim, a Unio se valer desta competncia legiferante para imprimir traos de extrafiscalidade aos impostos estaduais e municipais? Temos a convico de que no. Apesar da Constituio Federal s proibir expressamente a concesso de isenes (conforme art. 151, inciso III), o Ditame da Autonomia das Pessoas Polticas informa todo o nosso modelo constitucional e impede a Unio de interferir, salvo expressas excees, nas competncias legiferantes dos demais Entes Tributantes. A proibio decorre de sua prpria concepo federativa e somente est explicitada em relao a isenes para se evidenciar no mais ser autorizado Unio conceder tal benefcio, conforme rezava o 2, art. 19, da Constituio anterior: a Unio, mediante lei complementar e atendendo a relevante intersse social ou econmico nacional, poder conceder isenes de impostos estaduais e municipais. Com efeito, pelas nossas pesquisas, o legislador complementar tem respeitado esse limite. No encontramos nas leis complementares 87/96 e 116/03, as quais estabelecem as regras gerais, respectivamente, do ICMS e do ISS, em especial, a definio de seus contribuintes, hipteses de incidncia e bases de clculo, qualquer dispositivo que possa ser interpretado como limitador do espectro constitucional de competncias
251 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributrio, p. 187. 248 tributrias atribudas aos Estados, Distrito Federal e Municpios. Como exceo, ambas leis concedem isenes para as exportaes de bens e servios, mas essa hiptese tem amparo constitucional expresso (art. 155, 2, inciso XII, alnea e; e art. 156, 3, inciso II)..
8.4.2. Taxas Enquanto os impostos assim se qualificam pelo fato gerador ser praticado pelo particular. As taxas, pelo contrrio, so os tributos exigidos em razo de um fato praticado pela Administrao Pblica. No entanto, no todo e qualquer fato jurdico praticado por entes estatais que legitimam juridicamente a imposio de taxas. Segundo o art. 145, inciso II, da Constituio Federal, todas as Pessoas Polticas podem instituir taxas, em razo do exerccio do poder de polcia ou pela utilizao, efetiva ou potencial, de servios pblicos especficos e divisveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposio. Dessarte, s h competncia constitucional para se instituir dois tipos de taxa: (i) a de servio e (ii) a de polcia ou fiscalizao. Apesar da destinao dos valores arrecadados com as taxas no se caracterizar como critrio jurdico apto a qualificar esta espcie e, portanto, a definir o seu regime jurdico, ntido que prepondera o carter fiscal de sua instituio. Nada obstante, isso no significa que tais tributos no possam ser utilizados como fins sancionatrios, especialmente, positivos. O artigo 73, inciso I, da Lei Complementar n 123/06, a qual disciplina o Simples Nacional, estabeleceu reduo dos emolumentos (os quais possuem a natureza jurdica de taxa) no protesto de ttulos, quando o devedor for microempresa ou empresa de pequeno porte. Como ser discutido no prximo captulo, as simplificaes e redues quantitativas da tributao para as empresas de menor porte econmico apresentam claros escopos extrafiscais, tanto econmicos como sociais. Seguramente, a mais rica discusso acerca da relao entre essa espcie tributria e extrafiscalidade, diz respeito taxa de polcia. Essa taxa decorre de uma especfica atuao do Estado, qual seja, a de limitar, disciplinar e fiscalizar atividades do particular. Afinal, se essa exao est vinculada justamente ao Poder que a Administrao Pblica detm para restringir a liberdade de conduta, aparenta que possui ntida funo extrafiscal. 249 Regis de Oliveira, porm, discorda dessa tese e, ao analisar algumas hipteses, conclui: Da, difcil falar-se em extrafiscalidade na exigncia do tributo denominado taxa 252 . Schoueri 253 , por outro lado, admite escopos extrafiscais na instituio de taxas sem qualquer ressalva entre as decorrentes de prestao de servio pblico e as de polcia. Cremos, contudo, que a principal funo da taxa de fiscalizao seja fiscal. Ela retribui o Estado pelo gasto (o que no implica vinculao direta entre gasto e receita) empreendido para desenvolver uma atividade de fiscalizao de uma atividade do particular, a qual, sem controle, poderia acarretar danos para os particulares. o caso da pesca, uma vez desregrada e no fiscalizada, redundaria em reduo ou mesmo exausto total dos estoques de pescado; e de bases, lanchonetes e restaurantes, cuja atividade poderia causar danos sade popular; dentre muitas outras. A taxa de polcia para se obter a licena de pesca no visa restringir o acesso a tal atividade tornando-a mais onerosa. Todavia, ainda sim, pode estar presente a finalidade extrafiscal ao se exonerar da exao pescadores artesanais, por exemplo.
8.4.3. Contribuio de Melhoria provavelmente a espcie tributria que guarda o maior equilbrio entre as razes fiscais e extrafiscais. Se, por um lado, essa espcie criada com a finalidade de reduzir a especulao imobiliria calcada em expectativas de obras pblicas; por outro lado, o valor a ser obtido dos particulares no deve superar os gastos empreendidos pelo Poder Pblico para a realizao da obra. Tal disposio no de cunho constitucional expresso, mas est prescrita no Cdigo Tributrio Nacional (art. 81). Para aqueles que se posicionam segundo o entendimento dicotmico das funes da lei complementar em matria tributria, tais disposies extrapolariam o poder legiferante complementar conferido pela Carta Constitucional. No entanto, adotamos a tese da tricotomia, o que, alis, mais se coaduna com a firme posio adotada pelo STF nos seus ltimos julgados, em especial na edio da Smula Vinculante n 8.
252 OLIVEIRA, Regis Fernandes. Taxas de polcia, pg. 70-71. 253 SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 181. 250 8.4.4. Emprstimo compulsrio Seu objetivo precipuamente fiscal por expressa disposio constitucional. a despesa (ou expectativa de despesa) que justifica a criao de tais exaes. Nada impede, contudo, que respeitada a motivao fiscal, a Unio tambm busque fins extrafiscais. Vale ainda a observao de que o inciso III, artigo 15, do CTN, estipula uma terceira hiptese de emprstimo que possua ntida funo extrafiscal (emprstimo no caso de conjuntura que exija a absoro temporria de poder aquisitivo), a qual, porm, no foi recepcionada pela Constituio de 1988.
8.4.5. Contribuies especiais Segundo a Teoria Quinqipartite, Contribuies Especiais so os tributos que apresentam destinao constitucional expressa ou implcita, ressalvadas as hipteses de emprstimos compulsrio. Pela dico do art. 149 da Constituio Federal, h trs tipos, que subdividem a espcie tambm em razo da natureza do destino: (i) as contribuies sociais, cuja receita deve ser destinada para custeio dos direitos da ordem social; (ii) as contribuies de interveno no domnio econmico; e (iii) as contribuies de interesse das categorias profissionais ou econmicas. Apesar desses tributos adquirirem autonomia jurdica e, portanto, regime jurdico prprio em razo da destinao, este aspecto deve ser considerado apenas como diferenciador e no como um elemento soberano. A anlise da destinao essencial para qualificar a espcie, mas seus demais aspectos, em especial, os critrios eidticos de compleio da regra-matriz de incidncia, bem como a relao entre norma de incidncia e regra de destinao foram um domnio sobremaneira rico de possibilidades extrafiscais. Assim, por exemplo, a circunstncia de a Carta Suprema determinar a rea de destino dos recursos arrecadados com a implementao de uma contribuio no redunda, necessariamente, na proibio de serem concedidas isenes, as quais, evidentemente, mutilam parcialmente a receita e, portanto, a destinao. As contribuies sociais apresentam ntida finalidade fiscal, mas podem se prestar a objetivos extrafiscais sem maiores senes, em especial, aquelas cuja hiptese de incidncia, tal qual a dos impostos, caracterizada como uma atividade do particular. Geralmente, as alteraes introduzidas na lei do imposto sobre a renda das pessoas jurdicas com escopos sociais e econmicos so acompanhadas de iguais modificaes na 251 lei da contribuio social sobre o lucro. A compensao integral dos prejuzos fiscais na base de clculo do imposto de renda para as atividades rurais, por exemplo, que se configura nitidamente como um tratamento diferenciado e favorecido em relao s demais atividades econmicas, foi tambm estendida para as compensaes das bases de calculo negativas da contribuio social sobre o lucro por meio do art. 42 da MP n 1.991/2000. J as contribuies de interventivas apresentam marcadamente caractersticas extrafiscais, mas sua anlise sobremaneira tormentosa e complexa. Em razo das premissas adotadas, h quatro possibilidades lgicas para se promover a interveno ao considerarmos tambm a destinao: (i) por meio da norma de incidncia; (ii) por meio da regra de destinao; (iii) por meio de uma ou outra; (iv) por meio de uma e outra. Evidentemente, conforme a posio, o campo de competncia da Unio para criar tais exaes altera-se significativamente. A terceira resulta na maior competncia, a quarta na menor. Esta ainda mais restritiva ao se considerarmos essencial a vinculao de carter extrafiscal entre a receita e a despesa. como pensamos. A Constituio Federal sobremaneira minuciosa e precisa ao discriminar as competncias tributrias. Os impostos esto taxativamente discriminados e a competncia residual de que dispe a Unio para outros criar deve atender a critrios restritivos materiais (no-cumulatividade) e formais (edio de lei complementar). Apesar de aparentemente haver uma ampla competncia para a criao de taxas e contribuies de melhoria, essa aparncia enganosa. Somente estritas atividades estatais autorizam a instituio dessas espcies tributrias. Desse modo, no consideramos coerente interpretar que a Constituio, de um lado, tenha sido to restritiva na discriminao de impostos, taxas e contribuies de melhoria, mas, por outro, tenha entregado um vasto poder para a Unio criar contribuies de interveno do modo como lhe aprouver. Ademais, entendemos que o exerccio da competncia tributria para a criao desse tipo de contribuio especial exige que tanto a sua regra de incidncia, quanto a norma de destinao colaborem para o mesmo fim de carter regulatrio. O escopo extrafiscal, que deve ser de carter econmico, vincula a destinao e vice-versa. A contradio entre as duas regras macula de inconstitucionalidade esse tributo. Assim como as contribuies sociais, as relativas a categorias tambm apresentam precpua funo fiscal. Em verdade, exercem parafiscalidade se distinguirmos a funo de levar dinheiro aos cofres pblicos da funo de entregar recursos financeiros 252 diretamente s entidades que colaboram com o Estado. Entendemos, contudo, que no h relevncia entre essas duas funes, uma vez que recursos pblicos obtidos por meio de tributos arrecadados diretamente pelo Estado podem ser direcionados posteriormente, mediante normas de carter financeiro, para entidades paraestatais. Essas contribuies, apesar de no serem tipicamente discriminadas para perseguirem escopos extrafiscais, podem desempenhar tambm essa funo. Como exemplo, a iseno de contribuies ao Sistema S e demais institudas pela Unio (dentre as quais, portanto, a sindical) para as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional, conforme, o art. 13, 3, da LC n 123/06.
8.5. MODALIDADES EXTINTIVAS E FUNO EXTRAFISCAL Em geral, as modalidades de extino do crdito tributrio no apresentam finalidade extrafiscal. H, porm, excees, as quais devem, para assim se caracterizar, atender requisitos. Em primeiro lugar, necessrio que a modalidade no se caracterize como um direito subjetivo. Se todos tm direito de pagar, o pagamento no se caracteriza como uma modalidade de extino apta a desempenhar funo extrafiscal, pois no apresenta qualquer critrio discriminador capaz de beneficiar determinadas condutas em relao a outras. Isso, a princpio, pois a prpria estipulao de prazo para pagar distinta pode apresentar carter extrafiscal. Em segundo lugar, necessrio que a modalidade de extino se reporte a situaes futuras. Uma lei de remisso, publicada em 2007, que dispense o IPTU/2006 para reas atingidas por uma enchente, no apresenta carter extrafiscal. A circunstncia de, no antecedente da regra, estar descrita uma classe de fatos j consumados na poca da introduo do diploma legal na ordem jurdica, suficiente para afastar o carter extrafiscal da regra, o que levou SCHOUERI a condenar a concesso de incentivos em razo de condutas j praticadas 254 . Por outro lado, uma lei que estatua o direito compensao tributria, mas apenas para exportadores, nitidamente apresenta carter extrafiscal. Alis, vislumbramos
254 SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 273: nenhum sentido se pode encontrar na aplicao retroativa de um incentivo fiscal; se o contribuinte j incorreu na hiptese desejada pelo legislador, sem que a tanto fosse movido pelo incentivo fiscal, a concesso deste configura privilgio odioso, se no justificada por outro fundamento constitucionalmente vlido. 253 que as regras de compensao de tributos federais apresentam esse escopo, uma vez que tal direito s foi concedido para pessoas jurdicas e firmas individuais, e no para pessoas fsicas. Apresentam, assim, claro escopo de fomentar o desenvolvimento das atividades produtivas. Reportar-se a situaes futuras necessrio; todavia, no suficiente. Uma remisso, por exemplo, que dispense o pagamento de tributos abaixo de um certo valor diminuto, no apresenta carter extrafical. Seu estabelecimento decorre de a receita no compensar o gasto com a cobrana. Assim, a finalidade apenas fiscal, vale dizer, no gerar gastos desnecessrios ao prprio Estado.
254 CAPTULO XIX - A POSITIVAO EXTRAFISCAL Um homem prudente deve sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens [...] e fazer como os arqueiros prudentes que, julgando muito distantes os alvos que pretendem alcanar e conhecendo bem o grau de exatido de seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, no para atingir tal altura com a flecha, mas para poder, por meio de mira to elevada, chegar ao objetivo. MAQUIAVEL, Nicolau; O Prncipe. Valendo-nos da lio de Maquiavel, adotamos o caminho trilhado pelo nosso orientador (Professor Paulo de Barros Carvalho) de investigar o discurso do direito positivo por meio de instrumentos desenvolvidos pela Teoria da Linguagem, em especial, pela Semitica. Apontamos nossa mira para bem alto, mas nosso escopo sempre foi bem menos elevado: o de apenas demonstrar que h uma intencionalidade intersubjetiva, a qual, em relao ao signo jurdico, deve ser enfrentada pelo Jurista, pois conforma a interpretao das mensagens prescritivas. A extrafiscalidade, vale dizer, o emprego intencional de regras tributrias com escopo no arrecadador, aspecto que permeia dispositivos constitucionais como princpios, imunidades e regras de competncia , perpassa pelos legais, em especial, por aqueles que inauguram a ordem jurdica com os critrios constituintes da norma de incidncia, at os infra-legais aptos instituio de deveres instrumentais, prazos de pagamento, etc. tema sobremaneira complexo que merece reflexo detida e acurada, dirigida a cada um desses planos normativos. Isso, contudo, ainda no basta. H uma vasta gama de intrincadas relaes entre os patamares hierrquicos do ordenamento. No plano constitucional, h nove tipos de regras: i) proibitivas, (i.1) da extrafiscalidade positiva, (i.2) da extrafiscalidade negativa, e (i.3) da extrafiscalidade em ambos os sentidos; ii) facultativas, (ii.1) da extrafiscalidade positiva, (ii.2) da extrafiscalidade negativa, e (ii.3) da extrafiscalidade em ambos os sentidos; por fim, iii) impositivas, (iii.1) da extrafiscalidade positiva, (iii.2) da extrafiscalidade negativa, e (iii.3) da extrafiscalidade em ambos os sentidos. No patamar infra-constitucional, os diversos tributos uns mais, uns menos, mas todos podem ser estruturados para atender matizados fitos extrafiscais, mediante os mais variegados instrumentos desde especificidades dos critrios essenciais da regra de incidncia at simplificaes de deveres instrumentais. 255 Assim, as relaes entre esses dois grupos de enunciados prescritivos resultam num vasto e rico complexo de cadeias de positivao no exaurvel num trabalho de cunho monogrfico, nem sequer de forma superficial. Isso, contudo, no justificativa para, neste derradeiro captulo, deixarmos de enfrentar o tema, que representa o prprio desfecho da empreitada de analisar o fenmeno jurdico da extrafiscalidade por meio de instrumentos semiticos. Assim, abordaremos de forma exemplificativa, mas com suficiente profundidade, algumas das cadeias de positivao no trecho que interliga as regras de competncia s normas gerais e abstratas de conduta , que realam a necessria considerao dos escopos extrafiscais para a adequada interpretao do direito posto e, portanto, para a construo do Direito Tributrio.
9.1. MITIGAES AOS PRINCPIOS DA ANTERIORIDADE, NOVENTENA E ESTRITA LEGALIDADE A Doutrina 255 unnime ao afirmar que quatro impostos federais (imposto de importao, imposto de exportao, imposto sobre produtos industrializados e imposto sobre operaes financeiras) excepcionam os Princpios da Anterioridade, da Noventena e da Estrita Legalidade em razo da sua funo extrafiscal. Em verdade, em termos mais precisos, o IPI o nico, dentre os quatro, que no excepciona um dos princpios: a Noventena. Este princpio, originariamente dirigido s Contribuies Seguridade Social, conforme dico do art. 195, 6, da Constituio Federal 256 , foi estendido aos tributos em geral pela Emenda Constitucional n 42, de 19/12/2003, ao introduzir a alnea c ao inciso III do artigo 150 com a seguinte redao: Art. 150. Sem prejuzo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios:
255 Para ficar em alguns exemplos somente. AMARO, Luciano; Direito Tributrio Brasileiro, p. 125, Alguns tributos escapam aplicao do princpio da anterioridade [...] Entre as excees, temos que, por atenderem a certos objetivos extrafiscais (poltica monetria, poltica de comrcio exterior), necessitam de maior flexibilidade e demandam rpidas alteraes. Por isso, o imposto de importao, o imposto de exportao, o imposto sobre produtos industrializados e o imposto sobre operaes de crdito, cmbio, seguro e operaes com ttulos e valores mobilirios (alm de comportarem exceo ao princpio da estrita reserva legal, no sentido de poderem ter suas alquotas alteradas por ato do Poder Executivo, dentro de limites e condies definidas na lei) no se submetem ao princpio da anterioridade. MACHADO, Hugo de Brito; Curso de Direito Tributrio, p. 265, Sendo, como , o imposto de importao um tributo com funo predominantemente extrafiscal, foi ele colocado como uma das excees ao princpio da anterioridade da lei ao exerccio financeiro. Pode ser ele aumentado no curso do exerccio financeiro. Tambm a ele no se aplica em toda a plenitude o princpio da legalidade. 256 6 - As contribuies sociais de que trata este artigo s podero ser exigidas aps decorridos noventa dias da data da publicao da lei que as houver institudo ou modificado [...]. 256 [...] III - cobrar tributos: [...] c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alnea b; A Noventena ou Anterioridade Nonagesimal, outrora conhecida como Anterioridade Mitigada ou Enfraquecida justamente por se dirigir apenas s Contribuies Seguridade Social, passou a ser um preceito norteador de todo o sistema tributrio com o evidente escopo de reforar a Anterioridade Geral, isto , o Princpio estampado na alnea b. Todo princpio (em verdade, militamos que toda norma) tem o condo de perseguir algum valor concebido como tal pelo legislador e, portanto, pela sociedade que representa. No caso da Anterioridade, o valor corresponde segurana jurdica ou, mais especificamente para a seara tributria, previsibilidade das relaes jurdico-fiscais. Como j discorremos anteriormente, a segurana jurdica aspecto essencial para o desenvolvimento do modelo capitalista. No entanto, a Anterioridade, como originariamente concebida, no era princpio plenamente apto a preservar o valor por ela perseguido. Num exemplo simples, a publicao de lei em 31/12 de um ano autorizava a cobrana do tributo j no dia imediatamente seguinte. O princpio era atendido, mas o valor flagrantemente violado. A extenso da Noventena teve a finalidade de reforar a Anterioridade e, com isso, efetivamente preservar os valores por ela perseguidos. Assim, era de se esperar que as excees Anterioridade Geral fossem as mesmas relativamente Noventena. De fato, em sua maioria so, tais como os prprios II, IE e IOF, bem como os impostos extraordinrios e os emprstimos compulsrios decorrentes de guerra externa e de calamidade pblica. No entanto, h alguns tributos que atendem um princpio, mas no o outro. O imposto de renda, por exemplo, deve atender Anterioridade Geral, mas foi excepcionado do atendimento Noventena. No vislumbramos qualquer razo extrafiscal para excepcionar o imposto de renda. Tambm no concebemos por que o constituinte derivado decidiu por no excepcionar o IPI tambm da Anterioridade Nonagesimal. De toda sorte, tecidas essas consideraes acerca da particular circunstncia do IPI, a Doutrina afirma, de forma praticamente unssona, que tais impostos excepcionam trs dos mais relevantes princpios 257 do Sistema Tributrio Nacional em razo de sua funo extrafiscal de cunho econmico- regulatrio. Todavia, nesse passo indagamos: qual o fundamento para essa afirmao? Vejamos os dispositivos constitucionais pertinentes. Em relao estrita legalidade, assim dispe o 1 do art. 153: 1 - facultado ao Poder Executivo, atendidas as condies e os limites estabelecidos em lei, alterar as alquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.
Em relao Noventena e Anterioridade, assim estabelece o 1 do art. 150: 1 A vedao do inciso III, b, no se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedao do inciso III, c, no se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem fixao da base de clculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I.
Em nenhum desses dispositivos, h qualquer expresso que diga respeito a estmulo ou desestmulo de atividades por meio desses impostos. Note-se que so dispositivos de compostura diversa de outros, como os relativos ao imposto territorial rural. Vide o 4 do art. 153 e seu inciso I: 4 O imposto previsto no inciso VI do caput: I - ser progressivo e ter suas alquotas fixadas de forma a desestimular a manuteno de propriedades improdutivas.
No exemplo acima, a inteno extrafiscal est estampada expressamente na dico do dispositivo constitucional ao se asseverar que a finalidade diz respeito a desestimular a manuteno de propriedades improdutivas. No que se refere s excees, para certificarmos suas razes extrafiscais, necessrio um esforo interpretativo mais elevado. Isso, porm, no desqualifica seu carter extrafiscal e nem o torna menos intenso e relevante. 258 Desse modo, assim como a fixao de alquotas uniformes para o imposto de territorial rural inquinaria de inconstitucionalidade sua lei instituidora, a adoo dessas excees com exclusivas razes fiscais no encontra amparo no Texto Excelso 257 .
9.1.1. O contedo de condies. Como j visto acima, o Poder Executivo pode alterar as alquotas do II, IE, IPI, e IOF, desde que sejam atendidos limites e condies previstos em lei. A Doutrina sempre se refere aos limites como os patamares, superior e inferior, das alquotas. Contudo, o que deve ser compreendido por condies? Uma condio corresponde a uma ocorrncia futura e incerta. Deve, assim, a lei que cria tais impostos regulatrios, alm de fixar a faixa de percentuais, estabelecer quais ocorrncias, no passveis de segura previso, legitimam o Poder Executivo a alterar as alquotas. Passamos, assim, anlise das leis instituidoras de cada um dos impostos.
9.1.2. Imposto sobre operaes financeiras O imposto sobre operaes de crdito, cmbio e seguro, ou relativas a ttulos ou valores mobilirios, de denominao doutrinria mais concisa imposto sobre operaes financeiras, compe o rol daqueles que expressamente excepcionam os ditames constitucionais da reserva legal e das anterioridades. Como j asseveramos anteriormente, tais excees decorrem das finalidades extrafiscais que devem ser desempenhadas por tais exaes. S justificvel a exceo em face de algum critrio particular. No caso, a relevncia de conformar condutas de cunho econmico, que meream interveno clere. No cremos justificvel que tais impostos possam ser empregados como meros instrumentos de arrecadao em descumprimento dos preceitos constitucionais. Vale uma vez mais repisar: se por um lado o Constituinte excepcionou tais impostos de preceitos constitucionais; por outro, o fez por algum motivo, por alguma razo que no pode ser certamente de natureza meramente fiscal.
257 Mesma posio adotada por SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 262: a identificao de tal mitigao no princpio da legalidade insere-se no ordenamento exclusivamente em funo das normas tributrias indutoras, no parecendo cabvel possa o Executivo, diante de mera situao de falta de caixa, valer-se do permissivo constitucional para ampliar seus recursos financeiros, sem prvio exame do Poder Legislativo. 259 A inteno da dico constitucional no se revela, sob qualquer anlise crtica, como guarida de um poder de aumentar a arrecadao ao arrepio dos preceitos constitucionais aplicveis aos demais tributos. ntido, apesar de no expresso, que a inteno foi a de instrumentalizar o Executivo com meios de natureza tributria capazes de fomentar ou desestimular atividades econmicas celeremente, que no se submetam ao processo lento de aprovao de lei formal e nem aos princpios diferidores de vigncia. No entanto, a atual lei que estabelece os limites de alterao de alquota, bem como as condies para sua modificao foi aprovada com a redao que se segue: LEI N 8.894, DE 21 DE JUNHO DE 1994. Art. 1 O Imposto sobre Operaes de Crdito, Cmbio e Seguro, ou relativas a Ttulos e Valores Mobilirios ser cobrado alquota mxima de 1,5% ao dia, sobre o valor das operaes de crdito e relativos a ttulos e valores mobilirios. Pargrafo nico. O Poder Executivo, obedecidos os limites mximos fixados neste artigo, poder alterar as alquotas do imposto tendo em vista os objetivos das polticas monetria e fiscal.
As condies, portanto, correspondem aos objetivos das polticas monetria e fiscal. O primeiro objetivo, ou seja, a inteno legislativa relativa a empreender poltica monetria de cunho extrafiscal e, destarte, coaduna-se com a feio constitucional de excepcionar a variao de alquota a submisso aos ditames da Estrita Legalidade, Anterioridade e Noventena. Com tal propsito, por exemplo, foi editado o Decreto n 6.391/08, o qual, dentre muitas outras modificaes, fixou a alquota do IOF no patamar de 1% sobre operaes de cmbio para ingresso de recursos no Pas, promovidas por investidor estrangeiro com a finalidade de aplicao no mercado financeiro e de capitais, ao introduzir o inciso X no 1 do art. 15 relativo ao Decreto 6.306/07. Anteriormente tais operaes no se sujeitavam tributao, uma vez que sua alquota era reduzida a zero. O objetivo imediato foi o de tornar a entrada de recursos no Pas mais onerosa; com isso inibi-la e, assim, depreciar o Real, o que redunda em fomento das exportaes alvo final da modificao normativa. 260 J a autorizao legal para o Executivo alterar as alquotas com o fito de atender poltica fiscal inconstitucional. Tal acepo no possui, evidentemente, carter extrafiscal. O legislador deveria selecionar apenas objetivos extrafiscais, como o fez ao se referir poltica monetria anteriormente comentada. Um exemplo de aumento de alquota com finalidades evidentemente fiscais foi a edio do Decreto n 6.339/08, o qual aumentou as alquotas do IOF em 0,38% aps a derrota do Governo relativamente prorrogao da CPMF. At pelo preciso patamar do aumento de alquota, independentemente de qualquer declarao que possa ter sido formulada por membros do Ministrio da Fazenda formuladores do diploma editado pelo Presidente da Repblica, evidente que o aumento foi empreendido com a finalidade de compensar a perda de arrecadao com a no prorrogao da Contribuio Provisria sobre Movimentaes Financeiras. Por tal motivo foi promovido pelo Partido Democratas a ADI/4002 em 07/01/2008, ainda pendente de deciso do STF. importante se frisar que, nas hipteses anteriores (Decretos n 6.339/08 e 6.391/08), o veculo normativo infra-legal no estampou expressamente com base em que autorizao legislativa (poltica monetria ou fiscal) foi empreendido o aumento do imposto. Nossas inferncias foram construdas com base em relaes contextuais, o que no se caracterizam como extra-textuais e, portanto, extra-jurdicas. Cremos, contudo, que, da mesma forma como a Constituio impe ao legislador o dever de fixar quais condies legitimam o Executivo a alterar alquotas; no uso de tal competncia, o Executivo deve expor expressamente os motivos para a modificao percentual, deve deixar marcas claras da sua inteno subjetiva no diploma jurdico.
9.1.3. Imposto sobre produtos industrializados
Ao contrrio dos outros trs impostos, o IPI apresenta carter extrafiscal explcito, uma vez que deve ser seletivo, em funo da essencialidade do produto, conforme a dico do art. 153, 3, inciso I, da Constituio Federal. 261 Ainda assim, a alterao de suas alquotas s pode ser promovida segundo as condies legais. Em suma, a lei deve reduzir a vaguidade do contedo de significao do termo essencial. A Lei, contudo, no foi editada aps a Constituio de 1988. Assim, aplica-se o art. 4 do Decreto-Lei n 1.199/71 naquilo em que foi recepcionado 258 . Vejamos sua dico: Art 4 O Poder Executivo, em relao ao Impsto sbre Produtos Industrializados, quando se torne necessrio atingir os objetivos da poltica econmica governamental, mantida a seletividade em funo da essencialidade do produto, ou, ainda, para corrigir distores, fica autorizado: I - a reduzir alquotas at 0 (zero); II - a majorar alquotas, acrescentando at 30 (trinta) unidades ao percentual de incidncia fixado na lei.
H fixao de limites, isto , fronteiras percentuais, mas em absolutamente nada os dispositivos legais reduzem a vaguidade constitucional. De toda sorte, ao menos, no maculam o Texto Excesso, como faz a Lei do IOF ao estabelecer razes de cunho fiscal.
9.1.4. Imposto de importao A competncia para o Poder Executivo alterar as alquotas do imposto de importao est estampada na Lei n 8.085/90, a qual, no entanto, deixa de fixar os limites e condies, reportando-se queles estabelecidos em diplomas legais anteriores atual Constituio Federal, conforme podemos constatar pela redao do art. 1: Art. 1 O Poder Executivo poder, atendidas as condies e os limites estabelecidos na Lei n 3.244, de 14 de agosto de 1957, modificada pelos Decretos-Leis ns 63, de 21 de novembro de 1966, e 2.162, de 19 de setembro de 1984, alterar as alquotas do imposto de importao.
As condies esto estampadas, em especial, no art. 3 da referida Lei n 3.244/57, interpretado em conjunto com o art. 48, abaixo reproduzidos:
258 O disposto no inciso III no foi recepcionado, pois estabelecia competncia para o Poder Executivo alterar a base de clculo em relao a determinados produtos, podendo, para sse fim, fixar-lhes valor tributvel mnimo, o que macula flagrantemente o atual Texto Excelso. 262 Art.3 - Poder ser alterada dentro dos limites mximo e mnimo do respectivo captulo, a alquota relativa a produto: a) cujo nvel tarifrio venha a se revelar insuficiente ou excessivo ao adequado cumprimento dos objetivos da Tarifa; b) cuja produo interna for de interesse fundamental estimular; c) que haja obtido registro de similar; d) de pas que dificultar a exportao brasileira para seu mercado, ouvido previamente o Ministrio das Relaes Exteriores; e) de pas que desvalorizar sua moeda ou conceder subsdio exportao, de forma a frustrar os objetivos da Tarifa. [...] Art. 48 - Enquanto for indispensvel conjugar a Tarifa com medidas de controle cambial, objetivando selecionar as importaes em funo das exigncias do desenvolvimento econmico do pas, as mercadorias sero agrupadas em duas categorias; geral e especial
A lei, assim, estabeleceu o escopo extrafiscal de promover o desenvolvimento econmico do Pas. Em parte alguma da dico legal, encontramos autorizao para modificao de alquota com finalidades de cunho fiscal, o que se coaduna com a atual Constituio Federal. , porm, relevante destacar que tambm no h qualquer referncia variao de alquotas para atender escopos sociais. Pensamos que poderia o legislador estipular no s condies sociais para a modificao de alquotas pelo Executivo, mas tambm estabelecer limites diferenciados. Por exemplo, poderia fixar uma faixa diferenciada de variao de alquotas para gneros de primeira necessidade com um limite superior menor que o previsto para os demais produtos.
9.1.5. Imposto de exportao As razes legais para a variao das alquotas do imposto de exportao so todas de natureza extrafiscal (poltica cambial e do comrcio exterior), conforme dico do art. 3 do DL n 1.578/77, com redao da Lei n 9.716/98: DECRETO-LEI N 1.578, DE 11 DE OUTUBRO DE 1977. 263 Art. 3 A alquota do imposto de trinta por cento, facultado ao Poder Executivo reduzi-la ou aument-la, para atender aos objetivos da poltica cambial e do comrcio exterior. (Redao dada pela Lei n 9.716, de 26.11.1998) Pargrafo nico. Em caso de elevao, a alquota do imposto no poder ser superior a cinco vezes o percentual fixado neste artigo. (Redao dada pela Lei n 9.716, de 26.11.1998)
Dessa forma, o ato do Executivo que modificar as alquotas desse imposto com finalidade fiscal ser inquinado de ilegal j afirmava Baleeiro acerca do imposto de exportao, Discutiu-se, durante geraes, o carter anti-econmico desse tributo, que, em geral, opera contra o pas na concorrncia internacional, onerando os artigos de sua produo e de seus comrcio com o estrangeiro. Prevaleceu acertadamente a opinio de que, ao invs da supresso, deveria ser reservado a casos e conjuntura especiais, como arma da poltica comercial do exterior, cambial e monetria 259 . E completa a seguir, De tributo puramente fiscal dos Estados, transformou-se em instrumento apenas extrafiscal do comrcio exterior 260 . Todavia, discordamos desse entendimento. No h tributo completamente destitudo de carter fiscal. Alis, o imposto de exportao pode servir em algumas especficas circunstncias de fonte adequada e significativa de recursos financeiros ao Estado. S entendemos que as excees aos Primados da Legalidade Tributria, Anterioridade e Noventena no podem ser empregados com finalidades exclusivamente fiscais. Adiante, explicitaremos como o imposto de exportao pode ser empregado com mtuo escopo.
9.2. A TRIBUTAO DO COMRCIO EXTERIOR Certamente um dos temas de Direito Tributrio com o maior nmero de especficas controvrsias o da tributao do comrcio exterior. Diversas questes tributrias so analisadas e sedimentadas na Jurisprudncia de forma absolutamente pontual sem uma percuciente investigao acerca das questes jurdico-econmicas e, portanto, extrafiscais envolvidas nesse conjunto de atividades.
259 BALEEITO, Aliomar. Direito Tributrio Brasileiro, p. 137. 260 Ibid., p. 138. 264 evidente que o fomento do comrcio internacional, da troca de mercadorias, servios e tecnologias entre os pases implementa o desenvolvimento econmico do Pas. Tal fomento, porm, no deve ser feito de forma indiscriminada e ingnua. No caso especfico das trocas de mercadorias, notrio que as importaes apresentam um vis negativo de reduo do mercado consumidor para os produtos nacionais. A abertura indiscriminada de nossos mercados ao produto estrangeiro reduz produo, emprego e, portanto, renda das empresas e de trabalhadores nacionais. Por outro lado, as exportaes so atividade que expande as fronteiras comerciais das empresas nacionais, proporcionando-lhes com isso no s maior receita, mas tambm reduo de custos por meio de ganhos de escala. O ideal seria, por esse vis, promover a exportao e desestimular as importaes. Nada obstante, se todos os Pases assim agissem a conta no fecharia. Se algum exporta, outrem tem que importar. Nesse jogo, a refrega se d pela busca de brechas nos mercados aliengenas e pela obstruo do acesso nossa economia. Na verdade, a abertura de nossos mercados utilizada como instrumento de barganha para penetrao nas economias alheias. H ainda de se considerar que as importaes no apresentam apenas um vis negativo. Importar implica fomentar a concorrncia para os produtores nacionais, motivando-os a aprimorar seus processos e produtos. De toda sorte, tema largamente conhecido em Economia que as Naes, na busca pelo desenvolvimento e insero social de sua populao, devem fomentar suas exportaes e desestimular as importaes. Tais consideraes de cunho, a princpio, estritamente econmico encontram evidente ressonncia no nosso ordenamento jurdico. Vejamos exemplos estampados na Constituio Federal. Como fomento s exportaes h cinco conjuntos de dispositivos: a) art. 149, 2, inciso I, b) art. 153, 3, inciso III, c) art. 155, 2, inciso X, alnea a, d) art. 155, 2, inciso XII, alnea e, e e) art. 156, 3, inciso II. Os trs primeiros dizem respeito a imunidades relativas, respectivamente, s Contribuies Sociais e de Interveno no Domnio Econmico, ao Imposto sobre 265 Produtos Industrializados e ao ICMS; e os dois ltimos so atinentes a isenes heternomas do ICMS e do ISS. Em sentido oposto, ou seja, de desestmulo s importaes, encontramos ainda mais referncias; ao todo sete: a) art. 149, 2, inciso II,e 3, b) art. 153, inciso I, c) art. 155, inciso II, d) art. 155, 2, inciso IX, alnea a, e) art. 155, 2, inciso XII, alnea i, f) art. 177, 4, e g) art. 195, inciso IV. O primeiro discrimina competncia para a Unio criar contribuies sociais e de interveno no domnio econmico sobre importaes; o segundo confere competncia para a Unio criar o imposto de importao; o terceiro refere-se ao ICMS que deve incidir ainda que as operaes e as prestaes se iniciem no exterior; o quarto ainda mais especfico ao estabelecer que o ICMS incidir tambm [...] sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa fsica ou jurdica, ainda que no seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade; o quinto confere competncia lei complementar para, em relao ao ICMS, fixar a base de clculo, de modo que o montante do imposto a integre, tambm na importao do exterior de bem, mercadoria ou servio, o sexto prev expressamente a CIDE relativa a petrleo e seus derivados, gs natural e seus derivados e lcool combustvel, sobre importaes, e, por fim, a stima diz respeito ao importador como fonte da seguridade social. Em praticamente todas as referncias constitucionais relativas tributao do comrcio internacional, o texto supremo estipula regras de onerao para importaes e de desonerao para exportaes. S h uma nica exceo: a discriminao de competncia para a criao do imposto de exportao. Esse caso, contudo, exceo que serve apenas para reafirmar a regra. Da mesma forma como a importao pode apresentar certos aspectos positivos; a exportao pode apresentar aspectos negativos. Dentre tais aspectos esto o desabastecimento interno e reduo do prprio valor da pauta por causa da exportao de produtos de baixo valor agregado. Numa situao em que pode haver carncia de produtos no mercado interno, tais como gneros alimentcios, porque o produtor nacional opta pela exportao em razo de preos mais elevados no mercado externo, uma soluo disposio da Unio a da instituio ou aumento do imposto de exportao. 266 Numa outra situao, os empreendedores nacionais podem ser extremamente eficientes na produo de mercadorias de baixo valor agregado, tais como couro e ferro, mas no serem to competitivos na elaborao de produtos de maior valor, como sapatos e ao. Nesse caso, a imposio do imposto na sada para o exterior de produtos de menor valor agregado visa justamente a estimular o aumento das vendas internacionais em termos qualitativos e, portanto, monetrios. Em suma, isolados esses dispositivos nada significariam, mas em conjunto edificam um evidente intuito constitucional de fomento s exportaes 261 e desestmulo s importaes por meio de instrumentos jurdico-tributrios. A nica referncia tributao de exportaes no infirma a concluso de que a inteno do texto constitucional a de onerar importaes e desonerar exportaes. Merece tambm destaque a regra estampada no art. 152: Art. 152. vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios estabelecer diferena tributria entre bens e servios, de qualquer natureza, em razo de sua procedncia ou destino. Numa leitura atenta, percebemos que a vedao no dirigida Unio, ou seja, esta Pessoa Poltica tem o poder de estabelecer diferenciao tributria em razo de origem ou destino. Tal exceo vedao constitucional visa permitir Unio estabelecer alquotas diferenciadas de seus tributos, em especial o imposto de importao, para produtos advindos das diversas naes em razo, principalmente, de interesses firmados em Tratados e Acordos Internacionais. Para pases em que houve contrapartida de abertura de seus mercados, pode a Unio reduzir ou at eliminar o imposto de importao; para os demais mantm-se, ou at, eventualmente, aumenta-se a alquota originariamente estabelecida. Tal poder atribudo apenas Unio, em razo de representar toda a Federao nas searas de Direito Internacional e impe um mesmo patamar de tributao promovido pelas demais pessoas polticas nem para mais, nem para menos de seus tributos para os bens nacionais e os importados. O que as pessoas de direito pblico internacional negociam entre si no so patamares de alquotas como medida de compensao de suas tributaes internas, mas sim supresso dos patamares mais elevados
261 Conforme SCHOUERI, Lus Eduardo. Normas tributrias indutoras e interveno econmica, p. 319: Claro carter indutor, por outro lado, pode ser encontrado nas imunidades legadas exportao [...] A norma constitucional atua no Domnio Econmico, desonerando o setor exportador de boa parte de sua carga tributria, incentivando, assim, sua atividade. 267 para produtos importados. Assim, no faz nenhum sentido que o Constituinte tenha erigido um sistema constitucional em que operaes entre nacionais possam sofrer incidncia de tributos, enquanto as absolutamente idnticas com a nica diferenciao de que uma das partes no nacional fiquem alheias tributao. Nesse sentido, so absolutamente corretas e contextualizadas com o todo constitucional, as Smulas 155 e 198 do STJ: Smula n 155: O ICMS incide na importao de aeronave, por pessoa fsica, para uso prprio. Smula n 198: Na importao de veiculo por pessoa fsica, destinado a uso prprio, incide o ICMS. A deciso paradigma de ambas as smulas foi proferida no Recurso Especial n 37.648-3, publicado em 11/10/1993, ou seja, h cerca de quinze anos. Em sentido oposto, porm, o Supremo Tribunal Federal sumulou a seguinte posio: Smula n 660: No incide ICMS na importao de bens por pessoa fsica ou jurdica que no seja contribuinte do imposto.
Num dos seus precedentes deciso no recurso extraordinrio n 203.075-1 , assim se assentou na ementa: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTRIO. PESSOA FSICA. IMPORTAO DE BEM. EXIGNCIA DE PAGAMENTO DO ICMS POR OCASIO DO DESEMBARAO ADUANEIRO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A incidncia do ICMS na importao de mercadoria tem como fato gerador operao de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigvel o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa fsica. 2. Princpio da no-cumulatividade do ICMS. Pessoa fsica. Importao de bem. Impossibilidade de se compensar o que devido em cada operao com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. No sendo comerciante e como tal no estabelecida, a pessoa fsica no pratica atos que envolvam circulao de mercadoria.
Ora, com a devida vnia ao Tribunal de mais alta hierarquia deste Pas, decidir pela no-incidncia do ICMS sobre importao promovida por pessoa fsica resultado da no compreenso das estruturas extrafiscais sistematicamente esquematizadas na Carta Constitucional relativamente tributao do comrcio exterior, bem como do 268 critrio da no-cumulatividade, o qual ser abordado em tpico prprio, a que se subordina o ICMS. Alis, j de longa data o Supremo tem decidido por afastar a incidncia do ICMS em diversos tipos de importao em total descompasso com a sistemtica edificao da ordem constitucional presente e passada. Ainda sob a gide da Constituio de 1967/1969, o STF editou a seguinte Smula, em 03/01/1977: Smula n 570: o imposto de circulao de mercadorias no incide sobre a importao de bens de capital. Um dos fundamentos jurdicos das decises 262 que ensejaram a Smula, o de que tais bens no so destinados para revenda. Por conta disso, na Constituio de 1969, foi introduzido no art. 23, que tratava da competncia tributria de Estados e do Distrito Federal, o 11 pela Emenda Constitucional n 23/83: 11 - O imposto a que se refere o item II incidir, tambm, sobre a entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria importada do exterior por seu titular, inclusive quando se tratar de bens destinados a consumo ou ativo fixo do estabelecimento.
Pelas mesmas razes, no texto original da atual constituio, tambm se estabeleceu, no artigo 155, 2, que o ICMS: IX - incidir tambm: a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre servio prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatrio da mercadoria ou do servio; (nossos destaques).
No entanto, uma vez mais, em situao similar o STF decidiu e sumulou a no incidncia desse imposto nas importaes:
262 Com exemplo, transcrevemos parte do voto do Ministro relator no RE 79.951: O fundamento decisivo para que o recurso do Estado no possa prevalecer que se trata de importao de bens de capital [...] no se destinando ditos bens revenda, certo no poderia sobre eles incidir o ICM, como deflui do art. 23, II, da Constituio [...].
269 Smula n 660: No incide ICMS na importao de bens por pessoa fsica ou jurdica que no seja contribuinte do imposto.
O que exigiu do Legislativo nova alterao do corpo constitucional por meio da Emenda n 33/01, cujo dispositivo passou a ter a seguinte dico: a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa fsica ou jurdica, ainda que no seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o servio prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domiclio ou o estabelecimento do destinatrio da mercadoria, bem ou servio (nossos destaques). Esse esforo de produo legislativa no patamar mais elevado da nossa ordem jurdica seria absolutamente despiciendo se o Supremo Tribunal Federal se atentasse s regras como partes de um todo sistemtico harmnico. O problema que o Poder Judicirio, includa sua mais alta corte, bem como parte da Doutrina, interpretam o texto constitucional a retalhos. Lem partculas desconectadas de frases, frases isoladas do texto e textos insulados sem contexto. O mesmo problema agora pode se estender ao imposto sobre produtos industrializados. No RE 255.682, a 2 turma do STF decidiu ser inconstitucional a incidncia do IPI na importao promovida pessoa fsica no comerciante ou empresrio sob o mesmo e equivocado fundamento do princpio da no-cumulatividade. Para tal lanou mo dos precedentes relativos ao ICMS por consider-los semelhantes. No demorar muito para se promover nova e desnecessria modificao constitucional para deixar num nico dispositivo de leitura mais fcil a autorizao constitucional para a cobrana do IPI de pessoa fsica. Tambm merece destaque a definio da hiptese de incidncia do ISS sobre a importao de servios, prevista no 1, art. 1, da Lei Complementar n 116/03: O imposto incide tambm sobre o servio proveniente do exterior do Pas ou cuja prestao se tenha iniciado no exterior do Pas, a qual foi assim comentada por Anna Emlia Cordelli Alves, No se pode, ento, alcanar um prestador do servio que se encontre, que residente, tem seu estabelecimento, no exterior. bem verdade que o que se pretende, aqui, igualar o custo de um servio importado ao custo de um servio nacional; quer dizer, se o servio importado no for tributado, evidentemente que ser prejudicial para o prestador de servio nacional. Mas no assim que se resolve; quer dizer, no uma 270 lei complementar que vai resolver esse problema de relacionamento entre pases. Na verdade, entendo o problema, acho que ele tem que ser solucionado, mas a legislao, tal como posta hoje, no permite, a Constituio no permite 263 . S podemos concordar num ponto. A Constituio no permite, ela determina a tributao de toda e qualquer utilidade importada sempre que houver equivalente tributao interna.
9.2.1. O valor aduaneiro Outro tema especfico tributao das impostaes diz respeito ao conceito de valor aduaneiro. A base de clculo do imposto de importao est definida no art. 20 do CTN. No caso de alquota ad valorem, corresponde ao preo normal que o produto, ou seu similar, alcanaria, ao tempo da importao, em uma venda em condies de livre concorrncia, para entrega no porto ou lugar de entrada do produto no Pas. Como cedio, compete Lei Complementar definir as bases de clculo, contribuintes e fatos geradores dos impostos, conforme prescrio do art. 146, inciso III, alnea a. Foi essa funo a exercida pelo CTN. Todavia, os impostos, assim como os demais tributos, devem ser criados por lei da respectiva pessoa poltica competente, a qual deve ser ordinria, exceto por raras hipteses expressamente previstas como os tributos (impostos e contribuies seguridade social) da competncia residual, que devem ser criados por lei complementar. No exerccio da funo de instituio do imposto, a base de clculo deve ser mais bem especificada. Os dispositivos da lei ordinria so mais minuciosos que os da lei complementar de definio. Por exemplo, o artigo 44 do CTN define a base de clculo do imposto de renda como o montante real, presumido ou arbitrado; nada mais prescreve sobre o tema. No entanto, a lei ordinria estabelece uma inumervel ordem de elementos que devem compor ou no compor a referida base. Na pessoa fsica, podem ser deduzidas despesas mdicas, mas as de instruo esto submetidas a limites. Na pessoa jurdica, podem ser deduzidos os dividendos recebidos de outras empresas, mas as provises em geral no podem ser abatidas. Enfim, transbordam dispositivos sobre o tema.
263 ALVES, Anna Emlia Cordelli. ISS servio proveniente do exterior, p. 89. 271 O mesmo se diga da base de clculo do imposto de importao. H, porm, uma diferena. Foi um tratado e no uma lei que a minudenciou na medida de sua criao. Trata-se do artigo VII do GATT. Nesse tratado, a referida base denominada por valor aduaneiro e as regras de sua determinao so inmeras. Enfim, a expresso valor aduaneiro foi introduzida em nosso ordenamento no exerccio de uma atribuio constitucional de criao do imposto de importao. Nem a Constituio e nem o CTN veicularam tal expresso. Nada obstante, a Emenda Constitucional n 33 de 2001, ao introduzir no corpo lingstico constitucional disposies relativas a contribuies sociais e de interveno no domnio econmico, asseverou que essas contribuies podem ter alquotas ad valorem tendo por base, no caso de importao, o valor aduaneiro. Com base nesse dispositivo e na nova fonte introduzida no inciso IV, art. 195 pela Emenda Constitucional 42/2003, foi editada a lei 10.865/94, que, ao criar a contribuio ao PIS/PASEP e a COFINS sobre importaes, estabeleceu, no art. 7, a base de clculo dessa forma: Art. 7 A base de clculo ser: I - o valor aduaneiro, assim entendido, para os efeitos desta Lei, o valor que servir ou que serviria de base para o clculo do imposto de importao, acrescido do valor do Imposto sobre Operaes Relativas Circulao de Mercadorias e sobre Prestao de Servios de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicao - ICMS incidente no desembarao aduaneiro e do valor das prprias contribuies Em suma, o valor aduaneiro definido pela lei como base de clculo das contribuies no corresponde exatamente quele fixado no tratado como base de clculo do imposto de importao, o que levou ao questionamento de sua constitucionalidade perante os Tribunais do Pas. O STF reconheceu, por unanimidade, a repercusso geral dessa matria no recurso extraordinrio n 559.607, nos termos dos artigos 543-A e 543-B, do Cdigo de Processo Civil, introduzidos pela Lei n 11.418/06, em razo do 3, art. 102, da Constituio Federal, introduzido pela Emenda Constitucional n 45/04. Ao julgar essa questo, dever o STF responder as seguintes questes. Teria a lei maculado a Constituio ao definir a base de clculo das referidas contribuies diversamente do que se estabeleceu no tratado? A expresso valor aduaneiro, introduzida na Carta Magna pela EC n 33/01, deve ser interpretada luz do contexto de Tratado j 272 existente? Devem ser as bases de clculo das referidas contribuies idnticas base do imposto de importao? Tudo depender do contexto adotado pelo STF. Nossa posio a de que as regras constitucionais relativas tributao do comrcio exterior devem ser interpretadas segundo o ditame de que as importaes devem ser oneradas, enquanto as exportaes desoneradas. Fixado esse ponto, todos os tributos incidentes em operaes internas devem ser tambm estabelecidos nas importaes dos mesmos produtos, sob pena de se chegar ao absurdo ponto de se estimular a aquisio no exterior de bens aqui produzidos, uma vez mais baratos por no estar embutido em seu preo o montante dos tributos incidentes nas operaes internas. Ademais, no s os mesmos tributos devem ser aplicados o que cristalino no por fora da aplicao de qualquer princpio econmico, mas sim em razo de preceitos constitucionais , mas tambm os seus critrios quantitativos devem ser idnticos. A alquota na importao no deve ser inferior quela estabelecida nas operaes internas, o mesmo se diga da base de clculo. Todavia, como coadunar tal assertiva com o fato de o Constituinte ter discriminado, pelo menos do ponto de vista lxico, bases de clculo diversas para as importaes em relao s demais operaes? Apesar de os termos serem diferentes, eles buscam refletir a mesma dimenso econmica. O valor aduaneiro como base de clculo do imposto de importao corresponde ao preo normal que o produto [...] alcanaria, ao tempo da importao, em uma venda em condies de livre concorrncia (nossos destaques) e nem poderia ser diferente sob pena de ser violada lei complementar no exerccio de sua especfica competncia material. Nas operaes internas, a base de clculo adotada deve ser o faturamento, a receita bruta ou o valor da operao, que no correspondem mesma dimenso econmica. Sobre o valor da operao, a alquota deve incidir por fora do preo; sobre o faturamento, a alquota incide por dentro; e sobre a receita bruta, a alquota no s incide por dentro dos preos dos produtos, como tambm alcana outras dimenses econmicas, tais como as receitas financeiras. Exceto em relao a essa terceira hiptese, 273 cuja base atinge valores diversos daqueles relacionados especificamente produo e comercializao de produtos; o conceito de valor aduaneiro deve ser estabelecido em lei de tal forma que reflita a mesma dimenso econmica da tributao interna. Se a lei estabelece a base de clculo como o valor da operao, deve ser acrescido ao valor aduaneiro, como definido no Tratado, o ICMS, uma vez que este tributo est embutido na base de clculo relativa operao interna; por outro lado, se for adotado o faturamento (ou a receita bruta) na tributao interna, a definio legal da base de clculo deve ser alterada para incluir tambm as prprias contribuies, sob pena de a operao interna continuar a ser mais onerosa que a importao e, com isso, se estimular a aquisio de bens produzidos no exterior em detrimento da indstria nacional. A finalidade de serem includas mais grandezas base de clculo das contribuies no fiscal, mas sim extrafiscal para igualar tributao interna.
9.2.2. Importao e entidades imunes Outro exemplo, desta vez de contundente incoerncia, diz respeito s aquisies de produtos por entidades imunes a impostos sobre o patrimnio, tais como os prprios entes polticos, suas autarquias e fundaes, os templos de qualquer culto, os partidos polticos e suas fundaes, as entidades sindicais dos trabalhadores e as de educao e de assistncia social. A Smula 591 do STF assim assevera: A imunidade ou a iseno tributria do comprador no se estende ao produtor, contribuinte do imposto sobre produtos industrializados. O mesmo entendimento relativamente ao ICMS j foi inmeras vezes esposado, como na recente deciso relativa ao AI-Agr n 671.412, de 01/04/2008: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTRIO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELTRICA PARA ILUMINAO PBLICA. ICMS. IMUNIDADE INVOCADA PELO MUNICPIO. IMPOSSIBILIDADE. 2. A jurisprudncia do Supremo firmou-se no sentido de que a imunidade de que trata o artigo 150, VI, a, da CB/88, somente se aplica a imposto incidente sobre servio, patrimnio ou renda do prprio Municpio. 3. Esta Corte firmou entendimento no sentido de que o municpio no contribuinte de direito do ICMS, descabendo confundi-lo com a figura do contribuinte de fato e a imunidade 274 recproca no beneficia o contribuinte de fato. Agravo regimental a que se nega provimento.
curioso notar que, em hipteses opostas, o STF no reconhece a imunidade ao lanar mo de fundamento diametralmente oposto, como no RE 281.433: EMENTA: ICMS. Entidade de assistncia social. Alegao de imunidade. - Esta Corte, quer com relao Emenda Constitucional n. 1/69 quer com referncia Constituio de 1988 (assim, nos RREE 115.096, 134.573 e 164.162), tem entendido que a entidade de assistncia social no imune incidncia do ICM ou do ICMS na venda de bens fabricados por ela, porque esse tributo, por repercutir economicamente no consumidor e no no contribuinte de direito, no atinge o patrimnio, nem desfalca as rendas, nem reduz a eficcia dos servios dessas entidades. Recurso extraordinrio no conhecido.
Assim, por exemplo, um Municpio ao adquirir veculos no mercado interno dever arcar com o mesmo preo pago por particulares, uma vez que no valor estaro embutidas quantias relativas ao IPI (imposto federal) e ao ICMS (imposto estadual). Por outro lado, nas importaes, o Supremo entende que a imunidade se aplica para afastar todos os impostos incidentes, como na deciso no AI-Agr n 378.454: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMUNIDADE TRIBUTRIA. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS E IMPOSTO DE IMPORTAO. ENTIDADE DE ASSISTNCIA SOCIAL. A imunidade prevista no artigo 150, VI, "c" da Constituio Federal, em favor das instituies de assistncia social, abrange o Imposto de Importao e o Imposto sobre Produtos Industrializados, que incidem sobre bens a serem utilizados na prestao de seus servios especficos. Agravo regimental a que se nega provimento.
Ou seja, aquele mesmo Municpio que dever pagar, ao adquirir no mercado interno veculos, um preo sobremaneira maior em razo dos impostos incidentes; ao importar os mesmos automveis ser desonerado completamente. Assim, provavelmente, qual opo adotar? A resposta bvia. 275 Ora, a interpretao promovida pelo Tribunal de mais alta hierarquia em nosso pas simplesmente fomenta a aquisio de produtos importados por entidades imunes ao patrimnio em detrimento dos produtores nacionais. As decises so absolutamente contraditrias entre si quando analisadas conjuntamente. No nem de longe razovel se interpretar que o Constituinte, ao veicular o diploma jurdico basilar de nosso ordenamento, estatuiu regras condutoras ao fomento da importao, em detrimento do produtor nacional. Alm de todos os dispositivos constitucionais j citados ao longo desse tpico, que fundamentam nossa assertiva, vale mencionar tambm o artigo 219: Art. 219. O mercado interno integra o patrimnio nacional e ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e scio-econmico, o bem-estar da populao e a autonomia tecnolgica do Pas, nos termos de lei federal. Dispensar as pessoas imunes de recolher os tributos incidentes nas importaes, como o IPI e o ICMS, mas no promover equivalente desonerao nas operaes internas, redunda numa vigorosa mcula clara dico constitucional. No vamos militar a posio de que a imunidade relativa ao patrimnio de entidades impede a exigncia do IPI e do ICMS. Apenas afirmamos categoricamente que, em razo de preceitos extrafiscais, a imunidade deve alcanar todas as operaes internas e externas , ou nenhuma delas.
9.2.3. O preceito extrafiscal de estmulo s exportaes Em posio oposta, mas na mesma linha de poltica de regular o comrcio exterior com o fito de estimular a produo nacional, o Texto Supremo repleto de dispositivos que exoneram as exportaes. Como j citado anteriormente, h imunidades de IPI, ICMS, Contribuies Sociais e de Interveno no Domnio Econmico, alm das isenes heternimas de ICMS e ISS. Alis, tais isenes merecem destaque. Como regra geral, a Unio proibida de conceder iseno de tributos estaduais e municipais. Tal vedao decorre do prprio princpio do Pacto Federativo, cujo reflexo na seara tributria a de especfica discriminao de competncias tributrias, sem a possibilidade infraconstitucional de delegao, nem mitigao. Apesar disso decorrer do prprio Sistema Constitucional 276 Tributrio, para no haver dvidas, em face da importncia do preceito, o Constituinte expressamente dispes no inciso III, do art. 151: Art. 151. vedado Unio: [...] III - instituir isenes de tributos da competncia dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municpios. No entanto, tamanha a relevncia do tema, no caso da exportao de mercadorias e servios, que foi conferida Unio o excepcional poder para conceder isenes relativas ao ICMS imposto estadual e ISS imposto municipal. Enfim, h um claro vetor no sentido de que a inteno constitucional a de desonerar as exportaes. No h uma regra casustica ou especfica sobre a questo, mas sim um feixe organizado de dispositivos que apontam nesse sentido e que indicam, portanto, um claro vetor para a compreenso do intrprete. As regras que conferem imunidades na exportao no devem ser analisadas isoladamente, como se nenhuma conexo houvesse entre elas. Essas regras configuram um contexto lingstico prescritivo acerca do intuito excelso, o que conforma a interpretao de cada uma delas. Acerca desse tema, destacam-se algumas questes especficas.
9.2.4. Imunidade e contribuio social sobre o lucro Uma delas diz respeito imunidade das contribuies sociais abarcar a incidente sobre o lucro. Como j visto, o 2, inciso I, do art. 149, dispositivo introduzido pela EC n 33/2001, veicula uma imunidade relativa a contribuies sociais e de interveno no domnio econmico, conforme dico abaixo: Art. 149. Compete exclusivamente Unio instituir contribuies sociais, de interveno no domnio econmico [...] 2 As contribuies sociais e de interveno no domnio econmico de que trata o caput deste artigo: I - no incidiro sobre as receitas decorrentes de exportao; Nada obstante, em razo desse dispositivo no imunizar diretamente as exportaes e sim as receitas decorrentes de exportao, entende a Fazenda Pblica Federal, que a disposio no abarca a contribuio social sobre o lucro, criada com base 277 na competncia prevista no art. 195, inciso I, alnea c, mas apenas aquelas institudas, como a Cofins, com base na alnea b, conforme redao que se segue: Art. 195. A seguridade social ser financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos oramentos da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, e das seguintes contribuies sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: [...] b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; Segundo esse entendimento, se a inteno legislada fosse a de imunizar as exportaes como um todo, ou seja, todas as grandezas econmicas aptas a oner-las, a redao do dispositivo imunizante no deveria se referir a receitas, mas apenas a exportaes. Discordamos desse entendimento. A princpio, deve haver uniformidade de sentido nas vrias aparies de um termo no mesmo texto. Se numa narrativa, apresentamos uma pessoa como Maria, de se esperar que o ouvinte, em todas vezes que ns citarmos Maria, interprete como sendo a mesma pessoa a que fizemos referncia inicialmente. Por evidente, o intrprete conta com a uniformidade de sentido de termos e expresses. Nada obstante, tal regra no absoluta. Na narrativa, podemos designar outra pessoa pelo mesmo nome e o ouvinte, dever, a partir de outras marcas, identificar em qual sentido empregamos a palavra Maria. Identificamos idntica situao acerca da interpretao do vocbulo lei. No caput do artigo 5, estipula-se que todos sero iguais perante a lei, j seu inciso XIII prescreve livre o exerccio de qualquer trabalho, ofcio ou profisso, atendidas as qualificaes profissionais que a lei estabelecer; e a alnea c, inciso VI, art. 150, estipula que certas entidades so imunes atendidos os requisitos da lei. Ora, como vimos anteriormente, o termo lei apresenta trs acepes diversas. No primeiro caso, como gnero que abarca as espcies lei complementar e ordinria; no segundo, apenas a lei ordinria; enquanto o terceiro a lei complementar somente. 278 Dessarte, o termo receita no deve ser adotado com a mesma significao, pois, assim como o vocbulo lei, foi empregado em contextos diversos. No art. 195, para conferir o poder de criar contribuio; no art. 149, com o fito de imunizar as exportaes. Por esse motivo o STF deferiu medida cautelar na AC n 1.738-6 em favor da Embraer com a seguinte ementa: TRIBUTO. Contribuio Social sobre Lucro Lquido - CSLL. Incidncia sobre as receitas e o lucro decorrentes de exportao. Inadmissibilidade. Ofensa aparente ao disposto no art. 149, 2, inc. I, da CF, includo pela Emenda Constitucional n 33/2001. Pretenso de inexigibilidade. Razoabilidade jurdica, acrescida de perigo de dano de repao dificultosa. Efeito suspensivo ao recurso extraordinrio admitido na origem. Liminar cautelar concedida para esse fim. Aparenta ofender o disposto no art. 149, 2, inc. I, da Constituio da Repblica, includo pela Emenda n 33/2001, a exigncia da Contribuio Social sobre Lucro Lquido - CSSL calculada sobre as grandezas especficas que decorram de receitas de exportao.
No voto do Ministro condutor, fundamentou-se: A intuitiva racionalidade da EC n 33/01, inequivocamente relacionada poltica de desonerao das exportaes [...] confirma o largo e incondicional objetivo da norma de imunidade, desacreditanto interpretaes que pudessem culminar na tributao de receitas por CSLL. salutar que o Tribunal Excelso tenha compreendo o esquema sistemtico de tributao do comrcio exterior to meticulosamente programado pelo Constituinte. Pena que tal compreenso ainda no tenha alcanado as operaes de importao 264 . No faz o menor sentido, desonerar importaes de tributos que incidem sobre idnticos itens de produo nacional.
9.2.5. Importao, exportao e coerncia dos escopos extrafiscais O STJ, por outro lado, mantm uma linha de interpretao absolutamente coerente com a funo extrafiscal que deve exercer os tributos no sentido de fomentar exportaes, mas no importaes.
264 H, porm, algumas salutares excees. Em deciso no qual julgou constitucional a vedao importao de veculos usados, a Excelsa Corte teve oportunidade de assim se pronunciar: Imposto de importao. Funo predominantemente extrafiscal, por ser muito mais um instrumento de proteo da indstria nacional do que de arrecadao de recursos financeiros, sendo valioso instrumento de poltica econmica (STF, 2 Turma, unanimidade, RE 203308/CE, novembro/1996). 279 Da mesma forma como decidiu a incidncia do ICMS na importao de automveis e veculos promovida por pessoa natural para seu prprio uso, julgou indevida a incidncia do mesmo tributo em operaes que conduzem exportao. Nos embargos de divergncia relativos ao RESP n 710.260, decidiu conforme ementa abaixo: TRIBUTRIO ICMS TRANSPORTE INTERESTADUAL DE MERCADORIA DESTINADA AO EXTERIOR ISENO ART. 3, II DA LC 87/96. 1. O art. 3, II da LC 87/96 disps que no incide ICMS sobre operaes e prestaes que destinem ao exterior mercadorias, de modo que est acobertado pela iseno tributria o transporte interestadual dessas mercadorias. 2. Sob o aspecto teleolgico, a finalidade da exonerao tributria tornar o produto brasileiro mais competitivo no mercado internacional. 3. Se o transporte pago pelo exportador integra o preo do bem exportado, tributar o transporte no territrio nacional equivale a tributar a prpria operao de exportao, o que contraria o esprito da LC 87/96 e da prpria Constituio Federal. 4. Interpretao em sentido diverso implicaria em ofensa aos princpios da isonomia e do pacto federativo, na medida em que se privilegiaria empresas que se situam em cidades porturias e trataria de forma desigual os diversos Estados que integram a Federao.
Afastou, portanto, a incidncia do ICMS sobre transporte de mercadoria destinada ao exterior. Tambm merece ateno deciso de recurso especial, por maioria de votos, que considerou da mesma espcie os impostos de importao e exportao em razo de possurem o mesmo escopo extrafiscal. A lide dizia respeito ao reconhecimento do direito compensao entre dbitos de um imposto com indbitos do outro. O artigo 66 da Lei n 8.383/91 s autorizava o encontro de contas entre valores relativos a tributos da mesma espcie. Em razo disso, o voto vencido do relator, Ministro Francisco Peanha Martins, denegava a pretenso sob o seguinte argumento, A compensao autorizada pela Lei 8.383/91 refere-se a tributos da mesma espcie, ou seja, que tenham a mesma natureza jurdica. Na hiptese em comento, os impostos que a impetrante deseja compensar no possuem o mesmo fato gerador e no so da mesma espcie. 280 Todavia, prevaleceu o voto divergente da Ministra Eliana Calmon:
...os Impostos de Importao e Exportao foram institudos pela UNIO e so ambos por ela arrecadados. Destinam-se, um e outro, formao de uma poltica extrafiscal, sem conotao arrecadatria, servindo ambos para a regulao do mercado. Conseqentemente, so os impostos em comento da mesma espcie, pelas semelhanas de origem, de finalidade e de operacionalizao, o que me leva a concluir que pode haver compensao entre eles, como reconhecido ficou nas instncias ordinrias (STJ, 2 Turma, maioria, REsp 252.241/RJ, dezembro/2002).
9.2.6. Imposto de exportao e desenvolvimento econmico De todos os impostos discriminados na Carta Constitucional, o que se presta a incidir sobre a exportao aquele de maior grau de intencionalidade jurdica no-fiscal. No por acaso, compe a trade que excetua, ainda que parcialmente, trs dos mais relevantes princpios emolduradores do Sistema Tributrio Nacional: a Legalidade Estrita, a Anterioridade e a Noventena. Ademais, aponta para uma direo aparentemente diversa daquela na qual se alinham todos os demais dispositivos constitucionais, isto , para a desonerao das operaes de exportao. O motivo desse aparente ds-alinhamento est no efeito indireto de se fomentar a exportao de produtos de alto valor agregado ao se tributar os seus insumos de produo. A eficcia de tal medida e, portanto, da prpria ordem jurdica s ser possvel, contudo, se a realidade guardar certas condies particulares. O direito, como j expusemos, busca o ajuste do mundo linguagem. Ser eficaz se a realidade se ajustar ao estabelecido no discurso prescritivo e no o contrrio. Isso no significa, porm, que, na elaborao das proposies de dever-ser, possa o seu enunciador (o legislador) desprezar as prprias condies do mundo do ser; pelo contrrio. Como j asseveramos sinteticamente, no faz sentido dentico a prescrio de condutas impossveis e necessrias. Evidentemente tais condutas no devem ser determinadas pelo senso-comum, como nossos exemplos anteriores poderiam supor, mas sim pelas Cincias. essa seara lingstica o domnio das proposies mais rigorosas do conhecimento humano e, assim, a mais adequada a estipular tais orientaes. 281 Em razo disso, tambm no faz sentido a elaborao de normas tributrias com fitos extrafiscais, se tais intentos no so passveis de serem alcanados, ainda que parcialmente, em razo de condicionantes ontolgicos. Um dos principais intentos extrafiscais do imposto de exportao corresponde ao fomento da venda para o exterior de produtos elaborados de alto valor agregado por meio da tributao de seus insumos. Tal intento, contudo, s eficazmente obtido por pases que possuam significativa participao no mercado global da respectiva matria-prima. Por meio da tributao da exportao do couro-cru, o Brasil pas que possui o maior rebanho comercial de gado do Mundo , com uma s medida, reduz para o fabricante nacional de calado o custo de produo, e onera o custo dos concorrentes internacionais, como os chineses. Tal medida de carter legal no alcanaria o mesmo intento em pases com condies diversas das brasileiras. A medida tributria extrafiscal deve guardar relao com as especficas caractersticas de cada pas. No Brasil um dos maiores exportadores mundiais de produtos-bsicos , o imposto de exportao um instrumento sobremaneira valioso, porm pouco adotado, como no exemplo acima. No caso do complexo soja, a Argentina adota a tributao das exportaes de gros com o fito de estimular as vendas externas de produtos mais elaborados, como farelo e leo. Com isso, a par de possuir uma produo significativamente menor que o Brasil (conforme dados do Ministrio da Agricultura 265 , em 2005, a Argentina e o Brasil produziram, respectivamente, 38,3 e 52,7 milhes de toneladas), obtm maior receita de exportao. O Brasil hoje um dos maiores exportadores de diversos insumos agrcolas (como soja, acar e carnes;), florestais (como madeira e celulose) e de minerais, em especial, o de ferro. Deveria assim implementar uma vigorosa poltica tributria, especialmente por meio do imposto de exportao, para fomentar a venda externa de leo de soja no lugar de gros, de papel no lugar de celulose, de ao no lugar de minrio de ferro.
265 Endereo eletrnico: http://www.agricultura.gov.br/pls/portal/docs/PAGE/MAPA/ESTATISTICAS/ ESTATISTICAS_MERCOSUL/9.1.F.XLS 282 Pelos dados iniciais de pesquisa noticiados publicamente pela Petrobrs, o Brasil pode em breve se tornar tambm um dos maiores exportadores de petrleo a principal fonte energtica do atual modelo econmico mundial. Em razo disso, muitas propostas tem sido apresentadas com o fito de, de um lado, manter boa parte dessa riqueza no Pas, de outro, no deixar o Brasil sofrer, o que os economistas chamam de efeito Bruxelas, isto , desindustrializao em razo do incremento das importaes decorrente da valorizao da moeda local como resultado do aumento das exportaes de produtos bsicos. A tributao das exportaes do petrleo fomentaria investimentos em refinarias, o que conduziria implementao de toda uma cadeia de produo e desenvolvimento-econmico, acompanhada de emprego e demais conquistas sociais (quem est empregado, possui maiores condies de suprir suas demais necessidades como sade, educao, cultura, etc). O imposto de exportao tambm pode servir de instrumento de negociao internacional na busca de abertura de mercados. A Unio, conforme dico do art. 152 da Constituio Federal, pode, a contrrio senso, estabelecer tributao diferenciada em razo de origem e destino de produtos. Assim, conforme o pas de destino de produto, a alquota do imposto pode ser reduzida a fim de favorecer parceiros comerciais, ou seja, aqueles estados que, mediante tratado, concedem benefcios equivalentes. Em geral, negocia-se no plano internacional a ampliao do comrcio global mediante a reduo de direitos aduaneiros nas importaes. Os pases instituem tributao mais onerosa na importao de produtos aliengenas com o fito (extrafiscal) de proteger seu mercado nacional. Assim, negociam, mediante acordos pluri ou binacionais, a reduo de barreiras tributrias na entrada de seus produtos em mercados de outros pases por meio da reduo de suas prprias barreiras. No caso, contudo, do petrleo, a lgica pode ser outra. O Brasil ao ser alado no futuro condio de grande produtor energtico, alm de poder fomentar a industrializao nacional de toda a cadeia de derivados por meio da tributao da exportao do petrleo; poder negociar condies mais vantajosas para a exportao de outros produtos nacionais, em especial, os de elevado valor agregado avies, por exemplo atravs da reduo da sua prpria tributao sobre a exportao de petrleo. 283 Ao revs de abrir demasiadamente seu mercado interno de bens industriais e de servios para obter a abertura de mercados aliengenas, poder obter o mesmo resultado por meio da venda de petrleo com alquotas inferiores s originariamente estabelecidas. A tributao na exportao de petrleo poder cumprir dois desgnios extrafiscais: (i) o fomento industrializao da prpria indstria do petrleo em terras nacionais e (ii) a abertura de mercados externos para outros bens nacionais.
9.3. IMPOSTO DE RENDA O imposto sobre a renda apresenta uma hiptese de incidncia sobremaneira ampla, vale dizer, os aspectos selecionados pelo legislador para instituir esse imposto pode alcanar os mais diversos fatos econmicos. No, por acaso, o constituinte refora tal caracterstica ao afirmar que esse imposto deve atender aos critrios da generalidade e universalidade. O imposto no dirigido sobre esta ou aquela atividade em particular e no h qualquer dispositivo constitucional que lhe atribua especificamente alguma funo extrafiscal. Isso significaria que o imposto sobre a renda destitudo dessa funo? Seria um rarssimo exemplo de tributo que s apresentaria o escopo fiscal? Mais: estaria a Unio proibida de utilizar esse tributo com finalidades outras diferentes daquela de levar dinheiro aos cofres pblicos, em especial, por causa dos critrios da generalidade e da universalidade? As respostas so negativas para todas as indagaes acima. Justamente por alcanar todas as atividades econmicas, o imposto sobre a renda o mais rico em possibilidades de emprego extrafiscal. Tanto para fins estritamente econmicos (fomentar ou desestimular atividades), como para fins sociais (dirigir os agentes econmicos pratica de aes que satisfaam direitos sociais). E de longa data tem sido empregado para ambos os escopos. Com a finalidade de fomentar exportao de produtos de maior valor agregado, o artigo 5 da Lei n 4.663/65 concedeu a seguinte reduo de base de clculo: Art. 5 Durante os exerccios de 1966, 1967, 1968, as empresas podero deduzir do lucro sujeito ao imposto de renda a parcela correspondente exportao de produtos manufaturados, determinados pela Comisso de Comrcio Exterior e cuja penetrao no mercado internacional convenha promover.
284 Tambm antiga seu uso com finalidades ambientais. J em 1966, a lei n 5.160 concedia reduo da parcela do IR a pagar em razo de aes de reflorestamento: Art. 1 (...) 3. As pessoas jurdicas podero descontar do imposto de renda que devam pagar, at 50% (cinqenta por cento) do valor do imposto, as importncias comprovadamente aplicadas em florestamento ou reflorestamento (...).
No podemos esquecer as vrias possibilidades de adoo de incentivos com finalidades de cunho social. A conhecida Lei Rouanet (Lei n 8.313/91) promoveu o fomento de investimentos em projetos culturais por meio de incentivos relativos ao imposto de renda para pessoas fsicas e jurdicas. H pouco tempo, com a finalidade de incentivar a contratao de trabalhadores domsticos, a Lei n 11.324/06 permitiu, at o ano-calendrio de 2011, deduzir diretamente do imposto de renda devido pelas pessoas fsicas, a respectiva contribuio previdenciria patronal que tenha sido paga no perodo. Bem mais recentemente ainda, a Lei n 11.770, de 09/09/2008, que cria o Programa Empresa Cidad, destinado prorrogao da licena-maternidade mediante concesso de incentivo fiscal, concedeu um incentivo dirigido proteo maternidade (direito social expressamente consagrado no art. 6 da Constituio Federal): Art. 5 A pessoa jurdica tributada com base no lucro real poder deduzir do imposto devido, em cada perodo de apurao, o total da remunerao integral da empregada pago nos 60 (sessenta) dias de prorrogao de sua licena-maternidade, vedada a deduo como despesa operacional.
Enfim, o imposto sobre a renda o tributo, em razo do alcance de sua hiptese de incidncia, com o maior espectro de possibilidades para a implementao de polticas de mbito econmico-social.
9.4. O CRITRIO DA NO-CUMULATIVIDADE Outro tema relacionado extrafiscalidade, mas sobremaneira controvertido o do critrio ou princpio da no-cumulatividade. H quatro referncias constitucionais ao citado preceito: (a) art. 153, 3, inciso II, ao estabelecer que o IPI ser no-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operao com o montante cobrado nas anteriores; (b) art. 154, inciso I, ao discriminar a competncia residual da Unio para criar novos impostos desde que sejam no-cumulativos; (c) art. 155, 2, inciso I, o qual tambm prev que o ICMS ser no- 285 cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operao relativa circulao de mercadorias ou prestao de servios com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; e (d) o art. 195, 12, que atribui competncia lei para definir setores de atividades econmicas para os quais as contribuies sobre faturamento ou receita e, nas importaes, sero no-cumulativas. Em suma, no h apenas um, mas vrios dispositivos que determinam, seno de forma ampla para abarcar os tributos em geral, o ditame da no-cumulatividade para diversos tributos. No h qualquer prescrio que determine o contrrio, ou seja, que algum tributo deva ser cumulativo. A no-cumulatividade , assim, claramente um princpio, representa um fim desejado pelo Constituinte, algo por ele considerado valioso. No , porm, um fim em si mesmo. Os princpios no so o prprio valor perseguido pelo legislador, mas sim estruturas lingsticas que visam realizar tais fins. A Anterioridade e a Noventena, por exemplo, so princpios que visam garantir o valor da segurana jurdica ou da previsibilidade das relaes jurdico-tributrias. Qual seria ento o fim, o valor a ser perseguido pela no-cumulatividade? H vrias posies doutrinrias. Para Eduardo Domingos Bottallo, o princpio visa garantir uma menor carga tributria. Discordamos, um tributo numa estrutura no-cumulativa pode redundar numa carga tributria maior que seu congnere cumulativo se forem aumentadas as alquotas. Um exemplo contundente foi o da modificao do PIS e da COFINS para a estrutura no- cumulativa. Ao mesmo tempo que se alterou a sistemtica, tambm foram aumentadas as alquotas, de tal sorte, que o resultado final acarretou aumento de tributao. Assim, no faria sentido um princpio cujo valor pudesse ser imiscudo com uma simples alterao de alquotas. Uma outra posio afirma que a no-cumulatividade visa garantir ao Poder Pblico um fluxo constante de receitas. Ao revs de se concentrar a arrecadao em apenas uma etapa de produo, ela distribuda por toda a cadeia, o que permite ao Estado auferir continuamente recursos para o cumprimento de suas finalidades. O raciocnio estaria correto se olhssemos para apenas uma cadeia produtiva, ou melhor, para a produo de um s item, como se o Estado fosse financiado pela produo de um nico bem de cada vez. Ora, so infindveis os produtos elaborados. A 286 cada dia, qui a cada hora ou minuto, incontveis bens esto sendo produzidos e negociados em cada uma das fases de produo, bem como na etapa final. Como o Estado arrecada tributos de inumerveis contribuintes, o resultado praticamente o mesmo se receber o montante integral ao final do ciclo produtivo ou as parcelas relativas a cada etapa. No caso do ICMS, tal afirmativa coerente por outro motivo, na medida em que a produo e o comrcio se distribuem de forma no uniforme entre as vrias unidades federativas Dessarte, se fosse escolhida a tributao em apenas um dos elos, a arrecadao poderia se concentrar em apenas poucos entes federados em detrimento dos demais. Por exemplo, adotada uma tributao monofsica na etapa final, os Estados de baixo consumo, mas alta produo, obteriam poucos recursos. Sem dvida, a no-cumulatividade do ICMS por meio do mecanismo de compensao de crditos permite uma distribuio mais equnime entre os vrios entes federados. Nada obstante, esse raciocnio no vlido para o IPI, uma vez que a competncia da Unio. Dessa forma, apesar de a no-cumulatividade ter como resultado uma melhor distribuio da arrecadao ao longo da cadeia, reduzir seu conceito desse efeito especfico relativo ao imposto estadual trata-se de uma simplificao equivocada. Em verdade, conforme discutiremos a seguir, o que permite uma melhor repartio de recursos entre os Estados e o Distrito Federal a especfica no-cumulatividade por meio da compensao de crditos e no a no-cumulatividade em si mesma, posto que um tributo monofsico no-cumulativo e nem por isso atende a uma melhor distribuio da arrecadao entre os diversos rinces do Pas. Assim, podemos categoricamente descartar a necessidade de fluxo de recursos aos cofres pblicos ou a sua distribuio equnime entre os Estados como o valor a ser perseguido pelo ditame da no-cumulatividade. A terceira posio defende que o valor perseguido o da neutralidade, como afirma Mizabel Derzi. A no-cumulatividade determina a neutralidade da tributao, ou seja, independentemente da deciso tomada pelo agente econmico acerca da forma como ir estruturar o seu negcio, a carga tributria sobre o produto ser a mesma. Isso permite aos agentes privados adotarem a soluo mais eficiente do ponto de vista organizacional, tecnolgico, administrativo, etc. Na medida em que o tributo no interfere na tomada de deciso dos agentes privados, ganha-se mais produtividade, a produo se expande e h 287 uma forte contribuio ao desenvolvimento econmico segundo o modelo liberal. A no- cumulatividade, portanto, alinha-se como um preceito tributrio pertencente ao iderio capitalista-liberal.
9.4.1. Harmonia com a seletividade Mas, se dentre os tributos que se submetem no-cumulatividade h aqueles que devem (ou podem) ser estruturados seletivamente em razo da essencialidade dos produtos, como compatibilizar um princpio que visa no influir nas condutas dos agentes privados com outro que tem justamente a finalidade oposta? Se de um lado a seletividade visa influir na tomada de deciso dos agentes econmicos acerca de qual bem produzir; por outro, a no-cumulatividade tem a finalidade de, uma vez tomada a primeira deciso, o agente adote o meio produtivo mais eficaz, pois a tributao ser a mesma idntica seja qual for o modo de produo. Ao revs de opostos, os dois princpios se reforam. Um tributo seletivo incompatvel com a cumulatividade, posto que o efeito do segundo poderia anular o primeiro. Um produto mais essencial que outro e, por isso, com alquota menor, poderia sofrer uma tributao maior se sua cadeia produtiva fosse composta por mais etapas. Um bem pode ser produzido de formas bastante diversas e os caminhos pelos quais o produtor pretende percorrer para elaborar algo no devem ser influenciados pela tributao. Idealmente, o processo deveria ser escolhido pelo agente independentemente do impacto tributrio. Tal valor, de mbito tipicamente liberal-capitalista, coaduna-se com a seletividade de vis social. Mais uma vez nos deparamos com a dicotomia processo-produto. A Constituio se compromete com o Liberalismo em relao ao processo de produo, mas no no tocante aos bens produzidos. A neutralidade garantida em relao a como produzir e no a o que produzir; neste ltimo aspecto, nosso Estatuto Supremo se fia no modelo interventor-social. Apesar do Capitalismo ser o modelo econmico mais eficiente na adoo do modo de produo, seguramente no o mais adequado para a definio do que e quanto deve ser produzido. O mercado deve ser livre quanto ao processo (manejo das unidades produtivas na cadeia de produo, seu tamanho e nmero de elos intermedirios, sua 288 distribuio vertical e horizontal, a escala produtiva, ser intensiva em trabalho ou em capital e assim por diante), mas no quanto ao produto em si. Na Teoria Econmica, sobremaneira conhecida a lei dos rendimentos decrescentes. Em razo dessa lei, numa sociedade que s produz feijo e decide tambm fabricar canhes, ao deslocar insumos da produo de um bem para a do outro (terra, mo- de-obra, matria-prima, etc), a fabricao do primeiro canho, em pouco reduzir a de feijo; a produo do segundo canho, porm, comprometer um pouco mais a de feijo e, assim, sucessivamente; at chegar um ponto em que, para a produo da unidade seguinte desse aparato blico, muitas e muitas sacas de feijo deixaro de ser colhidas. Haveria, assim, um ponto timo intermedirio entre a produo s de canhes e s de feijes no qual seria obtido o rendimento ideal dos meios de produo para produzir o mximo de ambos os bens. Mas como comparar feijes com canhes? Produzir dez canhes e mil sacas de feijo melhor que produzir apenas mil e quinhentas sacas de feijo? S h um modo de realizar tal comparao, reduzi-los a um fator comum, isto , moeda. S podemos comparar bens to diferentes se lhes imputamos um preo. Mas como os preos so definidos? Num cenrio liberal clssico, mediante o mercado, vale dizer, por meio das foras de oferta e demanda. Mas o mercado formado apenas por aqueles que detm renda. Quem demanda quem tem poder econmico, quem pode pagar. Assim, os fatores produtivos so deslocados para a produo daquilo que possui demanda. Todavia, demanda, no modelo liberal, no sinnimo de necessidade social, mas sim da vontade consumista dos detentores da renda. Num exemplo atual, ao considerarmos o milho como insumo e o Planeta como um nico mercado, esse fator tem sido deslocado da produo de alimentos para a de combustvel, em razo das foras de oferta e procura. Os americanos, detentores de boa parte da renda mundial e j mais que saciados em termos alimentares, deslocam, simplesmente por meio da demanda, esse fator para a produo de lcool em detrimento daqueles que dependem desse gro para sua sobrevivncia, mas no possuem renda para pagar o preo formado pelo novo mercado. Num pas como o Brasil, no qual a concentrao da renda uma das maiores do mundo, deixar as foras de seu prprio mercado interno definirem livremente o que e quanto produzir conduziria a aplacar boa parte de sua populao de bens essenciais 289 mnima condio de sobrevivncia; por isso, o imposto sobre produtos industrializados deve e o ICMS pode ser seletivo em razo da essencialidade dos produtos. A no-cumulatividade preceito permeado pelo valor neutralidade de cunho liberal, mas dirigido apenas ao modo de produo; j a seletividade ditame de vis nitidamente social-intervencionista que afasta a neutralidade, mas apenas em relao ao que produzir. Esses dois preceitos demonstram bem o minucioso labor enunciativo do constituinte, por meio do qual busca conciliar dois modelos poltico-econmicos aparentemente antagnicos. Ora prestigia um, ora outro.
9.5. A TRIBUTAO SIMPLIFICADA DAS ME E EPP anterior atual Ordem Constitucional a iniciativa legislativa de dispensar s empresas de menor porte um regime jurdico mais simplificado, no qual fossem reduzidos encargos e obrigaes enquanto estas pessoas no atingissem um determinado estgio de desenvolvimento econmico. A Lei n 7.256/84 j estabelecia o estatuto das microempresas, consideradas como tais pessoas jurdicas e firmas individuais que no suplantassem um certo patamar anual de receita bruta. J havia, contudo, excees legais, vale dizer, entidades que, devido a certas caractersticas ser constituda sob a forma de sociedades por aes, realizar determinadas operaes como importao, cmbio, seguro, etc , no podiam se qualificar na definio legal. Para aqueles que se enquadrassem como microempresas, o referido diploma estabelecia regras especficas com o preciso fito de reduzir e simplificar suas obrigaes administrativas, trabalhistas, previdencirias, dentre outras. Tratava-se, assim, de todo um plexo normativo dirigido a criar um subsistema jurdico facilitador para o nascimento e crescimento de empresas. Consubstanciava-se num conjunto de regras estruturado de forma a implantar um ambiente protetor um verdadeiro berrio normativo para as empresas de menor porte poderem se estabelecer e se desenvolver em condies jurdicas mais favorveis que as dispensadas aos agentes j dotados de maturidade econmica. Em relao s obrigaes tributrias, estatua uma vasta gama de isenes como a do imposto de renda pessoa jurdica , limites para a cobrana de taxas e emolumentos, bem como reduzia significativamente deveres instrumentais. 290 O tratamento diferenciado e favorecido, contudo, s adquiriu status constitucional com a Carta Suprema de 1988. Foram dois os dispositivos que originariamente introduziram o tema: o art. 170, inciso IV, que estabelece um dos princpios basilares da ordem econmica; e o art. 179, no qual foi prescrita regra de carter programtico. O primeiro texto do inciso IX (art. 170) assim rezava: Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princpios: [...] IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.
Esse dispositivo, contudo, teve sua redao alterada pela Emenda Constitucional n 6/95: IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constitudas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administrao no Pas
Com a modificao, possibilitou-se a pequenas empresas, mesmo constitudas com capital estrangeiro, se beneficiarem; para tal, seria suficiente que sua constituio e administrao fossem promovidas e desenvolvidas dentro de nossas fronteiras. A regra programtica apresenta at hoje a letra original: Art. 179. A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios dispensaro s microempresas e s empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurdico diferenciado, visando a incentiv-las pela simplificao de suas obrigaes administrativas, tributrias, previdencirias e creditcias, ou pela eliminao ou reduo destas por meio de lei.
Vale destacar que o dispositivo, ao revs do antigo estatuto infraconstitucional, que s previa uma classe de empresas, estabeleceu dois grupos distintos de pessoas a serem favorecidas: as microempresas e as empresas de pequeno porte. Observar essa distino crucial para a identificao de uma das principais balizas constitucionais do tratamento diferenciado. 291 A lei n 7.256/84 conferia guarida jurdica a uma s categoria considerada economicamente dbil; destarte, ou a empresa se enquadrava dentre aquelas qualificadas segundo os parmetros legais e se favorecia de um esquema normativo fixo, sem qualquer gradao; ou no se enquadrava e, assim, deveria se submeter s regras dirigidas s empresas em geral. Ao revs de ter sido criada uma escada normativa, em que cada degrau atingido impusesse empresa mais obrigaes que as previstas no patamar inferior, at ela alcanar o nvel mais elevado; o diploma normativo fixava apenas dois patamares distantes entre si por um verdadeiro fosso obrigacional. Num dia, a empresa encontrava-se acolhida por um regime sobremaneira protetor; noutro imediatamente posterior, era obrigada a se atirar numa verdadeira selva de encargos. Tal diploma no albergava regras progressivas mais adequadas aos vrios estgios de insipincia econmica que so prprios da vida de uma entidade at que atingisse a maturidade dos agentes j solidamente estabelecidos no mercado. Ao estatuir duas categorias de empresas beneficiadas, a Constituio diretamente estabeleceu a obrigatoriedade de os benefcios serem graduados em, pelo menos, dois patamares. Devem ser maiores os incentivos para as empresas menores as microempresas e menores, mas ainda significativos, para aquelas de envergadura intermediria as empresas de pequeno porte. Estatuiu, assim, uma classe de empresas impberes e outra de empresas adolescentes, as quais, adequando-se a analogia, no so aferidas em razo da idade, e sim quanto sua compleio orgnica. Segundo os dois ditames constitucionais, h um gnero empresas de pequeno porte a que faz aluso o art. 170, que abarca duas espcies discriminadas no art. 179: 1) as microempresas e 2) as empresas de pequeno porte em sentido mais especfico. Merece tambm destaque o fato de o constituinte originrio ter imposto a todas as pessoas polticas Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios o dever de estabelecer, nas suas respectivas esferas de competncia legislativas, regimes favorecidos. Tal dever no se limita a um s dos nveis governamentais, mas se estende a todos. Com base nesses ditames, a Unio, a maioria dos Estados e alguns Municpios estabeleceram regimes jurdicos favorecidos na seara tributria. A Unio, por exemplo, criou o regime intitulado Simples Federal por meio da Lei 9.317/96. Esse diploma, alm de atender os requisitos constitucionais de estabelecer regimes favorecidos distintos para microempresas e empresas de pequeno porte, cumpriu 292 com ainda mais intensidade o critrio da gradao de benefcios. No foram criados apenas dois regimes um aplicvel s microempresas, outro s empresas de pequeno porte , mas, de certa forma, um sem nmero deles com mnimas diferenas entre si, em geral, por meio de pequenas variaes no critrio quantitativo. Duas empresas, a despeito de qualificadas numa mesma categoria, freqentemente estavam obrigadas a aplicar alquotas ligeiramente diferentes em razo de terem obtido, em idntico perodo, nveis de receita bruta diferentes. No havia grandes saltos, como prprio de sistemas menos aperfeioados. Apesar do enorme avano alcanado com os dispositivos constitucionais j referidos, houve dois problemas. Tais disposies apresentam carter programtico e, assim, so de eficcia limitada. No conformam diretamente a conduta humana, mas apenas traam diretrizes e fins a serem perseguidos pelos poderes pblicos. Apesar de condicionarem a legislao futura, no so capazes de compelir o Legislativo sua produo. Em razo disso, muitas pessoas polticas, principalmente Municpios, simplesmente no estabeleceram regimes tributrios favorecidos e no havia qualquer instrumento jurdico capaz de lhes impor tal obrigao. Alis, tambm no h, em nossa ordem jurdica, meios processuais capazes de assegurar aos particulares direitos que lhes seriam prprios caso editadas normas em conformidade com as regras programticas. Uma pessoa domiciliada num Municpio que no estabeleceu um regime favorecido no tinha qualquer direito subjetivo passvel de ser reconhecido judicialmente, apesar de, numa certa medida, encontrar-se em situao de desigualdade e at mesmo de inferioridade concorrencial em relao a uma outra pessoa com caractersticas idnticas s suas localizada noutro Municpio, mesmo fronteirio, onde o regime favorecido houvesse sido estatudo. O segundo problema era atinente uniformizao. No havia qualquer organicidade entre os regimes estabelecidos. Ficava ao talante de cada pessoa poltica no s criar, mas tambm definir a forma do regime criado. Cada legislao federal, estaduais, distrital e municipais estava apta a estatuir critrios diversos para qualificao das pessoas como microempresas e empresa de pequeno porte, fixar limites e condies para o enquadramento, bem como estabelecer as mais diversas formas de benefcio e suas gradaes. O regime favorecido estabelecido, por exemplo, pelo Estado de So Paulo o Simples Paulista s permitia o favorecimento de empresas que fornecessem bens e servios exclusivamente a consumidor final, ao passo que o Simples Federal no impunha esta limitao. 293 Tal carncia de uniformidade entre as mais diversas legislaes levava uma mesma pessoa a ser qualificada como microempresa no plano federal, como empresa de pequeno porte no estadual e a nenhuma das qualificaes na seara municipal. Em regra, o que no deveria ser aceito sequer como exceo, empresas absolutamente idnticas sob os mais diversos critrios juridicamente relevantes eram tratadas de formas absolutamente dspares em relao s mesmas obrigaes tributrias por estarem domiciliadas em Estados distintos. Essa ausncia de harmonizao legislativa gerava inclusive conflitos normativos entre diplomas de uma mesma pessoa poltica. A Lei Federal 9.317/96, que instituiu o Simples Federal, no revogou por completo a Lei n 8.864/94 a qual disciplinava o estatuto das microempresas e empresas de pequeno porte ento vigente e estatua simplificaes e redues de obrigaes das mais diversas searas jurdicas , mas apenas os dispositivos relativos a temas tributrios. Posteriormente, a Lei n 9.841/99, ao fixar novo estatuto das ME e EPP, revogou completamente as disposies da Lei 8.864/94, bem como estatuiu novos limites de receita bruta anual para qualificar as microempresas e as empresas de pequeno porte, o que levou muitos a afirmar que a nova qualificao serviria tambm para fins tributrios. Com o fito de solucionar essas disfunes, a Emenda Constitucional 42/03 introduziu, no art. 146, novas competncias para a lei complementar, conforme abaixo podemos aferir pela redao dos dispositivos pertinentes: Art. 146. Cabe lei complementar: [...] III - estabelecer normas gerais em matria de legislao tributria, especialmente sobre: [...] d) definio de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuies previstas no art. 195, I e 12 e 13, e da contribuio a que se refere o art. 239. Pargrafo nico. A lei complementar de que trata o inciso III, d, tambm poder instituir um regime nico de arrecadao dos impostos e contribuies da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, observado que: I - ser opcional para o contribuinte; II - podero ser estabelecidas condies de enquadramento diferenciadas por Estado; 294 III - o recolhimento ser unificado e centralizado e a distribuio da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados ser imediata, vedada qualquer reteno ou condicionamento; IV - a arrecadao, a fiscalizao e a cobrana podero ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional nico de contribuintes.
So duas competncias; cada qual com o preciso escopo de solucionar um dos problemas. Ao definir o tratamento diferenciado, conforme o estatudo na alnea d, a lei complementar resolveria em parte o problema da falta de uniformizao. Todavia, s o exerccio da competncia, discriminada no pargrafo nico, possibilitaria a completa harmonizao legislativa ao substituir por completo as legislaes editadas por todas as Pessoas Polticas, bem como solucionaria tambm o segundo problema ao preencher a lacuna deixada por grande parte dos Municpios que no criaram seus regimes favorecidos. O tratamento jurdico diferenciado e favorecido dispensado s empresas de menor porte seguramente atende ao primado isonmico do ponto de vista substantivo: tratar os iguais igualmente, e os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdade. Todavia, seus fundamentos jurdicos so sobremaneira mais amplos e os intuitos constitucionais muito mais auspiciosos. A tributao diferenciada e favorecida das empresas de menor porte mais um daqueles dispositivos constitucionais de ndole intervencionista-social. Busca por meio de um s mecanismo atingir dois intentos: (i) o de mitigar as distores do modelo liberal em prol das prprias bases capitalistas e (ii) o de atender aos mais diversos direitos sociais. Em relao ao primeiro escopo, como j destacamos, o livre mercado, nos moldes do liberalismo clssico, incapaz de sustentar suas prprias bases. Ele apresenta distores, as quais impem ao Estado interferir nos domnios privados com a finalidade de promover reparos. Uma das principais disfunes do modelo liberal a dificuldade (s vezes at inviabilidade) de novas empresas se implantarem em mercados dominados por empresas de grande porte, o que macula o primado da livre concorrncia um dos princpios eleitos pelo constituinte como informador da atividade econmica nacional (art. 170, inciso IV, CF). A livre concorrncia um dos mais importantes pilares do Capitalismo e uma das principais justificativas para a adoo desse modelo econmico. Num ambiente em que os agentes concorrem entre si, so impulsionados a produzir mais e melhor, o que 295 repercute no em benefcio prprio, mas para a sociedade como um todo. Em mercados, contudo, j dominados por grandes corporaes empresariais, ainda que no se configurem monoplios ou oligoplios que intencionalmente pratiquem aes para evitar o surgimento de novos concorrentes, sua estrutura de negcio j amadurecida e com expressivos ganhos de escala , por si s, um fator inibidor do surgimento de concorrentes, especialmente, de pequeno porte econmico. Assim, a tributao favorecida de pequenas empresas estimula o surgimento de novas empresas mesmo em atividades j sob o domnio de agentes econmicos de elevado porte. No por acaso, a lei que hoje regula a tributao favorecida (Lei Complementar n 123/06) exclui do favor a empresa resultante ou remanescente de ciso ou qualquer outra forma de desmembramento de pessoa jurdica (art. 3, 4, inciso IX); afinal, o objetivo constitucional de cunho econmico fomentar o surgimento de novos empreendimentos que eles nasam, cresam e amaduream e no o desmembramento dos j existentes. Ao lado do escopo reparador de disfunes liberais, a tributao favorecida das microempresas e empresas de pequeno porte possui destacado intuito social. Um outro relevante princpio da ordem econmica, inscrito na Carta Constitucional, a busca do pleno emprego (art. 170, inciso VIII). O emprego e, portanto, o trabalho, constitui um dos mais importantes direitos da ordem social (Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho). Como so as empresas de menor porte econmico que, proporcionalmente, mais empregam, o estabelecimento de um regime tributrio favorecido para as menores unidades produtivas um importante meio que o Constituinte imps ao legislador para atender a um dos mais relevantes fins de contorno social: o trabalho. O trabalho sobremaneira relevante em razo de, por seu intermdio, outros tantos direitos poderem ser minimamente conquistados. Quem est empregado e, portanto, recebe salrio ao final de cada ms, ter melhores condies, sem a necessidade de interveno direta do Estado, de obter sade, educao, cultura, desporto; enfim, todos os demais direitos da ordem social so indiretamente intensificados. Em suma, o Constituinte ao determinar s Entidades Polticas o estabelecimento de um regime tributrio diferenciado e favorecido para as empresas de menor porte fixou um meio de poltica tributria a ser implementado com o fito de se atingir, no um, mas vrios escopos constitucionais alinhados com os diversos compromissos aparentemente antagnicos de manuteno de um sistema produtivo privado sob bases capitalista-liberais ao lado de um Estado regulador e assistencialista. 296
9.6. A TRIBUTAO AMBIENTAL
No so poucos, no Brasil, os que assinalam a possibilidade de implementao de tributao ambiental, como Regina Helena Costa 266 e Ldia Maria Lopes Rodrigues Ribas 267 . Jos Marcos Domingues de Oliveira coloca, assim, o tema especificamente sobre a relao entre tributao e controle da poluio: Entre os meios de preveno e combate poluio o tributo surge como instrumento eficiente tanto para proporcionar ao Estado recursos para agir (tributao fiscal), como para estimular condutas no-poluidoras e desestimular as poluidoras (tributao extrafiscal) 268 .
Interessa-nos apenas a segunda funo, a qual pode ser implementada para toda e qualquer ao dirigida a preservar e recuperar o meio ambiente. Na verdade, podemos afirmar com segurana que a tributao com escopos ambientais o tema de contedo extrafiscal, sobre o qual, nos ltimos anos, mais se produziram obras, artigos e trabalhos acadmicos no Pas. Dessa forma, no temos a pretenso de, em poucas linhas, abarcar tudo o que a Doutrina j desenvolveu sobre o assunto. Nada obstante, justamente em razo de sua relevncia crescente, no poderamos, ao menos, analis-lo por meio dos instrumentos aqui desenvolvidos. Em primeiro lugar, deve ser observado que a proteo do meio ambiente da competncia comum de todas as Pessoas Polticas, conforme art. 23, inciso VI, da Constituio Federal. Desse modo, todos os Entes Tributantes podem imprimir escopos extrafiscais aos seus tributos. A Unio e os Estados podem diferenciar as alquotas, respectivamente, do IPI e do ICMS, em funo do grau de impacto ambiental dos produtos. O Imposto Territorial Rural pode (em verdade, deve) no incidir sobre reas de proteo ambiental, como bem observado por Rodrigo Maitto da Silveira, Levando em conta essa feio do direito de propriedade, vlido concluir que a natureza extrafiscal do ITR no se verifica apenas em
266 COSTA, Regina Helena. Apontamentos sobre a tributao ambiental no Brasil, p. 325-31. 267 RIBAS, Ldia Maria Lopes Rodrigues. Defesa ambiental: utilizao de instrumentos tributrios, pg. 709-12. 268 OLIVEIRA, Jos Marcos Domingos de. Meio ambiente tributao e vinculao de impostos, p. 86. 297 relao a questes de reforma agrria ou ao desestmulo de latifndios improdutivos. Para alm disso, o princpio scio-ambiental da propriedade rural constitui efetivo fundamento para que o ITR seja utilizado como instrumento extrafiscal, de forma a promover e incentivar a utilizao racional dos recursos naturais e a preservao do meio ambiente 269 .
Alis, os escopos ambientais dessa medida tm norteado no s o legislador, mas tambm os rgos de aplicao ao afastar exigncias administrativas abusivas, como podemos constar por meio de recente deciso do Conselho de Contribuintes: ITR/1997. RESERVA PARTICULAR DO PATRIMNIO NATURAL. REA DE PRESERVAO PERMANENTE. Mesmo antes da constituio da RPPN do Caraguat, a rea do imvel j era de preservao permanente pelo s efeito do art.2 do Cdigo Florestal, conforme atesta o IBAMA/SC e a farta documentao anexada aos autos. As provas reunidas e anexadas desde a impugnao so cabais, afastam qualquer dvida quanto iseno da rea total do imvel em relao ao ITR, constituem prova sensivelmente mais forte e importante do que a mera averbao no CRI ou o simples requerimento de ADA ao IBAMA. O processo est suficientemente instrudo e revela a urgncia de se chamar a administrao tributria responsabilidade de aplicar de modo mais lgico e coerente a legislao relativa a um tributo com a elevadssima importncia extrafiscal de preservao ambiental que o ITR, mormente aps a vigncia da CRFB/1988. (Terceiro Conselho de Contribuintes, 3 Cmara, Acrdo n 303-33532, de 21/09/2006) (nosso destaque).
Enfim, as possibilidades de se empregar os tributos (e no s impostos) com fins ambientais so vastssimas. Alis, sobre esse ponto, merece destaque a EC n 42/03, a qual alterou o princpio da ordem econmica previsto no inciso V, art. 170, da Constituio Federal, de meramente defesa do meio ambiente para defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e servios e de seus processos de elaborao e prestao. Aparenta-nos evidente que tal modificao, por si s, seria suficiente para se afirmar ter o constituinte derivado estabelecido um verdadeiro programa para que as Pessoas Polticas estabeleam tributaes desestimuladoras de condutas nocivas ao meio
269 SILVEIRA, Rodrigo Maitto da. As isenes aplicveis ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, p. 202. 298 ambiente. Essa interpretao reforada ao verificarmos o inteiro teor da referida emenda, em cujo bojo trouxe apenas normas relativas a temas de direito tributrio (dentre outras modificaes no corpo da constituio, ampliou o alcance do princpio da noventena, atribuiu lei complementar competncia para definir o tratamento jurdico diferenciado s microempresas e empresas de pequeno porte, bem como estabelecer um regime nico de arrecadao, e trouxe regras especficas para o IPI, o ICMS, o ITR e o IPVA). Essa insero na ordem econmica uma ntida diretriz de cunho tributrio. Apesar disso, e do enorme entusiasmo com que muitos tm tratado o tema da instituio de tributos com fins ambientais, no podemos deixar de alertar sobre os limites dessa medida, dentre os quais, a prpria competncia tributria. Se por um lado, no h maiores limites regulatrios, uma vez que todos os Entes Polticos dispem de poder legiferante para adotarem medidas de cunho ambiental; por outro, no podem as Entidades Tributantes criar figuras impositivas de carter pecunirio no contempladas na rgida e taxativa moldura constitucional de competncia tributria. Jos Marcos Domingues de Oliveira, por exemplo, defende a criao de taxas em razo do licenciamento, fiscalizao, limpeza e recuperao ambientais 270 . Ora, dificilmente exaes relativas s duas ltimas atividades (limpeza e recuperao) teriam respaldo constitucional, pois a criao de taxas exige que o servio pblico caracterizador de sua hiptese de incidncia seja especfico e divisvel. Desse modo, podemos afirmar que a tributao ambiental no apenas uma possibilidade um conjunto de medidas que podem ser adotadas pelo legislador em razo da ampla discricionariedade que lhe atribuda pela Constituio para perseguir valores estatudos da forma que entender mais adequada. , em verdade, um programa dirigido a todas as Pessoas Polticas para que permeiem de escopos ambientais seus tributos, sem, contudo, ultrapassar os limites de sua prpria competncia tributria..
270 OLIVEIRA, Jos Marcos Domingos de. Meio ambiente tributao e vinculao de impostos, p. 87.
299 CONCLUSES
1. O direito enquadra-se num amplo fenmeno chamado linguagem, o qual nos permite tomar conscincia do mundo, dos outros e de ns mesmos, e que apresenta como unidade fundamental o signo. Pertence ainda sub-classe dos signos comunicacionais que se caracterizam, ao contrrio dos signos naturais, por serem produzidos tambm por seres humanos. O homem est em ambos os plos da emisso e da recepo , o que nos permite identificar duas caractersticas essenciais: a arbitrariedade e a intencionalidade. O direito no se manifesta, contudo, por meio de todo e qualquer tipo de comunicao, mas sim pela textual, que se particulariza em razo da distribuio linear dos significantes. A linearidade, por um lado, confere enorme potncia significativa linguagem textual; mas, por outro, exige um enorme esforo de interpretao. 2. O signo, por seu turno, constitudo por trs componentes o significante, o significado e o referente , os quais apresentam relao com coisas-em-si, mas com elas no devem ser confundidos. O significante no corresponde s marcas de grafite deixadas no papel, nem s de giz grafadas na lousa; o significado no se confunde com os contedos particulares de conscincia; e o referente no o objeto do mundo bruto. Como o signo uma entidade intersubjetiva, seus componentes tambm so; e eles prprios, quando isoladamente considerados tambm apresentam a estrutura de signos. Os vrtices dos signos so, desse modo, apenas posies lgicas ocupadas por outros signos, o que nos permite afirmar haver uma cadeia ininterrupta chamada semiose. 3. No direito, duas semioses se destacam: uma completa, outra degenerada. As cadeias de positivao que culminam na enunciao de normas individuais e definitivas se caracterizam como uma semiose degenerada em razo da necessidade prtica de se dar uma soluo final a situaes concretas. J o intento doutrinrio de se produzir um sistema de proposies completo e coerente com base no texto do direito positivo uma semiose completa em razo de seu carter interminvel. Nenhum tratado doutrinrio capaz de esgotar a produo significativa acerca do direito positivo, ainda que este no mais sofra modificaes pelo seu emissor o legislador. O ordenamento o primeiro signo, cujo referente corresponde ao direito positivo; o Sistema Jurdico o ltimo e, portanto, inalcanvel. 4. Em razo do carter linear da linguagem textual, a formao de sentido deve ser concebida como um processo gerativo. Em cada etapa de interpretao, 300 cumprido o designo de edificao de unidades menores de significao necessrias para se erigir o sentido de unidades maiores nas etapas posteriores, at a construo do texto como uma nica unidade de sentido. Essa marcha de elaborao de significados, contudo, no unidirecional; significaes superiores tambm colaboram na formao das inferiores, num processo de cunho dialtico. 5. A intencionalidade aspecto essencial da comunicao e, portanto, do direito. Apresenta duas dimenses: uma subjetiva, outra intersubjetiva e, assim, de natureza lingstica. A subjetiva inalcanvel. Nenhum ramo comunicacional permite o contato direito do receptor com a inteno do emissor, mas os discursos dialgicos possibilitam maior aproximao. O direito, porm, de natureza monolgica. Assim, s a intencionalidade intersubjetiva presente nos signos jurdicos, isto , os edificados a partir do direito posto, pode ser considerada jurdica e compor o objeto de especulao do Estudo do Direito. 6. A traduo um fenmeno comunicacional ainda mais especfico. Exige, alm do enunciador e do enunciatrio, o tradutor. Este ocupa duas posies diversas conforme a referncia: enunciador para o enunciatrio e enunciatrio para o enunciador. Ademais, em cada posio compartilha cdigos em verdade, enciclopdias diversos com seu correspondente interlocutor, e busca manter a equivalncia de significao de tal forma que os enunciados possam ser, em alguma medida, reversveis. Desse modo, o direito positivo no pode ser concebido como o resultado de um processo de traduo, pois do ser no se deduz o dever-ser e vice-versa. No h qualquer possibilidade de reverso entre o direito e as demais linguagens sociais, porque ora o direito tem a funo de conservao, ora de mudana e no h qualquer critrio, a priori, que permita determinar quando exerce uma, quando exerce a outra funo. J a Doutrina, apesar de possuir funo pragmtica diversa da desempenhada pelo direito posto, pode, numa certa medida, ser considerada o resultado de uma traduo do tipo intralingual, passvel, assim, de se submeter ao teste da reversibilidade. 7. Em razo do carter intencional do direito, devem ser, na sua interpretao, consideradas a finalidade e a funo. A finalidade o propsito de sua enunciao; a funo o papel intencionado que exerce sobre o destinatrio. A extrafiscalidade caracteriza-se justamente na inteno (jurdica) de adoo da regra tributria com finalidades diversas daquela de levar dinheiro aos cofres pblicos; deste modo, deve desempenhar uma dada funo que confirme os escopos de sua enunciao. 301 8. A linguagem pode produzir efeitos sobre o destinatrio no desejados pelo enunciador; de igual sorte, o direito pode gerar resultados no pretendidos pelo legislador. Nesse caso, no pode ser dito que o direito exerce uma funo, em razo de no haver uma finalidade. H, sim, uma disfuno tolerada ou no prevista pelo enunciador. Desse modo, nem todos os efeitos produzidos pelas regras tributrias podem ser considerados extrafiscais. Aqueles no intentados, como o desestmulo ao emprego ao se tributar a folha de pagamento, devem ser considerados como o resultado de disfunes fiscais e no de funes extrafiscais. 9. A ambigidade e a vaguidade so aspectos geralmente considerados limitaes ou falhas da comunicao humana. Ambas, contudo, podem cumprir finalidades e, assim, desempenhar funes. A ambigidade, na linguagem potica, pode ser empregada pelo autor com o fito de fascinar o leitor. No direito positivo, contudo, deve sempre ser considerada uma falha e, desse modo, de cunho no intencional. J a vaguidade pode atender a escopos jurdicos, como o de atribuir e repartir Poder e, desse modo, ser considerada intencional. 10. A vaguidade inerente a todo e qualquer enunciado conotativo. A linguagem vaga, no mbito das normas constitucionais, contido, pode ter a finalidade de atribuir, ao Legislador, parcela do Poder de inovar a ordem jurdica. Em relao extrafiscalidade, desempenha justamente essa funo a fim de possibilitar ao legislador ajustar as normas tributrias aos mais diversos contextos para a realizao de fins constitucionalmente consagrados. J, no plano das normas de conduta, dos diplomas que veiculam os enunciados de composio da regra de incidncia tributria, apesar de inafastvel, a vaguidade deve ser considerada sempre uma falha em razo do preceito da Estrita Legalidade Tributria. 11. As sanes so normas que desempenham a funo de reforar a eficcia do ordenamento jurdico. Elas colaboram para o ajuste pragmtico do mundo ao discurso. Desse modo, no se resumem apenas s negativas vinculadas a condutas proibidas (ilcitas). So de quatro tipos em razo da modulao das condutas prescritas e dos efeitos que produzem sobre os destinatrios: i) negativas vinculadas a condutas proibidas; ii) positivas vinculadas a condutas obrigatrias; iii) negativas vinculadas a condutas permitidas; e iv) positivas vinculadas a condutas permitidas. 12. As prprias regras impositivas que modulam condutas pelo par dentico obrigatrio-proibido determinam a direo de ajuste, a qual reforada pelas normas sancionatrias. Nada obstante, somente por meio das normas sancionatrias possvel 302 determinar a direo em relao s condutas duo-modalizadas pelo functor permitido. Nesse caso, a finalidade jurdica no a de impedir por completo a prtica de condutas, mas apenas incrementar ou reduzir em relao a uma posio esperada na ausncia de regulao. 13. As regras tributrias, ao desempenhar o papel de sano, exercem a funo extrafiscal. Nada obstante, por razes denticas e no lgicas, no podem atuar como um de seus tipos: a sano negativa vinculada a condutas proibidas. Estas so as multas, as quais se submetem a regime jurdico diverso dos tributos. 14. A extrafiscalidade, por caracterizar emprego de normas tributrias na funo sancionatria, est submetida a um condicionante lgico: o tempo. Regras que atribuir conseqncias de forma inaugural a condutas j consumadas como as excepcionais de remisso e transao so destitudas de escopo extrafiscal. 15. H relaes lgicas entre escopos fiscais e extrafiscais. Quo mais intensa a finalidade extrafiscal seja para incentivar, seja para desestimular a prtica de condutas , menor o intento de levar recursos aos cofres pblicos, e vice-versa. No limite, o mximo estmulo, que obtido por meio de isenes, resulta na anulao da funo fiscal da regra. 16. Normas aptas a ferir diretamente as condutas inter-humanas e princpios introdutores de escopos e valores, em razo dos seus graus diversos de vaguidade e das suas relaes de mbito semntico, devem se localizar em patamares hierrquicos diferentes. Os princpios no podem ocupar o mesmo degrau das regras, mas sim nveis que revelem sua supremacia. 17. As regras constitucionais, em razo de seu tpico carter de dplice modalizao, podem ser classificadas em nove tipos relativamente ao emprego das regras tributrias com a finalidade de influir nas condutas intersubjetivas: i) proibitivas, (i.1) da extrafiscalidade positiva, (i.2) da extrafiscalidade negativa, e (i.3) da extrafiscalidade em ambos os sentidos; ii) facultativas, (ii.1) da extrafiscalidade positiva, (ii.2) da extrafiscalidade negativa, e (ii.3) da extrafiscalidade em ambos os sentidos; por fim, iii) impositivas, (iii.1) da extrafiscalidade positiva, (iii.2) da extrafiscalidade negativa, e (iii.3) da extrafiscalidade em ambos os sentidos. 18. H ainda regras constitucionais que impem requisitos formais para a edio de normas tributrias com escopos extrafiscais, como a prescrita no art. 150, 6, segundo a qual, regras de carter positivo no podem ser editadas seno por leis especficas. 303 19. A extrafiscalidade no deve ser considerada como aspecto colateral ou anmalo do Sistema Tributrio Nacional. conformada por preceitos de moldura liberal, como a Legalidade Estrita, a Anterioridade e a Noventena, mas, alm de no ser possvel negar que mesmo estes ditames sofrem algum impacto semntico provindos de intentos extrafiscais, outros, como a Isonomia, a Capacidade Contributiva e a Vedao ao Confisco, possuem fronteiras em grande parte demarcadas pela fora indutora por desgnios sociais e econmicos. 20. A competncia tributria tambm e principalmente demarca limites para a atuao extrafiscal, mas no o nico tipo de competncia legiferante que desempenha essa funo. Para uma Pessoa Poltica poder adotar medidas de carter extrafiscal, no s deve possuir a competncia para criar o tributo, mas tambm a regulatria para disciplinar aquela especfica seara social sobre a qual pretende influir. 21. As imunidades so regras que colaboram de forma negativa com a moldura da competncia tributria. Desse modo, podem exercer funo bloqueadora do uso de tributos com finalidades extrafiscais. Nada obstante, no lhes pode ser negada significao prpria. Desse modo, podem, elas prprias, apresentar tambm finalidade extrafiscal, mas sempre de cunho positivo. 22. A proibio bi-tributao princpio implcito da ordem constitucional, o qual, em razo da inafastvel vaguidade dos enunciados conotativos, deve informar a tarefa do legislador, bem como a do aplicador. Nada obstante, esse preceito conformado por escopos de carter extrafiscal. Por razes de cunho regulatrio e social, admite-se a incidncia de mais de um tributo, inclusive impostos, sobre a mesma classe de fatos econmicos. 23. Os critrios jurdicos de aferio da extrafiscalidade devem todos se ater prpria dico do direito positivo. H critrios contextuais, mas jamais extra-textuais, ou seja, que desconsiderem a letra enunciada pelo legislador. Dentre os textuais, merecem destaque (i) o emprego de palavras e expresses de significado intencional, (ii) a relao entre normas gerais e especiais e (iii) o uso de critrios no eidticos na elaborao da norma de incidncia tributria. Esse critrios no so nicos e tambm sua presena no indica necessariamente o escopo extrafiscal da norma, mas so fortes indcios de sua presena. 24. As normas tributrias podem ser empregadas como expedientes capazes de tornar uma conduta menos confortvel ou mais gravosa e, com isso, desestimular a sua prtica. Por outro lado, a reduo da obrigao resulta, numa certa medida, em incentivo 304 para a prtica do comportamento especificamente regrado em relao aos demais que se submetem disciplina geral. Podem atingir escopos positivos e negativos tanto as regras estatuidoras de obrigaes de cunho patrimonial, como as estabelecedoras de deveres de natureza instrumental. Desse modo, um estmulo pode ser empreendido tanto por meio de uma reduo quantitativa do tributo, quanto pela reduo e simplificao de registros fiscais, como livros e declaraes. 25. H tributos mais aptos ao emprego com fins diversos do fiscal. Nada obstante, todos, sem nenhuma exceo, podem cumprir, em maior ou menor, grau tal desgnio. H, inclusive aqueles, cuja instituio s vlida no caso de efetivamente desempenharem propsitos regulatrios, como a contribuio de interveno no domnio econmico. 26. A fenomenologia tributria longe est de se esgotar com a edio de regras impositivas de obrigaes principais e de deveres instrumentais. Outras tantas, como as extintivas, compe o objeto de estudo do Direito Tributrio e tambm podem ser empregadas pelo legislador para induzir positiva ou negativamente a prtica de condutas. 27. As mitigaes aos preceitos da Legalidade Tributria, Anterioridade e Noventena foram estabelecidas para possibilitar aos Poderes Legislativo e Executivo atenderem desgnios de natureza no fiscal. Desse modo, no esto juridicamente legitimados a fazerem uso de tais ressalvas com escopo to-s fiscal. 28. O primado de desenvolvimento nacional, conjugado a variegadas disposies constitucionais que estipulam a tributao da entrada de mercadorias aliengenas no territrio nacional e desoneram a comrcio internacional de produtos nacionais, informa dois princpios concretizadores no mbito tributrio: o fomento s exportaes e o desestmulo das importaes. Tais princpios, em um retorno dialtico de construo de sentido, influenciam a interpretao dos prprios dispositivos constitucionais de que foram erigidos, e governam a edio dos diplomas infra-constitucionais. 29. A no-cumulatividade, ao lado da maioria dos princpios constitucionais tributrios, ostenta ndole liberal. Por seu intermdio, a Constituio imprime a neutralidade da tributao; valor proclamado pelo Liberalismo Clssico doutrina que repudiava a interferncia da tributao sobre as atividades econmicas. 30. Os tributos seletivos se caracterizam pela variao da alquota em funo do tipo de produto e, assim, permitem ao Estado modificar as relaes de produo o que e quanto produzir. A seletividade da tributao ao contrrio da no-cumulatividade tipicamente um primado intervencionista-social; por seu intermdio so modificadas as 305 esperadas decises das empresas na liberdade absoluta de mercado. Esse princpio permite ao Poder Pblico conduzir as foras da oferta e procura e, destarte, levar os agentes econmicos a produzirem mais determinados bens em detrimento de outros e, inversamente, reduzir o preo daqueles e aumentar destes. 31. A tributao diferenciada e favorecida das empresas de menor porte mais um daqueles dispositivos constitucionais de ndole intervencionista-social. Busca por meio de um s mecanismo atingir dois intentos: (i) o de mitigar as distores do modelo liberal em prol das prprias bases capitalistas e (ii) o de atender aos mais diversos direitos sociais.
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317 RESUMO
O propsito desse trabalho, dividido em trs partes, o de contribuir com o estudo da extrafiscalidade, vale dizer, o emprego das normas tributrias com a finalidade de induzir condutas intersubjetivas. A Teoria da Linguagem, mais precisamente a Semitica, foi o instrumento metodolgico adotado para atingirmos esse objetivo. Na primeira parte, dividida em trs captulos, buscamos precisar a relao entre o direito e a linguagem. No primeiro captulo, selecionamos os instrumentos semiticos; no segundo, construmos um modelo de semitica jurdica; no terceiro, comparamos as estratgias de interpretao jurdica com o processo de traduo lingstica. A segunda parte, composta pelos captulos quarto ao sexto, foi dedicada ao estudo da extrafiscalidade em funo de cada um dos planos semiticos da linguagem. No captulo quarto, enfrentamos as questes de ordem pragmtica, onde se destacam os valores, as ideologias e a intencionalidade caracterizadora do binmio finalidade e funo; no quinto captulo, analisamos os temas relativos semntica, tais como as intertextualidades intra e intersistmica e as supostas falhas de significao; no sexto captulo, visamos a perscrutar os aspectos de mbito sinttico, no qual se evidenciou a extrafiscalidade como o emprego do tributo na funo de sano. Na terceira e ltima parte, igualmente segregada em trs captulos, buscamos perscrutar a extrafiscalidade seus limites e caractersticas nos diversos patamares hierrquicos do ordenamento jurdico nacional. O regime constitucional competncia, imunidades e princpios foi estudado no stimo captulo. No oitavo, investigamos os instrumentos extrafiscais infraconstitucionais. No derradeiro captulo, analisamos cadeias especficas de positivao jurdica dos patamares constitucionais aos legais. 318 ABSTRACT
The purpose of this work, divided into three parts, is to contribute to the study of the stimulating function, it is worth to say, the use of tax rules in order to induce inter- subjective conducts. The Theory of Language, more precisely the Semiotics, was the methodological tool adopted to achieve this aim. In the first part, divided into three chapters, we seek to state exactly the relationship between law and the language. In the first chapter we selected the semiotic instruments; in the second, we built a model of legal semiotics; in the third, we compared the strategies of legal interpretation with the process of linguistic translation. The second part, composed of chapters fourth to sixth, was devoted to the study of the stimulating function according to each of the semiotic planes of the language. In the fourth chapter, we face the pragmatic issues, where we highlight the values, the ideologies and the intentionality that characterize the binomial purpose and function; in the fifth chapter we examine the issues to semantics, such as the intra and inter-systemic inter-textuality and the alleged failure of signification; in the sixth chapter we aim to investigate the aspects of syntactic context, where we highlighted the stimulating function in the role of tax penalty. In the third and final part, also segregated into three chapters, we examine the stimulating function their limits and characteristics in the several hierarchical levels of the national legal system. The constitutional system power, immunities and principles is studied in the seventh chapter. In the eighth, we investigate the stimulating legal instruments. In the last chapter, we analyze the specific network of positive law of the constitutional level to the legal ones. 319 RIASSUNTO
Lo scopo di questo lavoro, che si divide in tre parti, quello di contribuire allo studio dellextrafiscalit, vale a dire luso delle norme tributarie al fine di stimolare condotte intersoggettive. La Teoria del Linguaggio, pi specificamente la Semiotica, stata lo strumento metodologico adottato per raggiungere tale obbiettivo. Nella prima parte, divisa in tre capitoli, cerchiamo di precisare la relazione tra il diritto ed il linguaggio.Nel primo capitolo selezioniamo gli strumenti semiotici; nel secondo, costruiamo um modello di semiotica giuridica; nel terzo, mettiamo a confronto le strategie di interpretazione giuridica com il processo di traduzione linguistica. La seconda parte, composta dai capitoli dal quarto al sesto, stata dedicata allo studio dellextrafiscalit in funzione di ciascuno dei piani semiotici del linguaggio. Nel quarto capitolo affrontiamo le questioni di ordine pragmatica, dove risaltano i valori, le ideologie e il proposito caratterizzante il binomio finalit-funzione; nel quinto capitolo analizziamo i temi relativi alla semantica, come le intertestualit intra e intersistemiche e le supposte falle di significativit; nel sesto capitolo ci siamo sforzati di scrutare gli aspetti di ambito sintattico, nel quale si messo in evidenza la extrafiscalit come luso del tributo in funzione di sanzione. Nella terza ed ultima parte, anchessa divisa in tre capitoli, cerchiamo di scrutare lextrafiscalit i suoi limiti e le sue caratteristiche nei diversi livelli gerarchici dellordinamento giuridico nazionale. Il regime costituzionale competenza, immunit e principi stato studiato nel settimo capitolo. Nellottavo investighiamo gli stumenti extrafiscali infra-costituzionali. Nellultimo capitolo, analizziamo le catene specifiche di positivizzazione giuridica dei livelli costituzionali rispetto a quelli legali.